Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE BELAS ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
SANDRA BEATRIZ DE BERDUCCY CHRISTIE
aruma
Linhas que provocam Práticas em Arte
Salvador
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
SANDRA BEATRIZ DE BERDUCCY CHRISTIE
aruma
Linhas que provocam Práticas em Arte
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, na área de Linguagens Visuais
Contemporâneas, tendo como linha Processos Criativos
nas Artes Visuais, na Escola de Belas Artes,
Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Artes Visuais.
Orientadora: Prof. Dra. Maria Virginia Gordilho
Martins (VigaGordilho)
Salvador
2008
ads:
TERMO DE APROVAÇÃO
SANDRA BEATRIZ DE BERDUCCY CHRISTIE
aruma
Linhas que provocam Práticas em Arte
Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre
em Artes Visuais, na linha Processos Criativos, do Programa de Pós-Graduação
em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, pela
seguinte banca examinadora:
Maria Virginia Gordilho Martins – Orientadora_________________________
Doutora em Artes Visuais, Universidade de São Paulo (USP)
Universidade Federal da Bahia
Mariela Brazón Hernández__________________________________________
Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ)
José Antonio Saja ____________________________________________
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Salvador, 6 de junho de 2008.
AGRADECIMENTOS
Às instituições que me apoiaram:
À Universidade Federal da Bahia, ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, nas
pessoas do Colegiado pela oportunidade que me deram de ser parte do Mestrado.
À Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia – (FAPESB), pela Bolsa sem a qual
a minha estada em Salvador, nem a conclusão do Mestrado teriam sido possíveis.
À Fundação Cultural do Estado Da Bahia (FUNCEB) e aos administradores do Forte
São Marcelo, pelo apoio na realização das exposições simultâneas Wakaychas e
DESENVOLVER, sonho feito realidade.
Existem muitas pessoas para agradecer neste percurso, mas não existe uma ordem.
Começarei agradecendo a minha família, especialmente a minha mãe, Betty e a minha
irmã Ibéria, pela ajuda, carinho e todas “las salvadas”.
A Bernardo, pois este trabalho não teria sido possível sem a sua companhia, apoio,
criatividade, cuidado nos detalhes e, sobre tudo, parceria em nossos projetos comuns.
Para agradecer a minha orientadora VigaGordilho, seu detalhado acompanhamento, sua
entrega, dedicação e amizade, não existem palavras, por isso uma vela do tamanho dela estará
pendurada nas alturas da colina do Bonfim.
Agradeço a todos meus professores do mestrado, especialmente a Prof. Celeste Wanner
e a Prof. Sônia Rangel, que foram determinantes para definir o rumo da minha pesquisa. E a
Professor Ricardo Biriba, pelo que aprendi com ele durante o Estagio Orientado.
A Mariela Brazón Hernandez, por seus valiosos comentários e sugestões bibliográficas.
Do mesmo modo, a meus colegas da aventura do Mestrado os artistas Bel Gouvêa,
Jordan Martins, Eva Arandas, Wagner Lacerda, Tinna Pimentel e Paulo Guinho pela troca de
idéias, as conversas e as caronas.
Aos amigos que me ajudaram a “ENVOLVER”: Mariela Brazón Hernández, Mauricio
Romero Sicre, Luis Cláudio Campos, José Henrique Barreto, Nina Galo, Nathanael Galo
Xavier, Josmara Fresoneze, Olimpo Pinheiro, Rosemary Bastos, Lindaura da Conceição, Vilma
Teixeira, Lua Santos, Ia Santos, Neilde Dos Santos, Hildete Da Paz e Maria Gordilho.
Aos Amigos Leonardo Cunha, Fabio Gatti, Lanussi Pascuali, Joanzito e especialmente a
Jucelia Teixeira, Lola Serrano e Juliana Liao.
A Paula Goitia, Maria Luisa López, a Roberto Rozo pelo silente, mas firme apoio.
Agradeço também aos secretários do MAV-EBA Taciana Almeida e de maneira especial
a Bruno Moura pela correção do português do presente texto.
Aos colegas e às crianças do Espaço Cultural da Fundação Pierre Verger, pelos
momentos compartilhados entre teares, tintas e miçangas, esse grato aprendizado se quedará no
meu coração.
RESUMO
Constituída por uma abordagem prático-teórica, esta pesquisa propõe práticas em arte
através da descoberta do espaço mediante ações provocadas pela linha, tomando-a como
elemento material e imaterial. Propõe-se uma apreciação de um percurso dinâmico, que ganha
espaços mediante o fazer proveniente de uma ação tradicional, como é a feitura do fio e a
tecelagem, assim como a experiência com meios próprios da arte contemporânea, como
fotografia, instalações, vídeo-arte e performance. Em ambas as instâncias o deslocamento existe
como uma constante. Mas esse não é um trânsito que avança em linha reta, em direção a um
único objetivo, senão um caminho excêntrico construído por várias ações contidas no verbo
DESENVOLVER, é dizer, ENVOLVER, VOLVER e VER. Tomam-se cada um destes verbos
como Acontecimentos, no sentido de serem uma conseqüência da ação entre as palavras e as
coisas. Estes associam as possibilidades de criação e reflexão. Ambos - Linhas e Acontecimentos
- apresentam-se aqui como elementos maleáveis em constante mutação e interação, constituindo
matéria e conceitos heterogêneos, podendo ser fragmentados e dispostos em diversas ordens,
constituindo um conjunto de obras que foram apresentadas no Forte São Marcelo em Salvador.
A relevância desta pesquisa consiste em conformar em obras conceitos, técnicas e
práticas tradicionais de arte, principalmente das culturas andina e afro-brasileira, com práticas
da arte contemporânea. Conciliar estas idéias revela não só preocupações como artista, mas
uma preocupação planetária que evidencia angústia pela própria identidade, o trânsito e o
híbrido. A Prática de arte proporciona algumas respostas, pois os produtos de mãos que nunca
descansam estão atestados por elementos restauradores entre vida e arte; não importa a técnica,
durante o processo o mundo adquire matizes diferentes.
Palavras-chave: Arte Contemporânea / Práticas em arte / Linha / Trânsito / Acontecimento
RESUMEN
Constituida por un abordaje práctico-teórico, este trabajo propone prácticas en
arte a través del descubrimiento del espacio mediante acciones provocadas por la línea,
tomándola como elemento material e inmaterial. Se propone una apreciación de un
recorrido dinámico, que gana espacios mediante una acción tradicional, como es la
elaboración del hilo y el tejido, así como la experiencia con medios propios del arte
contemporáneo, como la fotografía, instalaciones, vídeo-arte y performance. En ambas
instancias el desplazamiento existe como una constante. Pero no se trata de un tránsito
que avanza en línea recta, en dirección hacia un único objetivo, sino de un camino
excéntrico construido por varias acciones contenidas en el verbo DESENVOLVER, es
decir, ENVOLVER, VOLVER y VER. Se toman cada uno de estos verbos como
Acontecimientos, en el sentido de que estos son una consecuencia de la acción entre las
palabras y las cosas. Estos asocian las posibilidades de creación y reflexión. Ambos - Líneas
y Acontecimientos - se presentan aquí como elementos maleables, en constante mutación
e interacción, constituyendo materia y conceptos heterogéneos, pudiendo estos ser
fragmentados y dispuestos en diversas órdenes, constituyendo así un conjunto de obras
que fueron presentadas en el Fuerte San Marcelo, en Salvador - Bahia.
La relevancia de esta pesquisa consiste en conformar en obras conceptos, técnicas
y prácticas tradicionales de arte, sobre todo de las culturas andinas y afro-brasileña, con
prácticas del arte contemporáneo. Conciliar estas ideas revela no sólo preocupaciones
como artista, sino una preocupación planetaria que evidencia angustia por la propia
identidad, el tránsito y lo híbrido. La Práctica de arte proporciona algunas respuestas,
pues los productos de manos que nunca descansan están atestados de elementos
restauradores entre vida y arte; no importa la técnica, durante lo proceso el mundo
adquiere matices diferentes.
Palabras Claves: Arte Contemporáneo / Prácticas en arte / Línea / Tránsito /
Acontecimiento
7
Linhas que provocam Práticas em Arte
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................................... 10
1. O EMARANHADO INICIAL .............................................................................................. 20
2. ESPAÇOS DE AÇÃO............................................................................................................ 40
ESPAÇOS FÍSICOS.................................................................................................................. 46
ESPAÇOS SIMBÓLICOS ......................................................................................................... 59
3. UMA ORDEM POSSÍVEL................................................................................................... 66
AÇÃO I
VER................................................................................................................................. 85
AÇÃO II
VOLVER ........................................................................................................................ 96
AÇÃO III
ENVOLVER................................................................................................................. 109
AÇÃO IV
DESENVOLVER ......................................................................................................... 125
AÇÕES FINAIS........................................................................................................................ 131
Referências............................................................................................................................ 140
ANEXOS............................................................................................................................... 143
Fichas técnicas das Obras...................................................................................................... 152
8
ÍNDICE DE FIGURAS
Fig. 1 Escala de intensidades em tonalidades cinza. ................................................................... 24
Fig. 2 Escalas cromáticas, segundo a Teoria das cores de Goethe. ............................................. 25
Fig. 3 Esquema do DESENVOLVER......................................................................................... 34
Fig. 4 Esquema1.......................................................................................................................... 35
Fig. 5 Esquema2.......................................................................................................................... 36
Fig. 6 Vista aérea do Forte São Marcelo ..................................................................................... 38
Fig. 7 Amuleto que representa o Sapo e a rocha de “El Sapo” na beira do Lago Titicaca .......... 40
Fig. 8 Tecido da cultura Jalq’a – Bolívia ..................................................................................... 41
Fig. 9 Merzbau de Kurt Schwitters. 1923.................................................................................... 44
Fig. 10 Yves Klein, Salto no vazio 1960...................................................................................... 45
Fig. 11 Robert Smithson Spiral Jetty (pier ou cais espiral) 1970 .................................................... 46
Fig. 12 imagens das linhas de Nazca. Entre 200 a.C. e 600 d.C ................................................ 47
Fig. 13 Espaços rituais Projeção do Vulcão Licancabur- Bolívia................................................. 48
Fig. 14 Esquema do passo do sol nas ruínas de Uaxactún - Guatemala..................................... 49
Fig. 15 Obra de Edith Derdyk, 1999 .......................................................................................... 52
Fig. 16 Milhas de barbantes. Marcel Duchamp, 1942................................................................ 52
Fig. 17 Reticularea, Gego, 1968.................................................................................................. 53
Fig. 18 José Damasceno, Snooker, 2001....................................................................................... 56
Fig. 19 Dois momentos da queima da mesa ritual ..................................................................... 60
Fig. 20 Como explicar quadros a uma lebre morta. Joseph Beuys, 1965 ................................... 62
Fig. 21 Saxraña............................................................................................................................. 66
Fig. 22 Objetos achados no interior dos novelos........................................................................ 72
Fig. 23 A wakaycha da minha avó................................................................................................ 73
Fig. 24 aruma, no se cansa de pedir desejos. VigaGordilho, 2007............................................. 77
Fig. 25 Kimsooja em performance com os bottaris...................................................................... 78
Fig. 26 Las animas, La Paz- Bolivia............................................................................................... 79
Fig. 27 Sala Wakaychas, instalada no Forte São Marcelo........................................................... 82
Fig. 28 Sala VER durante a exposição no Forte São Marcelo. ................................................... 87
Fig. 29 Kimsooja, Needle Woman. 2005....................................................................................... 93
Fig. 30 Nam June Paik, Zen for TV............................................................................................ 103
Fig. 31 Trânsito entre intensidades........................................................................................... 112
Fig. 32 K’isas de um tecido tradicional da Bolívia. ................................................................... 113
Fig. 33 Tullmas de Ch’allapampa.Lago Titicaca........................................................................ 115
Fig. 34 Esquema do processo ritual da “cura pelo arco-íris”..................................................... 116
Fig. 35 Durante um dos mutirões convocados para ENVOLVER........................................... 118
Fig. 36 Barbantes tingidos......................................................................................................... 118
Fig. 37 Obra de Jesús Soto........................................................................................................ 120
Fig. 38 Montagem da série chiris na Sala DESENVOLVER..................................................... 121
Fig. 39 Lugares onde foi tecido o tear....................................................................................... 126
Fig. 40 Tocoyal de Almolonga - Guatemala. ............................................................................. 127
Fig. 41Fuso ou puschka.............................................................................................................. 133
Fig. 42 Faixa tecida.................................................................................................................... 137
Fig. 43 Variedade de fusos. ....................................................................................................... 145
Fig. 44 Imagem do processo de enfiado.................................................................................... 146
9
ÍNDICE DE OBRAS
Obra 1 Chordata Gryphus.Vista Frontal....................................................................................... 51
Obra 2 As indústrias. Vista lateral.............................................................................................. 54
Obra 3 Imagens do Vídeo-performance TEMPO....................................................................... 63
Obra 4 Ovillos viajeros .................................................................................................................. 70
Obra 5 Achachilas ........................................................................................................................ 71
Obra 6 Wakaycha Espiral ............................................................................................................ 75
Obra 7 Wakaycha oriooo............................................................................................................... 76
Obra 8 Wakaycha animas ............................................................................................................. 79
Obra 9
Wakaycha Chasqui ........................................................................................................... 81
Obra 10 Q’aiturastro, Rastro de linhas........................................................................................ 88
Obra 11 horizonte sem horizonte. Instalada no Museo Tambo Quirquincho. ......................... 97
Obra 12 horizonte sem horizonte. Instalada na Sala VOLVER no Forte São Marcelo. ............ 98
Obra 13 Puruma. ....................................................................................................................... 109
Obra 14 Uaxactún...................................................................................................................... 110
Obra 15 Dendê........................................................................................................................... 111
Obra 16 k’isa liriu. ..................................................................................................................... 114
Obra 17 Instalação Jatunkocha Sala ENVOLVER.................................................................... 117
Obra 18 yawarnina, sangue e fogo............................................................................................. 121
Obra 19 altamar......................................................................................................................... 122
Obra 20 vacaciones..................................................................................................................... 122
Obra 21 Sawri Llawthapita......................................................................................................... 125
Obra 22 Amigas. ....................................................................................................................... 129
Obra 23 Ação performativa no Forte São Marcelo................................................................... 132
Obra 24 Una concha para el Hayna Potosi .............................................................................. 138
10
INTRODUÇÃO
Esta dissertação intitulada DESENVOLVER Linhas que provocam Práticas em Arte,
elaborada no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, na área de pesquisa Processos
Criativos nas Artes Visuais, tem como objetivo criar uma linguagem visual mediante ações
provocadas pela linha, tomando-a como elemento material e imaterial. Propõe-se a apreciação
de um percurso dinâmico que ganha espaços mediante Práticas em arte; é dizer, tanto com
procedimentos provenientes de um fazer tradicional, como é a feitura do fio e a tecelagem,
quanto da experiência com meios próprios da arte contemporânea. Registram-se, através deste
percurso, observações e reflexões sobre as obras criadas, relacionando suas particularidades a
certos aspectos próprios da cultura andina, assim como a pensamentos de filósofos
contemporâneos.
A linha, componente essencial desta pesquisa, é concebida nos dois aspectos que
encerram o seu significado etimológico, pois a palavra latina línea contempla os conceitos de fio
e limite (AURÉLIO, 1999). Ambas as conotações são associadas respectivamente com a
materialidade e imaterialidade da linha. Estas características permitem relacioná-la com
elementos plásticos e virtuais. Assim sendo, nesta pesquisa, a linha, em seu aspecto material,
apresenta-se como fios, tramas, urdiduras e objetos diversos e, no seu aspecto imaterial,
relaciona-se com o efêmero e simbólico contido em imagens e ações imateriais, gerando
múltiplas possibilidades visuais e espaciais.
Abordou-se, também, o fazer metodológico a partir de dois conceitos que se
complementam, ou seja, considerei apropriado situar a metodologia desta pesquisa entre a
poiesis
1
e a práxis.
2
Entendida a poiesis (poética) como a conduta criativa, no sentido proposto
por Bachelard, no qual o poeta deve escrever, com lápis e papel, as imagens geradas no devaneio
(BACHELARD, 1988 p.16). Acredita-se que, do mesmo modo, o artista visual deve materializar
essas imagens valendo-se de diversas técnicas e ferramentas. Umberto Eco levanta a hipótese de
que na prática da arte contemporânea é notável que as obras estejam voltadas para a proposição
de novas poéticas. Para o autor, a poética define-se como as intenções que guiam as operações
1
A palavra Poética tem origem na palavra grega Poiesis que significa criação, confecção e fabricação.
2
A palavra Práxis provém do grego Prâxis, cujo significado é ação, atividade prática; exercício, uso.
11
artísticas, o que implicaria um modelo operacional abstrato assim como uma estrutura
conceitual que a gere formalmente. Com efeito, para compreender as proposições
contemporâneas, é necessário compreender as poéticas que elas engendram (ECO, 1970 p.246).
Mas se assume uma postura crítica quanto à poética, reconhecendo as convenções
relacionadas com ela nas artes visuais, convenções que poderiam ser associadas com a atitude
ensimesmada do artista e reforçariam a “distância estética” entre criação e o entorno como
atributo das obras. Por essa razão, utilizou-se também o que seria um elemento metodológico
restaurador da relação entre arte e vida: a práxis, entendida como ação efetiva e concreta dentro
de uma comunidade. Neste trabalho em arte, procuram-se situações e ações que expandam a
poiesis até convertê-la em prâxis, vinculando significados ontológicos com situações sociais e
políticas reais, apoiando-se organicamente sobre a possessão comum de valores: língua,
costumes, jeitos característicos e eventos cotidianos concretos.
Entre poiesis e prâxis, existe uma ampla gama de matizes, com diversos níveis de
complexidade, e quando neste trabalho fala-se de situações liminares ou marginais, também se
fala da condição híbrida presente na realidade do mundo contemporâneo. Assim, palavras
como: Trânsito, Memória, Não-lugar e Heterotopia revelam minhas preocupações como artista,
e evidenciam as incertezas e dúvidas sobre o próprio ser, estar e fazer no mundo e,
essencialmente, como habitante de um planeta em crise. Uma preocupação planetária que
demonstra angústia pela própria identidade. A idéia do trânsito como perda (despedida e
morte), e os segredos jamais desvendados de culturas que parecem extinguir-se. Inquietações
que evidenciam uma situação de instabilidade e incerteza. Como artista, descobri que uma
forma de “tratar” essa angustia é a Prática em arte.
É essa Prática que proporciona algumas respostas, pois os produtos das mãos que nunca
descansam estão atestados por elementos restauradores entre vida e arte; não importa a técnica
ou o meio, durante o processo o mundo adquire matizes diferentes. Da mesma maneira, a
Prática transita entre dois extremos: a presença de um mundo interior, no recolhimento de um
fazer tradicional, quase meditativo e inalterado, que compreende conhecimentos genuínos de
culturas antigas deste continente (andina, maia e afro-brasileira), mais especialmente das nações
12
quéchua
3
e aimara
4
, que constituem a matriz criativa e afetiva deste trabalho. E, pelo outro lado,
o mundo não menos complexo e extrovertido da arte contemporânea, onde se pode lidar com o
espaço externo e com o efêmero. Em ambas as instâncias o deslocamento existe como uma
constante. Mas, esse não é um trânsito que avança em linha reta, em direção a um único
objetivo, senão um caminho excêntrico construído por várias ações.
Considero que este trabalho, de maneira íntegra, está marcado por situações similares
de encontro de elementos contrastantes - começando por reconhecer sua natureza prático-
teórica - pois, encontra-se sempre em lugares intermediários, assumindo essa posição como um
genuíno espaço onde diversos fluxos convergem, e a partir dos quais podem ser exploradas
inúmeras possibilidades criativas. A primeira situação liminar, que considero importante tratar
nesta introdução, é justamente a necessidade de procurar um equilíbrio entre o fazer artístico
espontâneo, às vezes disperso, e o exercício acadêmico da escrita, que imprescinde de
objetividade, clareza metodológica e conceitual. Assim, escrever é uma tarefa complexa, pois
apresenta significativos desafios no caso específico da pesquisa em artes visuais: nesta área é
extremamente dificultoso liberar a escrita de certas paixões e fixações individuais e subjetivas,
até anedóticas. Por outro lado, está em jogo a fluidez e a intuição que caracterizam o processo
criativo, perante a possibilidade de reduzir a obra a uma explicação racional, que pode resultar
arbitrária, forçada, atribuindo a certas obras conceitos e associações que às vezes não tem nada a
ver com aquilo que se observa sob circunstâncias diferenciadas.
Detectada esta primeira situação, pude discernir os principais riscos aos quais estive
submetida no transcurso deste trabalho: a escrita autobiográfica, sem dúvida, foi um dos
maiores desafios, por tratar-se de um trabalho que referencia a memória. Já nos primeiros
manuscritos, terminei fazendo revelações carentes de importância para os novos rumos que iam
aparecendo na pesquisa e na obra. Mas, para não perder as contribuições e benefícios que esse
método pode sugerir, decidi seguir a experiência criativa de Roland Barthes (A Câmera Clara),
que se toma a si mesmo como medida do “saber” fotográfico. Adotando “a emoção como ponto
de partida”, ou seja, a emoção como forma de conhecimento, o autor formula a partir da sua
sensibilidade o traço fundamental sem o qual não haveria fotografia. Da mesma forma que esse
3
Cultura indígena sul-americana, da área andina, que habita principalmente no Peru, na Bolívia e no Equador,
cujo idioma, o quéchua, era a língua oficial dos incas, uma das maiores civilizações pré-colombianas e, à medida
que o Império se foi estendendo, sua utilização se divulgou por um extenso território da América do Sul.
Atualmente falam essa língua vários milhões de pessoas.
4
Aimaras ou Aimarás, povo que habita na alta meseta do Lago Titicaca, na Bolívia. A língua aimara é muito
divulgada e a falam diversos grupos indígenas como os Collas, Lupacas, Pacajes e outros.
13
autor utiliza elementos pessoais e emocionais como matéria-prima de seus próprios escritos e
criando a partir disso o seu estilo. Segundo Leyla Perrone Moisés, a lição de Barthes, como a de
todo artista, pode resumir-se no seguinte:
"Eis o que eu fiz isto não é para ser refeito, pois já está feito; mas o fato de que
eu o tenha feito prova que é fazível." (Sempre me impressionei, nos museus, por
esta lição exclusiva - nos dois sentidos - dos grandes quadros: "Eis aí, é isto; eu te
desafio a achar outra coisa tão certa como esta." Não um modelo, portanto
nenhuma lição efetiva, mas a afirmação de uma possibilidade e uma espécie de
desafio tranqüilo.) (PERRONE, Leyla. In: Barthes, 2004, p. 52).
Assim sendo, neste trabalho, proponho-me a seguir o rastro de um processo criativo
inserido em uma memória ampla, abrangente e inclusiva. Assumem-se as experiências que
conduziram à obra como uma forma de conhecimento e a escrita como uma outra forma de
criação, criando um entrelaçamento em todo o processo.
Desse modo, um outro desafio foi a apropriação de conceitos da filosofia, lingüística e
sociologia, os quais tinham que ser “deslocados” do texto original e inseridos no meu próprio
texto, ganhando assim outras implicações e gerando outras relações. Assim, busquei que as
leituras e revisões de textos se realizassem no mesmo tempo que o trabalho prático, fazendo
destas duas atividades parte integrante do dia a dia do atelier. Descobri dessa maneira que a
filosofia é mais uma ferramenta de trabalho na Prática do artista, no sentido de ser o trabalho
da arte um laboratório onde convergem possibilidades de descoberta, saberes paralelos e
pequenas verdades, que permitiriam criar um discurso com o qual o leitor, qualquer que este
seja, possa deixar-se conduzir e, sobretudo, oferecer-lhe alguma contribuição ou aporte sobre
experiências sui-generis da pesquisa em artes visuais na América Latina.
Em seguimento a este raciocínio, um outro desafio que tive que superar foi a falta de
distância física e temporal com o conjunto da obra. Acredito que todo artista pode avaliar
melhor a sua própria produção depois de algum tempo e de algum distanciamento dela. Deixar
a obra “amadurecer” poderia propiciar uma melhor e imparcial ponderação do artista sobre seu
próprio trabalho.
Foi com esta distância espacial e temporal que consegui ter uma visão cabal sobre o
conjunto de obras realizadas antes do mestrado. Essa situação propiciou um olhar crítico e me
levou a sentir a necessidade de sair do peso da pintura e dos tecidos bidimensionais, à busca da
leveza do espaço, sem renunciar ao elemento fundamental que é a linha. Não se trava de deixar
tudo e começar do zero, ao contrário, a pesquisa desenvolvida desde o ano 2001 sobre técnicas
14
tradicionais de tecelagem e corantes naturais na América Latina foi a que me proporcionou
conhecimentos e experiência de primeira fonte, graças aos quais pude discernir a importância
das práticas, processos criativos e as ações contidas nelas.
No tocante à distribuição da estrutura da presente dissertação, Nestor Garcia Canclini
foi inspirador, quando na “entrada” do livro Culturas Híbridas enfrenta o problema de como se
deveria escrever sobre essa complexidade cultural da América Latina, pontuando sobre isto que:
Para analisar as idas e vindas da modernidade, os cruzamentos das heranças
indígenas e coloniais com a arte contemporânea e as culturas eletrônicas, talvez
fosse melhor não fazer um livro. Também não um filme, nada que se entregue
em capítulos e vier desde um princípio até um final
. (GARCIA, 1990, p.16)
Neste livro, o autor propõe utilizar o texto como uma cidade que tem várias entradas e
acessos, onde cada capítulo remete aos outros e onde não deve importar por qual dos acessos se
chegou, pois “dentro tudo se mistura”. Concordando-se com esse pensamento, esta dissertação
está dividida em três partes, e apresenta um conjunto heterogêneo de obras e de reflexões: Na
primeira e segunda partes, intituladas O emaranhado inicial e Espaços de Ação, definem-se os
espaços que serão percorridos, a partir de uma “desordem original”; a terceira parte, Uma
ordem possível, apresenta uma das muitas possibilidades de dar ordem ao conjunto
predominantemente heterogêneo de obras produzidas durante o mestrado.
O emaranhado inicial lembra a desordem existente nas fibras antes de serem enfiadas.
Com base no conceito de acontecimento proposto por Deleuze, justifica-se a necessidade de achar
uma ordem para dar sustento ao conjunto diverso de obras e reflexões por elas geradas.
Reconhecem-se situações marginais e fragmentárias, próprias dos processos de hibridação. Neste
sentido, apoiei-me em autores como Nestor Garcia Canclini, Sergei Grusinski, Stuart Hall,
Paola Berenstein, entre outros, que descobriram no cotidiano das cidades da América Latina a
experiência estética no híbrido, no fragmentário e no marginal. Apresentam a cultura deste
continente como uma cultura híbrida, com características tanto modernas quanto pós-
modernas, uma sociedade de contrastes, onde tradição e alta tecnologia convivem junto a
condições de extrema desigualdade, as quais geram outras relações e “outros” espaços, sendo
Michel Foucault que nomeia a esses “espaços outros” como Heterotopias. Também se tenta
visualizar espaços de trânsito em um esquema concêntrico e dinâmico - tal como os círculos
concêntricos que uma pedra forma ao cair na água - que vai da concentração à diluição,
constituindo espaços de ação interconectados.
15
A partir desde ponto, na segunda parte, Espaços de ação, a tentativa está dirigida ao
reconhecimento dos espaços a serem transitados durante esta pesquisa. Considerei necessário
rever o que outros artistas ou movimentos tinham fundado à luz de um referencial pouco
convencional: o manejo do espaço nas manifestações artísticas das culturas pré-colombianas, a
partir de dois pontos: o suporte, ou seja, o espaço físico (tendo como referência as ruínas) e o
ritual, o espaço simbólico (tendo como referência os aspectos ritualísticos).
Para definir estes “espaços de ação”, resultou de grande importância o conhecimento
dos processos criativos das culturas andinas onde o “envolver”, ao fazer o fio, é mais do que
uma ação criativa, pois, no contexto do pensamento andino, esta ação se converte em uma
metáfora do tempo e do espaço. Estas afirmações quase intuitivas foram confirmadas com os
trabalhos de antropólogas como Verônica Cereceda, Olívia Harris e Teresse Bousse-Cassagne,
que escrevem sobre o pensamento têxtil e a estética na cultura andina.
Na terceira parte propõe-se Uma Ordem Possível, onde propõe-se que para sair do caos
é preciso definir um ponto de partida e eleger uma ordem entre muitas outras possíveis. Para
isso é preciso formar séries, através de ações. Em outras palavras, parte-se de um espaço
complexo e caótico que se perde na memória íntima, um lugar abarrotado de segredos e de
forças potenciais que propiciam a ação criativa, - um ponto de maior concentração - até chegar a
um estado de continuidade, como é o desenvolver, estado de trânsito que pode expandir-se até
limites imprevistos - pontos de diluição. As séries de obras, conformadas neste trabalho,
permitirão visualizar o trânsito entre concentração e diluição. O novelo será esse ponto de
maior concentração, como o Aleph, do conto de Borges (El Aleph, 1986) um “punto que contiene
todos los puntos. O estado de diluição estará no Desenvolver: quando o olhar “acomodado” e
“acostumado” ao que sempre viu se desloca, começa um percurso, mergulha em outras culturas
igualmente intensas, igualmente vivas e complexas.
Neste contexto, o trabalho começa a se organizar em séries. A primeira delas, intitulada
Wakaychas
, surge a partir da necessidade de evidenciar esse “ponto de partida” introspectivo,
interior e essencial, quieto e silencioso, à vez caótico e pleno de possibilidades, as quais são
resultado de um processo de amadurecimento em um trabalho em arte que toma a memória
como referência.
Do mesmo modo, um novelo foi o começo do percurso de Teseu, no labirinto de
Gnosos. Esse novelo continha a dual “linha de Ariadne”: linha-cartografia. Neste caso, também,
16
uma Linha-guia estende-se no espaço e define o percurso. Quem a “desenvolve” abre caminho,
progressivamente, ganha espaço até chegar a seu destino. Quem a “envolve” novamente, está
convidado a lembrar, desta forma “volve” ao ponto inicial. O “ver” será a ação reflexiva
essencial.
As ações que acontecem durante o percurso somam dimensões de espaço e tempo à
Linha, provocando diversas possibilidades visuais. Isto é uma ordem serial de ações provocadas
por ela e pela apropriação dos verbos que compõem a palavra DESENVOLVER, desdobrada da
seguinte maneira: VER, VOLVER, ENVOLVER e DESENVOLVER. Um crescimento
excêntrico e progressivo, de um desdobramento ao espaço e à ação. Cada um dos verbos do
desenvolver constitui uma ação ou acontecimento no sentido deleuziano: um verbo em
infinitivo como um encontro entre palavras e coisas. O Acontecimento–verbo nesta pesquisa
permite o encontro entre obras e reflexão teórica, mas também convida à ação natural da linha:
DESENVOLVER.
Os acontecimentos-ações terão a seguinte ordem nesta dissertação:
O VER do vídeo, que fala de
Q’ayturastro
,
rastro de linhas Vídeo arte que propicia
uma reflexão sobre os não-lugares, deslocamentos e migrações. VOLVER marca também um
trânsito por lugares definidos como utopias e heterotopias por Foucault, vistos através da obra
horizonte sem horizonte, vídeo-instalação cujo jogo de projeções e multiplicação de linhas
imaginárias provoca o repensar em laços imateriais entre histórias comuns. ENVOLVER trata
das ações provocadas pela materialidade da linha. Repetição e diferença, no ato criativo, que
dão lugar à série intitulada
Chiris
e a instalação
Jatunkocha
, profunda superfície.
DESENVOLVER é o acontecimento no qual se propõem obras onde a incompletude é uma
constante, em trânsito contínuo, como
Sawri llawthapita
, tear em processo e outras
experiências.
A exposição final deste conjunto de obras, mais uma ação performativa, foram
apresentadas no Forte São Marcelo, monumento histórico, de forma circular e concêntrica,
situado na Baía de Todos os Santos, em Salvador, realizada com a curadoria de VigaGordilho e
premiada com o edital Diálogos Estéticos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado Da
Bahia- FUNCEB. Dita exposição foi distribuída em cinco salas contíguas, propondo uma
montagem em Site Specific. São exatamente estes verbos DESENVOLVER: ENVOLVER,
VOLVER e VER que deram nome aos cinco espaços expositivos no Museu do Forte, tentando,
17
desta maneira, manter um diálogo entre a presente pesquisa e a estrutura concêntrica do
mesmo. Desse modo, a interação com a estrutura “envolvente” do mencionado monumento,
assim como a sua situação no mar e sua relação histórico espacial, com o trânsito dos navios,
dialogam com o conjunto das obras apresentadas, assim como com a minha Prática de arte.
Sob esta introdução, utilizo também como separata os verbos no infinitivo, já
referenciados, contidos na palavra DESENVOLVER, já que a extensa polissemia destas palavras
gera ainda mais possibilidades de interatuar com elas. Optou-se também, na escrita desta
dissertação, pelas imagens das obras relacionadas com o texto para permitir uma melhor
visibilidade. Salienta-se ainda que para maior compreensão das obras incluíram-se nos Anexos
as respectivas Fichas Técnicas, para proporcionar um maior detalhamento das mesmas. De igual
forma, incluíram-se algumas orientações técnicas de elaboração da linha da maneira tradicional.
Espera-se, que as obras possam falar por si mesmas e transmitir que cada uma delas é
produto de um aprendizado, onde a compreensão do mundo clarifica-se e se espelha, sendo
criada a partir de experiências concretas inseridas em espaços culturais, tanto complexos,
quanto misteriosos, fragmentados, híbridos e indômitos na sua origem.
19
20
1. O EMARANHADO INICIAL
O objeto da busca encontra-se habitualmente em outro reino, num reino diverso,
que pode estar situado muito distante em uma linha horizontal ou a grande
altura e profundidade em linha vertical. (Ítalo Calvino, 1988, p. 40)
Yo sé de un laberinto griego que es una línea única, recta.
En esa línea se han perdido tantos filósofos.
(Jorge Luis Borges, 1971, p.20)
Antes de iniciar a pesquisa, cada uma destas frases, para mim de ressonância
inquietante, deram-me uma idéia das dimensões que podia adquirir o objeto da procura que
empreendia. Situar uma linha no espaço oferecia inúmeras possibilidades, podendo-se formar
com ela um infinito eixo de coordenadas, x e y, e dessa forma abarcar todas as coisas entre
distância e profundidade, seja neste reino ou em outros reinos, como parece visualizar Ítalo
Calvino. O fato de a linha poder ser percebida como o labirinto unidimensional imaginado por
Borges, que convida a pensar em uma verdade única, “lógica e formal”, ou, da mesma maneira,
visualizá-la como um único corredor infinitamente divisível. Tão ampla podia ser a dimensão
do meu objeto que decidi começar pelo ponto onde se encontram a verticalidade e
horizontalidade de qualquer eixo de coordenadas: o ponto zero, ou seja, a origem da palavra
linha.
Considerar etimologicamente a palavra Linha proporcionou-me a chave para a
compreensão da mesma, como objeto no contexto desta dissertação: proveniente do latim linea,
sua significação traz dois termos: fio e limite
(AURÉLIO, 1999). A linha como “fio” remete à
materialidade da mesma, pois no seu aspecto material, apresenta-se como fios, tramas,
urdiduras e objetos diversos, no contexto de um espaço físico. A linha como “limite” lembra à
imaterialidade e relaciona-se com o efêmero contido em imagens e ações que se relacionam com
espaços simbólicos, e também se vinculam às convenções criadas pela dinâmica das sociedades
como as fronteiras ou as linhas produzidas por efeitos ópticos, como a linha do horizonte e as
linhas produzidas por qualquer elemento contrastante.
Assim, diante desta ótica, é possível identificar dois aspectos inerentes à linha:
materialidade e imaterialidade. Aspectos que, para um pensamento acostumado a separar
binariamente as coisas, poderiam ser facilmente contrapostos. Estes termos, aparentemente
21
contraditórios, lembram que, segundo o estruturalismo, que sustentou o pensamento ocidental
por séculos, é possível compreender “todas as coisas” através da sua organização em uma
“estrutura” constituída por oposições. Esta relação de oposição e de mútua exclusão é um dos
assuntos vitais para esta teoria. Desta maneira, as oposições binárias definem o estatuto de
contrários, ou bem de polaridade, entre elementos ou termos. Como exemplos podem-se
mencionar:
Luz ? Sombra
Bem ? Mal
Fêmea ? Macho
Cima ? Baixo
Material ? Imaterial (nosso caso)
Estas oposições mostrariam o modo como operam linguagem e pensamento; por
exemplo, um texto estaria composto por múltiplas oposições binárias que classificam os
sentidos que estas produzem, gerando uma “estrutura”. Esta forma de pensar derivaria em
hierárquica e ideológica, já que nela um dos termos recebe prioridade qualitativa sobre o outro,
e este resultaria ser inferior e indesejável com respeito ao primeiro, poder-se-ia dizer que esta
forma de pensar outorga qualidades morais e éticas, ou seja, parâmetros positivos ou negativos
aos termos em oposição. Esta estrutura mantém-se “estável com a condição de que os únicos
sentidos legitimados sejam aqueles que estejam construídos em términos de tais oposições”
(INNES, 2002, p.510). Para Jacques Derrida, forjador da prática crítica conhecida como a
desconstrução, essas dicotomias tendem a privilegiar a identidade, o imediato e a presença e
não assim a diferença, o deferimento e a ausência (INNES, 2002, p.134). Gera-se desta maneira a
idéia de uma verdade absoluta, que resulta como hegemônica, já que nada é aceito fora do seu
Modelo explicativo; isto engendra fanatismos e dogmas de toda classe, sem esquecer as
intolerâncias e as exclusões que provoca.
Jacques Derrida questiona o rigor desta estrutura na linguagem e desestabiliza as
operações de simples binarismo demonstrando que cada uma destas dicotomias contém,
intrinsecamente, elementos característicos do seu suposto “contrário”. Utilizando este
procedimento, pode-se demonstrar que, em definições de contrários ou termos extremos, como
22
a luz e a sombra, o que define a sombra é a diferença - a luz - mais do que sua própria escuridão.
É possível observar isto na definição do termo sombra no dicionário Aurélio:
Sombra:
[Do lat. umbra, pelo lat. vulg. sulumbra (= sub illa umbra) e pelo arc. * soombra.]
S. f. 1. Espaço sem luz, ou escurecido pela interposição de um corpo opaco
A partir deste pensamento, pode–se concluir que cada aspecto se vê “espreitado” por
um outro elemento de natureza oposta, que o define e o complementa. Com isto,
deshierarquiza-se a “estrutura”, reconhecendo-se que nenhum aspecto tem primazia estrutural
nem superioridade qualitativa e que, ao mesmo tempo, é impossível distinguir os limites nos
antagonismos. O significado surge dos graus nas relações, de similaridade e diferença, que as
palavras têm com outras no interior do código da língua.
Outra forma de desestabilizar estruturas fixas impostas à linguagem é reconhecer as
contradições internas que estas apresentam: paradoxos e ambigüidades, substituindo dessa
maneira a lógica de “um ou outro” ou “do oposto” pela lógica da aporia: “ambos/e nenhum”
(e/ou; nem/nem). O que Derrida chama de aporia são esses momentos em que as oposições
estão em mútua suspensão, e nenhum término tem supremacia estrutural, nem superioridade
qualitativa (INNES, 2002, p.135).
Uma função parecida com a aporia poderia ser a do paradoxo; este recurso mostra que
não é possível separar duas direções, que não é possível instaurar um sentido único para o
pensamento. O paradoxo é primeiramente o que destrói o bom sentido como sentido único,
mas depois é o que destrói o sentido comum como dotação de identidades fixas. É a afirmação
dos dois sentidos ao mesmo tempo, diz Deleuze:
Já que o sentido nunca está somente em um dos dois termos de uma dualidade
que opõe as coisas e as proposições, os substantivos e os verbos, as designações e
as expressões, é também a fronteira, o fio ou a articulação da diferença entre os
dois, e dispõe de uma impenetrabilidade que lhe é própria e na qual se espelha,
deve desenvolver-se em si mesmo em uma série de paradoxos, esta vez interiores
.
(DELEUZE, 1988 p.43)
Outros vários autores sustentam que reduzir o pensamento a sistemas binários tende a
impedir a criação, porque esta impõe sua interpretação, evitando, desta maneira, reconhecer
outros sistemas complexos e outras realidades culturais. Por exemplo, Gilbert Durand chama de
hermenêutica reducionista o estruturalismo exercido nos estudos etnográficos de Lévi-Strauss
23
porque este “recusa-se a tratar os termos como entidades independentes, tomando como base
da sua análise as relações entre os termos” o que inclui a possibilidade “de decifrar um conjunto
simbólico, reduzindo-o a relações significativas.”, é dizer, “reduzir o mito a um jogo estrutural”
(DURAND, 1988, p. 52), quando um mito, dentro de uma comunidade, constituiria um caso de
extrema complexidade simbólica.
Vale aqui também ressaltar a experiência da antropóloga Verónica Cereceda, quando se
propõe a descobrir o sentido da beleza nas culturas andinas. Esta autora desiste de propor uma
oposição binária, ou seja, contrapor o conceito de beleza com o de fealdade, porque nos
diversos textos de referência escolhidos para o seu estudo, o “feio” simplesmente não existe.
Dessa forma, a autora não achou um termo de oposição à beleza, senão níveis de beleza,
descobrindo que a beleza no mundo andino está intimamente ligada à emoção. Para despejar o
conceito da beleza, Cereceda propõe que esta ocupa um dos extremos de uma categoria estética
baseada na intensidade que poderia esquematizar-se da seguinte forma:
carente de emoção de beleza com emoção de beleza
normalidade exceção
A autora, com este esquema, pretende chamar atenção à delicadeza com que o
pensamento andino realiza aqui sua classificação de beleza: o que se destaca é o grau da emoção
estética - a viva intensidade emocional - que provocam as coisas, seres, paisagens, imagens. “É
esta viva emoção a que é privilegiada nos textos e que recebe uma significação adicional como
intermediária ou articuladora”
(1987, p. 218). Para precisar esta situação intermediária propõe a
idéia de mediação:
Mediação não é todo contato possível senão somente aquele que, sendo
difícil de lograr ou sendo perigoso, requer um intermediário: é a este
contato arriscado que se associa uma idéia da beleza. (CERECEDA,
1987, p. 219)
A mediação seria uma entidade independente que relaciona partes divididas ou em
discórdia, sem que elas percam sua identidade. A mediação é mais do que um ponto ou um
instante de contato: é capaz de recobrir-se com um sentido próprio e de expandir-se de uma
maneira complexa: seja em um processo onde existem excesso e ausência, seja em uma escala
entre concentração e diluição. Parafraseando ainda Cereceda: “Se a mediação parece outorgar à
24
beleza a ambigüidade que lhe é própria, a beleza, em câmbio, parece conferir à mediação um
caráter instável e perigoso” (1987, p.225). Por uma parte, a atração que exerce a beleza é difícil de
manejar, contém um aspecto perturbador e irracional, que a faz, talvez, um instrumento
apropriado para conectar com as potências do escuro, o desordenado, o que não pertence à
razão. Por outra parte, a beleza é capaz de seduzir em demasia, deslumbrar até provocar a perda
da consciência, a diluição.
As palavras dos autores referenciados ajudaram-me a definir as abordagens filosóficas da
pesquisa; para conceber o meu objeto como uma aporia, no sentido derridiano, como um
paradoxo, e a entendê-lo como “articulador”, é dizer, com capacidade de mediação, como é
proposto por V. Cereceda, atribuindo-lhe a capacidade de expansão de maneira complexa,
através de processos e/ou escalas de intensidades, originadas entre termos, conceitos e
identidades que poderiam ser considerados “contrapostos”. Assumo assim o caráter instável,
próprio da mediação, o que poderia conduzi-la a cometer atos extremos, ao choque das culturas
ou a outras situações dolorosas e liminares.
Portanto, no presente trabalho, a linha manter-se-á como um elemento polissêmico,
com ampla capacidade de transformação e trânsito, capacidades que permitirão articular
conceitos. Para isto, opera-se seguindo idéia de graus ou intensidades com as quais os elementos
se relacionam. Desta maneira, relativizam-se as relações de oposição entre material e imaterial,
civilizado e primitivo, tradicional e contemporâneo, ordem e desordem, dentre outros aspectos
que aqui serão assumidos como pontos de maior ou menor concentração. Para visualizar e
verificar o espaço que a linha-aporia percorre, pensei inicialmente em uma relação de
intensidades e graus, como se se tratasse de uma escala cromática de tons cinza entre branco e
preto, esquematizada a seguir:
Diluição Concentração
Fig. 1 Escala de intensidades em tonalidades cinza.
25
Posteriormente, observei que este razoamento poderia resultar muito simples e
igualmente redutor. Já que limitar o esquema á escala de cinzas implicava não reconhecer a
complexidade tal como esta se apresenta na natureza. Assim, para tornar evidente o espaço
onde elementos convivem, recorri às experiências realizadas pelo científico e poeta J.W. Goethe.
Este célebre autor demonstra (A Doutrina das cores) que as linhas produzidas pelo contraste da
luz e a sombra apresentam um limite apenas nominal, já que, se desdobrássemos essas linhas
encontraríamos amplos espaços compostos de determinadas gamas de cores, as quais estariam
determinadas a sua vez pelas condições em que estas são produzidas. (GOETHE, 1998) Desta
forma, “serão diferentes as cores que resultam entre o contraste de uma linha clara sobre um
borde escuro” [exemplo 1] das “cores que resolvem o contraste sobre um fundo claro: a través
de um cristal” [exemplo 2] e ainda é possível assistir à “síntese de ambas”.
Fig. 2 Escalas cromáticas, segundo a Teoria das cores
de Goethe.
Resulta interessante observar que, dentro de cada uma destas séries, não existem limites
definidos entre as cores, mas, mesmo assim, cada cor mantém suas particularidades, sendo cada
cor facilmente identificável; esta seria a representação que estava procurando para evidenciar o
espaço existente entre pontos de maior concentração e maior diluição: escalas não hierárquicas
e constantemente mutáveis, as quais se misturam com outras e podem ser influenciadas pelo
ambiente.
Assim, nessa dinâmica, transformando-se constantemente, aceitando contradições e
paradoxos a Linha, nas obras que constituem esta pesquisa em arte, evidencia-se entre
26
elementos com intensidades diversas, tenta aprender e desenvolver-se em domínios diferentes
mesmo sendo estes perigosos ou desestabilizadores, adversos a conservar uma estrutura.
O
Com estas abordagens surgem os primeiros questionamentos: Por que é tão importante
para esta pesquisa em arte definir a priori uma situação “articuladora”, de “mediação”, entre
elementos supostamente contrapostos, e cujo status é de “trânsito”? Serão estas circunstâncias
articuladoras, de algum modo, propícias para a criação?
No começo deste capítulo falou-se sobre a instabilidade do significado das palavras,
como também o confirma Stuart Hall “Os significados das palavras não são fixos, numa relação
um a um com os objetos e eventos no mundo existente fora da língua”. O significado surge nas
relações de similaridade e diferença que as palavras têm com outras palavras no interior do
código da língua. Neste ponto, Hall novamente lembra que “Nós sabemos que é a Noite porque
ela não é o Dia”, observando que o significado das palavras procura o fechamento, ou seja, a
identidade, mas este “fechamento” é constantemente perturbado pela diferença, chamando a
atenção sobre a analogia que existe entre língua e identidade: “Eu sei quem eu sou em relação
com o ‘outro’ que eu não posso ser” (2001, p. 40).
Pois bem, em uma primeira instância desta pesquisa considerei fundamental definir um
lugar de origem, um ponto de apoio, porque não dizer, senti o imperativo de assumir uma
“identidade” que definisse o meu fazer em arte e que este, a sua vez, seja a instância de partida
para a “nova poética” iniciada no mestrado
1
. Pensei que esse ponto de partida seria a cultura
quéchua, mas um sentimento de profunda ambivalência prevaleceu: somente podia considerar-
me dessa cultura por algum indefinido antepassado materno, por afinidade e pelas diversas
experiências com esta, as quais tinham influenciado fortemente a minha produção e pesquisa
em arte durante muitos anos. Ou, seria mais apropriado partir da condição mestiça, já que a
minha ascendência paterna é ítalo-espanhola? Mas, na América Latina a mestiçagem é um lugar
comum
2
e, o mestiço resulta um conceito que possui variadas conotações:
1
Ver o artigo de minha autoria intitulado “A memória como ponto de partida. Trançados de um processo
criativo”. Na revista bilíngüe Cultura Visual No. 10. PPGAV- EBA- UBFA. EDUFBA: Novembro 2007.
2
Na atualidade, menos de 10% da população da América Latina é indígena (a porcentagem é menor nos Estados
Unidos e Canadá). A presença do indígena é maior demograficamente na Bolívia, Peru, Equador e na Guatemala,
27
A compreensão da mestiçagem tropeça com hábitos intelectuais que conduzem
a preferir conjuntos monolíticos antes que espaços intermediários.
Efetivamente, é mais fácil identificar blocos sólidos que interstícios sem nome.
Preferimos considerar que «tudo o que parece ambíguo só o é aparentemente e
que a ambigüidade não existe». As aproximações dualistas seduzem pela sua
simplicidade e, quando se defendem na retórica da alteridade, confortam às
consciências ao tempo que satisfazem sede de pureza, de inocência e de
arcaísmo. (GRUZINSKI, 2000, p.48)
Assim, definir uma identidade como ponto de partida para uma poética em arte
resultou também uma tarefa difícil. Essa procura pela identidade levou-me a reconhecer que as
identidades não são um conjunto de rasgos fixos, essenciais e permanentes, e levou-me a aceitar,
também, a inexistência de uma identidade singular ou “identidade mestra”. Há tempo tinha-me
tornado no que Stuart Hall chama de “celebração móvel”: formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos
sistemas culturais que nos rodeiam. Definida historicamente, não biologicamente, em palavras
do autor:
A identidade plenamente unificada, completa, segura, coerente é uma fantasia.
Ao invés disso, na medida em que os sistemas de representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos
identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2001 p.13)
Palavras com as quais Serge Gruzinski parece concordar:
A identidade é uma história pessoal que se vincula com capacidades volúveis de
interiorização ou de repulsa das normas inculcadas. Socialmente, o indivíduo
não deixa de enfrentar uma plêiade de interlocutores, dotados por sua vez de
identidades plurais, uma configuração de geometria variável ou em eclipse. A
identidade se define sempre a partir de relações e de interações múltiplas.
(GRUZINSKI, 2000, p.48)
Estas reflexões levaram-me a reconhecer que, nos últimos anos, acumulei experiências
com diversas culturas, além da cultura mestiça boliviana e da América Latina, culturas como a
quéchua, a aimara, a maia-queqchí
3
, a afro-brasileira, entre outras, em contextos rurais e
urbanos cosmopolitas, cada uma com suas particulares aproximações e intensidades. Tinha-me
e tem enorme força nesses países e em outros, como Colômbia e México [...]. Portanto, a composição de todas as
Américas requer a noção de mestiçagem, tanto no sentido biológico - produção de fenótipos a partir de
cruzamentos genéticos - como cultural: mistura de hábitos, crenças e formas de pensamento europeus com os
originários das sociedades americanas
(CANCLINI, 2003, p.72).
3
Os maias constituem um conjunto diverso de povos nativos americanos da Guatemala e do sul do México. O
termo maia é abrangente e ao mesmo tempo uma designação coletiva que inclui os povos da região que partilham,
de alguma forma, uma herança cultural e lingüística; porém, esta designação abarca muitas populações, sociedades
e grupos étnicos diferentes, cada um com as suas tradições particulares, culturas e identidade histórica, uma delas é
a Queqchi.
28
convertido em um ser em trânsito permanente, sem lugar fixo, e em constante viagem
4
,
exercitando constantemente a faculdade de sair e entrar dessas diversas realidades e de traduzir
essas experiências
5
.
E por que falar em “tradução”? Digo traduzir, apropriando-me de um conceito
mencionado por Hall, a tradução, a qual descreve aquelas formações de identidade que
atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas deslocadas da sua terra
natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e com suas tradições, mas
sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em
que vivem sem ser assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas
carregam traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas
quais foram marcadas. A diferença é que elas não são, nem nunca serão unificadas, no velho
sentido, porque elas são irrevogavelmente o produto de várias histórias e culturas
interconectadas: “Os que pertencem a essas culturas híbridas devem aprender a habitar no
mínimo duas identidades, duas linguagens culturais, a traduzir e negociar entre elas” (HALL,
2001, p. 89).
Então, senti a necessidade de repensar essas “identidades” a partir da idéia de
hibridação. A hibridação não é um conceito unívoco, ao contrário, é um termo utilizado tanto
na biologia quanto nos diversos estudos culturais, incluída a arte contemporânea. A definição
que o antropólogo e pesquisador Néstor Garcia Canclini dá ao termo hibridação é a de
“processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam em forma
separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2003, p. 62). Segundo
esse autor, o conceito de hibridação colaborou para sair dos discursos biologistas e essencialistas
da identidade, a autenticidade e a pureza cultural e racial. A palavra hibridação aparece como
um termo maleável para nomear múltiplas misturas, nas quais não se combinam somente
elementos étnicos ou religiosos. Com freqüência a hibridação surge da criatividade individual e
coletiva, não só na vida cotidiana, senão também nas artes. Chamam-se híbridos os processos
que intersectam produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-
modernos. Podem-se identificar múltiplas alianças fecundas na arte contemporânea; um
exemplo amplamente aceito é o filme The pillow book, de Peter Greenaway, onde:
4
No livro “Itinerarios transculturales”, Clifford pergunta-se se a noção de viagem é mais adequada que outras
utilizadas no pensamento pós-moderno: deslocamento, nomadismo, peregrinagem (CLIFFORD, 1999, p.77).
5
A palavra tradução vem etimologicamente do latim traducere significando transferir, transportar entre fronteiras.
29
as imagens do cineasta compõem marchetarias “de uma beleza surpreendente e
perturbadora ao mesmo tempo: visões da corte nipônica do Século X,
empréstimos do cinema japonês dos anos cinqüenta, ou um desfile de moda
contemporâneo em uma Hong Kong de finais de século. Estas seqüências se
incrustam como telas na tela, e dialogam com a cena principal criando um
desenvolvimento tão homogêneo que o olhar do espectador não consegue
desprender-se desta visão. (GRUZINSKI, 2000, p.116)
Assim, inúmeros exemplos podem falar de hibridações, evidenciando a produtividade e
o poder inovador de muitas misturas interculturais. Por isso muitos autores propõem como
objeto de estudo da identidade a heterogeneidade e a hibridação interculturais. Pois a
hibridação ocorre em condições históricas e sociais específicas, no meio de sistemas de
produção e consumo, que às vezes operam como coações, segundo pode apreciar-se na vida de
muitos migrantes.
Existem muitos acordos criados pelas sociedades que promovem, mas que também
condicionam a hibridação, como são as fronteiras e as cidades. A globalização dilui as fronteiras
entre países, mas, ao mesmo tempo, as torna extremamente controladas, e as megalópoles
multilíngües e multiculturais, como Londres, Berlin, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires,
São Paulo, México e Honk Kong, são centros onde a hibridação fomenta maiores conflitos e
maior criatividade cultural. “A intensificação da interculturalidade migratória, econômica e da
mídia mostram que não há somente fusão, coesão, osmose, se não a confrontação e diálogo”
(CANCLINI, 2003, p.72). Nos movimentos recentes provocados pela globalização (como os
skinheads, punks na Europa ou Chiapas e o MST na América Latina) advertimos que a
hibridação não só integra e gera mestiçagens; também segrega, produz e evidencia desigualdades
e estimula reações (lembre-se a característica instável própria da mediação). Da mesma maneira,
segundo Canclini, os fluxos crescentes entre centro e periferia devem ser examinados junto com
as assimetrias entre os mercados, os Estados e os níveis educativos; isso ajudaria a evitar o risco
de ver a mestiçagem e a hibridação como simples homogeneização e reconciliação intercultural.
Neste contexto, resulta importante reconhecer situações como o Marginal e o Fragmentário.
O Marginal, como tudo o que está fora ou longe do “centro de uma sociedade”, é difícil
de ser percorrido a não ser que se pertença a ele. A condição do Marginal lembra essas situações
urbanas extremas nas cidades contemporâneas: a marginalidade que se vivencia nas periferias
das cidades. São regiões afastadas do centro urbano, em geral carentes em infra-estrutura e
serviços básicos, e que abrigam os setores de baixa renda da população. Considera-se, também,
30
que se é de alguma forma marginal quando se pertence a países periféricos, ou
“subdesenvolvidos”, em oposição aos “desenvolvidos”. Estes últimos constituídos como o centro
do sistema econômico mundial. Nestas sociedades massivas, que estimulam a constante
concorrência, existem fatores que acentuam a situação marginal, como o ser mulher e/ou
pertencer a um grupo étnico ou racial historicamente marginalizado. Como mulher que vem de
um país no qual ainda persistem características coloniais e altos índices de subdesenvolvimento,
não só no sentido econômico e tecnológico, senão nos aspectos fundamentais (saúde, educação
e serviços básicos), coincido com as situações de marginalidade acima apresentadas, motivo pelo
qual me reconheço como habitante desses chamados “outros espaços”, ou heterotopias, dos
quais falarei nos seguintes capítulos. Assumo essa situação de marginalidade junto com a dos
processos de hibridação, porque ambas me permitirão exercitar a faculdade de transitar, sair e
entrar destes mundos contrastados percorrendo espaços que talvez fossem vedados para alguns,
mas que proporcionam certa liberdade de trânsito.
O marginal também poderia ser a condição do artista contemporâneo. Paola B. Jacques
viu na obra de Hélio Oiticica esta condição marginal que lhe permitiu falar, no livro A Estética
da Ginga, sobre a apropriação e a lógica fragmentária, presente tanto no cotidiano
indiscutivelmente marginal de um morador de favela quanto no fazer do artista (2003, p. 21- 62).
O primeiro utiliza resíduos de construções para se abrigar e abrigar sua família e o segundo
apropria-se de imagens, vivências, objetos e técnicas do cotidiano para atribuir-lhes “outros”
significados e sentidos.
A mesma atitude predomina diante da tecnologia; a arte se serve de instrumentos e
meios avançados e de consumo popular, como rádios, monitores de televisão, câmeras, entre
outros, mas também se apropria de instrumentos e suportes tradicionais. O artista re-processa
linguagens e as ordena segundo sua pesquisa e poética. Ele tem a sua disposição, como
instrumental de trabalho, um conjunto variado de imagens, meios e linguagens e, como o
construtor da favela, coleta o que está ao seu alcance. O gesto de apropriação do artista permite
ponderar com amplitude a presença do híbrido em linguagens poéticas contemporâneas. Pois o
artista é quem se apropria dos fragmentos que seu entorno lhe oferece e cria, dessa forma, obras
onde os limites fluem e são dinâmicos. As instalações, por exemplo, constituem um gesto de
apropriação de objetos e de espaços, comum na arte contemporânea.
31
De tal modo, os processos de hibridação podem ser conseqüências da apropriação e da
união de fragmentos. O fragmento tem limites próprios, um sentido singular, intrínseco, que
não pode ser compreendido numa lógica unitária. Seu espaço, como o espaço de nossa linha, “é
o do não-lugar, o lugar do meio, o local deslocado, em suspensão, transitório, em construção”
(JACQUES, 2003, p. 91).
Como se viu até aqui, são vários os fatores que propiciam a hibridação, o marginal e
fragmentário. Conceitos importantes para esta pesquisa, que não se apresentam como conceitos
estáticos, ao contrário, graças a estes se pode ver a importância de ressaltar os processos de
hibridação, antes do conceito de hibridez, propriamente dito. Garcia Canclini aconselha aplicar
à hibridação um movimento de trânsito e provisionalidade com estas palavras:
Se falarmos da hibridação como um processo ao qual se pode aceder e que se
pode abandoar, do qual se pode ser excluído ao que podem subordinar-nos, é
possível entender melhor como os sujeitos se comportam a respeito do que as
relações interculturais lhes permitem harmonizar e do que lhes resulta
inconciliável. Assim podem-se trabalhar os processos de hibridação em relação
com a desigualdade entre as culturas, com as possibilidades de apropriar-se de
várias à vez em classes e grupos diferentes, e portanto respeito das assimetrias do
poder e o prestigio (CANCLINI, 2000, p.69).
Assim, em lugar de conceber a hibridação como um conjunto de misturas bem
sucedidas, procurei identificar os seus condicionantes. Para aplicar este conceito de uma
maneira não ingênua, é imprescindível uma consciência crítica de seus limites, considerando
ademais aquilo que não se deseja, ou não quer, ou não pode ser hibridado. Vemos então a
hibridação como algo ao que se pode chegar, do qual é possível sair, e no que estar implica
fazer-se responsável do in-solúvel, aquilo que nunca se resolve por completo (CANCLINI, 2000,
p.71).
Assim, trata-se de reconhecer o que há de doloroso, o que não chega a ser fusionado, e a
aceitar à vez o que cada um ganha e perde ao hibridar-se.
Neste ponto, os questionamentos sobre uma identidade para criar a minha poética
visual diluíram-se para dar passo a outras perguntas: O que na minha Prática resiste a ser
hibridado? O que é insolúvel? O que se mantém intocado? Será que a arte é aquilo que permite
nomear o que não se pode hibridar?
Apresentou-se, desse modo, uma situação sem retorno; a viagem tinha realmente
acontecido: por isso não podia mais representar “uma só identidade”, como reconheço que fiz
em muitas obras antes de 2006, obras que evidenciavam facilmente símbolos andinos em telas e
32
tecidos
6
(Ver Anexo 1). Mas a representação identitária já tinha iniciado seu próprio
questionamento e contradição. Resisti a produzir versões estandardizadas, desenraizadas,
ilusórias e extravagantes, sob o rótulo de “contemporâneo”, o que vejo em muitos artistas que
apresentam apropriações aleatórias ou jogos de palavras, na procura de provocar tensão e
impacto por qualquer via. Não encontrei nestes artistas uma condição que acho fundamental
para a criação em arte: a Prática.
Então questionei o próprio fazer, coloquei-o no campo “instável e conflitivo da tradução
e da traição”, como sugere Clanclini, “Para repensar o que nos une e nos distancia desta
desgarrada e hiper-comunicada vida. As buscas artísticas são chaves nesta tarefa se logram ser
linguagem e vertigem à vez” (2000, p.80). Questionei o que é possível hibridar e o que não é na
minha Prática. Tentei seguir atentamente os processos de hibridação que a minha obra ia
experimentando, ou pretenderia experimentar, até o ponto em que lograsse encontrar o que
não podia ser hibridado, sem descuidar da procura inicial da minha pesquisa: experimentar
com o espaço, sair da bidimensionalidade através da linha. Para fazer essas duas coisas, tive que
repensar e organizar toda minha bagagem de desordenados fragmentos.
O
Nascia a suspeita de que existe desordem pior do que aquela do incongruente e
da aproximação do que não convém; seria a desordem que faz cintilar os
fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão, sem lei
nem geometria do heteróclito. (FOUCAULT, 1995. p XII)
Da mesma maneira que Foucault, ao começar o livro as Palavras e as coisas, descobri a
desordem de inúmeras ordens possíveis, achei-me na situação instável das possibilidades, mas
reconheci nisso uma desordem inicial, um emaranhado objetivo e subjetivo. Enfrentei a confusão
dos meus próprios “fragmentos”. Podia conceber esse estado de caos como concentração,
densidade e intensidade e visualizá-lo como o velo de lã sem enfiar: um emaranhado que
aparece como uma unidade fibrosa e compacta à vez. Considerei aquele velo como uma origem
mítica, que pode resultar um passo de um estado a outro. Mas como sair desse caos? Da
6
Vejam-se amostras destas obras no Anexo 1 e nos seguintes websites:
http://www.dberduccy.bo.nu
http://www.ksphoto.com/Art
http://pigmentathesource.com
33
desordem natural? Precisava de um elemento, embora ainda amplo, que me permitisse começar
a minha busca inicial do “espaço” e, com ele, a tridimensionalidade e a leveza para a minha
obra. A forma de ganhar espaço é através de deslocamentos. Neste ponto decidi que seriam
deslocamentos, é dizer, ações, que em uma primeira instância serviriam para realizar a “ação do
crivo” necessária para sair do caos (DELEUZE, 1987). Porém, falar em ações é falar de algo
demasiado amplo, precisava de um movimento ou uma séria deles. Devia achar um fio
condutor, ou melhor, ainda criá-lo. Neste ponto, estas palavras de Michel Focault possibilitaram
uma resposta:
O impossível não é a vizinhança das coisas (diversas), é o lugar mesmo onde elas
poderiam avizinhar-se [...] Onde poderiam elas jamais se encontrar, a não ser na
voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser na página que a
transcreve? Onde poderiam eles se justapor, senão no não-lugar da linguagem?
(FOUCAULT, 2000 p.XI.)
Foi justamente na linguagem onde inicialmente resolvi a procura. Faltava-me uma
palavra, era necessário fazer um exercício de terminologia: era imperativo começar a nomear,
dar início, dessa maneira, ao ato criativo. Devia arrancá-la da linguagem corrente para apropriar-
me dela. Uma palavra que incluía o meu fazer e me permita transitar espaços com a linha: só
pode ser um verbo, é dizer, uma força ativa. Um verbo em infinitivo, sem passado nem futuro,
por considerar que nos verbos em infinitivo existe algo que está em disposição permanente, um
devir que não cessa de alcançar-nos e à vez preceder-nos. Todos eles são instante, sem passado
nem futuro. Em eterno devir.
O verbo é a condição indispensável a todo discurso, sem ele não é possível dizer que há
linguagem. Para Foucault “o verbo afirma”. O autor reconhece, dentre todos os verbos, um
dotado de uma função verbal “tênue, mas essencial”: o verbo Ser. Segundo ele “A essência
inteira da linguagem se encontra nessa palavra singular” (2000, p.131). Para mim o verbo
essencial tinha que estar relacionado com a linha e as ações que ela provoca, então decidi
questionar minha prática, colocando-a em terreno instável. Literalmente, detectei no processo
de formação do fio, a partir da sua potencialidade na lã, ainda sem enfiar, uma concentração,
na qual estariam contidas todas as possibilidades. A ação do crivo a realizaria a prática de fazer o
fio: cujos movimentos são envolver e Desenvolver
7
. Deste modo encontrei o acontecimento.
7
Desenvolver, na língua espanhola, têm o sentido português de “desenrolar”. E o “desenvolver” do português teria
a conotação de “desarrollar” em espanhol. Aplico as duas conotações como complementares neste trabalho.
34
Filosoficamente, o termo acontecimento, no sentido empregado por Deleuze, ocorre
quando surge um problema, um questionamento, que favorece um processo imaginativo a
constituir o virtual, pressupõe o tempo presente e visa a sua atualização. Quando o virtual,
como entidade, adquire consistência, tal fato constitui um acontecimento, um ato de criação.
Propriamente, o acontecimento, como o processo, não começa nem acaba, pois
tem uma parte sombria e secreta que não pára de se subtrair ou de acrescentar a
sua atualização. [uma Potencial criatividade]. Deleuze pensa que não existe
predominância entre pensar e criar. (P. Mangadita. In: JACQUES, 2003, p. 6).
Pois bem, tinha achado o Verbo DESENVOLVER, um acontecimento pleno de
possibilidades, que daí em diante seria propício para meu processo de criação. Contudo, ainda
não tinha saído do caos dos meus fragmentos. “Só há uma maneira de sair do caos”, diz
Deleuze citando a Leibniz
8
, “fazendo séries”. A série para ele seria a primeira palavra depois do
caos. “Um pensamento de tipo serial poderia ser capaz de elaborar a lógica do acontecimento, já
que os acontecimentos apresentam-se em séries, séries convergentes e divergentes entre as quais
se estabelecem diversas sínteses” (DELEUZE, 1987). Lembrando que os acontecimentos
expressam-se mediante verbos no infinitivo para formar as séries que compõem o
DESENVOLVER, recorri simplesmente à fragmentação do verbo, descobrindo a maleabilidade
e polissemia a ele inerentes. Cada um desses fragmentos se converteu em séries independentes
do próprio acontecimento de DESENVOLVER conforme esquema abaixo:
Fig. 3 Esquema do DESENVOLVER.
Um verbo-acontecimento tinha-se descomposto em quatro verbos em infinitivo, que por
sua vez são acontecimentos. Cada um relaciona-se com meu fazer apresentando diversos matizes
8
Aula de Gilles Deleuze sobre o acontecimento em Leibniz. França, 1987.
35
e escalas. São impessoais, intemporais, incorpóreos. Provêm do encontro com os corpos e
atribuem-lhes sentido. Ações-acontecimentos que relacionam as palavras e as coisas. O sentido
apareceu de um só golpe.
Deleuze diz que um acontecimento “é uma conjunção de séries convergentes que tendem
a um limite” (DELEUZE, 1987), então cada uma dessas séries caracteriza-se por uma vibração,
algo parecido a “uma série infinita que entra em relações de todo e de partes; baixo a influencia
de algum elemento que atua como um crivo, (a ação de DESENVOLVER ocasionada pelo fuso)
respeito de uma diversidade disjuntiva inicial”. As características internas que definem e que
constituem as séries são as intensidades, que seriam como as vibrações musicais, ou as
tonalidades independentes representadas nas cores de Goethe. Sobre tais idéias, então, concebo
a relação entre palavras, coisas, ações, acontecimentos e intensidades que se podem representar
da seguinte maneira:
Fig. 4 Esquema1.
Segundo Deleuze existe uma “tendência das séries a um ponto comum de máxima
concentração” (1987), imagem que pode remontar às circunferências produzidas por uma pedra
ao cair na água. O ponto de convergência relaciona-se com o ponto de maior concentração, no
centro, para depois se diluir até alcançar seus limites ou não. A presença desse ponto de
convergência muda a representação do anterior esquema, e propõe um outro, desta vez baseado
na convergência:
36
Fig. 5 Esquema2.
Criou-se, com esta representação, um esquema que mostra uma multiplicidade
abrangente, um crescimento horizontal e rizomático. Horizontal no sentido entendido por
Lechte, quando fala sobre um pensamento que paradoxalmente não leva a uma ordem de
uniformidade (todos no mesmo nível), uma quase-ordem da diferença, em que:
O eixo horizontal não acarreta a questão de limites entre identidades, como
acontece com o pensamento representacional baseado no Mesmo, mas leva, em
vez disso, à permeabilidade de todos os limites e barreiras. É por isso que o
pensamento horizontal passa ao largo do (não se opõe ao) pensamento vertical
da hierarquia burocrática cotidiana - o pensamento que acarreta a consolidação
de identidades. (LECHTE, 2003, p.121)
E um crescimento rizomático, porque como no conceito de Deleuze, em um rizoma,
não existe uma unidade, um eixo central, como existe, por exemplo, numa árvore. O que temos
são multiplicidades de dimensões, intensidades e naturezas variáveis. Situações de trânsito, que
vão desde um nível de máxima concentração até os seus próprios limites e não pertence a uma
lógica unitária e rígida, onde as ações realizadas neste espaço apresentam-se como seres
polimorfos capazes de traçar linhas de fuga ou de variações; as mesmas afetariam um sistema
dominante impedindo-lhe sua homogeneidade, possibilitando a criação de devires menores
para re-inventar novas combinatórias. Por isso, em uma multiplicidade de ações, uma
conjuntura dá passo à outra: como o movimento de um zoom, como um relato que sucede ao
interior do outro e vai ampliando seu raio de ação de um centro até a periferia, de um ponto
desordenado de máxima concentração até um limite desconhecido.
37
Essa forma de apresentar o acontecimento aproxima-nos de definir o percurso desta
pesquisa, e aparecerá ao longo deste trabalho. Mas também resulta interessante observar o
diálogo desta representação concêntrica com a concepção do pensamento andino sobre as
forças a que os seres estão submetidos; segundo o pensamento andino, como é representado
pela antropologia:
O mundo em que vivemos é um espaço caracterizado por forças centrífugas que
vão passando da sua máxima concentração no centro (taypi) à sua máxima
difusão nas bordas, da vida à morte, do selvagem ao social. (BOUYSSE;
HARRIS, 1987 p. 27)
Como observaram as antropólogas Bouysse e Harris, nos saberes dos antigos povos
andinos a maior concentração corresponde a uma inesgotável origem mítica, conhecida como
taypi
9
(em quéchua: centro). O taypi evoca a concentração de forças e a multiplicidade potencial.
Parece que esta posição central permite reduzir a contraposição entre contrários (awqa). “Taypi é
o lugar onde podem conviver as diferenças, é o tempo mítico original, quando diversas nações
[...] surgiram do mesmo centro”
(BOUYSSE; HARRIS, 1987, p. 12).
Será que com essa cartografia fluida encontrarei o ponto limite que me permita
descobrir o indômito, o que se resiste a ser hibridado? Para empreender essa tarefa nas seguintes
linhas, começarei por reconhecer esses espaços, para depois progressivamente percorrê-los
mediante ações. Espaços povoados de intensidades diversas, as quais questionarão e provocarão
Práticas em arte.
Para exercer essas práticas em arte, elegeu-se o Forte São Marcelo, identificando na sua
estrutura características afines com esta pesquisa (Fig.6). Propondo uma montagem em Site
Specific, distribuída em celas ou pequenas salas, ordenando-as segundo as ações contidas no
verbo DESENVOLVER: ENVOLVER, VOLVER e VER. Desse modo a interação com a
estrutura “envolvente” e concêntrica, do mencionado monumento, assim também com a sua
situação no mar, sua conotação histórica com a colônia e a relação com o trânsito dos navios
farão parte do conjunto das obras ali apresentadas.
9
Taypi é um princípio que dá ordem ao universo mítico (MILLA, 2003), é a parte central e o lugar de origem de onde se
desprendem todas as coisas.
38
Fig. 6 Vista aérea do Forte São Marcelo.
39
40
2. ESPAÇOS DE AÇÃO
Poucos observam que o lugar onde está situada Copacabana, uma pequena cidade na
beira do Lago Titicaca, na Bolívia, recebe o primeiro raio de luz ao começar o dia. Poder-se-ia
pensar que aquela localização é um acaso, mas por que esta não poderia ter sido planejada?
Copacabana está rodeada de antigos observatórios astrológicos e espaços rituais. Trata-se de
uma cidade milenar onde vários cultos se misturam. Um lugar de peregrinações. Quem a visita
não acha estranho que um barqueiro aimara se aproxime para oferecer um curto passeio no
lago, até chegar a “El Sapo”.
Considerado um lugar sagrado, “El Sapo” recebe inumeráveis oferendas de habitantes
dos redores e de peregrinos. Depois de pouco tempo de navegação o barqueiro assinala na
direção de uma rocha ao pé de um morro. Geralmente os viajantes não percebem mais do que
um lugar onde, evidentemente, se rende culto, próprio dos costumes andinos. Mas não se
consegue ver sinal de sapo nenhum. O barqueiro permanece em silêncio por um momento e
põe, novamente, o motor em marcha em direção à margem do lago. A maior parte dos
passageiros, ao chegar à terra, desce e agradece sem se perguntar porque não conseguiram ver
El Sapo”. Eu mesma passei várias vezes por esse lugar tentando encontrar a misteriosa imagem.
Um dia, quando navegava
pelo Lago Titicaca, com outro
destino, passei perto dessa rocha e
ao invés de concentrar o meu olhar
nela, enfoquei minha atenção na
sombra, que era projetada pelo sol
do meio dia naquela grande pedra,
percebendo que a sombra da rocha
era a imagem que efetivamente
tinha a forma inconfundível de um
enorme sapo (Fig. 7). El Sapo
parecia flutuar sobre as águas azuis
do lago. Guardei para mim a emoção de descobrir o segredo do barqueiro, uma emoção
estética, considerando que presenciei uma espetacular obra de arte, ao tempo que uma forma
Fig. 7 Amuleto que representa o Sapo e a rocha de El
Sapona beira do Lago Titicaca.
41
diferenciada de ver o mundo fazia-se evidente para meus olhos: o olhar particular da cultura
andina (DE BERDUCCY, 2007, p.9).
Rocha e sombra, conectando materialidade e imaterialidade, formam um símbolo
cultural plenamente vigente para a cultura andina: El Sapo. A descoberta daquela imagem
composta pela sombra dessa enorme pedra, converteu-se no acontecimento determinante a
partir do qual surgiriam outros acontecimentos. Para apreciar a verdadeira magnitude deste
episódio, foi necessário ponderar as mesmas coisas que um observador deve considerar, quando
enfrentado a um tecido andino. Por exemplo, segundo Verônica Cereceda, para observar um
tecido da cultura jalq’a (Fig. 8) é preciso ter em conta:
[1] Uma idéia de segredo. Um mundo que está ali, mas não se oferece
plenamente ao olhar, este mundo não precisa de nós para ser o que é. [2] Uma
idéia denão construído pelo homem, não organizado por ou para sua
compreensão. [3] Uma idéia de “umbral”: a difícil percepção obriga a determos
um instante para adequar não só nossos olhos, senão também nossa alma –
como a porta de um lugar sagrado- [...]. [4] E um tema: o de universos andinos
caracterizados por esses rasgos (obscuro, confuso, ambíguo) mundos de
antepassados, de mortos, do sonho, espaços de deuses subterrâneos. (1993,
p.30)
1
Estes pontos, junto às referenciadas
experiências de percepção, evidenciaram a
necessidade de compreensão dos espaços - suportes e
processos - utilizados na arte pré-colombiana, para o
qual se deve “adequar a alma e o olhar”, ou como diz
o paradoxo: é necessário fechar os olhos para ver
melhor.
Como esta antropóloga, vários autores, como
T. Gisbert e S. Parga, observam que os tecidos
andinos constituem todo um universo conceitual e
simbólico que surpreende por sua relação com o
espaço: no tecido podem-se ler à vez a região de
procedência do possuidor da prenda, assim mesmo,
as relações que mantém com outras comarcas. O
tecido também descreve a paisagem. Mas uma outra
1
enumeração minha.
Fig. 8 Tecido da cultura Jalq’a Bolívia.
42
dimensão abre-se se se considera o corpo como suporte para o tecido. A forma como estes são
colocados no corpo tem um alto valor significativo, até na atualidade, sendo nas celebrações
comunitárias o seu espaço de expressão por excelência. Da mesma forma:
Outros contextos visuais mais amplos que o espaço reduzido do tecido também
se oferecem a uma leitura. Aludiremos somente ao vasto espaço constituído
pelo mundo que nos rodeia: As montanhas, encruzilhadas de caminhos,
confluência de rios. Em tudo isto não só se lê uma sinalização para o trânsito;
reconhecem-se também relações com os antepassados, com os seus vizinhos e
com seus deuses. (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.13)
Neste ponto, surge a possibilidade de um novo olhar, ou seja, de renovar critérios
estereotipados para compreender
2
a arte pré-colombiana a partir de suas relações espaciais. Para
isto será imprescindível o interesse e o olhar do artista pesquisador aos suportes e sua relação
com processos e espaços.
Assim sendo, imagens de El Sapo e do tecido Jallq’a podem ser vistos de dois pontos de
vista igualmente válidos: o suporte, ou seja, o espaço físico, e o ritual, o espaço simbólico (estes
poderiam lembrar, facilmente, materialidade e imaterialidade).
Nas seguintes páginas, examina-se o espaço físico no contexto da sua utilização na arte
contemporânea, tocando diretamente as relações entre suportes e espaços, especialmente em
lugares específicos - Site Specific -, tendo como referenciais os espaços rituais da cultura maia e
andina, atualmente considerados “ruínas”. Posteriormente, recorre-se às relações rituais do
espaço simbólico, como espaços recorridos ancestralmente em ações rituais. Para contextualizar
esta temática em toda sua amplitude, recorrer-se-á a experiências de artistas contemporâneose as
minhas próprias experiências, que justamente relacionam as práticas em arte a estes espaços.
2
A compreensão é a captação das relações internas e profundas mediante a penetração na intimidade. Entender
um fato a partir de dentro, na sua particularidade, respeitando a originalidade e a indivisibilidade dos fenômenos,
significa tratar de entender, através da interpretação, o sentido que as pessoas dão a suas próprias situações. No
lugar de parcelar o real, como faz a explicação, a compreensão respeita a totalidade da experiência vivida; assim, o
ato de compreensão reúne as diferentes partes em um todo compreensivo.
43
O
A incorporação do espaço nas Artes Visuais marcou um momento que se conhece como
pós-modernismo artístico. Nesse âmbito, os artistas, cada qual a seu modo, alheiam-se das
funções normativas da tradição modernista e tentam libertar-se de regras preestabelecidas: não
se enunciam mais as mensagens messiânicas e Manifestos, próprios das vanguardas e das
ideologias; nega-se a autonomia da arte e a separação desta do mundo, idéias que foram
espalhadas pelo modernismo (PAINE, 2002, p. 529).
Como tentativas de dirigir a arte às coisas do mundo, à natureza, à realidade urbana e ao
mundo da tecnologia, as obras articulam diferentes linguagens – dança, música, pintura, teatro,
escultura, literatura, etc. Desafiando as classificações habituais, colocando em questão o caráter
das representações artísticas e a própria definição de arte. Interpelam criticamente também o
mercado e o sistema de validação da arte. Impossível pensar a arte, a partir de então, em
categorias como "pintura" ou "escultura". Na cena contemporânea - que se esboça num mercado
internacionalizado das novas mídias e tecnologias e de variados atores sociais que aliam política
e subjetividade (negros, mulheres, homossexuais, etc.) - explodem os enquadramentos sociais e
artísticos do modernismo, abrindo-se experiências culturais díspares.
Neste contexto, nos diferentes discursos, tanto sociais quanto da arte contemporânea,
aparecem continuamente termos como “País”, “Território”, “Espaço”, coisas todas que indicam
um sentimento de pertença, algo emocional: o lugar é um vínculo, um laço que não é abstrato,
teórico ou racional. Um laço que não está constituído a partir de um ideal inalcançável, pelo
contrário, apóia-se, organicamente, sobre a possessão comum de valores enraizados: língua,
costumes, jeitos característicos; coisas cotidianas, concretas, unidas em um paradoxo aparente, e
que constitui o material e o espiritual dos povos.
Os artistas contemporâneos inauguraram uma outra relação com o espaço, inédita nas
artes desde a Idade Média, incorporaram-no à obra e o transformam constantemente. A relação
espaço-obra-suporte, na arte contemporânea, pode ser uma das formas de determinar o que se
conhece como linguagem visual. Desta maneira, uma obra disposta em um ambiente expositivo
que ocupa só o seu próprio espaço será chamada de objeto, se esta se estende além de seus
próprios limites e interage com outros objetos, é chamada de instalação, quando estas instalações
excedem os limites dos espaços convencionais e fechados e propõem a interação com a
natureza, será chamada de land-art. Em outro âmbito, existe a possibilidade de que a obra tenha
44
o corpo como suporte, e abarca o espaço através dos movimentos do artista, será chamada de
performance ou ação performativa. É muito importante não esquecer neste razoamento a mistura
entre estas referidas linguagens. Neste sentido, Lúcia Santaella, quando fala da classificação da
linguagem visual
3
, lembra-nos que, ao tratar de misturas de paradigmas, o campo das artes é
privilegiado, já que a:
Ilustração dessas misturas pode ser encontrada nos fenômenos artísticos que
receberam o nome de hibridação das artes e contemporaneamente comparecem
de modo mais cabal nas instalações, onde os objetos, imagens artesanalmente
produzidas, esculturas, fotos, filmes, vídeos, imagens sintéticas são misturados
numa arquitetura, com dimensões, por vezes, até mesmo urbanísticas,
responsável pela criação de paisagens sígnicas que instauram uma nova ordem
perceptiva e vivencial em ambientes imaginativos e críticos capazes de regenerar
a sensibilidade do receptor para o mundo em que vive. (SANTAELLA, 2005,
p.183)
Inicialmente, com a instalação, a obra foi lançada no espaço, com o auxílio de materiais
muito variados, na tentativa de construir certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado
pela relação entre objetos,
construções, o ponto de vista e o
corpo do observador. Para a
apreensão da obra é preciso
percorrê-la, passar entre suas peças,
cores e objetos. Anúncios precoces
do que viria a ser designado como
instalações podem ser localizadas
nas obras “Merz” de Kurt
Schwitters, a primeira delas em
Hannover (Fig.9).
No inicio da de década de
60, Yves Klein realizou o que
poderíamos considerar a primeira
performance, O salto no vazio (Fig. 10 página seguinte). Uma composição fotográfica que retrata
a Yves Klein lançando-se livremente no espaço, da janela de seu ateliê (um ano antes do
primeiro vôo espacial tripulado). Nesta obra, além de existir um rompimento com o espaço
3
Segundo a classificação da autora: os três paradigmas da imagem são pré-fotográficos, fotográficos e pós-
fotográficos. (SANTAELLA, 2005)
Fig. 9 Merzbau de Kurt Schwitters. 1923.
45
tradicional, uma quebra de paradigmas na história da arte ocidental, existe também a ruptura
com o lugar de criação do artista: o ateliê.
Os artistas contemporâneos, com suas pesquisas sobre suportes e com a sua necessidade
de sair das galerias, questionaram a concepção espacial na arte. Assim, a história da arte, na sua
totalidade, esta constituída por constantes quebras e entrecruzamentos de paradigmas. Um
paradigma sucede o outro, de forma que a humanidade muda constantemente sua forma de
compreender o seu entorno e, pelo mesmo, de perceber a arte e de, mediante esta, perceber e
relacionar-se com o mundo.
Vejamos algumas possibilidades de explorar esses e “outros espaços” com a arte, dando
atenção a experiências de artistas que relacionam sua prática com espaços físicos e simbólicos,
reconhecendo em suas obras os antecedentes poucos convencionais da arte das culturas antigas.
Fig. 10 Yves Klein, Salto no vazio 1960.
46
ESPAÇOS FÍSICOS
O Site constitui uma outra forma de nomear o espaço contemporâneo. As obras montadas
em ambientes específicos serão chamadas Site-specific. As poéticas que surgem da relação com o
espaço incorporam aos seus processos criativos as particularidades de um lugar peculiar, real,
tangível e com história. Tratam-se, em geral, de trabalhos planejados para um determinado
local, em que a intervenção do artista dialoga com o meio circundante, para o qual a obra é
elaborada. Nesse sentido, a noção de Site liga-se à idéia de arte-ambiente, que sinaliza a
tendência da produção contemporânea de voltar-se para o espaço, incorporando-o à obra. É
possível afirmar ainda que as obras ou instalações Site-specific podem remeter à noção de arte
pública que designa, em seu sentido corrente, a arte realizada fora dos espaços tradicionalmente
dedicados a ela, ou seja, os museus e as galerias. A idéia geral é que se trata de arte fisicamente
acessível, que modifica a paisagem circundante, de modo temporário ou permanente.
Para experimentar estas obras, é preciso que o espectador se coloque dentro delas,
percorrendo os caminhos e passagens que projetam. A ênfase é colocada na percepção, pensada
como experiência ou atividade que ajuda a produzir a realidade descoberta. O trabalho de arte é
concebido desta maneira, como fruto das relações entre espaço, tempo, luz e campo de visão do
observador, com sua própria experiência. O espaço físico é aquilo que nos circunda, por tanto
que pode ser tocado, manipulado,
fotografado e penetrado.
Dentre as inúmeras
propostas que desenvolvem o
recurso de Site-specific, as obras de
grandes dimensões ganham muitas
possibilidades, já que propõem
uma outra forma de ver a arte. A
natureza é o locus mesmo onde se
pode observar que a arte se
enraíza. Artistas, como Robert
Smithson, realizaram suas
intervenções em espaços físicos
Fig. 11 Robert Smithson Spiral Jetty (pier ou cais espiral) 1970.
47
amplificados: desertos, lagos, canyons, planícies e
planaltos. É o caso da obra Spiral Jetty (pier ou cais
espiral), gigantesco caracol de terra e pedras
construído sobre o Great Salt Lake, em Utah (Fig.11
Página anterior). Diante de obras como as de
Smithson, é difícil não evocar a arqueologia de
civilizações antigas, como as obras realizadas pelas
culturas andinas. Estas transcenderam até chegar à
época atual onde facilmente poderiam confundir-se e
até superar algumas obras de exímios artistas
contemporâneos. Poderia estender-me em exemplos,
mas só mencionarei algumas destas obras, como as
linhas de Nazca, na península de Ica – Peru, um
deserto inteiro convertido em uma enorme cena
para a Land Art (Fig. 12). O que as diferenciaria é o
fato dessas linhas serem mais do que uma tentativa
artística pois cada uma dessas linhas está orientada segundo os movimentos do sol e das
estrelas, o que sugere que poderiam ter sido feitas seguindo os movimentos das estrelas,
denotando um alto grau de observações e conhecimentos astronômicos.
Poucos reparam nas qualidades estéticas dessas peças monumentais que podem ter
como suporte um deserto, ou ser uma arquitetura complexa, ou simplesmente uma intervenção
realizada em paragens longe da vista ou da percepção comum das pessoas (Fig. 13 Página
seguinte). Pode tratar-se, também, de espaços apropriados da natureza, e convertidos pelo
imaginário coletivo, em lugares motivo de culto, desde tempos antigos até o dia de hoje, como a
roca de El Sapo no lago Titicaca. A imagem-sombra do sapo flutuando sobre o lago revela não
somente a utilização do espaço, senão também um conhecimento e uma busca de interatuar
com os movimentos do sol, gerando uma obra dinâmica. Tratam-se sem dúvida de obras que se
relacionam com esferas míticas, mas também ligadas fortemente a experiências com a
observação do universo.
Fig. 12 imagens das linhas de Nazca. Entre 200
a.C. e 600 d.C.
48
Talvez os homens afastaram-se da natureza e
já não consigam mais ler os símbolos contidos nos
fenômenos naturais. Os lugares onde aconteciam os
“ritos cíclicos” quase não têm sentido para o homem
contemporâneo; têm sido abandonados e relegados à
condição de ruínas. Este é o caso de lugares
construídos com avançados sistemas numéricos e
astronômicos, altos templos construídos sobre
elevadas pirâmides maciças de pedra, como os da
cidade maia de Tikal (Petén - Guatemala), cujos
principais edifícios foram construídos a traves da
projeção da constelação da Ursa Maior. Ou como
Uaxactún: o observatório maia mais antigo que se
tem referência (Fig.14 Página seguinte), o qual ainda
encerrado hermeticamente na floresta maia continua
marcando, silenciosamente, o passo do sol e dos
astros. Uaxactún deixou, talvez, de interatuar com os homens, mas continua interagindo com o
universo: estas ruínas são obras de arte que não perderão vigência enquanto siga existindo o
movimento do sol e dos planetas. O movimento do sol completa as ruínas, dá-lhes vida.
Outros exemplos são os templos de Kalassasaya (Tiawanaku - Bolívia) construído a partir
da projeção do Cruzeiro do Sul sobre a terra, e Pilkokaina, uma outra misteriosa construção na
cordilheira dos Andes; ambos fazem pensar na existência da fragilidade dos homens e na
perenidade da natureza.
Todos estes espaços, hoje conhecidos como ruínas, podem ser reconstruídos pela
sensibilidade dos que penetram e percorrem em suas profundidades e escuridões, espaços
abraçados pelo tempo. São vestígios que encerram vida, não somente na memória do que
aconteceu nelas, senão pelo que acontece sutilmente em todas as coisas que têm contato com o
tempo. Estão vivas: a luz escorrega por pequenas fendas, criando linhas que atravessam o
espaço, árvores crescem nos muros; nelas existe um cíclico jogo entre luzes e sombras, sempre
mutantes. O sol faz das ruínas obras de arte em movimento.
Fig. 13 Espaços rituais Projeção do Vulcão
Licancabur- Bolívia.
49
Fig. 14 Esquema do passo do sol nas ruínas de Uaxactún - Guatemala.
Todas as sociedades produzem ruínas, ainda mais cidades com tanta história, como
Salvador-Bahia e suas muitas ruínas espalhadas em lugares inimagináveis. Uma delas é a antiga
Fábrica Fratelli Vita, localizada à beira do mar, na Cidade Baixa. No interior desta ruína
também a luz do sol penetra e realiza seu percurso.
Foi justamente nesta ruína, a antiga Fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, onde tive a
oportunidade de exercer a minha própria procura pelo espaço, sem perder o meu elemento
principal: a linha e as possibilidades visuais e espaciais que esta produz. Constitui-se como uma
das primeiras experiências realizadas no transcurso do Mestrado em Artes Visuais
4
. Através de
duas obras consegui concretizar meus objetivos iniciais: a primeira intitulada
Chordata
Gryphus
, uma experimentação com linhas, e a segunda, As indústrias, instalação em Site
Specific, é uma obra que propõe um sistema complexo, composto de diferentes linguagens
visuais. Possui características híbridas e empréstimos de várias linguagens e situações
interpretativas. Em ambas as obras procura-se, desde sua concepção, um diálogo com o
contexto, um edifício abandonado e em ruínas, e o aproveitamento da luz e das características
do espaço. Estas obras foram
criadas e exibidas ao público no mesmo dia, junto com as obras de
outros 20 artistas, em um evento chamado RUÍNAS, Processos Criativos (Anexo 4), nas ruínas
dessa antiga fábrica. A seguir uma breve descrição e reflexão sobre essas obras.
4
Obras realizadas na disciplina Teoria e Técnicas de Processos Criativos, ministrada pela Prof. Dra. VigaGordilho.
50
Chordata Gryphus.
51
Chordata Gryphus
, ciclo vital de um ser de linhas.
Sol tú que naciste en mi ojo derecho
Y moriste en mi ojo izquierdo
(HUIDOBRO, 1984 p.79)
Chordata Gryphus
. Trata-se de uma obra de caráter processual e efêmero, na qual se
procurou o diálogo com o contexto, a partir de certos elementos existentes no terceiro andar da
fábrica abandonada, onde não existia teto e predominava um sol intenso. Lá foi inevitável não
lembrar outras ruínas pré-colombianas que me eram familiares.
No intento de evocar esse
diálogo que as ruínas-observatório
têm com o sol, nasceu a idéia de
criar uma interferência com linhas
que projetassem o percurso do sol
no interior da fábrica através de
uma clarabóia de 6 x 6 metros, que
ocupava o lugar central do edifício.
Assim, projetou-se uma forma
caprichosa e orgânica - mas
também efêmera - um ser feito de
linhas.
Chordata Gryphus
é um
breve ciclo vital de um ser de
linhas, que nasce de um novelo e é tão efêmero quanto o dia: Chordata é uma palavra em latim,
que significa “corda” e é, ao mesmo tempo, um filo que, segundo a taxonomia animal, inclui
todos os seres que têm coluna vertebral, todos os seres simétricos, desde os anfíbios até os
vertebrados, irmanando seres minúsculos com elefantes, lagartos com aves e a todos estes com o
ser humano. Gryphus remete à idéia de hieróglifo, às inscrições das ruínas maias e andinas,
gravadas em pedra; mas também gryphus é escritura com linhas; na obra, as linhas que projeta o
sol no seu percurso e as linhas que evoluem momento a momento.
Obra 1 Chordata Gryphus.Vista Frontal
52
Como já foi dito, a
clarabóia cumpriu um papel
fundamental, serviu como uma
espécie de moldura para uma
enorme estrutura formada por fios:
foram metros e metros de linhas
de barbante tingido. O processo de
montagem foi árduo e somente foi
possível com a ajuda de quatro
pessoas. E, ao final do dia, ao
tempo que o sol caía, o ser de
linhas também desapareceu para se
converter, novamente, em novelos.
Esta obra dialoga com o conjunto de obras da artista paulistana Edith Derdyk. Ela junta
linhas e grampos, inventa formas que parecem cobrar vida: nas suas composições, as formações
de linhas adquirem uma presença dinâmica, como se se tratasse da sombra de algum ser (Fig.
15). Na obra desta artista é constante a utilização de metros de fio preto que se desprendem de
vários pontos próximos, um dos outros, e interatuam de maneira paralela, mas sem serem
tramados ou tecidos, constituindo o conjunto uma estrutura que se dissemina no espaço.
Uma das primeiras
instalações com fios foi (Milhas de
barbantes), realizada por Marcel
Duchamp em 1942 (Fig. 16). No
contexto de uma das exposições
surrealistas em Nova York,
Duchamp fecha uma sala com
cordas, definindo, com sua
intervenção, um ambiente
particular que interferia nas obras
da exposição.
Fig. 15 Obra de Edith Derdyk, 1999.
Fig. 16 Milhas de barbantes. Marcel Duchamp, 1942.
53
Durante as últimas décadas, artistas de distintas procedências experimentaram as
instalações, como Gego, Gertrudis Goldmichdt, artista que nasceu em 1912 na Alemanha, e
trabalhou e morreu na Venezuela. Fala-se desta artista porque no trabalho que ela realizou
durante décadas podem-se observar os elementos-chave que tocam esta obra montada na antiga
fábrica. Gego foi uma artista visual
que trabalhou com um alfabeto
que se põe de manifesto, segundo
Victor Guédez, com o
estabelecimento de três códigos;
eles são: o ponto, a linha e o vazio.
O ponto é a unidade visual
mínima e associa-se com o
conceito delugar. No caso de
Gego, este lugar de reunião se
estabelece mediante argolas,
canudos, nós ou enlaces que são
circunstanciais a sua gramática construtiva. Na sua vasta obra, a linha é a força ativa que se
desprende de um ponto em deslocamento. Para Gego, as linhas podem ser uma estrutura reta,
curva quebrada ou mista; de jeito similar têm uma trajetória e interatuam de maneira cruzada,
paralela, tramada ou tecida. A linha tem a maior responsabilidade nas resoluções de Gego. O
terceiro dos códigos do alfabeto desta artista é o vazio. Na obra de Gego, o vazio não é entorno
ou âmbito que rodeia o objeto, é componente material e estrutural. Constitui-se como uma
particular forma de silêncio e uma peculiar maneira de repouso, que a presença do fruidor
ativa. Então se pode dizer: as obras de Gego são composições de linhas sensíveis, que atuam
como uma cadeia articulada através de pontos estruturais e que está firmada mediante a
presença de vazios (Fig. 17).
Nesta ordem o significado de espaço é proposto novamente por esta artista,
porque em lugar de algo incorpóreo, etéreo e gasoso, adquire implicações
expressivas e expandidas. (GUÉDEZ, 1997, p.59)
Na serie Telas, de 1957, Gego se expressa mediante volumes aéreos que produzem
vibrações e efeitos de desmaterialização formal; do mesmo jeito, as sombras que projetam
formas que ela cria são um motivo inspirador para realizar esta pesquisa. Apesar de que ela não
gostava de definir seu trabalho como linhas projetadas no espaço, é isto mesmo que chamou
Fig. 17 Reticularea, Gego, 1968.
54
minha atenção e provocou-me para a realização da obra Cordatha Griphus. Mas a minha
intenção foi procurar além da experimentação formal da linha com o espaço. Assim, considero
esta obra como parte de um processo de pesquisa que posteriormente empreenderá outros
caminhos.
Obra 2 As indústrias. Vista lateral.
55
As indústrias: uma ponderação sobre o desperdício
A experiência de montar
uma obra em uma fábrica em
ruínas resulta em um ato de
abertura de possibilidades
perceptivas, que convidam ao
diálogo entre o espectador e o seu
entorno, propondo aspectos tais
como a reflexão sobre o fazer do
ser humano na terra. A instalação
intitulada As indústrias apresenta-
se como uma ponderação sobre a
dicotomia entre a natureza e as
indústrias e tudo o que elas representam.
A primeira impressão, ao percorrer os espaços, foi a percepção dos tons cinzentos e
esverdeados das paredes umedecidas, provocados pelas texturas de pintura descascada, mofo e
concreto - próprias das ruínas -, constituindo-se um conjunto tonal harmônico somado à
transparência azul do mar, que era possível visualizar através do que alguma vez foram janelas.
No espaço onde a obra foi instalada, o olhar do observador percorre o muro mergulhando nas
texturas, nos cantos, nas raízes que se entrelaçam com as paredes. Destas saem também canos
enferrujados, cujas sombras caem do muro sobre o chão, mudando sigilosamente, segundo a
segundo, com a luz do sol.
Nesse terceiro andar da fábrica abandonada já que não existem mais a cobertura nem o
abrigo do teto, é possível encarar diretamente o céu e sentir a amplitude do horizonte. Mas esta
visão da linha do horizonte apresenta-se fragmentada ou a “intervalos”, graças às antigas janelas
ao longo do muro. Dada a continuidade da seqüência de janelas ao redor do espaço da
instalação, se realizou uma intervenção com pintura em uma delas, que foi fechada, dita
intervenção foi realizada com dois tons de pintura azul. O mesmo tratamento foi realizado em
um outro plano da instalação que pode ser visto através de uma pequena janela no muro.
As indústrias. Detalhe da pintura.
56
Criou-se um efeito de profundidade e distância em relação ao espectador, estabelecendo-se,
assim, um jogo de planos que dão continuidade à linha do horizonte em níveis diferentes.
A intervenção foi feita com economia de recursos: linhas de algodão colorido em ato
silencioso escorregam pelos canos que alguma vez funcionaram como parte de uma verdadeira
fábrica. São linhas imóveis, como capturadas no tempo, sem movimento nem som, em pacífico
protesto contra o desperdício. As finas linhas lembram torneiras abertas. Parece que agonizam,
desmaiam e se espalham no chão cinza, dando a impressão de que o que escorrega por elas e se
espalha no chão não é outra coisa que o mesmo mar e o céu.
Posteriormente, encontrei em um trabalho de José Damasceno, uma forma similar de
dar materialidade ao imaterial através da linha. Trata-se de uma instalação que dá corporeidade
à luz por meio de grandes quantidades de linhas, questionando materialidade e imaterialidade e
outorgando uma outra função à linha, pois esta pode aparecer nas instalações não somente
como ela mesma, senão também adquirindo outras materialidades, no caso d’As indústrias,
como água e céu, e a luz, na obra Snooker, 2001 (Fig. 18), de José Damasceno, como luz.
Venâncio Filho comenta o trabalho deste artista relacionando-o com o paradoxo da
materialidade.
A luz de uma mesa de sinuca jorra um amarelo Van Gogh, um pigmentolide
desestruturado que dá a alucinatória inversão à materialidade luminosa. Sempre
uma demonstração muito precisa, calculada, de extremo rigor. O delirante exige
a mais absoluta claridade. (In: CANONJIA, 2002, p.27)
Fig. 18 José Damasceno, Snooker, 2001.
57
Uma visão do futuro?
Na instalação As indústrias, o título tem um
efeito multiplicador, pois a intenção de denominá-la
assim foi criar uma generalização e representar a
função, não de uma senão de todas as fábricas
existentes. A partir desta associação se descobre na
relação instalação-paisagem uma referência sobre a
ação do homem e o papel das suas criações: as
indústrias, utilizadas em função de interesses - como
os das multinacionais, de apropriar-se da água -,
esgotando os recursos, consumindo lentamente a
paisagem. Uma indústria poluente que, como a
maioria das indústrias, lentamente vai esgotando a
água e o ar.
Mediante um gesto de respeitosa
apropriação, a mesma fábrica foi representada,
incorporando nela outros elementos como a pintura,
texturas e linhas. Estabeleceu-se uma conexão espacial, existencial e temporal entre a figura e
aquilo que ela denota, ao manter uma forte relação dinâmica com as características da fábrica.
Por esta razão, a força desta obra se radica no fato de ser apresentada em uma fábrica que já não
pode mais funcionar, como o subtítulo diz, será uma visão de futuro?
A instalação coloca a presença do espectador em uma situação dupla: como parte da
humanidade que provoca aquela paisagem que explora a natureza e como observador passivo
ante essa realidade de saqueio e desperdício. Para fazer esta afirmação, tomam-se como
referencial episódios opostos à passividade, como os acontecidos em Cochabamba, Bolívia, no
ano de 2003, onde a população manifestou-se contra a privatização da água, expulsando as
multinacionais que pretendiam o monopólio da água dessa região.
As indústrias. Detalhe dos canos.
58
As indústrias Vista Frontal.
59
ESPAÇOS SIMBÓLICOS
O espaço simbólico é onde a ação se organiza através dos movimentos, das palavras, dos
sons, dos gestos, da ação em si, envolvendo a todos no mesmo lugar. É onde o espaço físico
torna-se expressivo e a ação-ritual ganha vida através de um discurso simbólico. Para celebrar
tanto um ritual quanto uma performance é necessário, antes de tudo, “sair” da vida habitual. E
como se acredita ser o ritual co-natural ao homem, essa “saída” também faz, de certo modo,
parte do cotidiano.
Através do ritual tenta-se perceber o mundo e nós mesmos, imersos nele. Diversas são as
óticas pelas quais podemos encarar os rituais. Por um lado, podemos considerá-los como uma
espécie de força integradora social, por outro, um modo de “dizer” algo “indizível”:
Toda a ação ritual é uma forma de linguagem, os rituais seriam a expressão de
idéias complexas que não podem encontrar um resultado comunicativo a não
ser através do mito ou da ação ritual. (TERRIN, Aldo. In: PORTUGAL, 2006,
p.62)
Como uma ação simbólica que é, o ritual auxilia o homem na organização das suas
experiências no mundo. É a partir da ação que nossas idéias e pensamentos se formam. Rito e
mito possuem uma natureza modelar, certo valor de ensino, de contato com nossos primórdios,
de volta ao início, atribuindo à nossa existência uma orientação vital. O símbolo, o mito e o
ritual expressam, em planos diferenciados, o conteúdo essencial das atitudes humanas, o
enfrentamento com o desconhecido e o oculto. Os símbolos culturais são aqueles que, de certo
modo, expressam “pequenas verdades” dentro do contexto daquela cultura que os emprega e,
por mais modificações que tenham sofrido ao longo do tempo, continuam sendo aceitos e
utilizados.
Na cultura andina, a harmonização com o mundo está particularmente ligada a
momentos de emergência; situações difíceis, como quando o homem se vê diante de catástrofes
naturais. Além dos “ritos de crise”, também podemos localizar os “ritos de cura”, que são ritos
que têm por objetivo a cura da mente, corpo e alma. Nesta cultura, o ritual está relacionado à
imagem de umbral: lembra o trânsito e o passo de um estado a outro, uma procura de união
entre intensidades. Esta idéia de união está presente nos atos cerimoniais relacionados com as
águas, onde a figura do sapo, habitante das profundidades do Lago, lugar escuro e de forças
subterrâneas, deslocado dessas profundidades e exposto ao sol, tem a capacidade de chamar a
água da chuva, sendo que este pertence a um outro extremo do espaço: as alturas. Por isso o
60
sapo é considerado um ser de zonas liminares (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.27). Outro ritual
parecido acontece quando as chuvas demoram a chegar aos vales; o Yatiri, “homem que sabe”,
chama a chuva: leva uma concha de mar à cima de uma montanha coberta de neve. Com isto,
ele realiza um ato simbólico que “une” as águas das profundezas do mar com as águas da neve
que pertencem ao outro extremo: o alto da montanha.
neste mundo liminar chegamos em uma espécie de fusão entre os elementos,
[...] as cimas das montanhas, são zonas de fronteira entre o céu e a terra. Nas
cimas altas acumula-se a neve, sentem-se os grandes gelos, ou o calor extremo
emitido pelos vulcões [...]. Outros Fenômenos meteorológicos, como o arco-íris
e o raio, evidenciam a união de extremos. (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.24)
O deslocamento do sapo ou a concha como
elementos de união poderiam dar-nos uma chave
para compreender a arte andina antiga: a união de
forças extremas mediante um ato que rompe seus
limites. Através de tais atos de união, é possível
invocar, perguntar e agradecer às entidades da
natureza, mas também interagir com ela de uma
forma estreita. Existem também atos simbólicos no cotidiano. O ato simbólico andino mais
comum é o ato de agradecimento à terra (ch’alla), este ato simples que, ao espalhar licor sobre
ela, “une” o que esta por cima com o que está por baixo, une desejos não pronunciados com a
terra que os absorve.
Esta idéia esta presente também no momento
ritual da queima da “mesa”, como pedido ou como
agradecimento, no momento da queima o fogo
transforma em fumaça a oferenda e esta fumaça
eleva-se, até chegar às altas montanhas (Fig. 19).
Existem também inumeráveis rituais inseridos no
cotidiano andino e muitos deles têm a ver com
linhas e com a ação que as produz: o fio enfiado à
esquerda tem propriedades de proteção, por
exemplo, quando alguma pessoa querida vai embora,
esta tem que amarrar uma linha vermelha enfiada à esquerda na munheca da pessoa que fica
Fig. 19 Dois momentos da queima da mesa
ritual.
61
para evitar o amartelo, a dor da saudade. Em outras palavras, durante estes pequenos atos
simbólicos:
A dizibilidade do mundo é levada à sua expressividade através do agir estilizado
e ordenado, como percepção imediata com o mundo mesmo. De fato, é o agir
que está harmonizando com o mundo, não o pensar. (TERRIN, Aldo. In:
PORTUGAL, 2006, p.64)
Como nos rituais, alguns artistas abrem mão de um amplo sistema simbólico, com suas
ações utilizando-se de elementos de uma linguagem cotidiana, mas, ao mesmo tempo, afastando
sua ação de ações comuns, instituindo uma espécie de “deslocamento da situação” que vivemos
no dia-a-dia para obter um olhar refletido sobre este, dando lugar a uma transformação da
realidade. Essa é uma das intenções dos artistas que utilizam o seu corpo e suas ações para a
Prática criativa.
As performances do grupo Fluxus, por exemplo, desde seu início, entre 1961 e 1963,
propõem uma projeção inédita a essa forma de arte. Os experimentos de Nam June Paik, assim
como os de John Cage - por exemplo, Theather Piece # 1, 1952 -, que associam performance,
música, vídeo e televisão, estão comprometidos com a exploração de sons e paisagens sonoras
tiradas do cotidiano, desenhando claramente o projeto do Fluxus de romper as barreiras entre
arte e não-arte. O nome de Joseph Beuys liga-se também ao grupo e à realização de
performances - nome que ele recusava, preferindo o termo "ação" - que se particularizam pelas
conexões que estabelecem com um universo mitológico, mágico e espiritual. A repetição de
elementos e temas na obra do artista acabou por criar uma estrutura simbólica interna e
própria:
Quando nos aproximamos de seus trabalhos, cedo ou tarde nos apropriamos
desta estrutura e passamos a ler sua obra através dela. A maioria dos objetos e
múltiplos do artista são objetos-testemunhos, “vestígios” de ações; a verdadeira
obra se dava em ação e estas sobras, como restos de rituais, marcam e cristalizam
a idéia, a ação. (PORTUGAL, 2006, p.66)
Um objeto era sempre uma metáfora de algo que ia além da matéria. O feltro, o coiote,
a lebre e a gordura. Beuys investia o objeto de uma perspectiva metafórica, digamos,
edificadora. Nele, a matéria da qual o objeto é composto, por exemplo, a gordura, vem a ser o
símbolo encarnado do que a constitui: energia condensada, ponto de convergência entre isto
que é visível e aquilo que não o é. Na maior parte das vezes, no ambiente estavam os elementos
62
que o artista utilizaria e este ia sendo construído durante o decorrer da própria ação. Ao
promover uma reestruturação do espaço físico, o artista acabava por alcançar um espaço
significativo, manipulando símbolos que se tornaram marcas de seu trabalho. (Fig. 20). A
presença e a escolha de seus elementos simbólicos demonstram o universol do artista. Quando
consultado sobre a utilização de elementos xamânicos em suas obras diz:
Muitas destas realidades são estados do tipo que muitas pessoas chamaram de
elementos xamânicos. Entretanto, eles não o são em um sentido atávico.
Quando eu faço algo xamânico, eu estou usando elementos xamânicos
admitidamente como elementos do passado, com a intenção de expressar
alguma coisa sobre uma possibilidade futura. (In: PORTUGAL, 2006, p.90)
O artista tentava estabelecer com o público
uma relação mediante a qual fosse capaz de
proporcionar um mergulho na ação, de modo que
os espectadores saíssem do espaço da ação
modificados, para que a mensagem e discussão que
tentava promover não fossem entendidas apenas
por vias racionais.
A busca por entendimentos de símbolos
antigos, um olhar cuidadoso sobre a mitologia, faz-
se necessária, uma vez que estes podem esconder
em si, dentro de pequenas verdades, um sentido
ampliado da existência. Abrindo mão de aspectos
comuns aos que podemos observar em práticas
rituais e nas ações como as de Beuys, resulta
necessário estabelecer, mediante ações, um lugar e
um tempo de reflexão, pois, talvez mais do que
nunca, nesta época sejam necessários ritos cíclicos e ritos de cura. A seguir, podemos mencionar
uma experiência na procura deste sentido ritual e protetor dentro de ações simbólicas,
interagindo com o mundo: A vídeo-perfomance TEMPO (ver DVD em anexo).
Fig. 20 Como explicar quadros a uma lebre
morta. Joseph Beuys, 1965.
63
TEMPO Vídeo-Performance
Mostra uma intervenção em Site-specific, realizada com linhas que envolvem uma árvore
localizada à beira do mar, em Bom Jesus dos Pobres, no Recôncavo Baiano, a começos de 2007.
Esta intervenção é efêmera, já que se desenvolve em um lugar alheio aos circuitos da arte,
inclusive de qualquer espectador. Poderia facilmente ser considerada uma ação ritual, onde
aparece uma evocação à idéia de ciclo, o sentido circular e progressivo e quase meditativo do
envolver.
Foi concebida como um diálogo com a performance de Tomas Schmit realizada no
festival Fluxus, em Ámsterdam (1963), na qual o artista, meticulosamente arrumado e vestido de
traje, colocou-se no centro de um círculo de garrafas, todas vazias, à exceção de uma, que havia
previamente enchido de água. Dirigindo-se para um ponto arbitrário do círculo, metodicamente
dedicou-se a verter água da garrafa cheia à outra vazia que estava a sua direita. Esta ação - de
passar o conteúdo de um recipiente cheio a outro vazio, no sentido dos ponteiros do relógio -
prolongou-se até que toda água se havia derramado ou evaporado. Esta performance, intitulada
Zyklus fûr Wassereimer (Ciclo para rimas de água), apóia-se em ações diretas, simples e sutis. A
partitura permite sua execução com algo entre dez a trinta garrafas. A duração dependerá da
velocidade e precisão demonstradas pelo artista à hora de verter a água, processo que poderia
resolver-se em pouco tempo ou prolongar-se interminavelmente (STILES, 2002 p.141).
Considera-se que esta performance dialoga com a obra TEMPO, justamente por essa situação
cíclica e repetitiva inerentes ao ato
de envolver.
No Vídeo-performance, as
linhas, em uma cadência cíclica,
vão cobrindo progressivamente
uma pequena amendoeira; como
sinal de uma intervenção sem
agressão, as formigas que habitam
a árvore, continuaram
tranqüilamente seu percurso. A
árvore, à medida que é envolvida,
vai evidenciando uma forma
Obra 3 Imagens do Vídeo-performance TEMPO.
64
feminina. Pouco a pouco o ato que começou como uma experiência que relaciona a memória
intrínseca nos materiais com elementos da cultura afro-brasileira que evocam Oroco, o Orixá do
tempo, foi-se transformando em um ato silencioso que simboliza proteção e cuidado presente
em todas as culturas e em todos os tempos.
Pouco depois de concluir este vídeo, paradoxalmente, toda esta zona do Recôncavo
baiano sofreu um vazamento de tóxicos, afetando irreversivelmente os moradores, a flora e a
fauna. Depois deste incidente esta ação tinha adquirido um outro caráter: tinha-se convertido
em um ritual de cura, que como todo rito, possui um caráter de repetibilidade, o que não
significa que dure para sempre. Em suma, é uma ação ritual que pede seu próprio tempo, assim
como pede seu próprio espaço.
Durante a ação ritual, a suspensão do tempo
acontece, pois sua duração não é medida
convencionalmente, esta possui um tempo
característico e intrínseco. No entanto, a experiência
temporal é subjetiva. Além do tempo comercial e do
tempo existencial, há ainda o tempo sagrado. “Pode-
se designar o tempo no qual se põe a celebração de
um ritual um tempo místico, às vezes realizado pela
repetição pura e simples da ação dotada de um
arquétipo mítico.” (PORTUGAL, 2006, p.83).
Os mitos e os ritos possibilitam a instauração
de um outro tempo, podendo mesmo alcançar a sua
suspensão, em alguns casos mediante ação de
repetição, como o envolver. Esta “quebra” do tempo
cotidiano é fator primordial para que se alcance a fase liminar ou de transe. Por ser uma ação, o
rito “manipula” o tempo estabelecendo uma “pausa simbólica”. O rito acaba por estabelecer na
vida do homem um momento de pausa, um momento propício para a reflexão, pois si existe
alguma coisa que não condiz com a estrutura e a condição do rito é a pressa; ele se desenvolve
em seu próprio ritmo. O rito ordena. O poder criativo, a fecundidade, reside, pelo contrário, na
desordem. Este tipo de espaço simbólico também será explorado na tentativa de definir uma
ordem possível através de ações.
Imagem do Vídeo-performance TEMPO.
66
3. UMA ORDEM POSSÍVEL
Nas terras que estão ao pé da Cordilheira Real dos Andes, quando uma menina
completa treze anos a família presenteia-lhe com uma pele de ovelha. A partir
desse momento, o lugar da casa onde esta pele será colocada vai determinar o
espaço da jovem. Este espaço chama-se Saxraña. Nele penteará, ou seja, dará
ordem a seus longos cabelos, com uma raiz que tem o mesmo nome: Saxraña
(Fig. 21). Pentear-se-á devagar, de cima para baixo, no amanhecer, limite da
noite e do que será o novo dia. Ainda com os olhos fechados, entre o sonho e a
vigília, ela trançará seu cabelo. Assim, nesse ritual de encontro interior, com
esse olhar para dentro, todos os dias, ela se prepara para tecer. Essa é a hora em
que o Saxra
1
, o ser mítico que governa os tecidos, aparece às tecelãs jalq’a para
guiá-las ao mundo escuro e interior, espaço liminar, de onde se extraem as
imagens que depois entrelaçam aos tecidos
2
.
Nos tecidos da comunidade quéchua jalq’a (zona oeste da Bolívia), as tecelãs
representam o mundo caótico e desordenado “trabalhosamente perceptível” (Fig. 8 Página 41)
povoado de diferentes espécies de seres estranhos,
chamados de Khurus (em quéchua significa
indômito, selvagem, não domesticável), que desafiam
toda lógica e perspectiva. Nos tecidos, os khurus, seres
sem definição de sexo, estão em constante atividade
de procriação. “Los khurus siempre están haciendo sus
wawas. Tudo isso sugere que os esses seres habitam
um espaço (ou tempo-espaço) onde a vida multiplica-
se em profusão, mas sem diferenciar-se ainda...”
(CERECEDA, 1993, p 38). Esta qualidade de caos, de
desordem, as tecelãs a expressam com a frase em
quéchua “chaxrusqa kanan tian” (tem que ser
desordenado): a desordem é, pois, um valor.
Este mundo é habitado pelo saxra, o ser que
propicia a criação. O mundo visual do saxra
corresponde com o impreciso, com a percepção
1
O saxra é uma deidade que entre os jalq’a corresponde não só aos interiores da terra e água subterrânea, como em
outras partes dos Andes, senão também à deidade de passagens solitárias, especialmente momentos de penumbra;
está fortemente ligada à criação.
2
Texto do convite da exposição itinerante En la hora del saxra, realizada por Sandra De Berduccy no Museu de Belas
Artes Bonaerense. Argentina, 2003.
Fig. 21 Saxraña.
67
difícil, com o escuro, com a cor cambiante, e em outra ordem das coisas, com a procriação (de
animais e plantas), a riqueza e a criação artística (música, tecido, etc.). Cereceda afirma que a
cultura “Jalq’a toma o tema do saxra e o transforma duplamente: de um mundo virtual em
um mundo real [do qual podemos falar]; de uma experiência pavorosa [do caos], em uma
experiência profundamente estética” (1993, p. 43).
Como já se disse anteriormente, o poder criativo, a fecundidade, reside na desordem
(por não dizer o caos) que é próprio do puruma, um mundo perigoso de luz difusa. Mundo que,
além disso, inclui seres “marginais”, que vivem fora das normas das sociedades - que ameaçam
porque pecam justamente contra a ordem; daí que representam a forma mais extrema do poder,
ao mesmo tempo fecundo e perigoso, que reside nas bordas.
Lembremos a idéias de marginalidade e mediação propostas na
primeira parte desta dissertação, ambas contêm um elemento
perturbador que as fazem talvez instrumentos apropriados para
conectar com as potências do escuro, o desordenado, o que não
pertence à razão. E também, como já se expôs, estas culturas localizam sua origem mítica em um
centro de maior concentração de onde todas as coisas convergem - o taypi. Da mesma forma,
localizam nesse espaço caótico o momento da criação.
Por essa razão que os processos criativos da música e do tecido da cultura andina
fazem sempre alguma referência a um componente interior, ritual e espacial. Que pode
concretizar-se para os músicos no ritual de busca da nova melodia no território e tempo
próprios do sirinu
3
, e, para as tecelãs, no encontro com o saxra também em territórios
liminares, e mais comumente no devaneio
4
. É possível penetrar e procurar esse “estado -
espaço” criativo em lugares concretos, que têm características ligantes ou de ponte entre duas
realidades opostas; procuram-no em lugares como as entradas das cavernas, os olhos d’água,
lugares com grandes pedras, como El Sapo. Igualmente, entre o sonho e a vigília, ou em
tempos específicos, como a aurora ou o pôr do sol, que se constituem como tempos
intermediários entre as faces do dia. Este estado-espaço, do qual falam também muitas outras
culturas chamadas de xamânicas, pode ser transitado: adentram nele músicos, tecelãs, além
3
Sirinu, é o ser mítico que inspira a música.
4
O devaneio, segundo Bachelard é o poder que permite ao homem penetrar nas coisas. O devaneio não é uma
atividade vaga, difusa, mas uma atividade dirigida, é uma força imaginante que encontra seu dinamismo diante da
novidade. É “a mais móvel, a mais metamorfoseante, a mais inteiramente livre das formas” (BARBOSA, 1993.
p38)
68
dos homens de conhecimento, para depois dar materialidade às imagens neles recolhidas e
logo compartilhá-las com a comunidade. Desta maneira, a criação artística, na antiguidade
andina, ligava também um mundo interior e mítico com o mundo social e coletivo, não
menos complexo. Exemplo disto são os processos de elaboração têxtil.
Desde a época pré-colombiana, a tradição têxtil andina tem desenvolvido, ademais de
destreza no manejo das técnicas e sutileza no acabamento, uma infinidade de variações, que
resolvem determinadas necessidades de desenho, dando por resultado uma diversidade de
procedimentos. Estes diversos procedimentos, assim como os utensílios e a lógica mesma do
tear, estão constituídos por elementos básicos que são constantes
em todo tipo de têxtil. Os diversos processos da elaboração dos
têxteis tradicionais são prolongados, requerem de um tempo
especial, originariamente foram realizados durante o ano inteiro,
acompanhando o ciclo agrícola, pois incluem muitas etapas onde
participam a comunidade toda: desde pastorear as ovelhas até o tecido e enfeite dos bordes,
para culminar nas festas onde estes tecidos expõem-se e são parte ativa dos rituais.
Para entender a importância do processo criativo nas artes tradicionais foi preciso
transitar os espaços da cultura andina, desvendar e incluir-me nos seus domínios. Depois de
vários anos de pesquisa e aprendizado de técnicas têxteis tradicionais, especialmente quando
consegui dominar a técnica do fiado tradicional, foi possível comprovar que os processos do
tecido na cultura andina fazem sempre alguma referência a um componente interior e, por
que não dizer, meditativo, como origem. Quando se adquire destreza no enfiado, processo de
torção mediante o qual o emaranhado de fibras forma-se em fios, chamados, em quéchua,
q’aitu, não se necessita de uma atenção especial, converte-se em uma segunda atenção: algum
motor íntimo vai criando o fio. Bernabé Cobo, cronista da colônia em terras andinas o
confirma, mas também remonta-nos à antiguidade desta prática:
Fiam as índias não só nas suas casas, mas também quando andam fora delas,
ora quando paradas, ora andando, sempre que não levem as mãos ocupadas,
não lhes é impedimento andar para que deixem de ir fiando, como vão as mais
encontramos nas ruas, quando fiam sentadas costumam assentar o fuso sobre
alguns de seus pratos pequenos de barro. (COBO, Bernabé. Historia del Nuevo
Mundo. Tomo II. Madrid, 1956 [1653] Cap XI; Pag 258 In: DE BERDUCCY,
2001, p. 32 )
69
Desta forma, cada fiandeira-tecelã, com sua forma particular, manipula a lã e o fuso com
tal destreza que pareceria estar executando uma espécie de dança, envolvendo o fio em um
conjunto de movimentos de: tensão-distensão, movimento-repouso, etc. (veja o processo
completo do fiado no Anexo 3). A partir do fiado, começa-se a dar materialidade à linha,
partindo do emaranhado “uniforme”, do caos existente na lã crua. Fio é, então, o conjunto de
fibras unidas por torção que resultam em uma linha comprida; estas fibras entrecruzadas
conformam a estrutura de todos os tecidos. A delicadeza dos tecidos andinos radica, em grande
parte, na fineza e regularidade do fiado. O fio deve ser semelhante e regular, fino, mas o
suficientemente forte e elástico para suportar a manipulação.
O fiado das fibras, sejam estas vegetais ou animais (Anexo 2), realiza-se com movimentos
específicos das mãos: primeiro, os dedos da mão direita fazem girar o fuso e com este
movimento reúnem-se as fibras da lã em um só fio comprido que
inicialmente é reunido na mão esquerda, para depois envolvê-lo
na parte inferior do fuso. Esta operação realiza-se até conseguir
fio suficiente para formar dois novelos. Posteriormente, com um
fuso maior, ambas as mãos fazem girar entre as palmas dois fios
simples para que, torcidos juntos, constituam a linha final.
O dicionário de Ludovico Bertónio, dicionário aimara/castelhano mais antigo que se
tem referência, designa esses movimentos das mãos com o verbo phalatha:
1) fazer girar algo “entre” as palmas, já sejam as fibras de palha para formar a
corda, já seja um palito sobre outro pau seco, para produzir fogo;
2) fazer girar algo “com os dedos da mão”.
Curiosamente […] são justamente os dois movimentos das mãos necessários
para fabricar o fio com o qual se tece. (BERTONIO. In: CERECEDA, 1987.
p.137)
Para Veronica Cereceda resulta sugestivo que este termo “phalata” também signifique
“formoso”, “bem feito”. Será que a beleza do phalata parece, assim, com a beleza do que é “bem
envolvido”, do que é “bem torcido”? Trata-se de uma metáfora têxtil? E será que a passagem de
um estado de caos a um outro estado podia ser valorada esteticamente? Se isso acontecia na
antigüidade, acontecerá no contexto da arte contemporânea? Responder-se-á essas perguntas nas
ações finais que formam parte desta pesquisa.
Antes lembremos que com estes movimentos, também se dá passo a um outro elemento
que remonta a uma origem, o qual está formado graças aos movimentos de envolver e desenvolver:
70
o novelo. Nele estão concentrados quilômetros de linhas que podem caber na mão. Portanto, o
novelo revela-se como ponto de partida, sua forma circular pode conter quilômetros de linhas
diversas; nele se encontram concentrados materialidade e subjetividade; neste estado, o novelo
apresenta-se como um pequeno cúmulo de possibilidades onde a obra toda se encontra em
potência, nas palavras de VigaGordilho: “além do novelo de lã transformar-se em semente e
fruto, ele é essencialmente ninho”
Obra 4 Ovillos viajeros.
71
O
Com o novelo e sua simplicidade estética, foram realizadas várias obras explorando as
características que este possui, como na série fotográfica intitulada
ovillos viajeros
(novelos
viajantes) (Obra 4 Páginas anteriores), onde novelos aparecem em diferentes cenas e/ou
assumindo características diversas, como as de sementes, frutos, ninhos, etc. interagindo com
espaços e lugares. Distribuíram-se essas imagens como adesivos, dando continuidade à
itinerância desses novelos.
O novelo enquanto acúmulo de memória, a
qual está inserida na materialidade das fibras que o
formam, aparece na obra
achachilas
5
(ancestrais)
(Obra 5) que apresenta uma composição com novelos
diversos, os quais foram pendurados, permitindo ao
observador apreciar as diferentes cores, texturas e até
o cheiro das fibras de tons naturais de animais como
alpaca, lhama, vicunha ou ovelha.
Contudo, a fascinação e inquietação que os
novelos me provocavam não estavam precisamente
na aparência externa deles, senão literalmente em
suas profundezas, pois, às vezes, encontram-se no
interior dos novelos produzidos por tecelãs indígenas
pequenos objetos heterogêneos. É um costume que,
para começar a envolver o fio para formar o novelo,
a fiandeira utilize alguns objetos, tais como
sementes, pequenas pedras, pedras de raio ou restos de cerâmicas Estes são objetos geralmente
simples, mas não carentes de importância. Com o tempo descobri que apresentam duas
características: a primeira, se trata de artefatos próximos da fiandeira, é dizer, são objetos que
ela recolhe do seu espaço próximo, sendo assim, podem dar a idéia do lugar e o contexto onde
5
Apresentada na exposição Banco à Memória, no Forte de Montserrat, em Salvador. Exposição organizada pelo
Grupo de Pesquisa “Matéria, Conceito e Memória em Poéticas Visuais Contemporâneas”, em junho de 2007.
Obra 5 Achachilas.
72
a fiandeira começou a envolver o novelo
6
.. E a segunda característica, é que estes objetos podem
equiparar-se com uma espécie de assinatura, a qual só pode ser vista no final de uma obra. Por
isso, sempre é emocionante achar esses objetos no final dos novelos alheios, pareceria que se
tratasse de mensagens importantes e secretas, por este motivo guardo-os cuidadosamente em
uma pequena caixa. (Fig. 22).
Fig. 22 Objetos achados no interior dos novelos.
A possibilidade de achar uma semente, pedra ou pedaço de cerâmica deixada por uma
remota tecelã aimara ou maia-queqchi no interior dos novelos que levo comigo, às vezes
durante muito tempo, remonta-me a um mundo de coisas secretas, de objetos guardados,
tesouros pessoais. Estes são chamados de wakaychas ou manqanchas em quéchua e aimara,
respectivamente. Um mundo inspirador para criar a primeira “série que me permitirá sair do
caos”.
6
Um caso peculiar são os novelos de algodão de Santiago Aguascalientes, na Guatemala, que foram envolvidos em
retalhos de papel jornal, onde ainda se podia ler a data e o lugar.
73
O
A idéia de acumular wakaychas remonta-se em tempos pretéritos. Minha avó iniciou-me
no mistério das wakaychas: escondendo-as de mim. Ela foi uma mulher rodeada de costumes e
rituais. Seus pequenos baús e latinhas lotadas de objetos antigos e diversos, que muitas vezes “as
crianças não podiam presenciar”, me convenceram que as coisas que ela escondia tinham um
valor inapreciável. Só há pouco tempo, numa breve visita à casa materna, consegui explorar um
pequeno baú que ela guardava sob chave (Fig. 23). Moedas e notas antigas, muitas chaves,
mostravam um tesouro simples, mas ao mesmo tempo misterioso e carregado de significação.
Quantos segredos da minha avó eu nunca descobri? Por que cada um desses elementos foram
ciosamente guardados? Indo mais além, também pensava todos os segredos das antigas tecelãs,
as verdadeiras mestras, que realizaram tecidos nunca igualados. Essa memória estaria inserida
nos objetos que elas deixaram dentro os novelos? Pensar em o que não se tinha dito e o que se
tinha esquecido provocou-me na criação da série de
pequenas caixas chamadas wakaychas.
A série
Wakaychas
apresenta um conjunto
de pequenas caixas com elementos diversos que se
relacionam com a memória intrínseca em materiais e
conceitos das culturas andina, maia e afro-brasileira.
O verbo quéchua wakaychay significa preservar,
conservar, guardar como tesouro. Daí a palavra
Wakaycha, que nomeia qualquer objeto que é
guardado. Esse objeto tem um sentido pessoal; seu
valor, mesmo sendo jóia, supera o valor econômico.
As wakaychas podem ser sementes, búzios, moedas,
bonecas de pano, pedras ou qualquer objeto catado
da natureza e que tem significado especial e merece
ser guardado com todos os cuidados. São geralmente
conservados em lugares escuros e secretos.
Na página seguinte: Conjunto de Wakaychas.
Fig. 23 A wakaycha da minha avó.
75
A origem da palavra wakaycha poderia encontrar-se na expressão Wakaychana, um
vocábulo quéchua utilizado para designar os baús, móveis antigos que serviam para manter,
numa ordem impecável, os tecidos e roupas. Mas também o termo Wak’a pode dar uma luz
sobre sua significação. Wak’a assinala um lugar sagrado para a cultura andina: lugares de
origem, geralmente escondidos, escuros e misteriosos. Por isso os colonizadores traduziram
esse termo como “diabo”, mas “identificá-los com Satanás não teve o efeito de erradicá-los
totalmente, senão o de situá-los em um contexto clandestino e interior, onde o diabo cristão
mudou radicalmente de caráter” (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.36) adquirindo a conotação de
Saxra, termo que, segundo Bouysse e Harris,
alude a seu caráter secreto e “clandestino”.
O termo utilizado na zona aimara para
denominar as coisas guardadas é manqhancha.
Manqha (abaixo em aimara) tem uma carga
metafórica de segredo e escondido. A mesma
conotação que afetaria à denominação do espaço-
tempo conhecido como manqha pacha, que foi
equiparado a inferno. Para os andinos, as
entidades que povoam o maqha pacha seriam os
mortos: conhecidos como chullpa, achachilas, avôs
(ancestrais) ou puruma, uma entidade indômita
que habita nas margens da sociedade. Assim,
como a Rocha de El Sapo, “as wakas eram objeto
de um culto ao antepassado fundador e ao
mesmo tempo desempenhavam funções
astrológicas e astronômicas, indispensáveis para o
funcionamento do calendário agrícola” (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.20).
Será por isso que o dono dos objetos guardados recorre a eles em momentos
“críticos”, como acontece nos rituais? Uma espécie de guia: objetos, porções de memória que
nos unem aos nossos antepassados? Poderiam ser símbolos? E se se assumisse cada um dos
objetos presentes nas wakaychas como um símbolo particular e pessoal? Serão as
wakaychas
Obra 6 Wakaycha Espiral.
76
uma relação pessoal e simbólica com nossos ancestrais, rituais pessoais onde intervém uma
memória ampla?
Segundo Gilber Durand, todo conhecimento e compreensão da realidade se dão através
dessa relação imagem–sentido que constitui os símbolos. Estes têm um alto valor evocativo,
mágico ou místico que, por convenção arbitrária ou não, representa ou designa uma realidade
complexa ou sintetiza observações que relacionam o mundo e fundam uma cultura. O mesmo
autor destaca a importância do símbolo como elemento de união entre imagem e sentido:
A função simbólica, [...] no homem, o lugar de “passagem” de reunião dos
contrários: o símbolo em sua essência e quase em sua etimologia (Sinnbild em
alemão) é unificador de pares de opostos. Em termos aristotélicos ele seria a
faculdade de “manter unido” o sentido (Sinn = o sentido) consciente que capta e
recorta precisamente os objetos e a matéria-prima (Bild = imagem) que emana
do fundo do inconsciente. (DURAND, 1988, p.62)
Ao falar de símbolo penetramos em um mundo de amplos significados. Tendo os
símbolos um princípio de analogia, ao representar ou substituir uma outra coisa por sua forma
ou sua natureza, sempre evocam,
representam ou substituem, num
determinado contexto, algo
abstrato ou ausente. Cada
sociedade, ou atualmente cada
tribo urbana, escolhe seus
símbolos. Estamos cercados de
símbolos por toda parte. Tudo
pode assumir significação
simbólica, desde objetos oriundos
da natureza a objetos
confeccionados pela mão do
homem, ou até formas abstratas.
Os elementos que estão dentro das wakaychas foram selecionados, ordenados e
guardados porque existe familiaridade com eles. Não é uma relação racional, mas, ao contrário
está fortemente relacionada com lembranças de experiências intensas, com certas pessoas ou
objetos. Neste ponto se torna significativo citar a série das caixas de afeto trabalhadas por
VigaGordilho. Nesta série que, segundo a artista, invoca a “memória afetiva”
Obra 7 Wakaycha oriooo.
77
(VIGAGORDILHO, 2004 p.149), cada uma das pequenas caixas brancas contém bonecas de pano
branco, utilizados pela cultura afro-brasileira como vodus. Criadas para agradecer pela ajuda
recebida, as caixas levam o nome das pessoas que a artista conheceu durante diversas viagens no
interior do Brasil e na África. Da mesma forma, “Cada uma dessas caixas encerra um universo
de significados, que revelam relações entre os seres e as águas e outros acontecimentos”, assim
“Seu gentil, não tira os pés do rio” e “Dona Macabo Mulengo, empregava as palavras sempre em
diminutivo” (Ibid, 2008, p16) (Fig.24).
Fig. 24 aruma, não se cansa de pedir desejos.
VigaGordilho. 2007.
78
A artista coreana Kimsooja, por sua vez, toma da sua cultura o bottari, um pacote que
contém objetos que são geralmente flexíveis, como roupa, colchas, livros. O atado é um tipo de
bagagem improvisado que é muito comum na Coréia. Com a idéia de bagagem, o bottari pode
conter coisas de pouco valor, mas imprescindíveis para aqueles que saem de seus repousos: esse
pacote contém o absolutamente essencial. A artista lembra a descoberta do bottari: “Todo
mundo tem bottaris ao redor”. Diz
a artista “O atado era algo novo a
mim. Era uma escultura e uma
pintura" (KIMSOOJA, 2006).
Oferecia-lhe a possibilidade de
mover-se de uma superfície plana
para um volume simplesmente
fazendo nós. Mas o bottari levou a
artista a um campo inesperado de
conotações ao interagir com eles
em variadas performances (Fig.25).
O bottari de Kimsooja é um
elemento real que cumpre sua
função de recipiente e ao mesmo tempo de um objeto simbólico que conceitua o gesto
mundano de envolver, mas com um sentido móvel e provisório. Um artigo essencial para os
migrantes
Como nos bottari, as wakaychas podem ser guardadas e envoltas em tecidos, em latas ou
em pequenas caixas de madeira, como as Caixas de Afeto. Algumas das caixas da série Wakaychas
foram construídas ou adaptadas para ter um duplo fundo, no qual se podem encontrar - ou
talvez não - desenhos e pinturas com aquarelas sobre papéis com diferentes texturas, muitas
vezes papel artesanal, construídos com folhas e frutos de lugares particulares, os quais também
teriam uma conotação de wakaycha.
Os significados estão sujeitos a múltiplos câmbios, pois podem variar, inclusive de uma
pessoa à outra, segundo os cânones culturais destas. É por isso que não aprofundarei sobre
possíveis efeitos provocados em quem tem nas mãos uma wakaycha; simplesmente pontuarei os
Fig. 25 Kimsooja em performance com os bottaris.
79
significados culturais de alguns elementos recorrentes nestes objetos: a semente chamada
wairuru, os búzios e linhas, entre outros.
Em muitas das pequenas
caixas existe também o envolver de
linhas para formar diversas
composições, nas quais a ordem
outorgada a cada um deles denota
um sentido peculiar; esse é o caso
da
Wakaycha
Espiral: (Obra 6
Página 75) onde pequenos caracóis
catados nas praias de Salvador
foram envolvidos com lã de ovelha
tingida de diversos tons de azul e
fiada a mão. Formando pequenos
novelos, estes objetos foram dispostos em ordem centrífuga. Da mesma forma, o fundo da caixa
tem desenhos que evocam o espiral. Uma forma lúdica, uma saudade de criança que nunca
brincou no mar.
Com a mesma lógica de envolver estruturas tubulares utilizadas em outras obras, nasce a
Wakaycha ánimas
(Obra 8). Trata-se de pequenas canas de bambu, envoltas com duas linhas de
lã de alpaca com cores
naturais enfiadas a mão. Sua
disposição lembra uma zona
periférica da cidade de La
Paz, conhecida como Valle de
la Luna e Las ánimas, que são
enormes morros de areia
formados, durante milhares
de anos, pela erosão hídrica
e eólica. Estes morros
formam conjuntos muito
particulares (Fig. 26). Estes
Obra 8 Wakaycha ánimas.
Fig. 26 Las ánimas, La Paz- Bolivia
80
morros, nestes dias, estão desaparecendo sob o maquinário da construção civil. Neste caso,
pretendo que envolver tenha um sentido de proteção para essas paragens.
Um poder similar de proteção, desta vez da cultura afro-brasileira, acompanha também
os elementos de cor branca presentes na
Wakaycha
oriooo
(Obra 7 Página 76): os búzios. Os
búzios, utilizados para a adivinhação identificam o Orixá das águas salgadas, Iemanjá. O titulo
dessa obra provêem da saudação aos antepassados para pedir-lhes manter em ordem e claridade
os pensamentos; esta saudação realiza-se de manhã cedo colocando as mãos na cabeça, com as
palavras em Ioruba: Oriooo, Oriooo...
7
. Estes búzios foram dispostos na parte central da caixa,
flanqueada por canas de bambu envoltas com diferentes tipos de fibras brancas: lã crua de
ovelha e algodão, entre outras.
Na
Wakaycha
Chasqui
(Obra 9) (chasqui, mensageiro, em português). Nesta obra pode-
se encontrar também o sentido simbólico e cultural sintetizado em uma pequena semente
chamada Wairuru, que é uma pequena semente tropical, vermelha e preta, conhecida no Brasil
como “Olho de cabra”. Essa semente concentra vários domínios de significação: até começos do
século XVII, a palavra wayruru designava algo muito charmoso, uma beleza extrema que parecia
ter poderes de comunicação com o sobrenatural. Desde a antiguidade é amplamente apreciada,
como confirma o cronista Bernabé Cobo:
Estimam muito estas sementes os indígenas, afirmando valer contra o mal de
coração e melancolias, tomando de seus pós em vinho e água de cheiro. Além
disto, dizem que uma série delas ao pescoço, serve contra as tristezas do coração,
e que confortam a vista e o cérebro. (COBO In: CERECEDA, 1987, p.170)
As propriedades mágicas e curativas destas sementes são amplamente aceitas até hoje no
cotidiano dos povos andinos; utilizadas como amuletos, trazem sorte, saúde, dinheiro e amor.
Guardadas junto com troços de pedra ímã e moedas antigas, preservam o bem-estar da família.
Envoltos em lã preta, reproduzem-se e criam wayruritos, que além de serem instrumentos de
adivinhação, são oferendas às deidades como o Saxra e o arco-íris.
Sua brilhante superfície manchada de escuro pode representar o ideal andino de beleza.
Segundo Verônica Cereceda, o pensamento aimara escolheu-o como ideal de beleza, não por
ser uma idéia plástica simples - uma cor inteira, um branco, um vermelho -, mas uma idéia
complexa: um “conflito óptico” que “se expressa sobre a reduzida superfície de uma semente,
7
Informação proporcionada por Dona Cici, Mestre Griô (Mestre da tradição oral afro-brasileira) na Fundação
Pierre Verger, Salvador–Bahia.
81
onde inevitavelmente os contrários (opaco e brilhante: preto e vermelho) aparecem
constrangidos” (CERECEDA, 1987, p. 173). O encontro desse vermelho claro e puro com um
tom opaco muito escuro, em grandes superfícies nos pareceria de uma grande violência. Não
obstante, no tamanho reduzido das sementes se dá melhor, como uma nota de encantamento: a
minimização permite a união óptica das cores de uma diferença cromática.
Obra 9
Wakaycha Chasqui.
Falarei mais adiante (na Ação 3 - Envolver) sobre a união de ditas diferenças cromáticas.
Por enquanto, minha intenção é situar os Wairurus da
Wakaycha
Chasqui
como mensageiros
(chasqui), como intermediação, que propicia a união de duas cores diferenciadas, no caso:
pequenos novelos vermelhos e pretos, que têm a mesma semente no seu interior. Assim, é
possível visualizar as múltiplas variedades e intensidades que podem existir entre a luz e a
sombra, tanto em pequenas quanto em grandes proporções, tanto em uma pequena caixa
quanto em um panorama mais extenso, tão intenso como a terra mesma.
O conjunto das wakaychas foi instalado na exposição final, em uma cela localizada em
um lugar quase escondido e central dentro da estrutura do Forte (ver mapa da exposição em
anexo). Nesta montagem (Fig. 27 Página seguinte) privilegiou-se a criação de um espaço
pequeno e uma iluminação localizada que permita ao espectador a visualização de todos os
detalhes, propiciando a proximidade dele com as obras. As wakaychas constituíram o início do
percurso que conduzia às outras salas da exposição. Uma espécie de trânsito entre o interior, a
memória das wakaychas e o inalcançável do DESENVOLVER.
82
Fig. 27 Sala Wakaychas, instalada no Forte São Marcelo.
.
84
AÇÃO I
85
VER
O VER, como ação, é o acontecimento que inicia o trajeto. Parte do verbo latino videre
(ver). Destaca o tempo presente, valoriza o olhar a partir da individualidade; conjugado ainda
em latim, o presente da primeira pessoa do singular é Vídeo. A palavra Vídeo pode ser traduzida
em português como eu vejo e em espanhol como yo veo. O yo veo re-significa o ponto de vista e
também a situação do espaço-tempo na criação artística. A vídeo-arte, como se a conhece para
diferenciá-la do vídeo caseiro, publicitário ou musical, presta-se para o emprego do corpo como
suporte e motivo. Inúmeras e constantes experimentações de diversos artistas, desde 1964,
dotaram a vídeo-arte da qualidade de ser um instrumento de expressão. No fazer do vídeo é
determinante a “vontade” do artista, da forma como ele organiza sua experiência sensível.
Materializar a imagem na vídeo-arte será estabelecer um lugar de olhar para,
partindo deste, perceber e reconhecer o mundo, adotar um modo interior de
organização dessas experiências para depois dar-lhes uma dimensão pública. A
arte do vídeo propõe uma resposta pessoal aos fenômenos tecnológicos e de
comunicação que impõem os chamados “novos meios”. (TAQUINI, 2007, p1)
A vídeo-arte tenta dirigir a criação artística às coisas do mundo, à natureza, à realidade
urbana e ao mundo da tecnologia, desafiando as classificações habituais de exposição de arte e
colocando em questão o caráter das representações artísticas e a própria definição de arte. Nesse
sentido, a vídeo-arte foi e continua sendo um reservatório de manifestações referidas às
temáticas de gênero e questionamento de identidade. Pela sua independência, o vídeo pode
constituir um espaço onde se dirimem problemáticas de grupos minoritários em conflito,
dando voz e imagem a eles.
Colocado numa posição intermediária entre o espectador do cinema e o da galeria, o
observador da obra é convocado a uma forma de olhar que implica um processo diferenciado,
distante da imagem narrativa e seqüencial projetada na tela cinematográfica e da observação de
uma obra “permanente”, tal como costuma ocorrer numa exposição de arte. O campo de visão
do espectador amplia-se ao transitar das imagens em movimento do vídeo ao espaço
circundante da galeria. As cenas, sons e cores que os vídeos reproduzem, mais do que
confinados ao monitor, expandem-se de modo geral sobre e ao redor das paredes, conferindo
ao espaço um sentido de atividade: o olho do espectador mira a tela e além dela, as paredes,
relacionando as imagens que o envolvem.
86
Uma das razões pelas quais edito vídeos, depois de investigar durante anos técnicas
têxteis da América Latina, radica na descoberta que tanto a produção e edição de imagens
quanto a escolha de materiais para tecido e o tecido em si proporcionam-me infinitas
possibilidades relacionadas à composição de imagens-fragmentos, onde escolher, cortar, juntar e
ordenar tornam-se um ato de criação. Tanto para tecer em qualquer técnica, quanto para editar
vídeos, precisa-se de fragmentos; a poética residirá justamente na dimensão aleatória do
resultado, sempre inesperado e intermediário. A edição, como o tecer, são Práticas em arte que
ordenam fragmentos, seja de imagens ou de fios; enquanto que os mesmos tecidos podem servir
como referentes para formar seqüências compositivas complexas, sem perder os sentidos e a
referência cultural presentes neles. A materialidade desses fragmentos, no caso linhas enfiadas a
mão, dentre outras, e a imaterialidade das imagens digitais dialogam e interatuam de diversas
formas.
O vídeo, nesta pesquisa artística, resulta de um diálogo de experiências, um espaço onde
imagens se aglutinam com diversas “junturas”, propiciando o encontro de fluxos existentes, tal
como em um assemblage. O vídeo propicia a justaposição de elementos heterogêneos, sendo a
imagem o “outro lugar possível”, o motivo unificador, onde estes poderiam ter encontro em
infinitas possibilidades de ordem. Por mais inusitada que seja esta ordem, muitas vezes pode
responder a certas particularidades culturais.
Por esta razão, apresentou-se na sala VER (Fig. 28 Página seguinte) da exposição do
Forte São Marcelo a vídeo-performance intitulada
Q’aiturastro
, Rastro de linhas (Ver DVD
anexo). A partir deste vídeo surgem duas vias de reflexão, a primeira sobre o seu caráter de
performance em Site-specific e a segunda sobre as conotações que pode ter na sua representação
em relação a temas como as migrações e a memória. Através de uma construção simbólica e da
evocação cultural, surgem sinais da existência de espaços que se conhecem como não-lugar, nos
quais as diferentes culturas se encontram e dialogam.
87
Fig. 28 Sala VER durante a exposição no Forte
São Marcelo.
.
88
Q’aiturastro
Q’aiturastro
(do quéchua
q’aitu fio de lã natural e rastro do
espanhol, trilha, indício;
significaria em português: Rastro
de linhas) trata-se de um vídeo de
5 minutos que registra as imagens
de uma performance realizada no
Salar de Uyuni, nos Andes
bolivianos (2007). O vídeo registra
uma experiência sensível, propícia
também para o encontro de
imagens simbólicas, paisagens
sonoras e a criação musical, com a trilha sonora composta por Bernardo Rozo, a partir da
aleatoriedade (ROZO, 2007).
O vídeo registra quatro movimentos da performance que relacionam a elaboração
tradicional do fio de lã, chamado em quéchua q'aitu, com as práticas de migração das pessoas
que por diversos motivos se vêem forçadas a procurar melhores perspectivas. Em cada um dos
movimentos titulados com palavras quéchuas, são evocados diferentes elementos das culturas
andinas, como a pushka, ou fuso (Fig. 41 e 43 Páginas 132 e 145 respectivamente), e os enfeites,
estes últimos utilizados para o cabelo, chamados tullmas (Fig.33 Página 115). Estes elementos
podem ser considerados como símbolos culturais, que vão mudando no processo das migrações
de diversas comunidades para os contextos urbanos, ou mesmo para outros países.
A
pampa
branca
O Salar de Uyuni é um imenso deserto branco de sal petrificado, chamado antigamente
kachilaguna (Kachi, em quéchua, sal, e Laguna, em espanhol, lagoa), localizado nos
departamentos de Potosí e de Oruro, no sudoeste da Bolívia, a 3.650m de altitude. Herança de
um antigo lago salgado pré-histórico, o Salar tem aproximadamente 12.000km² de superficie. Lá
o horizonte tem predominância: uma idéia de imensidade que pode ser comparada com a
vastidão do mar, a sensação de caminhar nele é deslocar-se em um lugar que sai de toda
Obra 10 Q’aiturastro, Rastro de linhas..
90
experiência topográfica antes conhecida. A perspectiva e as distâncias confundem-se, não
existem caminhos demarcados dentro dele, só alguns aleijados pontos de referência; por isso,
perder-se é muito comum entre esses espaços monocromos onde se impõem o azul e branco.
Esses tipos de extensões, sem variações visíveis, são chamadas em quéchua Pampa. Esta
palavra significa espaço plano, sem grandes distinções de colinas ou quebradas. Estes espaços
desabitados encontram sua manifestação nos tecidos andinos: na linguagem têxtil estes espaços
são geralmente tecidos com lã escura. Esse espaço, também monocromático, ocupa uma porção
considerável do tecido. Parece ser uma representação do não-social, o silvestre, daquilo não
condicionado pela sociedade, um terreno sem cultivo, uma criança recém nascida, e também da
entidade puruma, habitante do manq’apacha, o mundo escuro e secreto, mas criativo ao mesmo
tempo.
Quis utilizar esta conotação que se tem dos espaços amplos na cultura andina em direta
relação com a significação do sal para esta cultura. O sal, cujas propriedades físicas incluem o
alinhar e conservar, também é usado nos seguintes momentos:
no batismo, para diferenciar o menino assim “socializado” dos recém-nascidos
que pertencem ao mundo não diferenciado dos diabos. [...] O sal é utilizado
para defender à sociedade dos que poderiam agir contra ela. [...] também contra
o granizo. Por outra parte, quando as pessoas entram em comunicação com os
“diabos”, têm que abster-se do sal. (BOUYSSE; HARRIS, 1987, p.51).
Assim, o sal corresponderia ao mundo complexo e condimentado de Deus. Existem
também na tradição oral andina certas histórias, como a “menina que conheceu o sabor do sal”:
narram que na antiguidade mítica personagens que saíram do ceio comunitário e conheceram
“as vantagens da civilização”, entre elas o tempero do sal, quando regressam para casa não
podem ser as mesmas, pois não conseguem mais consumir alimentos sem sal, o que as enche de
aflições e de contradições entre o próprio e o alheio.
Pois bem, depois de evidenciar essas possíveis associações, no vídeo Q’aiturastro o sal
será tomado como “civilização”, é dizer, como uma metáfora dos grandes centros urbanos, um
espaço enorme que confunde a todos os seres, como acontece com os moradores multiculturais,
anônimos - ou não - que se deslocam nas grandes capitais. Cidades onde o ser humano se
descobre em solidão, situação que se vê agravada quando se trata de migrantes: um enorme não-
lugar.
91
Reflito neste vídeo a minha própria condição de estrangeira em diferentes países, mas
também lembro de duas amigas de adolescência, Katita e Basita, meninas quéchua-falantes do
interior de Capinota
1
. Elas ensinaram-me a trançar meu cabelo com tullmas. Ao voltar à casa
delas para procurá-las, depois de alguns anos, não as encontrei mais, tinham “ido a trabajar”,
tinham migrado, e até agora não tenho notícias delas.
Parte I .
Orqo
(Montanha).
A imensidade branca do Salar vê-se interrompida no horizonte por uma aleijada
montanha, e em um plano mais próximo, por um emaranhado de negro que contrasta
fortemente com a branca rigidez
do sal cristalizado. A presença da
performer-fiandeira pareceria
finalmente esclarecer de que se
trata aquela visão que pareceria
uma projeção da montanha: velo
de lã de alpaca preta, que
imediatamente é começado a
enfiar, da maneira tradicional.
Parte II.
Ripuy
(Ir).
Estabelecendo um jogo com o
tempo, mediante a imagem fixa e a imagem em movimento, surge a figura da performer,
penteada da maneira tradicional, é dizer com os cabelos trançados com tullmas, mas neste caso
as tullmas caem até o chão, em forma de pequenos novelos. A figura está vestida de preto, da
mesma cor que os novelos espalhados no chão, os quais contrastam com o branco do sal.
Quando a performer começa a caminhar, os novelos se desenvolvem esticando as tranças
gerando nelas uma posição horizontal, como se existisse um “peso” que a performer parece
arrastando com ela: A dor do deslocamento.
1
Capinota, vale situado a 173 km de Cochabamba – Bolívia.
Q’aiturastro
,
Rastro de linhas.
92
Parte III
Q’aiturastro
(Rastro de linhas).
Essa caminhada é uma procissão lenta e pesada que parecia não ter final, naquele mar
de sal. O momento da partida? As longas horas em nos encontramos perdidos nas cidades, sem
conseguirmos nos comunicar? Distâncias e separações, onde a única referência seria o próprio
percurso.
Q’aiturastro, brincando um pouco com as palavras em quéchua e espanhol, Kay-tu-rastro
tamm pode significar “aqui esta tu rastro”. Uma tomada de consciência do próprio caminho,
andando, uma forma de materializar o imaterial e imperceptível. Uma história qualquer entre
tantas de milhares de migrantes que diariamente saem, se não na procura de melhores
condições econômicas, na procura de seus próprios sonhos.
Parte III
Kutimuy
(volver).
Uma idéia parecida com o exílio: um tabu pesa sobre o retorno, ou o postergamento
deste para um futuro remoto: Dá medo voltar para atrás. Volver seria pegar as linhas, juntá-las
em um novelo, aglutinando todas essas experiências. Na conclusão, o novelo é lançado pela
performer ao desconhecido: logo depois, se escuta (em off) o peso profundo deste objeto,
quando entra em contato com o solo branquicento, levando-a imediatamente em direção a
outros sentidos, quiçá para percorrer outras estradas.
As paisagens sonoras de um
não lugar.
Essas preocupações com o exílio e as migrações faz parte também das obras de Kimsooja.
Um outro tipo de relações se pode abranger na obra dessa artista - cujo trabalho, os botaris, foi
citado anteriormente -, ela realiza vídeos, instalações, performances, evidenciando sua origem
coreana mediante objetos próprios dessa cultura. O trabalho de Kimsooja caracteriza-se por
realizar obras nas quais aborda temáticas como o nomadismo, ponto-chave da sua arte. Os
panos - especialmente as colchas tradicionais coreanas de cores vivas -, as seqüências de luz, o
som, os cantos dos monges tibetanos, gregorianos e islâmicos, sua própria respiração, todos eles
são alguns dos recursos que utiliza como uma senha de identidade no seu trabalho, uma sutil
forma de lembrar da situação social, o exílio, o trânsito, o anonimato, que os coreanos sofreram
e sofrem atualmente. Agulhas, telas, fios, colchas fazem parte de seu universo criativo. Coser,
93
envolver, estender, dobrar, desdobrar, cobrir definem algumas das atividades mais constantes da
artista.
Em 2005, Kimsooja realizou Needle Woman (Fig. 28), uma obra que recolhe imagens da
artista de costas em seis diferentes cidades: Patan (Nepal), Jerusalém (Israel), Sana’ (Yemen),
Havana (Cuba), Rio de Janeiro (Brasil), N’Djamena (Chad), em uma vídeo-instalação
distribuída mediante seis canais de vídeo simultaneamente, apresentado como loop, com 10'30"
de duração, acompanhada de um total silêncio.(Fig.29)
Fig. 29 Kimsooja, Needle Woman. 2005.
Em
Q’aiturastro
, promovo o diálogo das imagens de vídeo registradas com a
composição musical que joga com recursos aleatórios; se vincula de maneira profunda com
aspectos extra-musicais ao revelar fenômenos socioculturais atuais que acontecem nas grandes
capitais.
O resultado final sublinha de forma sutil o caráter itinerante da performer que
aparece em cena, cuja trajetória é desenhada pelos rastros de uma
multiplicidade de culturas em contato. Nos sons de uma indefinida cultura
milenar, que acabam entrelaçados com as convulsões rítmicas das grandes
capitais, descobrimos que os sujeitos são capazes de ser universais sem o risco de
se perder nas sombras de uma homogeneização cultural muda e anônima.
Assim, consegue-se escutar o “peso” daquilo que carregamos no caminho que
percorremos hoje em dia: o difícil passeio pelo mundo inteiro, cujo
deslocamento se depara com paisagens frias e desoladas, mas que, ao mesmo
tempo, são magníficas, cálidas e aconchegantes. (ROZO, 2007)
Desta forma o eu vejo, do verbo VER permite ampliar as possibilidades de criação
com diferentes linguagens, obras multidisciplinares que diluem os limites espaciais, sem
perder por isto as suas particularidades culturais.
94
95
AÇÃO II
96
VOLVER
Soy el marino que cose los horizontes cortados.
(HUIDOBRO, 1984 p.43)
VOLVER propõe uma matriz de reflexão a partir da idéia de heterotopia. Para
contextualizar esta afirmação, dedicam-se segmentos desta proposta a visitar o pensamento de
Michel Foucault, Umberto Eco e Ítalo Calvino. Também se recorre a cadências musicais e sons
do cotidiano que evocam a memória e formas diferenciadas de conceber o mundo, a vida e a
morte de quem, como eu, é habitante de lugares heterotópicos.
O termo heterotopia foi definido por Michel Foucault durante um encontro de
arquitetos. Com este termo, este autor comprovou que existiam, em culturas e em épocas
diversas, espaços específicos inseridos nos espaços sociais cotidianos, mas com funções
diferentes e muitas vezes opostas. Denominou a estes espaços heterotopias. Do pensamento de
Foucault, recupero alguns elementos que servirão para conceituar a obra horizonte sem
horizonte no âmbito da heterotopia. Um desses elementos é o espaço, pois segundo o que
Foucault escreveu em 1967: “nossa época atual é talvez a época do espaço. Estamos na época do
simultâneo, estamos na época da justaposição, na época da cerca e do longe (e) do lado a lado”
(FOUCAULT, 1967). Quando Foucault fez esta afirmação estava começando esse processo de
profusão dos espaços justapostos, condição que resulta exacerbada no contexto atual.
Foucault interessou-se pela descrição de lugares com a propriedade de relacionar-se com
outros de um modo que neutralizam, suspendem ou revertem o conjunto de relações
designadas a eles. Esses lugares se classificam em dois tipos: as utopias, locais sem lugar real,
projetados para o futuro ou associados a um passado, sempre em referência a um presente que
se quer negar; e as heterotopias, locais reais e experimentáveis, que mantêm, no entanto, uma
configuração isolada, nos quais a vida social pode aparecer contradita, invertida ou reduzida a
somente alguns dos seus aspectos. São espaços reais que não estão vazios, isto é, que poderiam
ser ocupados por coisas e pessoas, constituindo assim um conjunto de relações que definiriam
situações interdependentes umas das outras.
A heterotopia se contrapõe ao espaço cotidiano e, simplesmente, está presente. Esta não
projeta nenhuma fantasia, além disso, as heterotopias incomodam, pois desafiam as
representações convencionais e a imagem do pensamento por estarem compostas por
97
justaposições de coisas que não estão usualmente próximas e porque incluem, com freqüência,
a noção de Marginal. O conceito de heterotopia inclui também a aptidão de “justapor em um
único lugar real vários espaços, vários locais que são incompatíveis neles mesmos”. Neste
sentido, justaposição de espaços e a situação liminar ou marginal são características da obra
horizonte sem horizonte (ver DVD anexo).
horizonte sem horizonte
O vídeo horizonte sem
horizonte captura imagens de
navios que circulam em um espaço
invertido, são navios-objetos em
realidades justapostas. Em outubro
de 2007, esta obra foi instalada no
Museo Tambo Quirquincha, na
cidade de La Paz - Bolívia, no
contexto da Bienal Internacional
de Arte SIART
2
. Onde a projeção
deste vídeo esteve flanqueada por
dois espelhos (1,50 x 1,20m),
dispostos em um ângulo que
possibilita o reflexo da imagem em movimento e sua conseqüente multiplicação. Em contraste
com a escuridão do ambiente, a projeção, multiplicada pelos espelhos, cria um aspecto
predominantemente horizontal (Obra 11).
A mesma projeção, durante a exposição no Forte São Marcelo, na sala VOLVER, teve
um caráter mais experimental (Obra 12 Página seguinte). Ampliou-se a projeção a toda a parede
frontal da sala, flanqueando-a por duas lâminas de revestimento espelhado, as quais, em lugar
de refletir o percurso dos navios, ocasionaram sua distorção, provocando uma outra leitura para
o espectador, que teve a possibilidade de penetrar na vídeo-instalação.
2
A participação neste evento foi reconhecida com uma menção honorífica. Posteriormente, esta vídeo-instalação
foi montada no Centro de Arte Contemporáneo do Espaço Patiño, em dezembro de 2007.
Obra 11 horizonte sem horizonte. Instalada no Museo Tambo
Quirquincho.
98
Obra 12 horizonte sem horizonte. Instalada na Sala VOLVER no
Forte São Marcelo.
Com esta experiência conseguiu-se observar que em cada um dos lugares onde foi
instalada a obra, esta adquiriu sentidos diferenciados. Lembre-se que o Tambo Quirquincha,
atual museu de arte, foi antigamente um lugar de descanso, onde viajantes passavam a noite e
comerciantes armazenavam alimentos; dito Tambo ocupou um lugar central na conquista
espanhola da cidade de La Paz (antiga Chuquiagomarca), da mesma forma que o Forte São
Marcelo foi um lugar central para o desenvolvimento da conquista portuguesa. Este
monumento histórico, antigamente conhecido como Forte do Mar, é uma estrutura
arquitetônica militar, projetada em 1650 para a guerra defensiva no porto de Salvador, quando
capital do Brasil Colonial. Sua planta circular implantada no meio do mar permitia a visão
privilegiada, o que possibilitava à artilharia disparar em qualquer direção: uma solução
encontrada para a defesa do porto da capital colonial do Brasil contra os ataques de navios
piratas e de corsários invasores. Assim, horizonte sem horizonte, montada nestes lugares
particulares, evoca a memória e convida a pensar em perdas, migrações e saques, mas também
propõe ponderar que em uma obra de arte:
A concepção de contexto toma um sentido mais amplo do que o associado
apenas às condições físico-simbólicas dos lugares de exposição; remete também
às condições de aprendizagem dos indivíduos. O que ultrapassa as regras se
alojaria na experiência do sentido, em que o sentimento e a cognição estão
unificados. (VINHOSA, 2005, p.143)
Com estes elementos simbólicos propicia-se um ambiente intimista, onde a música de
um bolero de cavalaria e as imagens projetadas envolvem o espectador conduzindo-o a fazer suas
próprias associações e relações. Cada visitante da vídeo-instalação, com sua própria relação com
99
a morte e com lugares heterotópicos, deixa de ser um espectador passivo: existe algo que ativa a
memória. Assim, esta obra deixa de ser contemplativa. Com isto não quero denotar um sentido
da obra, que é essencialmente aberta, nem escapar de um julgamento crítico sobre a realidade.
O julgamento fica em suspenso, e uma maior liberdade (de sonhar e imaginar outras
acumulações e disposições diferentes) ficará a critério daquele que olha.
Um pedaço flutuante de espaço.
Navios enormes, navios de carga, navios de passageiros, veleiros que vão e vêm, cada um
diferente do outro. Esta diferença radica em que cada um deles é um mundo. Assim, neste
ponto, é impossível deixar de citar Foucault quando fala do navio como:
um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que vive por ele mesmo,
que está fechado sobre si e que ao mesmo tempo está exposto ao infinito do
mar e que, de porto em porto, de margem em margem, de bordel em bordel, vai
até as colônias a buscar o mais precioso que elas encerram nos seus jardins[…] a
maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopía por excelência.
(FOUCAULT, 1967)
Pouco antes que ingressassem na Baía de Todos os Santos, em Salvador-Bahia, as
imagens destes navios foram capturadas da minha casa-atelier no bairro do Rio Vermelho, de
onde vejo passar diariamente esses navios-organismos, imaginando que vêm da África, da
Europa, da Amazônia; imaginando também que as caravelas dos portugueses que “descobriram”
estas terras fizeram esse mesmo percurso neste preciso lugar. Pois, antes da chegada dos
europeus, esta região foi habitada pela nação Tupínambae. Em 1510 foi palco do naufrágio de
um barco francês, de cuja tripulação fazia parte Diogo Álvares, chamado pelos indígenas
Caramuru. Diz-se que Caramuru foi resgatado pelos indígenas, no lugar que depois seria o bairro
de Rio Vermelho. Posteriormente, em 29 de Março de 1549, chegam Tomé de Sousa e sua
comitiva, em seis embarcações: três navios, duas caravelas e um bergantín, com ordens do rei de
Portugal de fundar uma cidade-fortaleza chamada de São Salvador. Nasce assim a cidade de
Salvador. Foram navios que começaram este percurso, trazendo exércitos, sacerdotes e escravos,
retornando depois, como diz Foucault, com “o mais precioso que as colônias encerram nos seus
jardins” acumulado no seu interior.
Estes navios, sendo assim, heterogêneos, têm em comum o movimento, o mesmo
trânsito os unifica, todos vão à direção de diferentes portos, flutuando na encruzilhada de mil
caminhos que é o mar. A dimensão aberta do oceano e sua condição simbólica como território
101
indômito impõem a possibilidade e a incerteza. O mar, lugar de aventuras e de perdição, pode
ser também espaço de criação e descobrimento, onde o navio se entrega, guiado pelo sol e as
estrelas, ao infinito da imaginação e dos acasos. Sem esquecer a condição simbólica de elemento
purificador, como sucede nos ritos da cultura afro-brasileira. No dia 2 de fevereiro, à beira do
mar, no bairro de Rio Vermelho, realiza-se a celebração a Iemanjá, Orixá do mar, entidade
protetora e purificadora do Candomblé. Da praia, inúmeros barcos levam mar adentro grandes
oferendas de flores e pedidos, trazidas por milhares de pessoas.
A poética da acumulação
Cada navio, sendo uma unidade, e cada trecho de mar que percorre, um horizonte, as
imagens se constituem como elementos ou objetos independentes. A imagem completa que se
apresenta no vídeo não seria outra coisa mais que uma acumulação de navios-objetos. Uma
tendência recorrente em que o artista, como faria um colecionador, acumula e ordena objetos,
gerando uma poética da acumulação, mas uma acumulação que não está ordenada como uma
enciclopédia, ou como um tesouro e tampouco evoca uma representação de um mundo ideal,
uma utopia.
Esta obra é uma coleta de fragmentos de horizontes que contêm navios, cada um com
sua própria velocidade, e que estão longe, no meio do mar. Qualquer ser estranho “poderia
amontoá-los a todos e encerrá-los em uma caixa” (ECO, 1999, p.16). Distorcidos pela distância,
estes navios-objetos efetivamente parecem muito pequenos, pareceria que se os pode pegar com
a mão, mas essa fragilidade só é uma ilusão porque se trata, em alguns casos, de maquinarias de
mais de 80 metros de comprimento, cujas imagens foram registradas sistematicamente em
vídeo. O “Isso Foi” e o “isso que vejo se encontrou lá, nesse mesmo lugar” são expressões ditas
ante esses registros, valiosas provas de uma presença, pois certamente esses navios existem e
estiveram lá.
Escolhi o vídeo como linguagem para esta obra porque acho que estes horizontes, como
imagens em movimento, se constituem em um olhar atento que revela detalhes, algumas vezes
imperceptíveis, pormenores de fatos que pertencem irremediavelmente ao passado. Ao
apresentar a permanência de um ato ou fato efêmero, que pode ser repetido inumeráveis vezes,
cada uma dessas imagens pode ser distribuída ou ensamblada de diversas formas; as infinitas
102
possibilidades relacionadas à composição de imagens-fragmentos, onde escolher, cortar, juntar e
ordenar tornam-se um ato de criação.
Neste ato criativo, exerço a função do marinho que corta e costura horizontes,
imaginado pelo poeta Huidobro e citado no começo deste apartado. Assim, justapondo um
horizonte vertical a outro, se aglutinam diversas “junturas”. Propicia-se o encontro de fluxos
existentes, tal como em um assemblage.
todos os outros lugares reais que se podem encontrar no interior da cultura
estão ao mesmo tempo representados, questionados e invertidos, espécies de
lugares que estão fora de todos os lugares, mesmo que sejam, no entanto,
efetivamente localizáveis. (FOUCAULT, 1967)
Localizáveis ou reconhecíveis, como o não-lugar que constitui o limite do mar e do céu,
horizontes heterogêneos se justapõem na obra horizonte sem horizonte, sendo a imagem do
vídeo o único lugar possível, o motivo unificador, onde estes poderiam ter encontro nessa
ordem.
Umberto Eco diz que
qualquer coleta de coisas similares
dispostas em ordem não é mais
que “a acumulação do diverso à luz
de um motivo unificador, mesmo
que seja mínimo” (1999, p.17).
Neste ponto voltamos à ação do
crivo necessária para sair do nosso
“Emaranhado Inicial”. Foucault,
por sua parte, explicou o mesmo
em 1966, no livro As palavras e as
Coisas; quando leu um conto de Jorge Luis Borges, em que citava uma “certa enciclopédia
chinesa”, segundo a qual os animais se classificariam em: “a) pertencentes ao imperador, b)
embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sirenes, f) fabulosos, g) cachorros em liberdade, h)
incluídos na presente classificação J) que se agitam como loucos [...]”. Essa distribuição primeiro
lhe fez rir, mas depois, sentiu o mal-estar da suspeita de que existe um grande número de
ordens possíveis na “dimensão, sem lei nem geometria, do heterogêneo”. O impossível não é a
proximidade das coisas, mas o lugar onde elas poderiam aproximar-se (FOUCAULT, 1995 p. XII).
horizonte sem horizonte. Frame do Vídeo.
103
Na obra horizonte sem horizonte, a imagem do vídeo é a página em branco, o crivo, ou
a mesa que dá sustento à diversidade. Neste caso, de navios. A imagem está distribuída de
maneira simétrica ao longo de um horizonte vertical, desafiando assim a convenção da
representação horizontal consagrada desde o Renascimento na cultura ocidental.
Foi interessante achar na obra de Nam June Paik, Zen for TV, (Fig. 30) a mesma
preocupação com a manipulação do vertical e o horizontal. Mas nesta obra, minha verdadeira
referência é um tecido andino, onde a distribuição vertical não contradiz em nada a concepção
espacial presente nos tecidos tradicionais. No vídeo, os navios diluem-se encontrando paralelo
nas linhas verticais de um tecido aimara, que é também utilizado para carregar, armazenar e
transportar, talvez a mesma função dos navios.
A composição do tecido,
predominantemente vertical, apresenta-se em listas
paralelas com poucas variações tonais. Estes tecidos
em geral são feitos com lã natural de lhamas e
alpacas. Os diferentes tons de marrom alteram-se
entre claros e escuros, de modo a ir ressaltando a
diferença entre intensidades. Este jogo entre
intensidades presentes no tecido é chamado allqa.
Allqa é todo contraste nítido, não só entre claro e
escuro, mas também entre as cores que o olho capta
como complementares. Trata-se do desenho presente
em sacos grandes tecidos nas terras andinas, sacos
que apresentam poucas variantes em diferentes
regiões, mesmo muito afastadas entre si. Diferente
do que sucede com outras peças tecidas, este
desenho não se transforma de maneira essencial ao atravessar fronteiras de uma comunidade,
nem inclusive de uma região à outra, ou seja, não expressa diretamente o grupo étnico. Este
desenho em listas permaneceu estranhamente inalterável através dos séculos. Ainda na
atualidade, ele é utilizado para carregar e armazenar alimentos. Funções de acumulação e
deslocamento similares à dos navios, mas também com a função de armazenar que tem um
tambo, do qual falamos anteriormente.
Fig. 30 Nam June Paik, Zen for TV.
104
Tomei respeitosamente a referência cultural contida no tecido como um diálogo entre
presente e passado, assumindo uma distribuição espacial que resultaria em um lugar de um
mito, é dizer, de uma concepção diferente de ver e de organizar o mundo. Uma referência
mítica a um lugar que tem sua própria distribuição e classificação das coisas. Como na China,
lugar de origem da enciclopédia onde está a classificação dos animais do conto de Borges, que
tanto impressionou Foucault.
Esse tecido é uma forma acabada, uma referência que remonta à certeza de uma
identidade cultural pan-andina, porque “se constroem formas acabadas no momento em que se
tem certeza da própria identidade cultural”; ao invés “se fazem enumerações quando se está
ante uma série desconexa de fenômenos no interior dos quais se procura uma regra que ainda
não foi definida” (ECO, 1999 p. 16). Assim, em horizonte sem horizonte, os navios são
enumerações, trânsito e busca, um contínuo levar e trazer, não existe um lugar fixo, senão
muitas perguntas. O tecido, ao contrário, é uma imagem terminada: um modelo de universo.
Um modelo de universo
Por que se quer gerar esse jogo de horizontalidade através da multiplicação com
espelhos do que já está multiplicado? Para responder esta pergunta, seria interessante
aproximar-nos do pensamento de Ítalo Calvino sobre a multiplicidade, uma das propostas que
ele lança nas “vésperas do novo milênio”. Este autor faz a apologia da novela como uma obra
que se assemelha a uma grande rede: “uma estrutura facetada em que cada texto curto está
próximo dos outros em uma sucessão que não implica uma conseqüente hierarquia, mas uma
rede dentro da qual se podem traçar múltiplos percursos e extrair conclusões diversas e
ramificadas” (CALVINO, 1990, p.86).
Calvino também declara sua admiração por Borges; diz que cada texto do escritor
argentino contém um modelo do universo ou um atributo do universo - o infinito, o
inumerável, o tempo, o eterno, o compreendido simultaneamente e o cíclico. Diz que estes
textos são sempre contidos em poucas páginas, com exemplar economia de expressão; seus
contos adotam freqüentemente a forma exterior de algum gênero da literatura popular, formas
consagradas por um longo uso, que as transforma quase em “estruturas míticas”. E finalmente,
a idéia central do conto em Borges inclui um tempo multíplice e ramificado no qual cada
presente se bifurca em dois futuros, de modo que forma “uma rede crescente e vertiginosa de
105
tempos divergentes, convergentes e paralelos”. Essa idéia de infinitos universos contemporâneos
em que todas as possibilidades se realizam em todas as combinações possíveis não é uma
digressão do conto e sim a “própria condição para que o protagonista se sinta autorizado a
cometer um delito absurdo e abominável” (1990, p.133). Uma analogia surge entre a obra
horizonte sem horizonte e obras que incluem universos paralelos, tempos sobrepostos e, por
que não, o reflexo dos espelhos que tanto horror causava a Borges, porque multiplicava o
número dos homens. O espelho, segundo Foucault, provoca “uma sorte de experiência mista”.
É uma utopia, porque é um lugar sem lugar, e ao mesmo tempo funciona como uma
heterotopia, no sentido de que transforma este lugar que se ocupa, no momento exato em que
alguém se olha no vidro, em absolutamente real. Esse jogo de real e irreal nos aproximaria do
terceiro princípio da heterotopia proposto por Foucault, onde ela, “Tem o poder de justapor
em um só lugar real, múltiplos espaços, múltiplos lugares que são em si mesmos incompatíveis
(FOUCAULT, 1967).
Os espelhos ampliam infinitamente a visão do horizonte, convertendo a obra em um
paradoxo; nos ajudarão, assim, a chegar a um horizonte sem horizonte, a desfazer e questionar
a convenção de uma linha que une, para nossos olhos, os limites do mar e do céu. E ao mesmo
tempo, por que não, refletir uma realidade como uma justaposição de culturas européias,
africanas e indígenas. Que melhor lugar para isso que o Forte São Marcelo?
Uma cadência em rumo limite
El mar está cargado de naufrágios
(HIDOBRO,1984, p.47)
A música nesta obra convida a um papel ativo. Foram escolhidos para esta vídeo-
instalação fragmentos do Terremoto de Sipe-Sipe, um Bolero de Cavalaria composto em 1939
pelos músicos bolivianos Daniel Albornoz e Felipe V. Rivera. A musicóloga Jenny Cárdenas
define esta forma musical como um “clássico da música crioulo-mestiça da
Bolívia”(CÀRDENAS, 2000).
Por ser um gênero de música marcial, a referência aos combatentes da Guerra del Chaco
3
é quase que imediata. Na contenda, os soldados partiam a um destino incerto, acompanhados
3
Conflito bélico entre Bolívia e Paraguai entre 1932 e 1935.
106
pela cadência dessa melodia “exultante” e “jubilosa”, a mesma que também despedirá os ex-
combatentes dessa guerra, no seu próprio enterro. Esta relação com o ritual funerário se repete
freqüentemente em velórios e enterros, mas também
remete, logo, a situações pontuais e características em direta relação com
momentos dramáticos da história política deste país. O sentimento que gera em
amplos setores da sociedade boliviana […] ao abrir espaços de reflexão sobre
fatos passados ou que estão sucedendo, determinou que se inscreva como um
elemento democratizante e ao mesmo tempo identitário. (CÁRDENAS, 2000)
Como o que sucede quando multidões estão reunidas nos momentos mais tensos das
manifestações: tensão e morte, que a cadência do Terremoto de Sipe-Sipe não deixou de
acompanhar, em outubro de 2003, quando lançada ao ar pelas caixas de som da Central Obrera
Boliviana, na Praça San Francisco
4
.
Por isso, a eleição desta obra musical não foi por acaso; essa música ressoa com
constância em minha mente quando vejo o lento e diário transcurso dos navios. A velocidade
desses grandes navios, distorcida pela distância, remetia-me à densidade da atmosfera “do
terremoto”, cuja dolorosa cadência me cativou de tal forma que a tenho escutado com obsessão
durante anos, como uma maneira de entender e enfrentar meus próprios medos. Muitas vezes
associei o terremoto com o Réquiem de Mozart, mas Terremoto de Sipe-Sipe, para mim, sempre teve
um território definido, assim como uma relação cultural com a morte, a perda, e emoções que
segundo uma nota que comenta a vídeo-instalação, no Tambo Quirquincha, publicada num
jornal da Bolívia, é um sentimento sutilmente compartilhado:
Horizonte sem horizonte, de Sandra De Berduccy, é a obra que com maior
força exibe o desenvolvimento de um discurso próprio que evoluciona. De
Berduccy continua nesta peça com sua exploração do têxtil como linguagem,
desta vez através do vídeo. Fala de tecido sem necessidade de tecer. O faz com
uma seqüência interminável de navios que viajam pela trama pictórico-têxtil que
vai mudando ao ritmo de um bolero de cavalaria. É um vídeo que toca fibras
íntimas do boliviano — o mar longínquo —, de forma emotiva e plástica.
5
(VARGAS, La Razón, 2007).
4
Na Bolívia, nesta data, injustas medidas econômicas tentaram ser implantadas pelo governo; a população reagiu e
saiu às ruas, tendo como conseqüência a renúncia e fuga do presidente à época, Gonzalo Sánchez de Lozada, mas
também um considerável número de mortos e feridos.
5
Grifo meu.
107
[Do lat. involvere.]
Abranger, abarcar. Trazer em si;
encerrar, conter. Implicar,
importar. Seduzir, cativar, prender,
enlear, aliciar, atrair, encantar.
Cercar, rodear. Enredar;
comprometer. Trazer como
conseqüência; originar. Confundir;
misturar. Cobrir, enrolando;
embrulhar. Tomar parte;
intrometer-se. Embrulhar-se;
ocultar-se. Toldar-se, anuviar-se,
turvar-se; cobrir-se. Misturar-se,
mesclar-se, confundir-se.
Relacionar-se afetiva e/ou
sexualmente com outrem.
108
AÇÃO III
109
ENVOLVER
ENVOLVER é um ato que inclui repetição, sendo a esta um modo de exercer o tempo
de maneira cíclica e diferenciada. A repetição precisa, então, de um deslocamento para ser
diferencia. Quanto à materialidade, neste trabalho existem, no ENVOLVER, dois elementos:
um que envolve (linha) e um outro elemento que é envolvido (estrutura cilíndrica). Estes
elementos geram uma espécie de tramado conhecido como tecidos de um só elemento, cujo
antecedente pode ser encontrado na técnica pré-colombiana, conhecida em espanhol como
enrrollado. Dita técnica foi utilizada para a criação de adereços e peças que depois eram incluídas
nos tecidos. Posteriormente foi utilizada, entre outras coisas, para a elaboração de tullmas, os
enfeites para o cabelo, e em alguns instrumentos musicais. Ao explorar as possibilidades
plásticas e visuais que estes elementos provocam, surgiram diferentes séries de obras a partir de
envolver estruturas tubulares, as quais foram denominadas
Chiris
; cada
chiri
, como unidade,
comporta-se dentro de um conjunto, como um módulo susceptível a inúmeras associações.
Assim, os chiris formarão tanto a instalação penetrável
Jatunkocha
quanto uma série própria,
realizados com degradações coloridas.
CHIRIS
As obras construídas tendo o
Chiri
como
unidade aproximam-se dos princípios da tradição
têxtil e da elaboração de alguns instrumentos
musicais da região andina. Realizadas com base de
estruturas cilíndricas de papelão, que depois de
serem preparadas e acondicionadas, no tocante a
tamanho e cor, foram envolvidas com linhas de
diferentes tonalidades, tendo por base a forma
tradicional do tecido de um só elemento. Cabe
mencionar que quem utiliza esta técnica não precisa
dar nós para realizar a junção dos diversos
fragmentos de linhas coloridas. Quanto à utilização
Obra 13 Puruma.
110
de cor, estas peças utilizam o recurso cromático de degradações de cores, chamadas k’isas, muito
comum em alguns têxteis aimaras e quéchuas. Da mesma maneira, têm inspiração nos
instrumentos de sopro de mesmo nome, também originários das regiões andinas da Bolívia.
Estes são formados de finas canas de bambu, cujo tamanho varia entre 80 cm até mais de metro
e meio de comprimento, motivo pelo qual chegam a emitir sons graves e profundos. Estes
instrumentos são envolvidos com uma fina linha de tons naturais de lã de alpaca e geralmente
são tocados na cima das montanhas, em situações
rituais.
Os chiris vêm em pares chamadas arca e ira;
um deles terá três canas (arca) e o outro quatro (ira).
Cada cana diferencia-se das outras graças às sutis
diferenças tonais próprias da lã de alpaca que as
envolve, constituindo listas que se vão ordenando da
mais escura à mais clara, produzindo a impressão de
que um mesmo tom transforma-se fazendo aparecer
seus matizes de intensidades.
Estas degradações de cores e texturas, como
se mencionou, são elementos recorrentes nos tecidos
andinos, as quais nomearemos com o termo k'isa,
segundo Verônica Cereceda. Resulta numa fina
escala cromática, que graças a um efeito óptico de
contraste aparece como a parte iluminada dos
tecidos, como se fosse um estalo de cor brilhante. “Escolher as cores que encherão as posições
no interior da escala é, na verdade, a arte de construir uma impressão: fazer com que uma
essência descontínua pareça uma continuidade” (CERECEDA, 1987, p.189). É precisamente esta
ilusão que parece unir a parte escura e plana do tecido (pampa), com a parte de maior
intensidade (k’isa), os tons desaturados da pampa apresentam-se em um dos extremos destas
degradações. k’isa é um espaço de amável transição, “doce”, “suave”. Esta palavra quéchua
também é um termo utilizado para chamar as frutas desidratadas, como banana e pêssego, doces
tradicionais que eram procurados, antes da chegada do açúcar nas culturas andinas.
Obra 14 Uaxactún.
111
Diferenciam-se das listas presentes no tecido
citado em VOLVER, porque neste os diferentes tons
de marrom, dispostos em bandas, alternam-se entre
claros e escuros, de modo a ressaltar uma diferença
entre a sombra e a luz. Como já se disse, este
encontro entre a sombra e a luz é chamado allqa.
Allqa vai mediada por algum tipo de enlace, que
conecta ou permite o encontro entre tons
diferenciados (a diferencia nas cores ou na sombra e
a luz). Nestes têxteis andinos, tais enlaces tomam
com freqüência a forma de listas - duas ou mais - que
se interpõem entre as franjas contrastantes. Ou a
forma de estreitas listas ou finas fileiras. É
interessante advertir que as retas que formam listas
verticais, as k’isas, também são uma forma de unir
elementos contrastantes como a luz e a sombra,
nesse sentido o allqa seria um antecessor das k'isas.
Para Cereceda, este tipo de desenhos e tratamento
de cores repetem exatamente a estrutura dos
wairurus, as pequenas sementes (1987 p. 190),
presentes neste trabalho nas wakaychas. Nestas
sementes existe um conflito óptico que se repete nos
tecidos, já que aquelas aparecem divididas
nitidamente em dois espaços: um de cor vermelha,
muito intensa, brilhante e pura; o outro, de uma cor
que o olho identifica a primeira vista como preto,
mas que na verdade apresenta-se às vezes como um
marrom escuro. Segundo esta autora, apesar destas
pequenas variantes, o que permanece inalterável entre estes dois tons é uma relação de
contraste. O que salta aos olhos é uma aberta diferença, uma oposição entre opaco e brilhante.
Se expressa tanto sobre a reduzida superfície de uma semente, quanto na allqa, e nas
degradações reduzidas de cor, cuja minimização permite a união óptica das intensidades
Obra 15 Dendê.
112
cromáticas. A estrutura das k'isas nos lembra, naturalmente, a estrutura dos wayrurus, mas k'isas
manifestam um terceiro termo, um elemento conciliador na oposição da cor.
Esta articulação evocaria o trânsito entre concentração e diluição, deixando em
evidencia um espaço de dissolução de limites que dá passo a escalas de diferentes intensidades,
as quais também serão aplicadas nas composições cromáticas nas obras da série
Chiris
. Esta
escala de degradações pode oferecer infinitas variantes, se traduzidos aos tons naturais de velo
de lã de ovelha, alpaca, lhama e vicunha.
A combinação de diferentes matizes de marrons, somados a outra variedade de matizes
cinzentos, deram origem à obra intitulada Puruma, a entidade habitante de lugares liminares
(Obra 14 p.110), que consta de um conjunto de oito estruturas cilíndricas, sendo a maior de
1,50 de altura. O cromatismo desta obra lembra as degradações chamadas em quéchua k'ura
k'isa, quer dizer k'isa crua, que é aquilo que não passou ainda por nenhuma preparação e que
não está alinhado, situação que lembra a do território indômito dos espaços desolados, ou o
território de fértil criatividade e desordem habitado pelo Puruma. “Nestas regiões que colidem
com um mundo de forças estranhas, as formas e as cores se podem borrar e desdobrar”
(BOUYSSE; HARRIS, 1987, p. 27). Como acontece com as cores de Goethe, “o fenômeno
cromático pressupõe o deslocamento de imagens”.
Lembremos agora o esquema apresentado no início deste trabalho, onde o espaço de
dissolução de limites permite a presença de uma infinita gama de tonalidades, cuja ordem e
disposição com relação ao centro possibilitam o trânsito entre diferentes intensidades. (Fig. 31)
Fig. 31 Trânsito entre intensidades.
113
O mesmo fenômeno acontece quando se trata de cores. No caso, de lã de ovelha ou
alpaca que passam pelo processo de tintura e fixação. Pois, para a lã passar pelo processo de
tingimento precisa de mordentes e substâncias que ajudem a fixar as cores às fibras; dessas, o sal
é, sem dúvida, uma das mais
utilizadas. Neste ponto poder-se-ia
fazer novamente referência ao sal
como sinônimo de atividade
racional, e de civilização, porque
implica uma Prática criativa
dirigida à expressão mediante
cores. “Na verdade toda a maestria
das k'isas é só possível quando a
tecelã fabrica ela mesma suas cores,
produzindo à vontade, através do
tingimento, os graus com que
formará suas escalas” (CERECEDA, 1987, p.187). Estas cores produzidas por tinturaria são
chamados p'ana (Fig.32 ); são cores muito brilhantes e puras, lembram o espectro solar, e que
teriam uma origem mítica no arco-íris:
Se bem se diz, de uma maneira geral, que as degradações vêm do arco-íris, as
mulheres se defendem de toda possibilidade de uma cópia. “eu não sei roubar-
lhe suas k'isas (ao arco-íris)” diziam às vezes, criticando a alguma tecelã
imaginária que pudesse fazer tal...“Eu saco as minhas do meu coração”
(CERECEDA, 1987, p. 190).
O que as k'isas tentam lembrar do arco-íris é seu princípio lógico: o da mais perfeita
união, onde, no entanto, cada identidade se conserva com força. Mas as cores das degradações
tecidas, apesar de suas ilusões, são imutáveis e tingem uma matéria-prima que tem certo peso e
permanência: a lã. Por suas cores, o arco-íris, além de enlace mágico com um plano
sobrenatural, é considerado uma waka (lugar sagrado) que esta ligada à fecundidade e à riqueza
metálica do mundo subterrâneo. Por isso, estas degradações também podem ser perigosas;
devem ser utilizadas justo onde convém, sem se abusar delas, porque ao utilizá-las em excesso
pode-se provocar uma grande confusão e uma visão nem sempre agradável. Estas degradações,
pois, também possuem, nesse sentido, um caráter perigoso.
Fig. 32 K’isas de um tecido tradicional da Bolívia.
114
Os nomes das
k’isas
Verônica Cereceda diz que as listas de cores que formam uma degradação não se lêem
por si mesmas: “é a pequena escala que vai desde à sombra à luz que constitui uma unidade
mínima de sentido” (1987 p. 188) e que recebe nome unitário a partir de seu tom central (do seu
taypi). Se diz, assim:
k'isa cho'jjña (verde),
k'isa líriu (rosa intenso ligeiramente violeta)
k'isa jaruma (laranja),
k'isa larama (azul).
k'isa q'ellu (amarelo)
Estas gamas e escalas podem-se combinar e sofrem infinitas variações, inclusive
adicionando mais cores, caso em que também recebem nomes específicos. Também é possível
ver que, junto aos tons muito vivos e puros, as k'isas dão-se a liberdade de incorporar tons
escuros e opacos, como o preto, para definir às vezes o extremo da sombra, ou o branco, para
marcar um ponto de luz, aumentando o efeito do brilho do total da escala. Trata-se de
estruturas realizadas a partir da subjetividade de cada tecelã; exigem uma cuidadosa seleção de
suas cores pensando em uma continuidade entre o contraste de seus extremos (às vezes uma
k'isa verde começa em um preto e termina em um amarelo), e onde as degradações devem criar
a ilusão de uma transformação sem quebra, que lembre o efeito encantador do arco-íris.
Obra 16 k’isa liriu.
115
O encanto de envolver
As degradações de cor nos devolvem assim toda essa grata
sensualidade que acompanha a beleza e o trânsito.
(CERECEDA, 1987 p. 200)
Terão as k'isas propriedades mágicas que lhes permitem enlaçar dois planos diferentes da
realidade, tal como as tinham também as sementes de wairuru e o arco-íris? O fato é que o velo
colorido faz parte também, junto com os wairurus, de diferentes mesas rituais (Fig.19 Página 60).
As degradações de cor não são somente listas, breves e estreitas, senão também sugerem que
estão implicadas em um processo de reprodução. Poderíamos considerar então, que o desenho
de um tecido com k'isas é a expressão óptica e sincrônica do processo ritual de um trânsito.
No cotidiano, as mulheres seguram suas tranças com tullmas,
enfeites feitos com lãs coloridas. Se diz que as tullmas fazem florescer os
cabelos trançados e ao mesmo tempo indicam o lugar de origem de sua
portadora e, segundo suas cores e complexidade, seriam uma forma de
encantar e seduzir (Fig. 33),. Além das tullmas, variados objetos de lã
dispõem suas cores em degradação; muitos deles participam de
cerimônias onde “todo este estalo de cor atrairá a boa sorte e a procriação
da tropa de alpacas e lhamas” (CERECEDA, 1987, p.203). De onde
provém o poder de mediação das degradações de cor? As escalas
cromáticas explicitam, claramente, que são um esforço por unir a sombra
e a luz, passando através das cores, brilho que metaforicamente permitirá
uma transformação em outro plano da realidade. Este poder
transformador evidencia-se, segundo Cereceda, em algumas cerimônias
de cura mágicas que se baseiam nas cores, como o ritual de cura mágica
Chipaya
6
. Conhecido como “cura pelo arco-íris”, no qual o curandeiro, ao
longo da noite, entre invocações e libações, irá colocando sobre o coxim
redondo do velo de lã anéis concêntricos de velo de ovelha, tingido de
diversas cores, tal como podemos ver no desenho deste rito feito pelo próprio médico
(CERECEDA, 1987 p. 213). Este desenho lembraria o nosso esquema concêntrico inicial (Fig.34
Página seguinte).
6
A cultura chipaya está localizada na beira do Lago Poopó, no departamento de Oruro-Bolívia.
Fig. 33 Tullmas de
Ch’allapampa.Lago
Titicaca.
116
Fig. 34 Esquema do processo ritual da “cura pelo arco-íris”.
117
JATUNKOCHA
,
profunda superfície.
Disposta, na sala ENVOLVER, em uma área de 33m
2
, esta instalação foi formada por
aproximadamente 150 estruturas cilíndricas, cujo comprimento varia entre 1,70m e 30cm, os
quais foram envolvidos, em um processo coletivo (Fig. 35 Página seguinte), com barbante
tingido. Estes tubos foram suspensos em uma estrutura de cabo de aço à altura do teto (Obra
17).
Obra 17 Instalação Jatunkocha Sala
ENVOLVER.
Esta instalação cria um conjunto, como um só ser composto por inúmeras partes, cuja
unidade modular refere-se nominalmente aos instrumentos de sopro, anteriormente descritos
como
chiris
- instrumentos que se tocam no alto das montanhas -, mas cujo conjunto, ao ser
penetrado, ganha outras conotações. O lugar de montagem constituiu-se em um espaço de
trânsito que tenta evocar um mergulho no fundo do mar, envolvente para o espectador. A obra
está acompanhada por uma sutil intervenção sonora, criada com uma ampla gama de
instrumentos e matizes de sopro, assim como de palavras em quéchua e sonidos
onomatopéicos. Paisagens sonoras que multiplicam a experiência de caminhar por esse espaço.
118
O título da instalação corresponde às diversas
palavras quéchuas e aimaras que nomeiam o mar, as
quais seriam jatunkocha, “grande lagoa”, ou
mamakocha, “lagoa madre”. Segundo o dicionário de
Bertonio, cchamaca significa também lago sem solo, e
tuta, “mar profundo”, mas também significa noite,
em quéchua. Todas estas conotações remeteram-me à
profundidade do mar, e ao mesmo tempo ao abismo
existente no céu e as suas cores durante o dia, as
quais evidentemente influem à sua vez na coloração
do mar. Paradoxalmente, desde a remota
antigüidade, os espaços profundos foram objeto de
culto à chuva, que vem do alto do céu. Espaços
extremos que fazem referência aos limites superiores
entre terra e céu. Esta instalação refere às grandes
extensões de água que deixam passar a fluência das
forças subterrâneas. Às águas nos altos montes, a neve, e às águas profundas. Lembremos que
nestas regiões que limitam com um mundo de forças estranhas, as formas e as cores se podem
apagar e desdobrar. O excesso se expressa em paixão cega, arroubamento, perda da consciência
ou identidade.
Assim, as estruturas cilíndricas foram cobertas por barbante tingido com
diversos tons de azul, semelhantes às
k’isas larama (azuis) e às k'isas cho'jjña
(verdes), assim como por
combinações destas (Fig.36).
Evocando um grande tecido
tridimensional, no qual é possível
penetrar da mesma forma como se
mergulha no mar ou, repetindo a
experiência, de ser molhado pela
chuva, estabelece-se assim uma
provocação ao visitante.
Fig. 35 Durante um dos mutirões convocados
para ENVOLVER.
Fig. 36 Barbantes tingidos.
120
Ao falar em instalações “Penetráveis” é difícil
deixar de falar da produção do artista venezuelano
Jesús Soto, cujo caráter lúdico faz com que os
espectadores se vejam “impelidos a ingressar para
vivenciar a plenitude do Espaço” (BRAZÓN, 2007
p.62). Segundo a historiadora Mariela B. Hernández,
as obras de Jesús Soto (Fig. 37):
São entidades limitadas, mas que, ao mesmo tempo, por
serem "permeáveis" e "transponíveis", possuem fronteiras
que atuam como passagens abertas entre O "interior" e O
"exterior", e nunca como barreiras rígidas a serem
forçadas pelo fruidor”. Os Penetráveis deste artista
também oferecem a oportunidade de vivenciar uma
temporalidade "diferente". Pois entrar em um Penetrável
é como dar um passo fora da vida real e distanciar-nos em
certos aspectos do resto do mundo. Desse modo,
transladamo-nos a uma esfera lúdica, na qual é possível
viver situações excepcionais e ignorar as normas
habituais. (2007 p.62).
Assim, da mesma forma que “O Penetrável não está
feito apenas para ‘passar por’ ele, sua estrutura e materialidade favorecem e estimulam a ação
no seu interior”. A instalação
Jatunkocha
aceita o desafio de ser penetrada e abrir a
possibilidade dessa experiência ao espectador.
SÉRIE
CHIRIS
Foram realizadas várias experiências com estruturas tubulares envolvidas com varias
gamas de cores de lãs, as quais constituíram as obras da série
Chiri
s, as quais poderiam ser
fixadas a um suporte ou instaladas livremente em qualquer espaço. Por exemplo, na obra
chamada
Uaxactún
(Obra 14 Página 110), utilizou-se a k'isa cho'jjña, ou seja, uma escala
cromática que parte de tons escuros até o amarelo, sendo a cor verde a predominante, fixando
os 10 cilindros em diferentes níveis. Já nas obras
Dendê
(Obra 15 Página 111) e
Ocaso
, foram
utilizadas variações das k'isa q'ellu, tons amarelos com cores vermelhas predominantes, no caso
da primeira, lembrando os tons vivos existentes no azeite de dendê da culinária baiana. Em
outros casos de variações de k’isas, uma mesma degradação pôde ser desdobrada a partir seja do
seu ponto de sombra ou do seu ponto de luz, aparecendo como uma simetria espelhada. Este
Fig. 37 Obra de Jesús Soto.
121
desdobramento é a única possibilidade que tem uma degradação para combinar-se consigo
mesma. Este seria o caso da peça intitulada k’isa liriu (Obra 16 Página 114).
Fig.38 Montagem da série chiris na Sala DESENVOLVER.
Esta série de obras foi exposta na sala DESENVOLVER, da exposição no Forte São
Marcelo (Fig. 38), onde também se procurou o diálogo com um elemento presente na sala: a
solitária, um dos lugares mais impressionantes desse prédio histórico. Trata-se de um espaço de
aproximadamente 1 x 2 metros, antigo lugar de castigo
a inimigos cativos, escravos e presos políticos. Em
lugar de cobrir aquele espaço, interagiu-se com ele,
colocando no seu interior várias estruturas cilíndricas
pintadas com tons que vão desde o amarelo fraco até o
preto. k’isa jaruma: intitulou-se esta obra com as
palavras em quéchua
yawarnina
, em português:
sangue e fogo (Obra 18).
Outra série de trabalhos em estruturas
circulares relacionadas com o mar e o horizonte são
altamar
(Obra 19 Página seguinte) e
vacaciones
(Obra
20 Página seguinte); em ambas as obras cria-se a linha
do horizonte através de um jogo de contrastes entre
tons escuros e fracos.
Obra 18 yawarnina, sangue e fogo.
122
Obra 19 altamar.
Obra 20 vacaciones.
123
[De des + envolver.]
Fazer crescer ou medrar. Fazer que
progrida, aumente, melhore, se adiante.
Fazer uso de; pôr em prática; empregar;
exercer, aplicar. Dar origem a; originar,
gerar, produzir. Expor extensamente, ou
com minúcia. Tirar o acanhamento, a
timidez. Tirar do invólucro; desenrolar.
expandir. Aumentar as faculdades
mediúnicas Movimentar-se com
determinada velocidade. Tornar-se maior
ou mais forte; crescer. Estender-se,
prolongar Aumentar, progredir.
Progredir intelectualmente; adiantar-se;
instruir-se. Ter desenvolvimento.
124
AÇÃO IV
125
DESENVOLVER
Los hombres entre la yerba buscaban las fronteras.
(HUIDOBRO, 1984, p.34)
Até este ponto, um verbo-acontecimento, DESENVOLVER, tem se descomposto em
quatro verbos no infinitivo, cada um deles acontecimentos. Cada um destes relaciona-se com
minhas Práticas em arte de maneiras diversas.
Tomo novamente as palavras de Deleuze, quando diz que um acontecimento “é uma
conjunção de séries convergentes que tendem a um limite” (DELEUZE, 1987). Durante a presente
pesquisa, fui conformando séries de obras heterogêneas, tendo a Prática em arte como ponto
comum entre todas elas. Um outro ponto em comum presente nas obras anteriores seria sua
finitude, pois se apresentaram como obras concluídas, apesar de estarem ainda submetidas a
algumas variações e
experimentações na montagem. A
partir de DESENVOLVER temos
alcançado um ponto de diluição,
com obras que poderão alcançar
seus limites ou não; são obras em
processo, fragmentárias, em
trânsito. Nesse sentido, criaram-se
obras híbridas, mantendo cada
linguagem seu caráter autônomo,
mas deixando uma espécie de
“incompletude” que faz da
experiência e percepção do
espectador um outro fragmento que integra a obra. O trabalho em processo está precisamente
nessa “incompletude” com a qual somos confrontados com o acaso, o aleatório, o ocasional, o
efêmero, como o tear em processo, Sawri Llawthapita (Obra 21).
Obra 21 Sawri Llawthapita.
126
Sawri Llawthapita
, tear em processo.
As palavras aimaras Sawri Llawthapita denotam o verbo e o sujeito do ato de tecer: “ser-
tecelão”. Este tear tradicional adquiriu materialidade em diferentes lugares do continente:
geraram-se através dele vínculos invisíveis entre as mãos de muitas tecelãs, que teceram fibras
naturais e tranças de cabelo doadas por homens, mulheres e crianças.
Ao contrário do que acontece com um tecido terminado, um tear em processo,
“incompleto”, sugere movimento. Este tear, particularmente, propõe ações individuais e
coletivas. Por isso, poderia ser concebida como uma ação performativa permanente. O tear, como
obra processual, irrompe no espaço da criação coletiva e propicia assim uma dinâmica entre
tempo e espaço dispostos em um
percurso
O tear é desmontável, sua
carga de elos e conexões é fácil de
transportar. Por isso é possível
continuar a tecê-lo em qualquer
lugar. Só é preciso pendurá-lo em
uma árvore ou em um gancho e
procurar a tensão certa para
trabalhar a vontade. Desde a
concepção e a montagem do tear,
em La Paz no ano 2003, junto
com o artista peruano-norte-
americano Aymar Copaccatti, a idéia de autoria e de pertença da obra se diluem
7
. Depois foi
tecido junto com tecelãs e tecelões, conhecedores de diferentes técnicas, em países como
Bolívia, Argentina, El Salvador, Guatemala e Estados Unidos. Agora o Brasil é uma estação
mais do seu caminho. Em cada um destes lugares, o tecido continua evoluindo e enriquecendo-
se de ares e experiências (Fig. 39). Sem data marcada nem pressa para concluir-se, continua
crescendo intermitentemente.
7
A primeira experiência de tecido coletivo deste tear foi registrada por um Programa da Televisão Boliviana
Nacional, dedicado aos têxteis. Programa “Nuestras empresas”. Dir: Fernando Arispe. Novembro 2003. 0:30:15
aprox. Também foi amplamente registrado na imprensa.
Fig. 39 Lugares onde foi tecido o tear.
127
Esta obra tem como antecedentes alguns acontecimentos importantes, como o de ter
nas minhas próprias mãos um tipo de chapéu (gorro) ritual procedente de Tiawanaku
8
. Estar
perto de uma peça tão antiga gerava em mim uma mistura de emoções, era como um encontro
com o mais sábio dos mestres; por isso me aproximei com cuidado e respeito. Então consegui
ver, com assombro, que estava tecido com lãs coloridas e cabelos humanos. Não posso descrever
com palavras a sensação que essa descoberta me provocou, mas muitas perguntas passaram por
minha mente: seria só uma pessoa o “doador do cabelo”, o tecelão ou a tecelã é o dono(a) do
chapéu? Seriam várias pessoas? Em quais situações esse chapéu seria utilizado? Quantas coisas
aconteceram até ele chegar às minhas mãos? Esse objeto, que para mim estava carregado de uma
força impressionante, ainda apresentava um detalhe: como um adereço final, a peça tinha,
também, uma fina trança de cabelo.
Milton Eyzaguirre, antropólogo, que compartilhou esses
momentos comigo, diz, em uma entrevista publicada em um jornal
boliviano, que a força do cabelo, na cultura andina antiga, radicava em
que este continha a presença das pessoas. Nessa entrevista ele ainda
afirma: “Não devemos esquecer que, na visão do mundo andino, pensa-
se em mais do que uma alma pertencente a uma pessoa; então,
aparentemente uma dessas almas se desprendia do corpo junto com os
cabelos”. Ademais, acrescenta que no antigo império do Cuzco “o Inca
mandava objetos pessoais, incluindo seus cabelos, a qualquer outra parte
do território, para ter presença em todos esses lugares” (LA RAZÓN,
2007).
O encontro com esse objeto e essas referências ao significado
inerente a eles deram começo a outras experiências e observações
relacionadas com o cabelo. Pude comprovar que no cotidiano de
algumas cidades da América Latina, o cabelo não deixou de ter
importância. Nas ruas da cidade de La Paz, Bolívia, por exemplo, ainda é
comum ver mulheres que penteiam seus cabelos com duas tranças que
8
O ano de 2001, como parte da pesquisa sobre técnicas têxteis andinas, participei como voluntária na montagem
de 300 peças de tecidos andinos para a exposição Tres milenios de tejidos, no Museo Nacional de Etnografia y
Folklore em La Paz, Bolívia. Tiawanaku é uma cultura pré-colombiana, localizada ao sudoeste do lago Titicaca no
atual departamento de La Paz – Bolívia. Foi um centro cerimonial da cultura andina, pertencente ao Período do
Horizonte Meio (800 a 1.100 D.C.).
Fig. 40 Tocoyal de
Almolonga -
Guatemala.
128
caem nas costas; estas tranças, como já falamos anteriormente, são seguradas por tullmas, tanto
como enfeite de lãs coloridas, como lugar de procedência. Nas ruas de Salvador, igualmente,
pode-se ver que muitas mulheres têm desenvolvido uma estética de origem africana, de
penteados complexos que utilizam múltiplas e finas tranças. Também as mulheres da
Guatemala ainda usam nas suas tranças fitas tecidas, compridas e coloridas, chamadas tocoyal
9
(Fig. 40 Página anterior), com as quais envolvem suas tranças, terminando como adorno na
cabeça. Este símbolo cultural lembra Ixchel, deusa maia das mulheres, da lua e do tecido; a
mesma que foi representada em cerâmicas e talhada em pedra com uma serpente como
toucado. Todas estas referências às tranças de cabelo, ainda plenamente vigentes na geração de
relações simbólicas, como matéria converteram-se na obra
Sawri Llawthapita
.
As tranças são diversas: podem ser tão
compridas e escuras, como os cabelos de Rebeca e
das outras amigas da Guatemala; loiros quase
brancos como os das crianças dos Estados Unidos;
tingidos de vermelho como os da minha amiga Ceci;
ou laranja intenso, como o mega-hair que ganhei de
Mariana em Salvador. Ao receber tranças para serem
tecidas, vinha a mim a imagem da jovem tecelã no
seu espaço, penteando seu cabelo todas as manhãs, e
pensava também no gorro de Tiawanaku, pois a partir
dessas experiências gerou-se todo esse processo.
O “sentido mágico” do tear foi formando-se
junto com o tecido: alguns casais pediam tecer
próximas as tranças deles, as mães pediam juntar
suas tranças com as das filhas, as amigas solicitavam a mesma coisa. Mas, quando o dono ou a
dona das tranças, já tecidas, tentava reconhecer a sua, não o conseguia, porque estas já se
tinham [con]fundido com as outras. Uma parte do seu próprio corpo se havia convertido em
parte de outra unidade, também orgânica. Uma unidade fragmentária nos materiais que a
nutrem: fragmentos do corpo, como são os cabelos. Esta obra inclui a situação do inacabado. o
9
Existem muitos tipos de tocoyal e, da mesma forma que as tullmas, eles indicam o lugar de origem, demonstrando
inclusive hierarquia, como é o caso do tocoyal de Santiago de Atitlán: uma fina fita vermelha, que vai aumentando
com a idade da portadora. Assim, as mais velhas têm tocoyales com tantas voltas que parecem um chapéu.
O tear tecido na Fundação Pierre Verger
.
129
fragmento proclama silêncio e uma verdade sempre interna, dentro de si mesmo. Seu espaço é
o do não-lugar, o lugar do meio, o local deslocado, em suspensão, transitório, em construção”
(JACQUES, 2003, p. 91).
No Brasil a experiência ganhou um matiz particular, pois foi tecida com crianças que
aprenderam a tecer nas aulas de teares, ministradas por mim no Espaço Cultural da Fundação
Pierre Verger, em Salvador, (Página anterior) sendo a primeira vez que as pessoas que eu mesma
ensinei a tecer teceram no tear itinerante. Esta obra também foi apresentada como parte das
conclusões parciais da pesquisa do Mestrado em Artes Visuais, no Seminário de Estudantes
Pesquisadores em Artes Visuais – SEPAV, em novembro do mesmo ano. Da mesma forma,
apresentou-se na exposição Guard(a)res, a meados do ano de 2006. No Forte São Marcelo
foram organizadas oficinas onde também se realizou o tecido do tear interagindo com os
visitantes.
Um tecido sem linhas.
Entre as experiências com teares tradicionais
inconclusos, destacam-se obras com fotografias,
como Amigas (Obra 22), que aproxima duas
técnicas, confirmando a importância do fragmento
neste conjunto de obras. Neste caso, a fotografia é
cortada em finas listas de meio centímetro,
posteriormente montadas como se se tratassem de
tear tradicional, ou seja, com suportes de cana de
bambu, onde o “tecido” era a imagem impressa. No
primeiro exemplo, duas fotografias de 10 x 15 cm
foram cortadas em franjas verticais e dispostas à
maneira de uma urdidura na ordem de um tear
tradicional e, posteriormente, tecidas com lã de
alpaca. Foi deixada “incompleta”, evidenciando assim o processo inerente ao tear.
O tear resulta num modo de fazer que abraça um processo e um procedimento
compartilhado. Com este, não pretendo por um ponto final ao caminho excêntrico e fluido das
ações-acontecimentos, do DESENVOLVER; ao contrário, assumo que esse desenvolvimento
durará enquanto exista criação.
Obra 22 Amigas.
131
AÇÕES FINAIS
Chegou o momento de dar um alto e avaliar o aprendido. Embora por enquanto seja
difícil saber se todo este percurso serviu para resolver as perguntas propostas no início desta
pesquisa, ou, ao contrário, para aumentar o número delas. Considero que as ações provocadas
pela linha seguirão seu DESENVOLVER, por isso não é possível “finalizar”, com a tradicional
“conclusão”; em lugar disso proponho certas AÇÕES FINAIS. Algumas destas, para serem
realizadas, traspassarão o prazo de impressão das presentes linhas. O agradecer pela ajuda
recebida e o meu próprio retorno a “casa” serão ações que marcarão o fechamento de mais um
trânsito.
Durante esta pesquisa questionei minha Prática em arte; para isso aprendi a dominar
vários procedimentos técnicos, ou seja, a conhecer os recursos dos materiais e equipamentos
mínimos necessários para conseguir qualquer produção. Aspectos fundamentais para transpor
em obras o que poderia permanecer em idéias. No entanto, enquanto tentava dominar as
técnicas e tecnologias como a edição de vídeos, tentei tirar proveito conceitual e expressivo das
mesmas, dirigindo-as a resolver minha “identidade” e à procura do que se resiste a ser
hibridado. É dizer, não reduzir a prática à técnica, senão fazer uso delas reinventando-as e
manipulando-as segundo necessidades vitais. E ainda mudá-las e combiná-las com o objetivo de
preservar as intenções iniciais.
Assim, posso asseverar agora que a manipulação das técnicas deve estar a serviço da
intenção do artista; só assim se poderá exercer uma Prática em arte. Dessa forma, ao aliar
processo e procedimentos, técnicas e conceitos, comportamentos e produtos, o artista exerce
sua Prática. A qual, além do domínio de certas técnicas expressivas, pressupõe o
estabelecimento de uma conduta operacional; esta, segundo Vinhosa:
antes de ser uma mecânica, implica a elaboração contínua de uma disciplina
interior que ministra uma prática objetiva. Assim, certas ocupações rotineiras,
como passear pela cidade, fotografar, conceituar, classificar, ler um livro, podem
muito bem derivar de uma conduta operacional, pois podem nutrir a criação.
(VINHOSA, 2005 p.156)
Esta conduta operacional, segundo o mesmo autor, deve estar inserida em uma
“experiência de mundo” que vá além do “mundo da Arte”, como se transcreve a seguir:
132
A obra tendo saído de uma experiência de mundo que ultrapassa a do mundo
da arte, e sendo este mais amplo do que o campo, a relação com a obra pode ter
uma entrada ao mesmo tempo mais ampla e mais estreita. Mais ampla, porque a
prática poderá sempre se valer de estratégias notadamente públicas. Mais
estreita, porque a comunidade, antes de ser uma entidade a priori, se funda na
experiência do sentido. Na condição que o receptor partilhe da visão de mundo
do artista, os mundos deste e daquele entram em interface no momento mesmo
em que o receptor 'produz" a obra. Assim, da atitude de artista à atitude do
artista, a forma artística proposta pode escapar aos limites impostos pelo campo
e se lançar no mundo. (2005, p.157)
Depois desta acertada reflexão, que traz novamente à tona o conceito de práxis, surgem
mais perguntas: DESENVOLVER e os verbos que se desprendem dele incluem uma
experiência de mundo? Estes estão relacionados com a vida ou são as minhas especulações
individuais? Se não for assim, qual seria para mim a ação ou conduta operacional que insere
uma experiência de mundo? Que ação individual pode provocar ações coletivas? Será que na
minha prática utilizo, da mesma maneira que Joseph Beuys,“elementos do passado, com a
intenção de expressar alguma coisa sobre uma possibilidade futura”? Exerço uma pratica do
passado? Do futuro? É tradicional ou contemporânea?
Já dissemos que a única maneira em que o artista pode contestar a avalanche das suas
próprias perguntas é mediante a Prática. E foi a Prática que possibilitou a resposta. Quis
lembrar uma prática silenciosa, mas muito poderosa. Desta maneira, a Ação performativa,
apresentada na área externa do Forte São Marcelo, em 25 de abril de 2008, dia da abertura das
exposições simultâneas Wakaychas e
DESENVOLVER, proporciona
conotações simbólicas e estéticas
que resultaria interessante analisar.
Esta ação (Obra 23 e Página 134)
apresenta uma prática tradicional,
que deslocada a esse espaço em
especial adquire outros fluxos e
sentidos, questionando a dicotomia
entre o tradicional e o
contemporâneo e inserindo na obra
a experiência de mundo.
Obra 23. Ação performativa no Forte São Marcelo.
133
Nessa Ação, a Prática foi a elaboração tradicional do fio a partir das fibras do velo de
ovelha e alpaca (Anexo 3). Assim como foi descrito no corpo do texto desta dissertação o fiado
é uma parte do processo de elaboração de tecidos, este processo agrupa indivíduos em torno de
uma ordem produtiva comum. Como qualquer técnica engendra objetos, no caso: o fuso ou a
puschka (nome quéchua). Objetos como este adquirem valor simbólico e se somam, em seguida,
a um modo singular de compreensão do espaço e do tempo, pois a manipulação destes objetos
engendra tradição e, por isto,
memória.
A puschka é um objeto
simples, que se torna dinâmico com
a presença da tecelã, sua
simplicidade ganha complexidade
com o movimento: não é um objeto
isolado, a sua prática gera uma
segunda atenção, porque não, uma
conduta operacional. O seu
movimento natural é envolver e
desenvolver. Este objeto adquire,
desta forma, o aspecto simbólico de “energia concentrada”, será o que o diferencia de um
simples objeto. Este objeto torna-se simbólico na medida que seu significado vai além do que
sugere de imediato: funciona muito mais a partir de uma memória coletiva e difusa que de um
conhecimento histórico dos acontecimentos. Sendo a manipulação da pushcka uma prática
cultural, revela uma experiência de mundo. Quis deixar à linha provocar uma prática e exercer
esse fazer silencioso, e realizar essa ação em um dos lugares mais emblemáticos da colônia do
continente: o Forte São Marcelo. Esta ação apresentada como performance evidencia uma
prática artística que no contexto simbólico em que a experiência tem lugar adquire outras
conotações, o objeto não está separado das condições espaço-temporais, assim como essas não
se dissociam de um sistema de representação intrínseco a uma prática. Ademais, procurou-se a
interseção entre o objeto, o sujeito e o meio ambiente. O passo do sol cumpriu também um
papel ativo nesta ação, pois, à medida que o sol ia se pondo no horizonte, a silhueta da
fiandeira - performer ganhava espaço na ampla área central externa do Forte. Diálogo entre o
sol, a antiga ruína e uma prática que também sobreviveu o tempo.
Fig. 41Fuso ou pushka.
135
Lembre-se que o enfiado a mão é um das
poucas práticas tradicionais que permaneceram
inalteradas dentre as diversas manifestações artísticas
das primeiras nações da América, pois somente
algumas práticas conseguiram suportar o embate da
colonização. Para o olhar europeu-barroco
1
dos
colonizadores, o valor da arte andina estava
exclusivamente nos materiais preciosos com que
eram produzidas: ouro, prata, jade, entre outras. Esta
perseguição teve como uma das suas conseqüências a
designificação de alguns elementos, não somente
iconográficos, senão de outros elementos simbólicos
milenares, como sementes e folhas, que cumpriam
uma função central nos cultos; as representações
tiveram um destino similar. Finalmente, as cerâmicas
e os tecidos foram entendidos como objetos ornamentais: uma arte menor. A estas atitudes
desqualificativas soma-se a idéia persistente até os dias de hoje de que se trata de culturas
carentes de sistema de escrita, desqualificando deste modo todo um sistema expressivo que vai
muito além da língua falada e da sua representação gráfica.
Apesar de tudo, a prática do fiado não foi objetivo direto da perseguição colonial. O fuso
e a prática que ele propicia é um desses objetos desqualificados. Até os nossos dias, em países
como a Bolívia, este processo é visto como arcaico e somente praticado por mulheres quéchuas
e aimaras, a maior parte delas idosas, sendo este fazer relegado dia-a-dia pelos jovens, mais
interessados pelas novidades do mundo globalizado que nas práticas de para eles “épocas
passadas”. Neste ponto considero importantes as palavras de Michel Mafessoli, quanto a esse
tema das práticas e memória coletivas e o que elas impulsionam; o autor propõe:
1
No século XV, na Itália, tinha começado o período que se conhece como Renascença, marcando o trânsito do
mundo Medieval ao mundo Moderno, mas os países da península ibérica colonizadores da América do Sul
demoraram em aplicá-lo plenamente até meados do século XVI. Isto explica os critérios ainda barrocos com que os
colonizadores viam a arte das civilizações das Américas.
Ação no Forte são Marcelo.
136
Não se trata de nenhuma nostalgia de uma ordem social que se desvaneceu.
Tampouco se trata de lamentar uma comunidade pré-moderna de contornos
indefinidos, mas antes de reconhecer que, a um mundo que se acaba está e
vias de suceder um novo estilo de existência. (MAFESSOLI, 1995, p 23)
Acredito que o artista é plenamente capaz de criar as condições para que a partir de
essas Práticas, possibilidades futuras e novas combinações possam suceder. Uma experiência
coletiva pode participar de uma experiência pessoal do artista como um elemento de coesão
social. Sempre e quando seja uma ação que se inspire em uma dimensão do coletivo, abraçando
nossas expectativas pessoais em relação à arte e ao mundo.
Na ação no Forte São Marcelo, a experiência privada tenta religar uma ação tão simples,
ao mundo contemporâneo. Então, nesse determinado contexto, o fato de enfiar impugnou a
oposição entre tradicional e contemporâneo. Mas não consiste em executar um só ato, capaz de
mudar a terra, senão em multiplicidade de AÇÕES e novas combinações delas gerando devires.
Para o qual o artista-pesquisador deve estar atento porque as respostas também estão no
cotidiano...
137
Então, O que não pode ser hibridado?
Desta vez as mãos de outras tecelãs darão a resposta:
Fig. 42 Faixa tecida.
ase savim tejir los campesinas volivianas
Esta faixa, tecida da maneira tradicional, transcreve a pronuncia do espanhol, comum
no quéchua falante (sem dúvida a tecelã o é). Traduzido ao português quase - literalmente:
assim sabem tecer as camponesas bolivianas
As mulheres com esse tecido respondem que a memória e algumas práticas não podem
ser hibridadas, simplesmente porque seguimos conjugando no infinitivo o verbo TECER, como
um acontecimento; como o mostra a tão original faixa: TECER ainda está no devir. O devir
implica diferença: o TECER não é identidade, é diferença.
Nas minhas próprias Práticas TECER, ENFIAR, FOTOGRAFAR, FILMAR, EDITAR
não serão mais procura de identidade e sim da diferença. Serão práticas para descobrir o devir
da diferença; a partir de agora dependerá de como essas diferenças produzem situações
interconectadas, que a sua vez se traduzam em acontecimentos múltiplos, que produzam outros
devires. Práticas comprometidas, que construam enunciados coletivos, que incluam
populações, multiplicidades, territórios, afetos, velocidades e intensidades.
138
Obra 24 Una concha para el Hayna Potosí.
139
140
Referências
ABBATE, Florência. Deleuze para principiantes. Buenos Aires: Era Naciente, 2001.
AZNAR, Sagrario. El arte de acción. Madrid: Nerea S.A, 2000.
BACHELARD, Gastón. A poética do devaneio. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins
Fontes, 1988.
_________, A poética do espaço. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
BARBOSA Elyana. Gaston Bacherlard: o Arauto da Pós-modernidade. Salvador-BA: Editora
Universitária Americana, 1993.
BARTHES, Roland. A Câmara clara. Uma nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
_________, A Aula Inaugural,Tradução e Pósfacio Leyla Perrone-Moisés São Paulo: Cultrix, 2004.
BORGES, Jorge Luis. La muerte y la brújula. Bs. As: CEAL, 1971.
BOUYSSE Thérèse-Cassagne, HARRIS Olivia, PLATT Tristan, CERECEDA Verónica. Tres reflexiones
sobre el pensamiento andino. La Paz: Hisbol, 1987.
BRAZÓN Hernández, Mariela, Cultura Visual: Arte e Memória na América Latina. PPGAV- EBA- UFBA.
Ano 1 No.10 Salvador, BA: EDUFBA, 2007. p. 51- 64
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas. Estratégias para entrar y salir de la modernidad. México:
Grijalbo, 1990.
_________, Noticias recientes sobre la hibridación. In: Arte Latina: Cultura, Globalização e Identidades
Cosmopolitas. Rio de Janeiro: MAM e Editora Aeroplano, 2000.
CERECEDA, Verónica, DÁVALOS, Jhonny. Una diferencia, un sentido: los diseños textiles Tarabuco y
Jalq’a. Sucre: ASUR, 1993.
CHARLES, Merewether, Disposición. Catálogo ARCO Latino 1997, Danubio Madrid, 1996. p 6 -9
CLIFFORD, James. Itinerários Transculturais. Barcelona: Gedisa editorial, 1999.
DE BERDUCCY, Sandra. El tapiz Pintar con hilos. 2001. Tese (Licenciatura em Artes Plásticas) –
Facultad de Arquitectura y Artes. Universidad Mayor de San Andrés, 2002.
_________, Cultura Visual: arte e memória na América Latina. PPGAV- EBA- UFBA. Ano 1 No.10
Salvador, BA: EDUFBA, 2007. p 9-18.
DELEUZE, Gilles, Diferencia. y repetición. Gijón: Júcar. 1988.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Tradução Eliane Fittipaldi Pereira São Paulo: Cultrix, 1988.
ECO, Humberto. Catálogo sobre a obra de Arman. Galerie Nacionale du Jeu de Paume. Sobre Arman.
Ediciones Jeu de Palme. Paris: 1999.
ECO, Umberto La definición del arte. Barcelona: Ediciones Martínez Roca S.A, 1970
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
GOETHE, J.W. Doutrina das Cores. São Paulo: Tradução de Marco Giannotti Câmara Brasileira do livro,
1998.
GRUZINSKI, Serge, El pensamiento mestizo. Barcelona: Editorial Paidós, 2000.
141
GUÉDEZ, Víctor, Gego y la docilidad constructiva. In: Revista Art Nexus. No. 23 Bogotá: Enero-Marzo,
1997. P 58 – 62.
HALL, Stuart, A identidade cultural na Pós-modernidade.Tradução Tomaz Tadeu da Silva. Rio de
Janeiro: DP&A, 2001.
HUIDOBRO, Vicente. Sus mejores poemas. Santiago de Chile: Zig-Zag, 1984.
JAQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: Estética das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de
Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LECHTE JOHN, 50 pensadores contemporâneos essenciais do estruturalismo à pós-modernidade. Tradução
Fábio Fernandes. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003.
CANONJÍA, Ligia. Violência e paixão, Catálogo Mostra Rio Arte contemporânea. 2002, p.9-27
MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995.
MILLA Villena, Carlos. AYNI. Lima: Quevecor World, 2003.
MORIN, Edgar, A Cabeça bem feita. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
PAYNE, Michael, Diccionario de teoría crítica e estudios culturales Buenos Aires: Paidós, 2002.
PORTUGAL, Ana Catarina. O pensamento de Joseph Beuys e seus aspectos rituais em ação. Tese de Mestrado
Departamento de História PUC Rio de Janeiro, 2006.
ROZO, Bernardo, Q’aiturastro (Rastro de linhas) Considerações etnomusicológicas sobre uma vídeo-arte. Artigo
Inédito. Salvador, 2007. Disponível em www.berdebertigo.bo.nu
SÁNCHEZ, Parga José, Textos textiles en la tradición cultural andina. Ecuador: IADAP, 1995.
SANTAELLA, Lúcia, e Winfried Nöth, Imagem, cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 2005.
SILVA, Juremir Machado, As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.
STILES, Kristine, JENKINS, Bruce. Fluxus y Fluxusfilms 1962-2002. Madrid: Museo Nacional Centro de
Arte Reina Sofía, 2002.
TAQUINI, Graciela. Ver del Video algunas acotaciones In: Cuadernos del Centro de Estudios en Diseño y
Comunicación [Ensayos] Nº 24. Facultad de Diseño y Comunicación. Universidad de Palermo. Buenos
Aires. Agosto 2007
VIGAGORDILHO, Cantos Contos Contas. Uma trama às Aguas como lugar de passagem. Salvador: P555
Edições, 2004.
_________, Onde as casas se vestem de céu?:Um conto para todas as idades. Salvador: EDUFBA, 2008.
VINHOSA, Luciano, Da prática da arte á pratica do artista contemporâneo. In: Concinnitas, Revista do
instituto de Artes da UERJ. Ano 6, volume 1, número 8. Rio de Janeiro: DIGRAF – UERJ, 2005.p. 143-
157
Dicionários temáticos
PAYNE, Michael, Diccionario de teoría crítica y estudios culturales, Paidós, Buenos Aires, 2002.
AURÉLIO Dicionário Século XXI, Versão eletrônica 3.0, 1999.
142
Web:
CÁRDENAS, Jenny. El bolero de caballería en el contexto de la vida política urbana de Bolivia.
Universidad de la Cordillera, 2000. Disponível em: <http://www.hist.puc.cl/programa/iaspm.htm>
Acesso em 26 de mayo de 2007.
DELEUZE Criba e infinito, confrontación Whitehead-Leibniz. Aula de Gilles Deleuze sobre Leibniz,
França, 1987 Traducteur : Ernesto Hernández B. Disponível em:
http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=143&groupe=Leibniz&langue=3. Acesso em 1 de
Fevereiro de 2008.
DERDYK, Edith. Disponível em:
<http://www.pontecultura.de/Workshops/artinprogress/edith_derdyk1.htm> Acesso em: 20 de
outubro de 2006
ENCICLOPÉDIA Itaú cultural de artes visuais disponível em:
http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=artistas_Ordem_
Alfabetica&st_letra=G&acao=mais&inicio=85&cont_acao=4&cd_idioma=28555 Acesso: 6 de fevereiro
2008.
FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Conferencia proferida por Michel Foucault en el Cercle
d'Études Architecturales, en Marzo de 1967. Disponível em:
<http://www.virose.pt/vector/periferia/foucault_pt.html>. Acesso em 20 de maio de 2006.
KIMSOOJA. Official Site disponível em: <http ://www.kimsooja.com> Acesso em: 25 de outubro de
2006.
__________, Kimsooja convierte el Palacio de Cristal en un remanso de luz, destellos del arco iris y respiración
http://www.lukor.com/literatura/noticias/portada/06042730.htm Acesso em: 5 de fevereiro de 2007.
Imprensa:
LA RAZÓN, El peinado de las hijas puede revelar el tipo de relación con las madres. La Razón, La Paz
Bolivia. 27maio 2007 Disponível em: <http://www.la-razon.com > Acesso em: 27maio 2007.
VARGAS, Miguel. La Razón, domingo 4 de novembro 2007. Edição digital disponível em:
http://www.la-razon.com. Acesso em: 4 de novembro 2007.
143
ANEXOS
Anexo 1. Cartões postais. Mostra do trabalho anterior ao mestrado.
144
Anexo 2. Tipos de fibras animais
Chama-se fibra a cada um dos finos filamentos que constituem um fio; estas podem ser
animais ou vegetais (como o algodão), as quais variam tanto nas suas propriedades plásticas:
resistência, elasticidade, flexibilidade, cor, brilho, textura, etc., assim como nas suas aplicações.
A lã é a principal fibra de origem animal utilizada em toda a zona andina; é extraída dos
camelídeos originários do planalto andino: lhama (Lama glama), alpaca (Lama pacus) e vicunha
(Glama vicuña). A estes animais, genuínos provedores de fibras, soma-se a ovelha (Ovis aries), que
foi introduzida no continente durante a colonização.
Utilizam-se estas fibras em geral nas suas cores naturais, as quais podem variar em ricos
tons intermediários do preto ao branco, passando por uma ampla gama de cinzas e marrons.
Há, também, uma infinidade de nomes específicos para assinalar as diferentes tonalidades da lã,
de acordo com sua localização sobre as diferentes partes do corpo do animal, chegando a
formar-se ao redor desta um complicado sistema de classificação pela sua cor e qualidade (DE
BERDUCCY, 2002, p18)
.
Lã de lhama Lã de alpaca Lã de vicunha Lã de ovelha
145
Anexo 3. Processo de fiado.
Fig. 43 Variedade de fusos.
Fio é o conjunto de fibras unidas por torção que resultam em uma fibra comprida; estas
fibras entrecruzadas conformam a estrutura de todos os tecidos. A delicadeza dos tecidos
andinos radica, em grande parte, na fineza e regularidade do fiado. O fio deve ser semelhante e
regular, fino, mas o suficientemente forte e elástico para suportar a manipulação.
Dentre os povos andinos, desde a antigüidade, esta torção é realizada com um fuso
(chamada puschka em quíchua e qapu em aimara). Estes instrumentos têm variações
concordando a fibra com a qualidade do fio desejado, é dizer, existe diferença entre os fusos
utilizados para lã de vicunha, a qual é mais fina, e para a lã de ovelha, mais tosca. Para este
último, utiliza-se uma varinha de aproximadamente 30 cm de largura que conta, na parte
inferior, com um disco de madeira que serve de contrapeso.
146
Fig. 44 Imagem do processo de enfiado.
Geralmente se enfia no sentido dos ponteiros do relógio (à direita), mas também em
direção contrária a eles. Este tipo de enfiado tem um sentido mágico.
Quando a fibra já está fiada, se tomam duas meadas da mesma qualidade, juntando os
cabos, e depois se torcem ambos, sempre em direção oposta ao lado que foi fiado, em um fuso
chamado Kanti em quíchua e em aimara, qapukanti. Este fuso é maior e mais pesado que o
utilizado para fiar e deve girar para o lado contrário do fiado. O resultado deste processo é um
fio duplo mais forte e resistente. A esta manobra se denomina kantido. Este processo de união
de dois novelos pode ter variantes como a combinação de uma ou mais cores.
Anexo 4
148
Anexo 5
Convite e mapa da distribuição das salas.
149
Gazeta do Forte: uma nota sobre as exposições Wakaychas e DESENVOLVER.
152
Fichas técnicas das Obras
Obra 1.....................................................................................52
Título: Chordata Gryphus
Instalação aérea, progressiva, montagem e projeção de linhas.
Dimensões: 6 x 6 metros
Materiais: Linhas de algodão, clarabóia do prédio e luz do sol.
Obra executada em Site Specific, nas ruínas da Fábrica Fratelli Vita,
Cidade Baixa, Salvador.
Ano: 2006.
Obra 2 .....................................................................................54
Título: As indústrias
Instalação em Site Specific, inclui pintura e linhas de algodão.
Dimensões: 20m x 3m x 5m
Projeto: Ruínas Processos Criativos, como parte da disciplina Teoria
e técnicas de processos criativos, Ministrada pela prof. Doc.
VigaGordilho.
Ano: 2006
Obra 3.....................................................................................63
Titulo: TEMPO
Duração do Vídeo: 0:07:14
Formato: DVD
Fotografia: Tinna Pimentel, Isabel Gouvêa, Bernardo Rozo e Sandra
De Berduccy.
Performers: Sandra De Berduccy e Bernardo Rozo
Edição: Sandra De Berduccy
Música: Bernardo Rozo
Ano: 2007
Obra 4 .....................................................................................70
Título: Ovillos viajeros
Técnica: Fotografia digital distribuída em adesivos
Dimensões: Variáveis
Ano: 2007
Obra 5.....................................................................................71
Título: Achachilas
Técnica: novelos de fibras animais, enfiadas a mão.
Dimensões Variáveis
Ano: 2007
153
Obra 6.....................................................................................75
Título: Wakaycha Espiral
Técnica: Búzios e lã de ovelha tingida
Dimensões: 16 x 22 x 5 cm
Ano: 2007
Obra 7.....................................................................................76
Título: Wakaycha oriooo
Técnica: Búzios, bambu e fibras de algodão
Dimensões: 18 x 12 x 6 cm
Ano: 2007
Obra 8.....................................................................................79
Título: Wakaycha animas
Técnica: Bambu e lã de alpaca enfiada a mão
Dimensões: 16 x 22 x 5 cm
Ano: 2007
Obra 9.....................................................................................81
Título: Wakaycha Chasqui
Técnica: Bambu e lã de alpaca enfiada a mão
Dimensões: 18 x 12 x 6 cm
Ano: 2007
Obra 10....................................................................................88
Título: Q’aiturastro
Formato: DVD Duração: 00:05:20
Autor: aruma (Sandra De Berduccy)
Salar de Uyuni- Bolívia
Data de produção: Agosto - Novembro 2007
Fotografia: aruma, Paula Goitia, Clement Belon.
Música: Bernardo Rozo
Performer: aruma
Edição: aruma
Produção: Atelier de produção artística Berdebértigo
154
Obra 11....................................................................................97
Título: horizonte sem horizonte Instalada no Museo Tambo
Quirquincho
Vídeo apresentado na Bienal Internacional de Arte SIART Arte
Joven- Bolívia 2007
Formato: DVD Duración: 00:04:55
Autor: aruma (Sandra De Berduccy)
Locação: Salvador – Bahia – Brasil
Data de produção: Septiembre 2006 - Mayo 2007
Imagens, fotografia e edição: aruma
Imagem do tecido da zona de Macha tomada do livro Textiles en los Andes Bolivianos, T. Gisbert, S.
Arce y M. Cajias. Editorial Quipus, Bolivia 2003.
Música: Fragmentos de El terremoto de Sipe-Sipe, bolero de cavalaria.
Autores: Daniel Albornoz y Felipe V. Rivera, 1939
Direção musical: Bernardo Rozo
Produção: Atelier de produção artística Berdebértigo.
Obra 13..................................................................................109
Título: Puruma
Técnica: Estruturas cilíndricas e lã de alpaca e outros
Dimensões altura 120 e largura variável.
Ano: 2008
Obra 14..................................................................................110
Título: Uaxactún
Técnica: Estruturas cilíndricas e lã de ovelha tingida
Dimensões: 137 x 55 cm
Ano: 2007
Obra 15.................................................................................111
Título: Dendê
Técnica: Estruturas cilíndricas e lã de ovelha tingida
Dimensões: 130 x 35 cm
Ano: 2008
155
Obra 16................................................................................114
Título: k’isa liriu
Técnica: Estrutura cilíndrica e lã de ovelha tingida
Dimensões: 130 x 10 cm
Ano: 2008
Obra 17................................................................................117
Título: Instalação Jatunkocha
Sala ENVOLVER
Dimensões da instalação: Área de 11 m2.
Materiais: 150 estruturas cilíndricas, barbante tingido cabo de aço
Música Bernardo Rozo
Obra 18................................................................................121
Título: yawarnina, sangue e fogo
Técnica: Estruturas cilíndricas e tinta acrílica
Dimensões variáveis
Ano: 2008
Obra 19................................................................................122
Título: altamar
Técnica: Estruturas cilíndricas e lã de ovelha tingida
Dimensões: 130 x 45 cm
Ano: 2007
Obra 20................................................................................122
Título: vacaciones
Técnica: Estruturas cilíndricas e lã de ovelha tingida
Dimensões: 70 x 80 cm
Ano: 2008
156
Obra 21................................................................................125
Título: Sawri llawthapitha
Linguagem: Performance interativa – obra processual e itinerante
Instalação: Lugares públicos, férias, eventos culturais.
Registro: Fotografia, vídeo e imprensa.
Ano: 2003 -2007
Bolívia (Cochabamba, La Paz), Argentina (La Plata e Buenos Aires),
El Salvador (San Salvador), Guatemala (Antigua Guatemala,
Uaxactún - El Petén) e Estados Unidos ( Florida - Seattle e
California) Brasil (Salvador- Bahia).
Obra22................................................................................129
Título: Amigas
Técnica: Fotografia e tear tradicional
Dimensões: 10 x 15 cm
Ano: 2006
Obra23..................................................................................133
Título: Ação performativa
Lugar: Forte São Marcelo
Fotografia: Fabio Gatty e Bernardo Rozo
Ano: 2008
Obra24.................................................................................. 138
Título: Una concha para el Huayna Potosí.
Técnica: Fotografia e tear tradicional
Dimensões variáveis
Ano: 2006
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo