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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
CURSO DE MESTRADO
DESAFIOS DA FILOSOFIA MORAL CONTEMPORÂNEA: A QUESTÃO DO
VALOR NO DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA ÉTICA AMBIENTAL
FLORIANÓPOLIS
2009
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ROSANE MARIA MOTA
DESAFIOS DA FILOSOFIA MORAL CONTEMPORÂNEA: A QUESTÃO DO
VALOR NO DESENVOLVIMENTO DE UMA TEORIA ÉTICA AMBIENTAL
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Filosofia, Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, Curso de
Mestrado, Centro de Filosofia e
Ciências Humanas.
Orientadora: Profª. Dra. Sônia T. Felipe
FLORIANÓPOLIS
2009
2
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Dedico esta dissertação
a todos que se entregam de corpo e razão
à luta pela preservação do meio ambiente
e abolição do uso e abuso de animais de toda espécie.
3
AGRADECIMENTOS
Aos professores do Departamento de Filosofia, em especial, Alessandro Pinzani,
Celso Reni Braida, Luiz Henrique de Araújo Dutra, Luis Felipe Belintani e Décio
Krause.
A professora Sônia Terezinha Felipe por sua orientação e respeito na recepção e
troca de ideias.
Ao servidor do Departamento de Filosofia, Manoel (Maneca) sempre muito
atencioso.
Aos colegas da graduação e pós-graduação em Filosofia, especialmente, Tânia
A.Kuhnen, Neide Köhler Schulte, Kleberson Jasper, Alberto Paulo Neto, Carmelita
Schulze e Rafael Mendonça pelas preciosas contribuições sobre a teoria de Paul Taylor,
durante a disciplina optativa Ética Prática 2007-2. Todas as discussões foram
importantíssimas para a construção deste texto.
Aos meus pais Alcides e Maria que sempre me apoiaram em tudo que busquei
realizar, às minhas irmãs Cristiane e Luciane, e minha querida sobrinha Taíssa.
Aos amigos Caroline Ferri, Fernando Coelho, Sandro Roberto Oliveira, Marisa
Baldo, Valdirene e Kassiano a quem tenho eterna admiração e carinho.
Finalmente, a Thiagus pelo amor, carinho e paciência durante esse percurso.
4
“Quando o homem aprende a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou
vegetal, ninguém precisa ensiná-lo a amar seu semelhante.”
Albert Schweitzer (Nobel da Paz – 1952)
5
SUMÁRIO
RESUMO..........................................................................................................................8
ABSTRACT.....................................................................................................................9
INTRODUÇÃO.............................................................................................................10
I. A PERSPECTIVA DE VALOR DA NATUREZA NAS CONCEPÇÕES ÉTICAS
SENCIOCÊNTRICAS..................................................................................................14
1.1 SERES MORALMENTE CONSIDERÁVEIS E VALIOSOS POR SI MESMOS NA CONCEPÇÃO UTILITARISTA
PREFERENCIAL..................................................................................................................18
1.1.1 Afastar a dor, buscar o prazer: um interesse universalizável........................19
1.1.2 O malefício da dor..........................................................................................21
1.1.3 O valor da vida consciente.............................................................................24
1.1.4 O valor instrumental da natureza..................................................................26
1.2 CONCEPÇÃO DE DIREITOS E VALOR PARA SUJEITOS-DE-UMA-VIDA.......................................33
1.2.1 Mais que meramente vivo...............................................................................33
1.2.2 O valor como fim............................................................................................35
1.2.3 Considerações sobre a natureza de uma ética ambiental..............................38
1.3 VALORES NA NATUREZA..............................................................................................47
1.3.1 O valor antecede o interesse..........................................................................48
1.3.2 A senciência como critério último de valor próprio......................................50
II. PERSPECTIVA BIOCÊNTRICA DE VALOR E CONSIDERAÇÃO MORAL
DA NATUREZA NA CONSTITUIÇÃO DE UMA ÉTICA AMBIENTAL............54
2.1 ESTRUTURA PARALELA DAS ÉTICAS HUMANA E AMBIENTAL................................................56
2.1.1 A simultaneidade da condição agente-paciente moral..................................56
2.1.2 Condições para a validade dos princípios éticos ..........................................59
2.1.2.1 Condições formais...................................................................................59
2.1.2.2 Condições materiais.................................................................................60
2.2 A PERSPECTIVA BIOCÊNTRICA.......................................................................................62
2.2.1 Seres humanos como membros da Comunidade de Vida da Terra................62
2.2.2 O mundo natural: um sistema de interdependência.......................................65
2.2.3 Centros teleológicos de vida..........................................................................65
2.2.4 O mito da superioridade humana...................................................................66
2.3 A ATITUDE DE RESPEITO PELA NATUREZA.......................................................................74
2.3.1 O conceito de bem-próprio............................................................................74
2.3.2 O conceito de bem inerente............................................................................76
2.4 REGRAS DE CONDUTA, CARÁTER E VIRTUDES DO SISTEMA ÉTICO-AMBIENTAL........................79
2.5 DILEMAS MORAIS E PRINCÍPIOS PRIORITÁRIOS..................................................................82
III. CRÍTICAS, OBJEÇÕES E OUTRAS PERSPECTIVAS PARA A ÉTICA DO
RESPEITO PELA NATUREZA..................................................................................89
3.1 INDIVIDUALISMO ALTERNATIVO ....................................................................................90
3.1.1 Interesse considerável moralmente................................................................91
3.1.2 Preservação e respeito pelas espécies...........................................................93
3.1.3 O bem da espécie: um conceito estatístico.....................................................94
3.2 O PROBLEMA DA JUSTIFICAÇÃO NA ÉTICA DO RESPEITO PELA NATUREZA..............................96
3.2.1 Perspectiva antropocêntrico-biocêntrica.......................................................98
3.2.2 A rede de interdependência..........................................................................100
3.2.3 Organismos buscam seu próprio bem..........................................................101
6
3.2.4 A difícil aceitação da igualdade biocêntrica...............................................103
3.3 A RESISTÊNCIA ANTROPOCÊNTRICA EM FAVOR DA SUPERIORIDADE HUMANA.......................106
3.3.1 O valor da vida não- humana......................................................................107
3.3.2 Tipos de vida................................................................................................110
3.3.3 Respeito versus direito.................................................................................112
3.3.4 A insustentável ideia de superioridade humana..........................................115
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................124
7
MOTA, Rosane Maria. Desafios da filosofia moral contemporânea: a questão
do valor no desenvolvimento de uma teoria ética ambiental. 2009. Dissertação
(Mestrado em Filosofia na área de Ética e Filosofia Política) Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis. Orientadora: Profª. Sônia T. Felipe, Dra.
Resumo
Este trabalho apresenta uma discussão das principais questões e polêmicas
contemporâneas que envolvem o desenvolvimento de uma ética ambiental a partir das
perspectivas de alguns importantes filósofos: o abolicionista-animalista Peter Singer,
que somente acredita no desenvolvimento de uma ética ambiental baseada no interesse
dos seres sencientes; Tom Regan, outro abolicionista que compartilha em parte a crença
de Singer, considera insustentável a defesa de uma ética ambiental baseada
exclusivamente num caráter instrumental para a satisfação de interesses senciocêntricos;
Holmes Rolston III com a perspectiva de valores na natureza questiona, principalmente,
a concepção de ética ambiental proposta por Singer; numa perspectiva não
antropocêntrica, Paul Taylor, filósofo biocentrista, propõe uma ética ambiental de
respeito pela natureza baseada nos conceitos de bem-próprio e bem inerente das coisas
vivas silvestres. Contudo, as velhas concepções são sempre muito resistentes ao que é
novo. Da mesma forma que atrai simpatizantes, a teoria de Taylor não permanece isenta
às críticas. Entre seus simpatizantes, Nicholas Agar propõe que o individualismo seja
substituído pela consideração do interesse das espécies em se preservar. Entre seus
críticos, Gene Spitler contribui positivamente com observações contundentes sobre um
dos principais elementos constitutivos de sua ética: a interdependência das coisas vivas
no ecossistema planetário. Louis G. Lombardi usa os conceitos de bem inerente e
bem próprio para reescrever a ideia de superioridade humana. Todas as questões
refletem a polêmica na proposição de um critério válido capaz de justificar o
reconhecimento do valor da vida não-humana em si mesma e o desenvolvimento de
uma concepção aceitável de ética ambiental.
Palavras-chave: ética ambiental, bem próprio, bem inerente, vida humana, vida não-
humana, superioridade humana.
MOTA, Rosane Maria. Challenges of Contemporary Mral Philosophy: The
Question of Value in Developing a Theory of Environmental Ethics. 2009.
Dissertation (Master’s Degree in Philosophy Ethics and Moral Philosophy) Federal
University of Santa Catarina, Florianópolis. Professor: Sônia T. Felipe, PhD.
Abstract
This paper presents a discussion of the main contemporary issues and controversies
about the development of environmental ethics from the perspective of some major
philosophers: the abolitionist-animal Peter Singer, who defends the developing of an
environmental ethics based only on the interests of sentient beings; Tom Regan, another
abolitionist who shares some of Singer’s point of view, considers unsustainable the
defense of an environmental ethics based solely on a character instrumental to the
satisfaction of interests sentiocentrics; Holmes Rolston III criticizes the concept of
environmental ethics proposed by Singer, mainly, because he has a view of nature
values from a non-anthropocentric perspective; the biocentrist philosopher Paul Taylor
proposes an environmental ethics of respect for nature based on the concepts of good of
its own and the inherent worth of wild living things. However, the old conceptions are
always very resistant to what is new. The Taylor’s theory has both sympathizers as well
critics. Among his sympathizers, Nicholas Agar proposes that individualism is replaced
by the self-preservation interest of the species. Among its critics, Gene Spitler
contributes positively with remarkable observations on one of the main components of
his ethics: the interdependence of living things in the planetary ecosystem. For other
hand, Louis G. Lombardi employs the concepts of inherent worth and good of its own to
review the idea of human superiority. All questions reflect the controversy in the
proposal of a valid criterion that can be able to justify the recognition of the value of
non-human life in itself and the development of an acceptable conception to
environmental ethics.
Keywords: environmental ethics, good of its own, inherent worth, human life, non-
human life, human superiority.
Introdução
A ética ambiental é um campo de investigação recente do pensamento ético
contemporâneo e um dos mais polêmicos. O ser humano, apenas tardiamente, começou
a prestar atenção às questões que envolvem suas ações destrutivas para com o meio
ambiente. Inicialmente, muitos filósofos têm dedicado especial atenção ao que acontece
com os animais, sejam aqueles que se tornaram produtos da biocultura ou que direta ou
indiretamente sofrem com a interferência humana. Seu objetivo principal é limitar o
avanço humano naqueles escassos ambientes em que a vida silvestre de animais e
plantas ainda pode desenvolver-se a seu próprio modo. O ser humano precisa rever e
transformar sua perspectiva de mundo e o seu lugar nele.
Além da resistência dos pensadores da tradição antropocêntrica que não
consideram possível, tampouco necessário, o desenvolvimento de uma ética para o meio
ambiente, aqueles que se dedicam a discuti-la divergem em muitos pontos quanto aos
critérios capazes incluir a vida silvestre na consideração e respeito moral.
As questões ambientais envolvem essencialmente refletir sobre os danos causados
ao longo dos anos pelos seres humanos e sua cultura à natureza e às outras formas de
vida. São muitos os desdobramentos dessa história de uso e abuso de animais, dos
recursos indispensáveis a manutenção da vida, do desmatamento de florestas inteiras
que implicam nos distúrbios do clima, no ciclo das estações do ano, consequentemente
na produção de alimentos (grãos) entre outras consequências decorrentes dessas ações.
No primeiro capítulo, aspectos do pensamento ético abolicionista-animalista são
tratados com atenção especial para as concepções de Peter Singer e Tom Regan. Os
elementos principais dessas concepções, com respeito à questão do valor e do status dos
animais sencientes no âmbito das considerações morais e seu alcance na consideração
de limites das ações humanas para com os animais e a natureza.
A proposição do princípio de igual consideração de interesses semelhantes de
Singer, fundamentada na capacidade de sofrer com a dor, busca justificar a inclusão no
âmbito das considerações morais de todos os seres dotados de senciência. Apesar da
amplitude desse critério, o princípio da igual consideração de interesses de seres
sencientes acaba excluindo da consideração moral parte significativa de seres vivos.
Com relação às questões ambientais, são apresentadas as dúvidas de Singer
quanto à possibilidade de se transpor à barreira da senciência quando está em questão
atribuir valor não-instrumental a natureza. Singer admite atribuir somente esse valor as
coisas que não satisfazem o critério da senciência. O valor intrínseco é aplicável apenas
àqueles seres capazes de sofrer com a degradação do ambiente onde vivem e dos
recursos necessários a sua sobrevivência.
A preservação da natureza, na concepção de Singer, também deve contemplar a
consideração do interesse das gerações que habitarão a Terra no futuro em encontrar um
ambiente saudável e adequado para o seu pleno desenvolvimento.
A posição de Singer em relação ao desenvolvimento de uma ética ambiental lhe
rende muitas críticas. Entre elas, a de Holmes Rolston III rejeita a ideia de atribuir a
natureza apenas um valor instrumental, em virtude de ser necessária ao interesse de
sobrevivência dos seres sencientes, sem, no entanto, ter valor por ela mesma.
Tom Regan e sua perspectiva ética de direitos morais para os animais compartilha
com Singer da dúvida sobre à possibilidade de se transpor o limite da senciência,
quando o assunto envolve considerações sobre valor. O conceito de sujeitos-de-uma-
vida, objeto da consideração moral e de valor inerente em sua teoria, denota subjacente
recurso do autor a ideia de singularidade da vida consciente ou autoconsciente. Mas, os
critérios apresentados por Regan para definir sujeito-de-uma-vida parecem não oferecer
maior amplitude ao âmbito da consideração moral. Em comparação ao critério
apresentado por Singer, o de Regan parece restringir ainda mais a incursão de seres não-
humanos na comunidade moral.
Na discussão das questões ambientais são apresentadas as considerações de
Regan quanto ao que julga ser necessário para o desenvolvimento de uma ética
ambiental genuína: conceder valor diretamente à natureza. O autor é um crítico da
tentativa dos teóricos tradicionais antropocêntricos de desqualificar o desenvolvimento
de uma ética ambiental desvinculada do aspecto instrumental. Os antropocentristas
consideram impossível e, mesmo, desnecessário esse esforço, uma vez que as questões
ambientais podem ser suficientemente tratadas, a partir da ideia de interesse, sejam
esses dos seres sencientes ou, especialmente, dos humanos.
Os principais argumentos dessa tradição, contrária à fundamentação de uma ética
ambiental que atribua valor diretamente à natureza, são examinados por Regan e
considerados insuficientes para desqualificar o esforço de pensar uma ética ambiental,
cujo valor não se vincula a interesses. O autor considera importante numa ética
ambiental buscar um critério capaz de justificar o valor da natureza em si mesma.
No segundo capítulo a teoria ética ambiental biocêntrica de Paul Taylor é
apresentada como uma proposta que busca justificar o valor próprio da natureza. Em
sintonia com a idéia de Regan e inspirado pelo seu conceito de valor inerente (inherent
value), Taylor apresenta sua versão de bem inerente (inherent worth). Diferentemente
de Regan, o autor considera dignos desse valor somente àquelas coisas vivas que
possuem um bem próprio, cuja realização é própria do seu modo singular de vida,
delimitando um novo âmbito para a consideração e respeito moral.
Taylor desenvolve a ética do respeito pela natureza em torno de quatro pontos que
considera centrais em sua teoria: 1) a perspectiva biocêntrica de natureza; 2) a ideia de
interdependência entre as formas de vida nos ecossistemas; 3) seres humanos e não-
humanos na situação de membros da comunidade de vida da Terra; e 4) a negação da
superioridade humana.
Além disso, o autor dedica-se a enumerar alguns princípios que considera
prioritários na tentativa de resolver conflito de interesses, decorrentes da relação entre
seres humanos e as outras formas de vida. Esses princípios são associados a uma série
de virtudes as quais Taylor julga capazes de dotar os seres humanos com a boa vontade
para adotar a atitude de respeito pela natureza.
No terceiro capítulo, são apresentadas as críticas de três autores a teoria de Taylor:
Nicholas Agar, Gene Spitler e Louis G. Lombardi. Cada um deles apresenta objeções e
contribuições que proporcionam reflexões importantes para o entendimento da teoria de
Taylor.
Agar, mais simpatizante que crítico da igualdade biocêntrica, propõe uma
alternativa ao individualismo de Taylor quanto à consideração do bem próprio, singular
aos modos de vida das coisas vivas silvestres.
Filiado à perspectiva de preservação de espécies, Agar apresenta em substituição
ao conceito de bem próprio, o de meta-representacional, que julga capaz de fundamentar
a consideração moral de espécies, ao invés de indivíduos exclusivamente. Para o autor,
indivíduos expressam interesses característicos da espécie a qual pertencem.
Spitler, por sua vez, aponta inconsistências nos argumentos apresentados por
Taylor, em cada um dos pontos centrais que constituem sua proposta de ética ambiental.
Spitler aponta problemas principalmente quanto (1) a possibilidade de abandonar a
perspectiva antropocêntrica como visão humana de mundo, (2) no reconhecimento da
interdependência entre as formas de vida, ao mesmo tempo em que humanos são
considerados dispensáveis dessa relação sem qualquer prejuízo para o desenvolvimento
da vida dos outros organismos constituintes do ecossistema planetário, e (3) na
possibilidade de se negar à superioridade humana.
O autor é bastante consistente em suas observações fazendo Taylor repensar
algumas considerações com respeito à participação humana na relação de
interdependência entre as espécies no ecossistema planetário.
Por fim, Lombardi apresenta uma releitura da superioridade humana com base no
conceito de bem inerente proposto por Taylor. Os argumentos de Lombardi
fundamentam-se principalmente na ideia de variedade de capacidades dos diferentes
tipos de vida, no processo de busca e realização de seu bem próprio. O fato de seres
humanos possuírem uma variedade maior de capacidades, algumas dessas distinguindo-
os significativamente das outras formas de vida, justificariam a consideração do bem
inerente dentro de uma escala, cujo bem seria maior ou menor, conforme a variedade de
capacidades com as quais cada tipo de vida realiza seu bem próprio.
Taylor oferece respostas bastante consistentes às objeções de seus colegas. As
considerações de Agar não diferem muito do que o autor propõe em sua ética.
Considerações sobre o bem de espécies acabam esbarrando” no bem do indivíduo em
primeiro lugar.
Quanto às objeções de Spitler, especialmente as observações sobre a ideia de
interdependência, Taylor reconhece que comete alguns exageros em sua afirmação
sobre a desnecessária presença e, mesmo, benéfica ausência dos humanos no
ecossistema planetário.
em relação às críticas e intenções de Lombardi, Taylor apresenta razões para
negar qualquer possibilidade de reeditar a superioridade humana, a partir do conceito de
gradação do bem inerente. Escala cujos níveis são estabelecidos de acordo com a
variedade ou complexidade de capacidades apresentadas pelos diferentes tipos de vida.
Taylor não admite que o bem inerente da coisa viva que busca seu bem, de acordo
com seu modo de vida, seja graduado, pois esse bem é próprio da vida singular que ele
ou ela é.
Todas essas discussões proporcionam uma ampla reflexão filosófica sobre crenças
arraigadas, costumes, interesses antropocêntricos subjacentes e possibilidades de
mudança da visão de mundo, bem como das relações humanas com todas as outras
formas de vida que ainda se encontram fora do âmbito das considerações morais, de
valor e respeito.
I. A perspectiva de valor da natureza nas concepções éticas
senciocêntricas
É inegável que a ética deixou de ser exclusivamente um campo de investigação
das relações entre humanos. As transformações que os seres humanos provocaram no
panorama da Terra ao longo de sua história motivaram preocupações quanto ao futuro
do planeta e dos seres que nele vivem.
Os reflexos do desenvolvimento da cultura industrial são percebidos na extinção
de animais, poluição dos recursos não renováveis, aquecimento global, no clima e na
produção de alimentos, nas catástrofes naturais, entre outras ainda em estudo. Todas
essas questões, até bem pouco tempo, não constavam na pauta de prioridades das
grandes economias mundiais.
O relatório divulgado pelo IPCC/ONU
1
(Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas) mudou esse panorama. As
nações economicamente mais ricas foram alertadas a repensar seus modelos econômicos
na tentativa de reverter, ou ao menos refrear, o quadro atual das transformações no
planeta. Toda essa preocupação repentina dos órgãos governamentais, contudo, nos faz
suspeitar que a dimensão do problema seja muito maior.
É fato que as transformações provocadas no planeta acarretam problemas atuais
urgentes. Contudo, o debate em torno dos problemas do clima e dos desafios da
preservação da natureza, a discussão de fundamentos sólidos, capazes de promover
mudanças na atitude humana explorativa, não acontecem com a mesma urgência.
Uma transformação na perspectiva das relações humanas com a natureza envolve
refletir e discutir eticamente uma nova postura, com a substituição dos velhos
paradigmas da moral tradicional antropocêntrica que têm mantido fora das
considerações morais todas as outras formas de vida e um número significativo de seres
humanos, por outros que sejam capazes de incluir o maior número de seres, ou mesmo
toda a comunidade de vida da Terra.
Diante do novo cenário no qual o planeta atualmente se encontra, não é mais
admissível para os humanos orientarem-se por uma ética que limita a consideração
1
Divulgado em 02/02/2007, na cidade de Paris (França), o Relatório do IPCC/ONU “Novos Cenários
Climáticos” alerta para as transformações drásticas que o planeta vem sofrendo ao longo dos anos que
influenciarão diretamente nas condições climáticas futuras, ocasionadas, principalmente, pelas emissões
de gases poluentes na atmosfera, resultado do consumo de combustíveis fósseis pelos humanos.
Disponível em: www.ecolatina.com.br. Acessado em: 19/05/2008.
moral e de valor somente a sua forma de vida, enquanto atribui às outras, apenas valor
instrumental, consideradas unicamente como meios para satisfação de suas necessidades
e interesses. As discussões sobre a ética devem ser capazes de incluir as formas de vida
constituintes do ecossistema global.
Alguns adeptos das concepções de ecologia profunda e respeito pela vida,
afirmam que todas as formas de vida vivem na Terra uma relação de interdependência.
O que afeta um grupo para o bem ou para o mal, pode igualmente trazer consequências
boas ou más para outros.
2
Essas novas perspectivas éticas não admitem nem reconhecem justificativas que
excluam do âmbito moral as discussões em torno das relações humanas com o meio
ambiente natural e o seu dever de preservá-lo. Não se pode admitir que a ética ignore as
atuais consequências das ações e relações humanas para com o meio ambiente e
continue ainda a guiar-se por velhos paradigmas como racionalidade e linguagem para
reconhecer que alguém seja digno de consideração moral.
A humanidade vive novos tempos e necessita buscar novos critérios, capazes de
fundamentar solidamente uma mudança de perspectiva na interrelação com o meio
ambiente, que permita o desenvolvimento de uma ética global, valorizando a natureza
não como instrumento de satisfação das vontades e desejos humanos, mas, por ela
mesma. É inadmissível ignorar que os humanos compartilham com todos os outros seres
vivos as mesmas condições e exigências de sobrevivência.
Os éticos defensores dos animais são precursores no esforço para ampliar o
âmbito da moralidade
3
. As questões ambientais são desdobramentos dessa busca, pois
objetivam encontrar um critério capaz de incluir nas considerações morais, tanto os
animais, quanto outras formas de vida que compõem o ecossistema da Terra.
Contudo, questões envolvendo o meio ambiente natural e as formas de vida que o
constituem não são discutidas dentro de uma mesma perspectiva por éticos
2
Kenneth Goodpaster, Aldo Leopoldo, Freya Mathews, Holmes Rolston III, Paul Taylor, Albert
Schweitzer, George Session, Arne Naess, Val Plumwood, Richard Sylvan, Bill Duvall, Lawrence
Johnson, James Lovelock defendem a ideia de interdependência nas relações entre os seres vivos no
ecossistema planetário. Peter Singer faz referência às concepções defendidas por eles em Ética Prática,
São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 280-304 (no capítulo dedicado ao meio ambiente)
3
Humphry Primatt em The Duty of Mercy, já no século XVIII chamava a atenção para o sofrimento dos
animais. Apud FELIPE, Sônia T. “Fundamentação ética dos direitos animais: O legado de Humphry
Primatt”. Revista Brasileira de Direito Animal 1. Salvador 2006a: Instituto de Abolicionismo Animal. Da
mesma forma, Jeremy Bentham em, Introduction to the Principles of Morals and Legislation, chama a
atenção sobre ser a capacidade de sofrer dos animais mais relevante moralmente que o fato de não
poderem raciocinar ou falar. Apud SINGER. Ética Prática. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 66-
7.
ambientalistas e por defensores dos animais
4
. divergências em seus argumentos,
quanto aos critérios capazes de fundamentar uma concepção de valor que possibilite o
desenvolvimento de uma ética ambiental genuína.
5
De um lado, os defensores dos animais consideram duvidosa a possibilidade de se
transpor à barreira da sensibilidade e consciência para afirmar que algo tem valor por si
mesmo e merece consideração moral. Por outro lado, os ambientalistas insistem que
limitar o valor aos critérios da consciência e sensibilidade restringe a consideração
moral aos seres humanos que satisfazem essas condições e a uns poucos animais,
deixando de fora todas as outras formas de vida.
Nesse capítulo, o principal objetivo será apresentar algumas concepções de valor
e a plausibilidade de sua adoção para a ampliação da fronteira da moralidade, frente à
concepção moral tradicional. Em especial as contribuições de Peter Singer e Tom Regan
para uma teoria ética abolicionista dos maus-tratos e uso de animais para fins humanos,
bem como suas considerações sobre a possibilidade de desenvolvimento de uma ética
ambiental capaz de orientar as relações humanas com as outras formas de vida que
igualmente constituem o ecossistema da Terra.
Entre os animalistas, Peter Singer defende uma postura mais conservadora com
respeito às questões ambientais. Sua concepção de ética ambiental se limita ao interesse
dos seres sencientes. Tom Regan, por outro lado, apresenta fortes argumentos para
desqualificar a tentativa dos antropocentristas e senciocentristas de justificar a
impossibilidade e desnecessidade de se desenvolver uma ética que postule valor por si
mesmo, nos objetos naturais e na vida destituída de consciência. Esses defendem que a
própria tradição moral é capaz de dar conta dessas questões no interesse da vida
humana.
Também serão tratados, em linhas gerais, os limites da sensibilidade e consciência
como critérios que permitam avançar as discussões éticas para as relações com o meio
ambiente natural.
4
Alguns dos principais argumentos e a ideia central de concepções éticas ambientais como a liberal de
Avner De-Shalit, Paul Hawken, Terry L. Anderson e Donald R. Leal, a libertária ecotage Christopher
Manes e o biorregionalismo de Gary Snyder, e ainda o ambientalismo socialista de James O’Connor e
John Clark podem ser conhecidos nos ensaios de Sílvio Negrão para o Curso de Extensão em Ética e
Justiça Ambiental, realizado na UFSC, no primeiro semestre de 2006. NEGRÃO, Sílvio. “Estratégias de
argumentação da filosofia ambientalista liberal, libertária e socialista” e “Biorregionalismo, ética e justiça
ambiental”. Ethic@ 5, Florianópolis, 2006a, p. 83-93 e 185-93 respectivamente.
5
Peter Singer em Ética Prática defende uma ética ambiental baseada no valor instrumental da natureza
para a satisfação dos interesses dos seres dotados de sensibilidade e consciência. Tom Regan em “The
Nature and Possibility of an Environmental Ethics”, ao contrário, admite a necessidade de considerar
valor inerente aos objetos naturais.
Os ambientalistas, em geral, criticam as concepções antropocêntricas e
senciocêntricas de ética. Holmes Rolston III, entre eles, é um dos principais críticos da
proposta de Singer em limitar a consideração moral e de valor à capacidade da
senciência. Rolston III não considera a senciência um critério suficientemente forte para
estabelecer uma linha divisória entre os consideráveis e os não-consideráveis
moralmente, nem que isso seja necessário. Em contrapartida, defende que o valor da
natureza encontra-se nela mesma, e, embora, conte com o interesse dos humanos, seu
valor é independente desse interesse.
Importante destacar que Singer, Regan, Rolston III não apresentam claramente
suas concepções de natureza. Todos parecem entender natureza como fonte de
sustentação da vida e bem-estar de todos os seres, humanos ou não. Relacionada a tudo
que não seja produto da manipulação humana, a natureza é vista como uma espécie de
continuidade da vida desde seu surgimento no planeta, cuja intervenção humana pode
provocar a perda dessa ligação com o passado. Em Singer essa ideia parece bem clara
quando o autor escreve:
Uma floresta virgem é o produto de todos os milhares de anos que se passaram
desde o início da vida em nosso planeta. Se ela for derrubada, outra floresta pode
crescer em seu lugar, mas a continuidade terá sido rompida. [...] uma vez a
floresta derrubada ou inundada, a sua ligação com o passado estará perdida para
sempre.
6
Por outro lado, Singer compartilha com Bill McKibben da ideia de um mundo
pós-natural. Nesse, a intervenção humana, principalmente a destruição da camada de
ozônio e seus desdobramentos no clima, colocaram um divisor de águas na história do
planeta em que natureza no sentido de continuidade não existe mais.
7
A crítica de Rolston III à proposta de Singer, e as considerações de Regan sobre a
insuficiência dos argumentos dos antropocentristas e dos senciocentristas para
desqualificar a tentativa dos teóricos éticos ambientalistas, instigam a reflexão e a busca
de critérios que não estejam conectados a características factuais físicas ou psicológicas
de certos indivíduos, limitando a consideração moral e de valor a uns poucos.
6
SINGER, 1998, p. 284-85.
7
McKIBBEN, Bill. The End of Nature. Nova York: 1989, p. 58 e 60. Apud. Idem, p. 288-89.
1.1 Seres moralmente consideráveis e valiosos por si mesmos na concepção
utilitarista preferencial
Na tradição filosófica, os critérios para um indivíduo pertencer ao âmbito da
moralidade são bem claros: linguagem e racionalidade. Segundo Sônia T. Felipe, na
tradição, somente aqueles seres capazes de expressá-los são dignos de valor e
consideração moral. Para a autora, no entanto, esses padrões tradicionais fracassaram na
fundamentação de propostas éticas, sempre que se buscou neles uma orientação para
guiar decisões e ações que pudessem afetar interesses de seres vivos não-humanos.
8
Do ponto de vista da moral tradicional antropocêntrica, todas as formas de vida
existem para servir à espécie humana. Essa tese, segundo Felipe, concorre para o
fracasso dessa concepção porque não impõe qualquer restrição às ações dos humanos,
privilegiados com a permissão de apropriar-se das demais espécies vivas.
Nas três décadas mais recentes da história humana, o erro da filosofia moral
tradicional tem se mostrado mais evidente. Felipe defende, por conta dessa tradição
influente nas culturas ao redor do planeta, que a espécie humana enfrenta um dilema
moral
9
: se valor na vida de um determinado ser, então provavelmente esse valor
também está presente na vida de outros, sejam eles animais ou vegetais, não apenas nos
seres pertencentes à espécie humana. Se o valor é da vida, então a configuração
biológica ou de aparência não deve contar moralmente. O corpo não é a causa da vida,
mas uma configuração específica na qual a vida se expressa.
Se o valor moral é um valor invariável, e a vida é o que determina esse valor, para
Felipe, seja na configuração humana, animal ou vegetal, essa vida tem valor moral.
Partindo da ideia de que a ética deve servir para preservar o que tem valor, nos seres que
podem ser afetados por nossas ações, continua a autora, então não como defender
critérios discriminadores para preservar o mesmo valor, somente porque a aparência ou
forma de expressão na qual a vida se manifesta não é padronizada por nenhum dos
critérios que elegemos tradicionalmente.
10
Segundo Felipe, o que parece simples na fala, acaba por detonar a concepção do
valor da vida na perspectiva hierárquico-antropocêntrica, defendida pela filosofia moral
tradicional. Na contracorrente da moral vigente, que investigar os limites da
8
FELIPE, Sônia T. “Da Considerabilidade Moral dos Seres Vivos: a bioética ambiental de Kenneth E.
Goodpaster”. Ethic@ 5, Florianópolis, 2006b, p. 105.
9
Idem, p. 106.
10
Idem, p. 106.
argumentação tradicional e buscar redefinir a ética, caso se tenha o intuito de tornar
coerente com um mesmo princípio moral a interação dos seres humanos uns com os
outros, e desses com as demais espécies vivas.
11
1.1.1 Afastar a dor, buscar o prazer: um interesse universalizável
A inclusão dos animais nas discussões morais é um problema que tangencia o
pensamento filosófico muito tempo. Um dos pioneiros no discurso de defesa dos
animais é Humphry Primatt, teólogo inglês, que em 1776 escreveu The Duty of Mercy, e
influenciou todo o pensamento sobre a abolição dos maus-tratos aos animais. Felipe
trouxe para o conhecimento dos filósofos brasileiros as ideias influentes desse autor que
defende o dever moral de compaixão humana pela dor e sofrimento dos animais brutos,
vinculando o refinamento do homem ao seu dever de não tripudiar sobre as diferenças e
singularidades dos vulneráveis e indefesos.
12
Para Primatt, a razão pode tornar-se pervertida não apenas no trato com outros
humanos, em condições vulneráveis, mas, especialmente, no trato com os outros
animais,”
13
o sujeito moral precisa escolher entre ser coerente ou perverso, não havendo
inocência moral quando alguém, ciente de seu desvio, não segue o que sua razão indica
como correto. A dor é, na concepção de Primatt, uma experiência intrinsecamente má,
seu malefício é independente de quaisquer peculiaridades sociais, intelectuais ou de
aparência, sequer depende do pensamento, razão ou linguagem, pois as diferenças entre
os seres capazes de sentir, sejam elas quais forem, não aumentam nem diminuem a
sensibilidade à dor.
14
A tese de Primatt sobre ser a dor uma experiência intrinsecamente é a base do
princípio da igual consideração de interesses semelhantes na teoria ética de Peter
Singer. Atualmente, um dos mais importantes teóricos sobre a abolição dos maus-tratos
e uso de animais para fins humanos.
Para Singer, a existência de diferenças óbvias e significativas entre os humanos e
os outros animais não constituem obstáculos à proposição de um princípio básico de
11
FELIPE, 2006b, p. 106.
12
Apud. FELIPE, “O legado de Humphry Primatt”, 2006a, p. 211-13.
13
Idem, p. 215.
14
Idem, p. 217.
igualdade, que exija apenas consideração igual ao interesse dos animais em afastar de si
a dor que os impossibilita de buscarem sua sobrevivência.
15
Buscar a ampliação do âmbito da moralidade é o principal objetivo do autor. Ser
consciente da experiência de dor é o primeiro critério defensável para a consideração
moral e de valor em si mesmo.
Singer propõe analisar que tipo de interesse pode ser universalizável e,
conseqüentemente, considerado valioso por si mesmo, uma vez que tomar uma decisão
implica pesar igualmente os interesses semelhantes daqueles que serão afetados. Para o
autor uma concepção de ética deve buscar a universalidade de seus juízos. Sobre isso,
Singer escreve:
A ética se fundamenta num ponto de vista universal, o que não significa que um
juízo ético particular deva ser universalmente aplicável. [...] as circunstâncias
alteram as causas. [...] ao emitirmos juízos éticos, extrapolamos as nossas
preferências e aversões. De um ponto de vista ético, é irrelevante o fato de que sou
eu o beneficiário de, digamos, uma distribuição mais eqüitativa da renda, e você o
que perde com ela. A ética exige que extrapolemos o ‘eu’ e o ‘você’ e cheguemos
à lei universal, ao juízo universalizável, do ponto de vista do espectador imparcial,
ao observador ideal, ou qualquer outro nome que lhe dermos.
16
O critério utilitarista clássico, baseado no resultado das melhores consequências,
medido pelo saldo positivo do prazer em relação à dor, é substituído por Singer pelo
exame de todas as alternativas que irão nortear a escolha da melhor decisão. O objetivo
de Singer é favorecer interesses e preferências daqueles que serão afetados por essas
decisões.
17
Para se tomar uma decisão, primeiro é necessário definir quais interesses são
semelhantes aos interesses de quem age, a ponto de serem considerados de modo igual.
Para resolver essa questão, Singer apresenta uma noção de interesse que considera
fundamental para tratar das questões éticas na vida prática.
15
SINGER, Peter. “The Significance of Animal Suffering” In: BAIRD, Robert M; ROSENBAUM, Stuart
E. (Eds.) Animal Experimentation: The Moral Issues. NY: Amherst 1991, p. 57-66; Animal Liberation.
NY: HarperCollins Publishers, 2002, p. 1-23.
16
SINGER, 1998, p. 19-20.
17
Idem, p. 22.
Em primeiro lugar, uma noção de interesse universalizável precisa, segundo
Singer, satisfazer uma condição prévia que Jeremy Bentham apresenta em sua crítica à
base tradicional da igualdade, marginalizadora dos animais: “a questão não é saber se
são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de
sofrimento.”
18
Singer considera imprescindível antes de se adotar qualquer curso de
ação ou considerar qualquer outro interesse, prestar atenção em um interesse
fundamental: minimizar ou eliminar a dor e o sofrimento que certos seres preferem
afastar de si, a fim de buscarem o bem-estar e o prazer.
19
Para que nossas decisões sejam universalizáveis, Singer defende primeiramente
respeitar nos seres afetados a capacidade de sentir dor ou prazer, pois “a capacidade de
sofrer e de desfrutar as coisas é condição para se ter quaisquer outros interesses, antes
de se poder falar de interesses de um modo significativo.”
20
Se todos os seres dotados de sensibilidade e consciência têm preferências, então é
possível adotar a posição ética utilitarista preferencial como uma posição mínima,
segundo a qual podemos tomar decisões com base em nosso próprio interesse e
preferência pelo bem-estar e o prazer, ao invés da dor. Partindo desse ponto, Singer
propõe a revisão de alguns pressupostos éticos tradicionais, entre eles, aqueles que
dizem respeito às considerações sobre a igualdade, no caso dos próprios seres humanos,
dos animais e do meio ambiente natural.
1.1.2 O malefício da dor
Singer reconhece que o tradicional princípio, “todos os seres humanos são
iguais”, contribuiu significativamente para inaugurar uma nova postura diante das
velhas questões humanas tais quais as das diferenças raciais e sexuais. Mas, o autor
defende que um outro princípio, mínimo, que leve em conta o interesse dos seres em
manter afastada de si as experiências dolorosas e desagradáveis pode ser mais
abrangente. Da perspectiva dos seres conscientes, deve-se considerar para o agir um
princípio que leve em conta o interesse semelhante nos seres em afastar de si a dor. Um
princípio básico é o princípio da igual consideração de interesses semelhantes.
18
BENTHAM, Jeremy. Introduction to the Principles of Morals and Legislation, Cap. 18, seção 1, nota
de rodapé. Apud. SINGER, 1998, p. 66-7.
19
A ideia central do utilitarismo clássico é maximizar (aumentar) o prazer e minimizar (diminuir) a dor.
No cálculo das consequências decorrentes de nossas ações o saldo entre dor ou sofrimento e prazer deve
ser favorável ao prazer.
20
SINGER, 1998, p. 67.
Qualquer outro argumento que tente defender maior relevância para os interesses
humanos é arbitrário, fundamentado unicamente num preconceito especista
21
humano
com relação às outras espécies. Para Singer:
A essência do princípio de igual consideração significa que, em nossas
deliberações morais, atribuímos o mesmo peso aos interesses semelhantes de
todos os que são atingidos por nossos atos. Isso significa que, se apenas X e Y
viessem a ser atingidos por um possível ato, e que, se X estiver mais sujeito a
perdas e Y mais sujeito a vantagens, melhor será deixar de praticar o ato. Se
aceitarmos o princípio da igual consideração de interesses, não poderemos dizer
que é melhor praticar o ato, a despeito dos fatos descritos, porque estamos mais
preocupados com Y do que com X. Eis a que o princípio realmente equivale: um
interesse é um interesse, seja lá de quem for esse interesse.
22
Admitindo a igual consideração de interesse como princípio básico para a
igualdade, Singer não admite mantê-lo restrito ao âmbito das relações humanas. O autor
defende a necessidade de ampliar as considerações morais a outros seres. Assim como
Primatt, o autor entende que os animais, analogamente aos humanos, possuem
sensações de dor e são conscientes delas. Até onde se pode fazer comparações entre o
comportamento humano e o dos animais, nas situações que provocam dor e sofrimento,
eles também preferem o bem-estar e buscam afastar de si qualquer coisa que lhes cause
desconforto.
O princípio de igual consideração de interesses oferece uma base sólida para
orientar as relações entre os seres humanos; aceitá-lo implica igualmente no dever de
aplicá-lo às relações com os seres que não pertencem à espécie humana, mas também
são capazes de sofrer. Singer entende que essa visão estabelece uma nova linha divisória
para o âmbito das considerações morais.
21
Por “especistas” Singer entende “todos aqueles que atribuem maior peso aos interesses de membros de
sua própria espécie quando um choque entre os seus interesses e os interesses dos que pertencem a
outras espécies. Os especistas humanos não admitem que a dor é tão quando sentida por porcos ou
ratos como quando são os seres humanos que a sentem”. SINGER, 1998, p. 68. O termo especismo é uma
contribuição de Richard Ryder para definir o preconceito sofrido pelos animais. Para o autor não é
justificável o tipo de tratamento discriminador dispensado aos animais, simplesmente por pertencerem a
outras espécies. Ryder dedica toda uma seção para tratar desse tipo de preconceito em Victims of Science.
the use of animals in reserch [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-
Vivisection Society Limited, 1983, p. 1-14. Texto traduzido para o português por Sônia T. Felipe. In:
Pensata Animal 16 - ano II. Outubro de 2008. Disponível em: Sentiens Defesa Animal:
www.sentiens.net. Acessado em: 10/11/2008.
22
SINGER, 1998, p. 30.
Para aqueles que ainda têm alguma dúvida quanto a essa possibilidade, os estudos
da biologia e psicologia demonstraram ao longo da história que diferenças entre seres
humanos e outras espécies não são tão profundas quanto se fazia crer. Singer enfatiza
que as novas descobertas da ciência sobre a estrutura genética dos seres vivos ajudaram
a sepultar velhos paradigmas da humanidade. Atualmente, nada justifica infringir dor a
um ser não-humano, cujo comportamento, semelhante ao dos humanos, demonstra que
ele busca desesperadamente evitá-la. Para Singer, o princípio da igual consideração
equivale à ideia de que “um interesse é um interesse, não importa de quem seja”.
23
Considerando um interesse mais específico, o alívio da dor, por exemplo, então: uma
dor é uma dor não importa quem a sofre. Sobre isso Singer escreve:
[...] a razão moral fundamental para o alívio da dor é simplesmente a
indesejabilidade da dor enquanto tal, e não a indesejabilidade da dor de X, que
pode ser diferente da indesejabilidade da dor de Y. [...] (M) esmo onde as dores
são iguais, outros fatores podem ser relevantes, sobretudo se outros forem
afetados. Se houvesse um terremoto, talvez concedêssemos prioridade ao alívio da
dor de um médico, de modo que ele pudesse cuidar das outras vítimas. Mas, em si,
a dor do médico conta uma vez, sem ter um peso maior. O princípio da igual
consideração de interesse atua como uma balança, pesando imparcialmente os
interesses.
24
Dessa perspectiva, as questões relativas à raça, sexo e espécie à qual certo
indivíduo pertence, sua configuração biológica, e outras formas de distinção arbitrárias
tornam-se irrelevantes para a consideração de interesses. Para Singer, o que conta são os
interesses, em si mesmos, pelo alívio da dor e do desconforto que possibilita a busca por
experiências prazerosas.
23
SINGER, 1998, p. 30.
24
Idem, p. 30-1
1.1.3 O valor da vida consciente
A razão mais óbvia, segundo Singer, para valorizar a vida de um ser capaz de
sentir prazer, ou dor, é o prazer que pode experimentar. Se valorizamos nossos próprios
prazeres, então o aspecto universal dos juízos éticos exige que a avaliação positiva
dessas experiências também seja ampliada para as experiências semelhantes de todos
aqueles que são capazes de experimentá-las
25
. Para o autor a morte é o fim de todas as
experiências agradáveis que um ser poderia ter. Consequentemente, o prazer que
poderia experimentar no futuro caracteriza-se como forte razão para defender o erro de
matar tais seres.
26
Uma questão importante surge dessa discussão: saber se a vida de um ser
consciente tem menos valor que a vida de um ser autoconsciente. Para Singer a questão
principal é saber se podemos aceitar uma hierarquização do valor de vidas diferentes.
Numa perspectiva menos antropocentrista e especista de alguns críticos, a questão é
admitir que o valor de cada vida tem igual peso, a partir do ponto de vista dos próprios
seres.
27
Singer discorda dessa perspectiva, somente admite defender tal raciocínio com
base em um fundamento neutro, a partir de um ponto de vista imparcial.
28
Apesar da dificuldade prática de se encontrar um fundamento neutro, Singer não
considera que esse seja um problema insolúvel. Seria suficiente, caso fôssemos capazes
de viver cada tipo de vida e fazer a comparação entre o valor de uma e outra.
Na verdade, Singer considera que essa possibilidade providencia um sentido para
a ideia de que a vida de certo tipo de animal tem mais valor do que a vida de outro. O
autor não considera possível defender que a vida de qualquer ser seja importantíssima
para ele, visto que numa situação de comparação pode-se assumir uma postura mais
objetiva, ou intersubjetiva.
Mas a capacidade de viver cada tipo de vida e depois poder escolher entre uma e
outra não corresponde a uma posição neutra. Isso fragiliza a tese de que todos os seres
vivos têm valor igual.
25
SINGER, 1998, p. 111.
26
Ibidem
27
A teoria do valor igual de cada coisa viva a partir de sua própria perspectiva é defendida por Paul
Taylor em, Respect for Nature, teoria central desse trabalho para a discussão de uma proposta ética que
amplie as considerações morais e de valor para uma gama significativa de seres vivos.
28
Idem, p. 115.
Singer discorda das críticas sobre ser especista a ideia de classificar o valor de
vidas diferentes, conforme alguma ordenação hierárquica.
29
Contudo, admite não ter
ideia de como resolver essa questão, reconhecendo que algumas comparações são muito
difíceis de realizar. Não fazemos ideia, por exemplo, se a existência de um peixe seria
melhor que a de uma cobra. Pois, dificilmente, reconhece Singer, nos deparamos com a
situação de sermos forçados a escolher entre matar uma cobra, ou um peixe.
30
Singer, entretanto, insiste que, quanto mais intenso o grau de autoconsciência e de
racionalidade, e mais ampla a gama de experiências possíveis, maior parece ser a
preferência por esse tipo de vida.
O autor, entretanto, constata que talvez não seja possível para o utilitarismo
defender tal tese, mesmo diante da tentativa de John Stuart Mill:
Poucas criaturas humanas consentiriam em ser transformadas em qualquer um dos
animais inferiores, caso lhes fosse feita à promessa de viverem plenamente todos
os prazeres de um animal; nenhum ser humano inteligente consentiria em tornar-
se um idiota, nenhuma pessoa instruída aceitaria ser transformada num ignorante,
nenhuma pessoa sensível e consciente gostaria de tornar-se egoísta e vil, ainda que
se conseguisse convencê-las de que o idiota, o ignorante ou o tratante vivem mais
satisfeitos com a sua sorte do que elas com as suas... É melhor ser um ser humano
insatisfeito do que um porco satisfeito; melhor ser Sócrates insatisfeito do que um
idiota satisfeito. E, se o idiota ou o porco têm uma opinião diferente, é porque
conhecem o seu lado da questão. A outra parte da comparação conhece os dois
lados.
31
Além de reconhecer que o argumento de Mill é fraco, visto que preferir a vida de
um ser humano à vida de um animal corresponde justamente a preferir a vida de um ser
humano inteligente à vida de um idiota, Singer também considera difícil conciliar esse
argumento com o utilitarismo clássico, pois não lhe parece verdadeiro que ser
inteligente implica em maior capacidade de ser feliz.
32
29
Louis G. Lombardi em, “Inherent Worth, Respect, and Rights”,defende uma proposta de hierarquização
do valor da vida. Ao mesmo tempo em que critica alguns pontos da teoria de Paul Taylor, Lombardi se
apropria de algumas ideias de seu colega para fundamentar uma gradação de valor conforme o tipo de
vida. A proposta desse autor será apresentada no capítulo final desse trabalho.
30
SINGER, 1998, p. 117.
31
MILL, John Stuart. Utilitarianism. Londres: M. Dent [1863] 1960, p. 8-9. Apud.Ibidem
32
Idem, p. 118.
Da perspectiva do utilitarismo preferencial, defender o argumento de Mill
dependeria do modo como comparamos as diferentes preferências de acordo com
diferentes graus de consciência e autoconsciência. Para o autor, não parece difícil
encontrar maneiras de classificar preferências distintas, mas reconhece que a questão
permanece em aberto.
33
1.1.4 O valor instrumental da natureza
Singer acredita que as discussões em torno de uma concepção de ética para o meio
ambiente não conseguem avançar para além dos limites tradicionais, sobretudo quando
estão em questão os critérios apresentados para fundamentar uma concepção de valor.
O autor é cético acerca de incluir na comunidade moral, seres não sencientes, de
quem não se pode afirmar terem interesses que possam ser considerados e valorizados
por si mesmos, de um modo significativo.
Para defender sua posição sobre a possibilidade de desenvolver uma ética
ambiental, Singer analisa algumas das principais correntes ambientalistas e enumera o
que considera serem as principais falhas dessas concepções quanto aos critérios
adotados para conceber valor na natureza de uma forma direta, sem que essa avaliação
dependa do interesse ou necessidade de alguém.
34
O discurso em defesa de seres que não satisfazem certos pré-requisitos para serem
incluídos na comunidade moral enfrenta muitas dificuldades. Encontrar um critério que
possibilite ampliar o âmbito da comunidade moral, incluindo os animais não-humanos,
revela-se ainda difícil e problemático. A dificuldade é ainda maior quando o objetivo é
encontrar um critério que inclua nessa comunidade objetos naturais, ou a natureza como
um todo.
A proliferação dos seres humanos, aliada aos subprodutos do crescimento
econômico é a nova ameaça de sobrevivência que Singer considera capaz de “varrer” do
planeta todas as formas de vida.
35
Mas nenhuma ética capaz de enfrentar iminente
ameaça foi ainda desenvolvida, lamenta o autor.
Partindo desse ponto de vista, Singer considera fácil estabelecer os contornos de
uma ética verdadeiramente ambiental. Essa ética consideraria duvidosa e errada toda
33
SINGER, 1998, p. 118.
34
Idem, p. 279-304.
35
Idem, p. 300.
ação desnecessariamente prejudicial ao meio-ambiente. Em linhas gerais o autor
descreve assim os contornos de sua proposta:
Em seu nível mais fundamental, essa ética incentiva a consideração dos interesses
de todas as criaturas sencientes, inclusive das gerações que habitarão o planeta
num futuro remoto. Acompanha-a uma estética da apreciação dos lugares naturais
não devastados pelo homem. Num nível mais pormenorizado, aplicável às vidas
dos que vivem nas grandes e pequenas cidades, essa ética desestimula a existência
de grandes famílias. [...] Uma ética ambiental rejeita os ideais de uma sociedade
materialista na qual o sucesso é medido pelo número de bens de consumo que
alguém é capaz de acumular. Em vez disso, ele avalia o sucesso em termos do
desenvolvimento das aptidões individuais e da verdadeira conquista da satisfação
e da realização. Incentiva a frugalidade, na medida em que esta se faz necessária
para a diminuição da poluição e para a certeza de que todas as coisas passíveis de
reutilização serão reutilizadas. Jogar fora, negligentemente, os materiais que
podem ser reciclados não passa de uma forma de vandalismo, ou de roubo de
nossa propriedade comum em termos dos recursos mundiais.
36
O povo ocidental é herdeiro de uma tradição antropocêntrica, originária de gregos
e hebreus. Segundo essa tradição, lembra Singer, o ser humano é o centro do universo
moral e o único a possuir as características para ocupar esse espaço.
37
No
desenvolvimento de uma ética ambiental, a tradição contribui com fortes argumentos
contra quaisquer ações que possam oferecer prejuízos à vida humana.
Contrariamente ao que defendeu na questão dos animais, com respeito às
discussões que envolvem a preservação da natureza, os efeitos de ações prejudiciais e
suas consequências para as futuras gerações, a importância de considerar o tipo de valor
36
SINGER, 1998, p. 301-02.
37
O autor faz referência aos hebreus que nos legaram através da Bíblia o relato de que o homem detém o
domínio sobre a Terra e todas as suas criaturas, uma espécie de licença para fazer o que quiser com os
outros seres que nela vivem. Esses relatos não consideram errado provocar medo, terror e morte às
criaturas da Terra, já que o próprio Deus dispôs desses recursos para demonstrar seu poder aos humanos e
mantê-los sob seu controle. Desse modo, como humanos que somos, feitos, “à imagem e semelhança de
Deus”, agimos de acordo com o que Ele determina, segundo Seu próprio exemplo. Durante o império
romano, o cristianismo incorporou e propagou elementos da cultura grega. Um exemplo é a visão de
natureza hierárquica, segundo a qual seres que possuem menos capacidades, existem como bens para
aqueles que são mais capazes racionalmente. Propagada por Aristóteles, tal ideia foi revisitada e reforçada
por Tomás de Aquino durante a Idade Média. Idem, p. 280-82.
que se deve atribuir ao meio ambiente, para o autor, são bastante significativas se
analisadas do ponto de vista da tradição.
Contudo, no âmbito das considerações sobre a preservação da natureza, não os
interesses humanos devem ser considerados. Também os interesses semelhantes de
todos os seres sencientes, de suas gerações presentes e futuras. Singer entende que uma
concepção ética que estabeleça como linha divisória à distinção moral entre seres
sencientes e não sencientes é mais sólida do que uma estabelecendo a distinção entre
coisas vivas e coisas inanimadas.
Mas as semelhanças entre o pensamento de Singer e a tradição moral se resumem
à consideração de interesses. É preciso ter em mente que o centro de seu universo
moral, até então ocupado exclusivamente pelos seres humanos, é substituído pelos seres
sencientes, proporcionando a inclusão, não de todos os seres humanos antes
selecionados pelos critérios da racionalidade e linguagem, como também um número
significativo de animais não-humanos no âmbito das considerações morais.
Em conformidade com o princípio de igual consideração, Singer afirma que os
contornos para uma ética verdadeiramente ambiental podem ser traçados com base na
consideração e valorização dos interesses dos seres sencientes, incluindo suas gerações
futuras.
Na avaliação de nossas ações com relação ao ambiente natural, alguns pontos são
considerados importantes pelo autor: 1) a preservação de lugares ainda não tocados pela
mão humana, para a apreciação dos que vivem nas cidades; 2) controle da natalidade
pelas próprias famílias, estimulando que permaneçam pequenas, evitando a
superpopulação, uma das principais causas da degradação da natureza decorrente da
produção desenfreada de bens de consumo; 3) desenvolvimento das aptidões, ao invés
da busca pelo sucesso através do acúmulo de bens, algo no sentido da valorização do ser
ao invés do ter; 4) mudança de postura quanto às extravagâncias, que levam a práticas
pouco aceitáveis do ponto de vista preservacionista.
38
A concepção de ética ambiental defendida por Singer tem como base a ideia de
uma vida frugal, sem extravagâncias, na qual não tem valor o prazer que provém da
prática de esportes que poluem ou agridem a natureza, a falta de cuidado com o lixo
38
Central nessa proposta é o reexame da concepção de extravagância. Vivemos em um mundo sob
pressão e, portanto, esta concepção não pode estar atrelada simplesmente à ideia de limusines ou
champanhes caríssimos. O autor salienta que as coisas as quais consideraríamos banais, poucos anos
atrás, podem ser vistas como extravagantes nos dias de hoje, tais como o uso de madeira proveniente de
florestas tropicais, produtos de papel descartável, passeios desnecessários de automóveis que contribuem
para o efeito estufa com a queima do combustível fóssil. SINGER, 1998, p. 302.
produzido e, principalmente, o consumo predatório. Essa frugalidade é um dos
principais critérios que Singer considera importante levar em conta para resolver, em
parte, o problema da degradação do meio ambiente natural. Ações eficazes de
preservação da natureza devem estar centradas no valor do ser humano como sujeito
moral, principal interessado em não ser ele próprio prejudicado, atribuindo à natureza
outro tipo de valor.
Para Singer, a igual consideração de interesses é um princípio capaz de oferecer
uma solução eficaz para as questões que envolvem o desenvolvimento de uma ética
ambiental, levando-se em conta não apenas os interesses humanos, mas de modo igual
os interesses semelhantes de todos os seres sencientes que habitam a Terra. Nessa conta
estão incluídas as considerações em relação às gerações futuras e a responsabilidade que
cabe aos humanos, agentes morais, de preservar a natureza.
Singer classifica em diretos e indiretos os deveres com respeito à natureza:
1) Direto, entende-se o dever com respeito aos seres nos quais é possível
observar alguma capacidade de sentir dor e prazer, repelir o que é doloroso,
buscar o que é prazeroso; a quem se agrega um valor por si mesmo, intrínseco;
2) Indireto, o dever com respeito aos recursos naturais, necessários à satisfação
de interesses fundamentais dos seres sencientes, frente a quem temos um dever
direto, e dos quais depende totalmente sua sobrevivência, atribuindo-se a esses
um valor instrumental.
Muitas são as dificuldades de se reconhecer que há em plantas e pedras algum tipo
de interesse. Em comparação a um animal capaz de ter certas experiências, Singer
considera que a ausência dessas características torna difícil atribuir a plantas e pedras
qualquer valor diretamente:
Uma pedra não tem interesses, pois não é capaz de sofrer. Nada que venhamos a
fazer-lhe poderá significar uma diferença para o seu bem-estar. Por outro lado, um
rato tem, inegavelmente, um interesse em não ser atormentado, pois os ratos
sofrerão se receberem esse tratamento.
39
O interesse em preservar o meio ambiente agrega o que Singer chama de valor
instrumental, vinculado à ideia de natureza como meio para se obter os necessários
recursos no interesse fundamental da sobrevivência. As concepções de ética ambiental
39
SINGER, 1998, p. 67.
que insistem em atribuir valor intrínseco à natureza são criticadas por Singer que
considera essencial, antes de qualquer coisa, estabelecer claramente a distinção entre
dois tipos de valores:
40
1) valor intrínseco: quando algo é bom ou desejável por si mesmo;
2) valor instrumental: quando algo é valioso como meio para a obtenção de
algum fim.
Quando o assunto envolve a consideração de valor intrínseco, Singer duvida da
possibilidade de se transpor à fronteira da senciência.
41
Alguns autores defendem a vida como valiosa em si mesma. Entre eles, Albert
Schweitzer e a concepção de reverência à vida”, em que o autor defende que a vida
tem um desejo de viver, existindo em meio à vida que quer viver. Concepção seguida
em parte por Paul Taylor, para quem toda coisa viva busca o seu próprio bem. Para
Singer, ambos os autores defendem algo como o anseio e a vontade de viver contra o
terror diante do aniquilamento.
42
Algumas explicações apresentadas pela física para processos vitais que regem
certos tipos de vida podem oferecer argumentos significativos contra as ideias
defendidas pelos teóricos da reverência à vida, segundo Singer:
[...] no caso das plantas, dos rios e dos mísseis teleguiados é possível oferecer uma
explicação exclusivamente física daquilo que acontece; e na ausência de
consciência, não existe um bom motivo pelo qual devamos ter maior respeito
pelos processos físicos que regem o crescimento e a decadência das coisas vivas
do que temos pelos que regem as coisas inanimadas. [...] no mínimo não é óbvio
por que devemos ter mais respeito por uma árvore do que por uma estalactite, por
um organismo unicelular do que por uma montanha.
43
Desse ponto de vista é problemático defender a vida como valiosa. Singer
considera que a ausência de um critério objetivo ao se falar de vida, quando os
processos que a regem assemelham-se aos de objetos sem “vida”, torna essa concepção
de respeito carente de argumentos suficientemente sólidos para justificar considerações
morais em relação à natureza.
40
SINGER, 1998, p. 290-91.
41
Idem, p. 289-92
42
Idem, p. 293-94.
43
Idem, p. 295.
Da mesma forma, visões como a de ecologia profunda que defende a ideia de um
todo interligado, no qual todos os organismos e entidades da ecoesfera m igual valor
intrínseco, são problemáticas no entender de Singer. Nessa proposta de igualdade
biocêntrica o autor questiona particularmente a possibilidade de se determinar o valor
intrínseco de cada uma de suas partes.
44
Uma alternativa seria determinar qual papel” cada coisa viva desempenha junto
ao seu ecossistema, que possa implicitamente sugerir a ideia de necessidade. Mas Singer
identifica outro problema: até que ponto um organismo é intrinsecamente necessário
para a sobrevivência de um ecossistema? Mesmo reconhecendo que todos os
organismos pertencem a um todo inter-relacionado, não há nada sugerindo que: 1) todas
as partes possuem valor intrínseco; ou, 2) que esse valor seja igual para todos. Para a
ecologia profunda implica estar atribuindo valor intrínseco às partes enquanto
necessárias à sustentabilidade do sistema, levando a crer que perderiam esse valor caso
não fossem mais necessárias.
45
A tentativa de transpor a fronteira da consideração de
interesses das criaturas humanas e não-humanas nas concepções de respeito pela vida e
de ecologia profunda apresentam, no entender de Singer, problemas de justificativa.
No que se refere à proposta de respeito pela vida, o problema da teoria surge ao se
tentar determinar um interesse moralmente significativo quando se pergunta o que
representa para uma entidade afetada não ter seu interesse satisfeito. Na concepção de
ecologia profunda, a ideia de auto-realização se depara com o problema de perguntar o
que significa para um dado sistema permanecer não realizado. Em ambas as
concepções, Singer considera que tais perguntas estariam satisfatória e
significativamente respondidas, se feitas para seres sencientes; do contrário, ficam sem
sentido.
46
O esforço de Singer para defender a senciência como um novo critério delimitador
da consideração moral e sua forma polêmica de apresentar os fatos promoveu grandes
transformações no pensamento ético. Seus méritos são inegáveis, mas sua proposta de
substituição dos critérios de racionalidade e linguagem, que mantinham o ser humano
no centro do universo moral, pela senciência, ampliou muito pouco o âmbito dos seres
moralmente consideráveis. Seus argumentos, apesar de plausíveis, não suportam uma
análise mais profunda.
44
SINGER, 1998, p. 295-98.
45
Ibidem
46
Idem, p. 299.
À primeira vista, recorrer à sensibilidade à dor, apelando para nossa empatia com
respeito àqueles seres que percebemos a semelhança entre a nossa sensação de
desconforto e a deles, parece plausível. Mas, considerações sobre a dor e o valor
vinculado ao interesse pelas experiências prazerosas, não são critérios suficientemente
fortes para justificar a ampliação da comunidade moral.
Na era dos analgésicos e anestésicos, a tese de Singer torna-se frágil. Tais
recursos da ciência médica possibilitam causar grande dano a um ser, sem que ele sofra
qualquer experiência dolorosa ou de desconforto. As cobaias utilizadas nas pesquisas
que lançam mão da analgesia são exemplos reais dos danos que se pode causar à vida de
um ser, sem submetê-lo a nenhuma dor.
Para se atribuir valor e admitir consideração moral aos animais, e do mesmo modo
a outras formas de vida, a capacidade de sentir dor e ser consciente do que sente, não
parecem ser critérios suficientemente sólidos e significativos para ampliar a fronteira da
moralidade. Apesar de romper com os velhos paradigmas restritos a espécie humana,
Singer continua limitando a esfera moral a uns poucos seres.
Da mesma forma, associar a necessidade de preservação da natureza aos
interesses dos seres sencientes, com ênfase nos interesses humanos parece, à primeira
vista, ser o caminho mais rápido e razoável para minimizar sua degradação. Visto que
compete exclusivamente aos seres humanos, principais agentes causadores dos danos ao
meio ambiente, o dever de reparar e promover transformações na maneira como
interagem com o meio em que vivem, agindo em conformidade com o princípio de igual
consideração de interesses das gerações de seres sencientes, presente e futura.
Uma ética ambiental, baseada nos interesses humanos, no valor de sua preferência
em manter o ambiente natural preservado e saudável a sua sobrevivência, pode parecer
bastante razoável. Para Singer, essa perspectiva ética promoveria transformações
significativas na relação dos humanos com a natureza. Mas, dispensar à natureza um
valor apenas como meio para satisfação de interesses, mesmo que sejam os mais
básicos, não parece ser um critério suficientemente forte para limitar as ações danosas
dos seres humanos frente ao ambiente natural.
A natureza é muito mais que um mero recurso. É a própria espontaneidade de
tudo que existe. Apesar de detentores do conceito de valor, os seres humanos são apenas
uma peça de sua trama intrincada, e não podem pretender deter para si toda a
importância no processo de desenvolvimento da vida.
A natureza é a própria vida. Partindo dessa perspectiva, ambientalistas defendem
que a natureza possui um tipo de valor, que não pode nem deve ser vinculado a
interesses de qualquer tipo. É preciso reconhecer que, apesar de ser um conceito
humano, o valor ultrapassa a própria existência humana. Mesmo que dependa da
concepção humana não se limita a sua forma de expressão.
No intuito de defender o valor próprio da natureza, muitos teóricos da ética têm
apresentado distintas e divergentes concepções de valor, com o objetivo de fundamentar
uma ética genuína para as relações humanas com a natureza.
1.2 Concepção de direitos e valor para sujeitos-de-uma-vida
Diferentemente de Singer, Tom Regan apresenta uma proposta de ética para o fim
dos maus-tratos e uso de animais pelos humanos, pela via dos direitos, teoria
fundamentada numa concepção de valor que o distancia das correntes utilitarista e
contratualista da ética, incluindo o utilitarismo preferencial inaugurado por Singer.
Regan defende a ideia de direitos para os animais com base na assertiva de que se
humanos têm algum direito, também os têm os animais.
47
O autor apresenta o conceito
de valor inerente como uma concepção independente de qualquer avaliação, cálculo ou
utilidade que o objeto do valor possa ter para os humanos (ou qualquer outro ser)
48
. São
dignos desse valor os seres sujeitos-de-uma-vida, capazes de consciência, de desfrutar
um bem-estar próprio importante para eles.
1.2.1 Mais que meramente vivo
A “reverência à vida”, tese defendida por Albert Schweitzer e criticada por
Singer, é retomada por Regan quando trata de uma importante questão: estar vivo é uma
condição suficiente para que um indivíduo tenha valor inerente? Existem sérias
dificuldades em aceitar que temos certas obrigações morais com respeito à vida das
células cancerígenas, por exemplo.
47
REGAN, Tom. “The Case for Animal Rights”. In: BAIRD, Robert M; ROSENBAUM, Stuart E. (Eds.)
Animal Experimentation: The Moral Issues. Amherst: NY, 1991, p. 77-88. Artigo traduzido para o
português por Sônia T. Felipe. In: Pensata Animal 15 - ano II. Setembro de 2008. Disponível em:
Sentiens Defesa Animal: www.sentiens.net. Acessado em: 10/11/2008.
48
REGAN, 1991, p. 84
No lugar de estar-vivo simplesmente, Regan propõe um critério alternativo. O
critério de ser sujeito-de-uma-vida pode tornar mais clara e aceitável atribuir valor
inerente aos indivíduos:
Ser sujeito-de-uma-vida, no sentido em que essa expressão será usada, envolve
mais que estar meramente vivo e ser consciente. [...] Indivíduos são sujeitos-de-
uma-vida se eles têm crenças e desejos, percepção, memória, e um sentido de
futuro, incluindo seu próprio futuro, uma vida emocional junto com sentimentos
de prazer e dor; preferências e interesse no bem-estar, a habilidade de iniciar ações
em busca de seus desejos e metas; uma identidade psicofísica sobre o tempo; e um
bem-estar individual no sentido de que sua experiência de vida é melhor ou pior
para ele, logicamente independente de sua utilidade para outros e logicamente
independente de ser objeto do interesse de mais alguém.
49
Para Regan, aqueles que satisfazem o critério de ser sujeito-de-uma-vida possuem
um tipo de valor distinto, não podem ser vistos ou tratados como meros receptáculos de
prazeres ou dores.
50
A base do autor para a defesa dos animais na concepção de direitos
morais está concentrada no conceito de valor inerente, cujo requisito é estar vivo de um
modo significativo, consciente de suas experiências no mundo.
Felipe lembra que não é o fato de estar vivo que leva os filósofos a questionarem,
com respeito a um indivíduo, a expansão do respeito ao mesmo princípio ético
empregado no tratamento humano. Para a autora, a vida é condição natural de todo ser
dotado de um organismo, seja qual for a espécie, não podendo haver distinções.
Para a questão ética, continua Felipe, a distinção aparece quando o ser vivo possui
uma percepção de si como algo contínuo, uma memória em presença de um ambiente
natural e social que o ampara e desafia na sua forma específica de viver, memória de
experiências passadas, retenção do aprendizado, desejo de manter-se vivo. O valor
inerente somente se atribui a um indivíduo que se caracteriza por essas capacidades, não
sendo possível atribuí-lo a seres que não se constituem como indivíduos.
51
49
REGAN, Tom. The Case for Animal Rights. University of California Press: Berkeley and Los Angeles,
2004, p. 243.
50
Ibidem
51
FELIPE, Sônia T. “Valor inerente e vulnerabilidade”. Ethic@ 5, Florianópolis: 2006c, p. 133.
1.2.2 O valor como fim
Na teoria de Regan, o valor inerente é a condição necessária e suficiente para que
seja possível afirmar direitos morais básicos a um sujeito. Ao vincular a concepção de
valor inerente ao conceito de sujeito-de-uma-vida, Regan procura um fundamento para
os dois princípios que regem as propostas éticas em defesa dos animais concorrentes
com a sua: o princípio utilitarista-hedonista da sensibilidade e o princípio da
preferência, do utilitarismo preferencial, corrente inaugurada por Singer.
É conclusivo para o autor que uma teoria, pretensamente coerente, precisa ao
mesmo tempo, fundamentar racionalmente direitos para os seres humanos não-
paradigmáticos, e defender direitos para os animais sujeitos-de-uma-vida. Sobre isso,
Regan escreve:
... temos fortes razões empíricas para crer que membros de muitas outras espécies
não são apenas vivos, eles têm vida; que eles não são meras coisas (objetos), mas,
sujeitos de uma vida, e de uma vida que é pior ou melhor para eles,
independentemente do valor que lhes é atribuído por qualquer outro ser (por
exemplo, pelo ser humano); assim como nós, eles são valiosos,
independentemente do quanto valham; assim como nós, eles têm valor inerente,
não apenas instrumental; assim como nós, então, eles têm o direito moral de serem
tratados de modo consistente com esse tipo de valor, um direito que é violado no
seu caso, como no nosso, caso sejam tratados meramente como meios.
52
Para afirmar de um indivíduo que ele não está apenas vivo, mas é capaz de
conduzir e ser sujeito de sua vida, distinguindo as coisas boas das coisas más, as
experiências que fomentam ou dificultam seu desenvolvimento, é necessário reconhecer
que o sujeito-de-uma-vida é um ser capaz de sensibilidade e consciência, sem as quais
não poderia fazer tais distinções.
Felipe sustenta que, para Regan, o valor inerente torna-se condição necessária e
suficiente para afirmar direitos morais básicos de um sujeito. Além disso, se o bem-estar
do sujeito-de-uma-vida é possível se sua vida for vivida sem dor, privação, dano ou
52
REGAN, Tom. All that Dwell Therein: Essays on animal Rights and Environmental Ethics. Berkeley:
University of California Press, 1982, P. 72. Apud. FELIPE, 2006c, p. 132.
sofrimento, é razoável afirmar que esse indivíduo possui interesses que devem ser
respeitados.
53
Contudo, diferente e não redutível à concepção de valor intrínseco, o valor
inerente não pode ser determinado pela totalidade das experiências prazerosas dos
indivíduos. Tampouco aqueles que têm uma vida mais feliz ou prazerosa têm maior
valor inerente que aqueles cujas vidas são menos prazerosas e felizes. Regan defende
essa distinção com o exemplo da xícara:
Suponhamos pensar os agentes e pacientes morais como xícaras dentro das quais
escorrêssemos líquidos doces (prazeres) ou infusões amargas (dores). Em algum
tempo, cada xícara terá certo sabor hedonista: o líquido que ela contém será mais
ou menos doce ou amargo. Agora, o que devemos ter por objetivo promover, de
acordo com o utilitarismo hedonista, não é o melhor sabor do líquido para esse ou
aquele indivíduo em particular; antes, devemos ter por objetivo realizar o melhor
equilíbrio agregado de doce e amargo entre todos aqueles afetados pelo que
fazemos; o melhor equilíbrio total do doce sobre o amargo que temos por objetivo
realizar.
54
Nesse exemplo Regan demonstra que para a visão utilitarista de receptáculo o
valor é atribuído ao que está dentro da xícara (prazeres, satisfação de preferências...); a
xícara (indivíduo) em si mesma não tem qualquer valor.
uma mudança de foco na concepção de valor inerente. Regan reconhece que
na xícara (o indivíduo) são depositados líquidos (prazeres, preferências...) valiosos, mas
o valor da xícara não se reduz ao seu conteúdo.
O postulado do valor inerente assegura para os indivíduos morais agentes, em si
mesmos, um tipo de valor distinto da concepção utilitarista de meros receptáculos. Para
Regan, “é a xícara que tem valor, não o que está dentro dela”.
55
Em detrimento das doutrinas perfeccionistas de justiça cujo valor pode variar em
graus, a igualdade do valor inerente é preferível. A gradação do valor, teoricamente,
reivindica uma referência de medida, promovendo o retorno de exigências quanto a
pertencer à determinada raça ou sexo, conclui Regan.
56
53
FELIPE, 2006c, p. 133.
54
REGAN, 2004, p. 205-06.
55
Idem, p. 236.
56
Idem, p. 237.
Se for possível afirmar que agentes morais têm valor inerente, considerado igual
para todos, o que se aplica a um corresponde a todos os outros, independentemente de o
agente pertencer a certa raça, sexo, fazer uso da fala, ou possuir outra característica
factual qualquer. Assim, escreve Regan: “A moralidade não irá tolerar o uso de dois
padrões quando os casos são relevantemente similares”.
57
Da mesma forma, para Regan, se postulamos valor inerente no caso dos agentes
morais e devemos reconhecer que o possuem de modo igual, somos racionalmente
obrigados a reconhecer a mesma situação para o caso dos pacientes morais: “todos que
têm valor inerente, possuem-no igualmente, sejam agentes ou pacientes morais”.
58
Regan classifica o valor inerente como um conceito categórico, uma vez que não
admite meio-termo ou qualquer tipo de gradação. Seja na condição de agente ou
paciente moral, é um tipo de valor que se tem, ou não se tem.
Ao contrário do que defende Albert Schweitzer, por exemplo, com a concepção de
reverência à vida, e os partidários da ecologia profunda, nem todas as coisas vivasm
valor inerente, uma vez que nem todos são sujeitos-de-uma-vida, visto que “estar-vivo,
na situação de células, por exemplo, não é uma condição necessária para que algo tenha
valor inerente”, escreve Regan.
59
Assim como Singer, Regan concebe a capacidade para a sensibilidade e
consciência como o limite defensável para a atribuição de valor e consideração moral de
um ser vivo. Diferentemente do que defendem os ambientalista da corrente de
“reverência à vida”, o autor considera que não basta estar meramente vivo para que se
possa reconhecer nesses seres valor inerente. É preciso que satisfaça o critério de ser
sujeito-de-uma-vida.
Mas, comparando as exigências de Regan e as de Singer para incluir animais não-
humanos na comunidade moral, a posição defendida por Singer, cuja exigência para a
consideração moral e de valor é o reconhecimento, por parte dos agentes morais, do
sofrimento provocado pela dor nos seres capazes de senciência e seu interesse em
afastá-la de si, parece satisfazer mais significativamente o objetivo de ampliar a
fronteira da moralidade, incluindo os animais não-humanos. A dor é uma experiência
intrinsecamenteque impede o ser senciente de buscar as experiências prazerosas e a
satisfação dos interesses básicos de sobrevivência.
57
REGAN, 2004, p. 240.
58
Ibidem
59
Idem, p. 242.
Regan, na sua tentativa de não limitar a consideração moral e de valor as
experiências de dor, não é muito feliz com o critério que propõe em substituição. O
critério de sujeito-de-uma-vida tem uma definição que restringe significativamente o
tipo de ser considerável do ponto de vista moral. O autor acaba acarretando o mesmo
efeito que os critérios de racionalidade e linguagem provocaram na filosofia moral
tradicional. Habilidades como crenças e desejos, percepção, memória, senso de futuro,
entre outras que o autor enumera, ao invés de incluir, excluem novamente muitos
humanos que carecem dessas habilidades e praticamente todos os animais não-humanos.
As pesquisas científicas que buscam descobrir semelhanças entre os humanos e os
outros animais contribuem significativamente para o entendimento dessa proximidade
biológica entre as formas de vida. Mas é importante reconhecer que cada forma de vida
tem habilidades e características próprias. A busca por semelhanças, comparando
habilidades entre as formas de vida, pode não ser uma boa estratégia para encontrar um
critério capaz de fundamentar um conceito de valor para a ética ambiental. Um critério
que seja fundamentado na singularidade e não nas semelhanças de cada forma de vida,
apresenta-se mais defensável para o desenvolvimento de uma ética ambiental genuína.
1.2.3 Considerações sobre a natureza de uma ética ambiental
Ambientalistas e pensadores da ética ambiental não são os únicos a apresentar
objeções a concepções como a de Singer para o desenvolvimento de uma ética
ambiental. Seu colega, Tom Regan, apesar de não ser propriamente um crítico, também
não concorda com a ideia de restringir aos interesses de terceiros, considerações morais
com relação ao ambiente natural, sejam quais forem esses interesses.
Para Regan, a ética ambiental é uma área ainda em expansão e não um
entendimento de qual a sua natureza e de como ela deve ser.
60
Por esse motivo, o autor
defende a necessidade de discutir, mesmo que superficialmente, uma concepção
particular de ética que satisfaça duas condições principais: 1º) reconhecer a existência
de seres não-humanos com estatuto moral; ) assegurar que a classe de seres com
60
REGAN, Tom. “The Nature and Possibility of an Environmental Ethics.” Environmental Ethics 3
(1981), p. 19. Júlia Aschermann Mendes de Almeida em, “A ética ambiental de Tom Regan: crítica,
conceitos, argumentos e propostas”, reconstitui os principais argumentos, conceitos, propostas e críticas
apresentadas pelo autor nesse artigo. Sônia T. Felipe apresenta os conceitos de valor inerente e
vulnerabilidade como critérios também válidos para uma ética ambiental em, “Valor inerente e
vulnerabilidade: critérios éticos não-especistas na perspectiva de Tom Regan”. Ethic@ 5, Florianópolis:
2006, p.147-151 e 125-146, respectivamente.
estatuto moral é mais ampla que a classe dos seres sencientes.
61
Uma ética ambiental
para ser verdadeira ou razoável deve satisfazer, segundo Regan, pelo menos a segunda
condição. Quanto à primeira, Regan reconhece não ser essa uma condição eficiente
quando se faz necessária à distinção entre uma ética para o uso do meio ambiente e uma
ética para a preservação e defesa do meio ambiente. Uma ética para o uso consideraria
importante somente o interesse dos seres humanos, possibilitando o desenvolvimento de
uma ética antropocêntrica que beneficiaria somente a qualidade da vida humana e de
suas futuras gerações. Essa concepção poderia restringir o valor somente a vida e
interesses dos seres humanos, enquanto uma ética para o ambiente exigiria o
reconhecimento de estatuto moral aos seres não-humanos.
62
De acordo com essas duas concepções, Regan considera possível distinguir
claramente dois tipos de teoria: 1) a do gerenciamento da natureza que defende
preservar a vida silvestre, se ela for do interesse dessa e das futuras gerações de
humanos, na qual os animais silvestres por si mesmos não têm nenhum interesse ou
valor que possa ser considerado; 2) a do parentesco, na qual os animais silvestres
figuram na aritmética moral por seu próprio direito. Essa teoria tem origem na ideia de
que seres semelhantes aos humanos, fundamentalmente no modo de ser consciente,
possuem estatuto moral.
63
Não é objetivo de Regan minimizar as dificuldades que acompanham o
desenvolvimento de uma ética ambiental. Ele pretende apenas esclarecer se razões
suficientemente plausíveis que possam limitar o estatuto moral a seres sencientes, e,
conseqüentemente, impor restrições à possibilidade ou à necessidade de uma ética
ambiental. Regan enumera três argumentos abordados com freqüência para justificar a
impossibilidade de se estabelecer uma ética ambiental: 1) do interesse; 2) da senciência;
3) da bondade.
64
No argumento do interesse, enumera Regan, (1) os únicos seres dignos do estatuto
moral são aqueles que podem ter interesse; (2) os únicos seres que podem ter algum
interesse são aqueles capazes de consciência; portanto, (3) os únicos seres com estatuto
moral são aqueles que têm a capacidade de consciência. Enquanto, no argumento da
senciência, (1) os únicos seres que podem ter estatuto moral são os sencientes; (2) os
61
REGAN, 1981, p. 19-20.
62
Idem, p. 20.
63
Ibidem
64
Idem, p. 21.
únicos seres sencientes são aqueles capazes de consciência, e (3) somente podem ter
estatuto moral os seres que têm a capacidade para a consciência.
Os defensores de ambos os argumentos enumeram três razões que os tornam
defensáveis, segundo Regan: 1) somente seres sencientes têm interesses; 2) não faz
sentido pensar que seres destituídos da capacidade de consciência possam ter estatuto
moral; 3) somente têm estatuto moral aqueles seres que têm valor por seu próprio
direito, sendo que somente faz sentido afirmar esse tipo de valor para seres sencientes.
65
Regan considera frágeis e contestáveis ambas as razões para defender os
argumentos. No argumento do interesse a aparente plausibilidade, apóia-se na
exploração da ambigüidade do conceito sobre alguma coisa ter um interesse. Diz o
autor:
Falar do interesse de A em x, pode significar tanto que (a) A está interessado
(quer, deseja, espera por...) em x, quanto (b) x está entre os interesses de A, ou
seja, que x, de algum modo, contribui para o bem ou bem-estar de A, obviamente,
se afirmarmos que somente seres que podem ter estatuto moral são aqueles que
podem ter interesses em coisas, então somente seres conscientes podem ter
estatuto moral.
66
Do ponto de vista literal, Regan concorda que parece ininteligível a ideia de que
seres não-conscientes possam expressar desejos ou interesses. Por outro lado, considera
possível promover benefícios ou acarretar prejuízos a esses seres. O autor ainda duvida
da possibilidade de a classe de seres com estatuto moral ser co-extensiva com a classe
de seres capazes de consciência. Seres incapazes de consciência podem ter um bem ou
valor que pode ser promovido ou impedido, dependendo do que é feito a eles. Nesse
caso, o argumento do interesse não apresenta qualquer solução para o problema,
tampouco razões para sustentar a impossibilidade de se desenvolver uma ética
ambiental.
67
Uma terceira razão para defender o argumento da senciência tem como base as
premissas do argumento da bondade: (1) somente podem ter estatuto moral aqueles
seres que têm um bem próprio; (2) podem ter um bem próprio somente os seres capazes
de consciência; assim, (3) somente podem ter estatuto moral, seres capazes de
65
REGAN, 1981, p. 21-2.
66
Idem, p. 22.
67
Ibidem
consciência. Para Regan, somente a primeira premissa é verdadeira, mas admite não
haver nada de auto-evidente em ambas, permanecendo a necessidade de uma defesa
racional, que o argumento da senciência não providencia.
68
Em que fundamentos é possível sustentar a obrigação de preservar a existência de
algum x? Essa é uma pressuposição imprescindível para o desenvolvimento de uma
ética ambiental que Regan identifica no argumento da bondade.
Duas respostas são possíveis: 1) preservar x é necessário para ocasionar o bem ou
evitar o futuro mal para os seres, exceto x, sendo que sua existência nessa conta tem
valor instrumental; 2) a obrigação para com x seria, em si mesma, independente de seu
valor instrumental, pois x tem um valor próprio, por seu direito.
69
Para Regan,
entretanto, ficando claras as condições para uma ética ambiental, nem tudo
reconhecidamente valioso na natureza não-consciente pode ter apenas valor
instrumental.
A primeira premissa do argumento da bondade oferece uma pressuposição
necessária para uma ética ambiental, mas Regan considera difícil atribuir, de modo
inteligível, bem inerente ou valor a seres não-conscientes.
70
Na segunda premissa, o
argumento se baseia na tese da consciência como condição logicamente necessária para
que alguém tenha certo tipo de bem próprio: a felicidade. Regan não considera
problemático eleger a felicidade como um critério de bem, próprio dos seres sencientes.
Mas pode ser questionável supor que seja esse tipo de bem, ou valor, o único a que certo
x pode ter direito. Para Regan, condicionar o bem inerente à felicidade torna o
argumento da bondade tão insuficiente quanto os outros para restringir estatuto moral
aos seres capazes de consciência.
71
Quatro “verdades” resultam da tentativa de demonstrar a impossibilidade de uma
ética ambiental, segundo Regan:
72
1) Uma ética ambiental deve reconhecer que a classe dos seres que possuem
estatuto moral é mais ampla que a classe dos seres sencientes;
2) Uma ética ambiental deve apoiar-se na ideia de que seres o-conscientes
podem ter um bem, ou valor por seu próprio direito;
3) O bem, ou valor não está restrito ao sentimento de felicidade;
68
REGAN, 1981, p. 23.
69
Ibidem
70
Ibidem
71
Idem, p. 24.
72
Ibidem
4) Os argumentos falham em demonstrar que seres não-conscientes não podem
ter estatuto moral.
Para Regan é conclusivo que as objeções apresentadas para a formulação de uma
ética ambiental não foram capazes de demonstrar essa impossibilidade.
Mas quem resista às objeções e, apesar de reconhecer a existência de um valor
ou bem próprio nos seres não-conscientes, negue a existência de boas razões para a
formulação de uma ética ambiental.
Aqueles que se opõem acreditam, segundo Regan, oferecer formas alternativas,
dentro de uma perspectiva antropocentrista, para explicar a dimensão moral de nossas
relações com o meio ambiente, sem a necessidade de postular nele valor inerente. Regan
trata de quatro argumentos principais: 1º) da corrupção do caráter; 2º) da ofensa contra
um ideal de humanidade; 3º) utilitária; 4º) da representação dos valores culturais.
73
No argumento da corrupção do caráter certos modos de tratar a natureza não-
consciente são vistos como errados. Segundo Regan, inspirados na ideia de Kant sobre o
perigo da crueldade humana para com os animais tornar-se um hábito e voltar-se contra
os próprios humanos, seus defensores argumentam que ações destrutivas contra o meio
ambiente analogamente poderão desenvolver hábitos destrutivos nos seres humanos.
74
Regan não acredita na existência de razões suficientemente fortes para dar suporte
a essa hipótese. A tentativa de apoiar-se na comparação dos percentuais de crimes
cometidos por profissionais como contadores e mineiros não parece ser um bom
exemplo para dar credibilidade e solidez ao argumento.
Diferentemente do argumento do caráter, o da ofensa contra um ideal de
humanidade não busca apoiar-se em dados empíricos. Fundamenta-se na ideia de que
um ser humano ideal não destruirá a natureza gratuitamente, ou sem pensar, pois o ato
de saquear o ambiente violaria esse ideal humano.
Regan não acredita num ideal que ordena agir de certo modo para com x, ao
mesmo tempo em que nega a esse x qualquer valor. Para o autor semelhante ideal é
ininteligível ou simplesmente inútil. Ao invés do argumento oferecer uma alternativa a
ideia de valor inerente para objetos não-conscientes, acaba pressupondo a existência
desse valor:
73
REGAN, 1981, p. 24
74
Idem, p. 24-5.
Ideais, em resumo, envolvem reconhecer valor naqueles que são objetos de nossas
ações. Ao sermos informados que tratar o ambiente de certa maneira é uma ofensa
contra um ideal de conduta humana, não estamos fornecendo uma posição
alternativa para, ou inconsistente com, a visão de que objetos não-conscientes têm
um valor próprio.
75
no argumento da representação dos valores culturais, a defesa do ambiente, ou
partes dele, se apóia no fato de a natureza simbolizar certos valores de nossa cultura.
Regan lembra o que diz Sagoff sobre a sociedade se servir da natureza com paradigmas
dos conceitos de liberdade, integridade, poder...etc. Nesse argumento, preservar a
natureza é um dever para que junto com ela se preservem as expressões naturais de
valores culturais acalentados pela sociedade.
O argumento da representação dos valores culturais não requer, segundo Regan,
uma análise do custo-benefício. Sua obrigação para preservar a natureza diz respeito
apenas aos valores culturais personificados por ela.
76
Em comum com os outros argumentos, o da representação dos valores culturais
não atribui aos objetos naturais um valor por seu próprio direito, mas traz
pressuposições objetivas que deixam dúvidas quanto à sua semelhança com os outros
argumentos, uma vez que reconhece no ambiente natural certas qualidades objetivas
como o poder, a maestria, a liberdade. Tais qualidades estão na natureza, tanto quanto
nos cromossomos, no entanto, seu valor não é algo independente do interesse dominante
de uma certa cultura ou herança cultural. Segundo Regan, as qualidades que um objeto
natural expressa são objetivas, mas o valor de um objeto natural não é algo que ele
possui objetivamente por seu próprio direito, representa apenas qualidades valorizadas
pela cultura.
77
Regan considera que o argumento da representação dos valores culturais oferece
uma base poderosa para um argumento político em favor da preservação. Uma vez
demonstrada a expressão de valores como liberdade, integridade, poder na natureza, não
é apropriado destruí-la.
Entretanto, Regan enumera dois problemas que enfraquecem o argumento: )
estabelecer quais são os valores culturais, sem ser elitista; 2º) valores culturais podem
ser relativos entre diferentes culturas e, mesmo, dentro da própria cultura, em tempos
75
REGAN, 1981, p. 25-6.
76
Idem, p. 28.
77
Idem, p. 28-9.
distintos. A fraqueza do argumento, segundo Regan, refere-se principalmente ao fato de
permitir que um ambiente de plástico, por exemplo, possa ser tão bom, ou melhor, que
um ambiente natural, caso o valor dominante de determinada cultura seja valorizar
coisas de plástico.
78
Mas é no argumento utilitarista que Regan concentra sua crítica. Principalmente a
concepção hedonista, para a qual uma ação é certa, se nenhuma ação alternativa produz
melhor equilíbrio entre prazer e dor para todos os afetados.
O utilitarismo hedonista pode estar no caminho certo para a formulação de uma
ética ambiental, se, de acordo com Regan, satisfizer a segunda condição. Pois, segundo
essa concepção, afirma o autor, um ambiente manejado pode dar origem a prazeres
iguais em valor àqueles que têm origem no ambiente natural, assim teremos mais ou
menos razões para preservar o meio ambiente natural e explorar o ambiente manejado.
Contudo, prazeres que florescem de ambientes manejados, caso fossem maiores
do que os advindos de ambientes naturais proporcionariam maiores razões para ampliar
o mundo com árvores de plástico e reduzir as árvores vivas.
79
Mesmo diante de todas essas considerações, não é objetivo de Regan investigar se
objetos naturais têm um bem, ou valor, independente de interesses humanos. O objetivo
central do autor é mostrar que os principais argumentos contra a possibilidade e/ou a
necessidade de se atribuir valor aos objetos naturais não-conscientes,
independentemente dos interesses humanos, falham nesse propósito, como também
falham em avançar o pensamento para a possibilidade de apresentar uma explicação
razoável para nossos deveres com respeito ao meio ambiente, sem ter que lhe postular
valor próprio.
80
O problema que está na base do conflito entre as diferentes perspectivas para a
formulação de uma ética ambiental, no entender de Regan, é a definição do que é o bem
das coisas vivas. Para tentar esclarecer alguns pontos, o autor se propõe a fazer algumas
observações sobre a natureza do conceito de bem inerente (inerent goodness), levando
em conta sua incompletude e relativismo. Regan se concentra principalmente em torno
de cinco ideias distintas e, ao mesmo tempo, relacionadas de bem inerente:
78
REGAN, 1981, p. 29.
79
Idem, p. 27.
80
Idem, p. 30.
1. A presença do valor inerente em um objeto natural é independente de
qualquer consciência, interesse ou apreciação por parte de qualquer ser
consciente.
81
Apesar de não subsumir o valor inerente a interesses, essa ideia de bem não diz
nada sobre que objetos são, e por que são, inerentemente bons. Afirma apenas que, se
um objeto é inerentemente bom, então o valor está nele mesmo.
2. A presença do valor inerente em um objeto natural é consequência de possuir
certas propriedades únicas.
82
Semelhante à ideia anterior, essa afirma apenas que o bem de um objeto depende
de suas propriedades. Características que dependem do reconhecimento por parte de um
ser consciente.
3. O valor inerente de um objeto depende de alguma propriedade objetiva nele.
83
A expressão de liberdade percebida em um rio serve como exemplo de
propriedade objetiva. Mas, ser inerentemente bom é um fato sobre o rio, a exemplo da
primeira ideia, não diz nada do porque ele é inerentemente bom.
4. O valor inerente de um objeto natural é tal que para ele a única atitude
adequada é a do respeito.
84
Essa ideia revela a conveniência de considerar o que é valioso inerentemente,
conectando um ideal de natureza humana ao que é inerentemente valioso na natureza.
O ideal de natureza humana, em parte, nos convida a apreciar a natureza, não
como meros recursos a serem utilizados em nome do interesse humano, mas segundo
seu próprio valor. Além disso, também nos convida a considerar o que é inerentemente
valioso com admiração e respeito. A carência de respeito torna insuficiente, frente ao
ideal, tanto qualquer atitude gratuitamente destrutiva de algo com valor inerente, quanto
considerar que algo tem valor somente em virtude de algum interesse por ele.
Regan considera de vital importância lembrar que ter ideais não nega nem diminui
o que se exige para além de qualquer ideal: postular valor inerente na natureza,
independentemente de quaisquer ideais.
85
5. A respeitosa admiração do que é inerentemente valioso na natureza leva à
adoção do princípio de preservação.
81
REGAN, 1981, p. 30.
82
Idem, p. 31.
83
Idem, p. 31.
84
Idem, p. 31.
85
Idem, p. 31.
O princípio de preservação deve ser entendido como um princípio que implica em
três deveres negativos: não-destruição, não-interferência, não-intervenção, considerado
por Regan um imperativo moral para as relações com o meio ambiente. Mas falta
definir se o principio de preservação é absoluto ou prima-facie. Não está claro de que
modo esse princípio pode ser absoluto. Pois, no caso de deixar ser o que é
inerentemente bom na natureza, muitas vezes isso pode levar à diminuição ou perda de
valor no futuro. Sendo prima-facie o princípio de preservação pode ceder à necessidade
de intervenção na natureza para preservar ou ampliar o que é valioso inerentemente.
Seja como for, em um ponto Regan está de acordo com os preservacionistas: é
preciso rejeitar o princípio do interesse humano. Pois o bem inerente das coisas naturais
é incomensurável com o tipo de bem que constituem os interesses humanos, entre eles o
econômico.
86
Sobre a ideia de bem, Regan reconhece não ter respondido a duas questões
principais: a) o que torna alguma coisa inerentemente boa; e b) como é possível saber
que coisas são inerentemente boas. Existem duas possibilidades para tentar responder à
primeira questão, segundo Regan:
87
1) Um objeto x é inerentemente bom, se é bom a seu próprio modo.
2) A vida torna alguma coisa inerentemente boa.
Quanto a isso, Regan admite não ter muita coisa a dizer, mas considera não ser
possível encontrar o que é inerentemente bom, simplesmente por adequar o que é bom
ao que é digno de respeitosa admiração.
88
Se estiver certo em suas observações, Regan
considera que o desenvolvimento de uma ética ambiental, apesar de todas as
dificuldades de concebê-la, exige postular valor inerente na própria natureza.
89
Regan e Singer m concepções bem distintas em relação às considerações sobre
uma concepção de ética ambiental. Ambos consideram difícil transpor a barreira da
senciência. Enquanto Singer propõe uma ética utilitarista com valor instrumental para o
meio ambiente e as coisas vivas que não satisfazem ao critério da senciência, Regan,
entretanto, considera que uma ética genuinamente ambiental, precisa buscar um critério
que justifique atribuir valor inerente às outras coisas vivas, até mesmo a objetos naturais
não vivos.
86
Esse princípio, segundo o autor, postula desconsiderar o princípio da preservação sempre que for
possível obter mais benefícios. REGAN, 1981, p. 32.
87
Idem, p. 33.
88
Ibidem
89
Idem, p. 34.
O conceito de valor inerente e o critério de sujeito-de-uma-vida são aplicáveis a
seres que têm um tipo de interesse do qual não precisam necessariamente ser
conscientes. Apesar de suas dúvidas quanto à possibilidade de se transpor o limite da
capacidade de consciência para que algo tenha valor por si mesmo, o pensamento de
Regan vem ao encontro das concepções de muitos ambientalistas que defendem a ideia
de valor da natureza independentemente de qualquer avaliação vinculada a interesses.
Entre os autores que propõem valorizar a natureza por ela mesma, Holmes
Rolston III critica qualquer proposta de ética ambiental que tenha por objetivo vincular
o valor da natureza a interesses, sejam eles dos humanos, nas propostas
antropocêntricas, ou no bem-estar de seres sencientes, nas concepções senciocêntricas,
especialmente de Singer. Para o autor, existem na natureza valores independentes de
quaisquer interesses que devem ser considerados intrinsecamente.
1.3 Valores na natureza
De um ponto de vista biocêntrico, em que a vida está no centro das considerações
de valor, Rolston III propõe uma ética para o meio ambiente na qual a concepção de
valor subjacente não dependa de quaisquer interesses.
O autor reconhece a dificuldade de se propor um conceito de valor para a
natureza, e proteção ao meio ambiente, desvinculado da noção de interesse. Mas,
outros caminhos possíveis para uma reflexão mais profunda sobre o assunto.
Para Rolston III, defender valor na natureza consiste numa espécie de “despertar”
do interesse, vinculado à identificação de aspectos relevantes observados na natureza.
90
A ideia de independência do valor com relação ao interesse coloca em lados
opostos Singer e Rolston III. Enquanto Singer dispensa à natureza um tratamento
secundário, considerando-a apenas instrumento de bem-estar dos seres sencientes,
Rolston III, por outro lado, defende a importância da natureza em si mesma, visto que o
valor já está lá e não no interesse de quem avalia.
Não é a intenção de Rolston III dispensar os interesses humanos na avaliação da
importância da natureza, na verdade tais interesses são necessários para a identificação
de novos valores.
90
O autor identifica dez tipos de valor que despertam o interesse humano pela natureza: valor econômico,
valor como sustentáculo da vida, valor recreativo, valor científico, valor estético, valor da vida, valor
como diversidade e unidade, valor como espontaneidade e estabilidade, valor dialético e valor
sacramental. ROLSTON III, Holmes. “Values in Nature”. Environmental Ethics 3 (1981): 113-28.
A objeção principal de Rolston III com respeito a Singer consiste na afirmação de
que à natureza somente é possível atribuir valor instrumental, conforme o interesse,
principalmente humano, de conservar os recursos necessários à satisfação de suas
necessidades e preferências.
1.3.1 O valor antecede o interesse
Está claro que a concepção de valores não deve perder de vista que esse é um
conceito humano, e nesse contexto deve ser entendido. Para Rolston III, “valores
aparecem somente na resposta humana para o mundo. Então, perguntar sobre valores na
natureza é enganoso, pois estão somente nas pessoas, criados por suas decisões”.
91
Rolston III, entretanto, considera importante não esquecer que o ser humano ao atribuir
algum valor à natureza se depara com algo que já está lá, intrínseco a ela, pois “nosso
interesse por maçãs não é arbitrário, depende, em parte, de algo encontrado nelas”.
92
A natureza não espera” nada dos humanos, tampouco sua existência depende
deles. Os seres humanos, por outro lado, dependem totalmente da natureza para
sobreviver. Toda essa dependência acabou transformando a natureza em um grande e
lucrativo negócio. A natureza é fonte de todos os recursos valiosos que despertam o
interesse humano. Para Rolston III, não dúvidas de que na natureza o valor antecede
o interesse humano, uma vez que ele se depara com algo que já estava lá.
uma tendência dos seres humanos em valorizar apenas o que é
economicamente viável na natureza. Mas, de um ponto de vista ecológico, seu bem-
estar tem raízes muito mais profundas. Como sustentáculo da vida, o valor da natureza é
incalculável, lembra Rolston III. Elementos como: atmosfera, camada de ozônio,
oceanos, calotas polares, podem não ter valor comercial para aqueles cujo pensamento
está focado em aspectos econômicos, mas todos concordam serem essenciais para o
desenvolvimento e manutenção da vida em todas as suas manifestações.
93
Rolston III concorda com a perspectiva de ecologia profunda sobre ser o
ecossistema da Terra um todo interligado, no qual suas espécies constituintes m
alguma participação. A humanidade, nesse cenário, é apenas uma peça recém-chegada
91
ROLSTON III, 1981, p. 114.
92
Idem, p. 114.
93
Idem, p. 116.
ao “quebra-cabeças” da natureza. Os seres humanos são uma espécie entre tantas outras
que apareceram e desaparecem todos os dias, enquanto a natureza permanece.
Nesse sentido, o cuidado com relação ao ecossistema é essencial, mas Rolston III
considera que esse “cuidar” representa uma das questões mais difíceis de resolver.
A ideia de cuidado com o ecossistema não envolve apenas questões relativas aos
elementos geológicos, envolve também reconhecer a importância das comunidades
naturais e seus membros, considerados individualmente, que contribuem para o
equilíbrio e manutenção do meio ambiente como um todo.
94
De um ponto de vista humanístico, o valor na natureza surge apenas quando
interesse humano. Num primeiro momento, isso pode soar verdadeiro, principalmente
quando nos deparamos com estudos científicos, destituídos de qualquer valor comercial,
inestimável para seus pesquisadores interessados apenas em descobrir o intrincado
sistema natural, no qual a vida floresce e evolui orientada por um complexo processo de
seleção natural, onde também se encontram as raízes da humanidade. Por outro lado,
lembra Rolston III, esse processo, para ter valor por si mesmo, não depende do interesse
humano em descobrir suas raízes.
Apesar de o valor e o interesse parecerem indissociáveis, no processo intrincado
de seleção natural o ser humano é apenas um participante. Mesmo que alguns insistam
que nada teria valor antes de sua chegada, é soberbo imaginar que a participação
humana seja determinante no esquema e no valor da natureza.
95
Rolston III considera o valor da vida um dos mais importantes da natureza. Sua
existência se justifica quando o reconhecimento de que existe uma espécie de
inteligibilidade ativa da vida, presente nos organismos, cujas cadeias de RNA e DNA
com informações organizadas numa espécie de livro ou manual, do qual são retiradas
todas as orientações necessárias para o desenvolvimento da vida de um organismo, têm
papel fundamental.
96
Os mais avançados estudos da bioquímica, lembra o autor,
informam que o número de informações contidas e utilizadas rotineiramente em uma
célula, é muito maior do que qualquer livro feito por mãos humanas pode comportar.
97
O fenômeno da vida é um dos mais complexos da natureza. Por maiores que
sejam os esforços da ciência em reproduzi-la em seus laboratórios, a manifestação da
vida é um fenômeno absolutamente natural, afirma Rolston III. Isso mostra que não é
94
ROLSTON III, 1981, p. 116.
95
Idem, p. 117.
96
Idem, p. 122.
97
ROLSTON III, 1981, p. 122.
possível negar a existência na natureza de um valor inestimável, enquanto berço da
vida, absolutamente independente dos interesses humanos.
98
Da mesma forma, perguntas sobre quem somos, de onde viemos, o problema da
vida e da morte e porque nos conduzimos tão apropriadamente nesse ambiente, nos
levam à concepção de um valor sagrado da natureza. Para Rolston III, esses
pensamentos surgem após a contemplação da complexidade dos processos naturais.
A mente humana, um dos produtos mais sofisticados da natureza, questiona sua
própria capacidade de observar e pensar a si mesma, encontrando-se ainda aquém de sua
própria capacidade de conhecer. Na natureza, lembra o autor, o ser humano encontra
campo fértil para questionamentos filosóficos, tanto quanto é um recurso científico,
estético e econômico. Estamos programados para perguntar os por quês, e a natureza em
sua expressão dialética é a origem de nossa espiritualidade, mesmo que simbolicamente
seja possível aos seres humanos separar o pensamento racional, do mundo natural, na
verdade a mente tem evoluído por milênios associada à natureza. Essa interação levou o
ser humano a descobrir e criar símbolos através dos quais é possível o entendimento,
ainda que parcial, da complexidade do mundo em que vive.
99
1.3.2 A senciência como critério último de valor próprio
Com respeito à proposta de Singer para uma ética ambiental, Rolston III avalia
que seu colega, apesar da indiscutível contribuição para incluir os animais nas
considerações éticas, tem-se mostrado cego diante dos esforços da ética ambiental para
valorizar a vida e cuidar da biosfera terrestre.
100
A supervalorização da senciência acaba excluindo das considerações morais todas
as formas de vida que não a possuem analogamente aos humanos. As formas mais
simples de vida são valorizadas de forma instrumental, somente enquanto úteis à
satisfação das necessidades dos seres dotados com a capacidade da senciência. A
natureza é preservada apenas em virtude do interesse desses seres em obter dela
sustentação e bem-estar para suas vidas
.101
98
Idem, p. 123.
99
Idem, p. 128.
100
ROLSTON III, Holmes. “Respect for Life: Counting what Singer Finds of no Account”. In: Singer
and His Critics. Edited by Dale Jamieson. Blackwell Plubishers, 2000, p. 247.
101
ROLSTON III, 2000, p. 248.
Rolston III lembra que Singer, em uma de suas críticas, refere-se à ética da
“reverência à vida” de Albert Schweitzer, para quem todo o organismo vivo tem um
“desejo de viver”, e Paul Taylor, cujo objetivo de sua teoria é a consideração moral dos
seres que “buscam seu próprio bem, a seu próprio modo”.
Singer defende, segundo Rolston III, que o único limite justificável para uma ética
ambiental é a consideração de interesses dos seres com a capacidade de sofrer, ter
experiências prazerosas, ou felicidade. Quando a consideração moral envolve aqueles
organismos incapazes dessas experiências, Singer afirma que tais formas de vida são
regidas por processos físico-químicos semelhantes aos processos que regem os objetos
inanimados. Falar de interesse com respeito a esses organismos somente é possível em
linguagem metafórica.
Rolston III concorda com a recomendação de Singer sobre o cuidado com o uso
de metáforas, e com o fato de as plantas carecerem da capacidade de consciência ou
intencionalidade, mas contesta o agrupamento que seu colega faz, colocando no mesmo
plano de existência, plantas, rios e objetos inanimados, tais como mísseis teleguiados.
Rolston III defende a existência de diferenças significativas entre eles, sendo inaceitável
a forma cartesiana com a qual Singer os unifica. Essa dicotomia faz parecer que existem
apenas dois níveis metafísicos: as experiências conscientes e os processos meramente
físicos. Para Rolston III isso não é verdadeiro.
Uma planta não é um objeto com experiências, mas também não é um objeto
como uma pedra, regido por processos geomorfológicos como um rio. Plantas
estão totalmente vivas. Plantas, como todos os outros organismos, são autônomas.
Plantas são entidades unificadas, do tipo botânico, embora não seja do tipo
zoológico, isto é, não são organismos unitários altamente integrados com um
sistema nervoso central, mas são organismos modulares, com um tronco que
repetida e indefinidamente produzem novos módulos vegetais, galhos e folhas
novas quando há espaço e recursos adequados, tanto quanto novas mudas, frutos e
sementes.
102
Isso faz crer, argumenta Rolston III, ao contrário do que pensa Singer, que na
vida de uma planta algo que não se limita às causas físico-químicas. Presente em todos
os seres vivos está o DNA, identificado pela biologia como informação genética, lembra
102
ROLSTON III, 2000, p. 249-50.
Rolston III, sua existência revela que a natureza tem propósitos que não obedecem a
interesses e preferências de seres sencientes.
103
O critério da senciência, utilizado como condição para que um ser seja
considerado moralmente, continua Rolston III, exclui também a maior parte dos
animais. Em torno de 95% de todas as criaturas no mundo são perceptivas e sencientes
apenas no sentido de responderem ao seu ambiente diversamente, semelhante aos
processos vitais identificados nas plantas. Não é possível determinar se essa capacidade
relativa ao ambiente no qual cada ser se desenvolve, pode classificá-los como
sencientes, ou autoconscientes, no sentido de terem experiências físicas de dor, sensação
de desconforto, ou serem capazes de ter perspectivas quanto ao futuro.
Com respeito a Singer e a forma como o autor define a senciência, preocupando-
se em condicioná-la, analogamente, a sentimentos que experimentam os seres humanos,
Rolston III observa que seu colega não leva em conta o fato de a senciência
corresponder a alguma capacidade de resposta que um organismo necessita para
sobreviver em seu próprio meio, sem necessariamente assemelhar-se ao tipo de
senciência dos humanos. Desconsiderar essa possibilidade, conclui Rolston III, pode
limitar consideravelmente a preservação da natureza e de todas as suas expressões de
vida.
104
Apesar de defender o valor da natureza, Rolston III não oferece argumentos
suficientemente sólidos para o desenvolvimento de uma ética ambiental com base no
valor próprio da natureza. O autor parece não conseguir desvincular-se da ideia de valor
instrumental, e não deixa claro como o interesse humano é posterior ao valor atribuído à
natureza.
O autor considera valores como o estético, científico e dialético mais dignos que o
valor predominantemente econômico da natureza, mas não rompe com a ideia de
interesse que subjaz essas concepções.
Intuitivamente, os argumentos do autor com respeito a esses valores nos levam a
acreditar que são próprios da natureza, estão lá, prontos para despertar o interesse
humano. Mas isso não muda a ideia de queuma dependência que mantém a natureza
“escrava” dos fins humanos. Todos os valores enumerados pelo autor existem somente
vinculados às concepções humanas de beleza, contrariedade, benefícios, e outros tantos
que possam dar origem a outros tipos de valor.
103
Idem, p. 250.
104
Idem, p. 257.
Sem descartar o justificável interesse humano, ou dos seres sencientes, em manter
o ambiente natural saudável para sua sobrevivência, não é possível ignorar que a
natureza tem um tipo de valor que ultrapassa interesses ou preferências.
O desenvolvimento de uma ética ambiental genuína requer, como prudentemente
recomenda Regan, apesar de ser ainda uma questão insolúvel, que o valor subjacente
seja independente de avaliações exteriores. Critérios plausíveis e argumentos
suficientemente sólidos precisam ser razoáveis para que sejam aceitos e aplicáveis
universalmente.
Muito já foi dito e escrito sobre o valor da natureza, mas entre tantas teorias, Paul
Taylor talvez seja o autor mais consistente na formulação de uma ética ambiental. A
teoria que o autor apresenta procura dar conta de todas as exigências que uma ética
precisa satisfazer para ser aplicável universalmente.
II. Perspectiva biocêntrica de valor e consideração moral da natureza
na constituição de uma ética ambiental
No capítulo anterior foram apresentadas algumas das principais ideias que
norteiam o pensamento ambiental atual, mostrando que a elaboração de uma ética para
as relações humanas com a natureza não é um fácil empreendimento. Entre esses
empreendedores do pensamento ético-ambiental, Peter Singer sugere que nem mesmo
uma ética ambiental que proteja os interesses humanos foi ainda elaborada. Sua
proposta inclui tanto estes, quanto o interesse de todos os seres sencientes em viver num
ambiente saudável. Rolston III aparece com a concepção de que valores encontrados na
natureza despertam o interesse humano. Assim como, Tom Regan e a perspectiva de
uma ética ambiental que postule o valor próprio da natureza, mesmo duvidando da
possibilidade de se transpor os limites impostos pelos critérios de sensibilidade e
consciência para que se possa afirmar que algo tem valor inerente.
Para Regan, algumas condições imprescindíveis devem ser observadas na
elaboração de uma teoria ética ambiental. O autor procurou principalmente enfatizar que
a negação antropocentrista quanto à possibilidade e, mesmo, a necessidade de uma ética
ambiental fundamentada em um valor próprio da natureza, não tem argumentos
suficientemente sólidos para se sustentar.
Neste capítulo, a natureza ganha status moral na perspectiva ética ambiental
biocêntrica, de Paul Taylor. O autor constrói sua teoria com base em alguns elementos
que considera essenciais: o paralelo entre as éticas humana e ambiental, o sistema de
crenças segundo uma perspectiva biocêntrica da natureza, a atitude de respeito pela
natureza, os princípios prioritários e a prioridade desses na resolução dos conflitos de
interesses entre seres humanos e não-humanos.
Em cada um desses elementos, Taylor apresenta aspectos importantes a considerar
para que uma proposta de ética ambiental seja universalmente aceitável.
Obviamente, numa breve exposição não é possível apresentar toda a dimensão e
alcance de uma teoria ética. Contudo, é possível conhecer as ideias que norteiam o
pensamento e a proposta ética de Taylor, principalmente aquela cuja vida, moralmente
considerável tem um tipo de bem que é próprio do seu modo de vida em particular, essa
característica agrega um tipo de valor que costumeiramente é atribuído a seres
conscientes: valor inerente.
105
Na proposta de Taylor, a ética antropocêntrica deve dar lugar a uma ética
ambiental
106
biocêntrica, organizada em um sistema de princípios morais que devem ser
seguidos no relacionamento entre humanos e ecossistemas naturais com suas
comunidades de vida silvestre.
107
Em 1982, Taylor lança em, “The Ethics of Respect for Nature”, a primeira versão
das ideias centrais que norteiam seu pensamento. Anos mais tarde, em 1986, a versão
completa de sua teoria ética ambiental é apresentada em, Respect for Nature: A Theory
of Environmental Ethics.
Não é objetivo de Taylor em sua ética reverenciar a vida em sua plenitude. O
autor escreve uma ética para a consideração da vida, que em sua expressão natural
108
,
não sofreu interferências nem intervenções humanas diretamente; considerando aspectos
importantes com respeito às peculiaridades dessa vida, submetida apenas aos processos
de evolução e seleção naturais.
Antes de avançar nas particularidades da teoria de Taylor é importante ter clara a
concepção de natureza subjacente em sua proposta. Para o autor, no sentido que
pretende usar, “natural” significa que fatores ambientais e biológicos determinantes na
estrutura de relações mantidas entre suas espécies constituintes têm lugar sem a
interferência ou intervenção humana. Para o autor, a ordem das coisas vivas em um
ecossistema natural pode ser explicada como resultante de certos processos
105
Taylor admite que esse conceito é essencialmente idêntico ao que Regan apresenta em The Case for
Animal Rights (Los Angeles: University of Califórnia Press, 1983). TAYLOR, Paul W. Respect for
Nature. A Theory of Environmental Ethics. New Jersey: Princeton University Press, 1989, p. 75, nota.
106
“Por ética ambiental define-se as relações morais estabelecidas entre os humanos e o mundo natural.
Os princípios éticos que governam essas relações determinam nossos deveres, obrigações e
responsabilidades com o ambiente natural da Terra e todos os animais e plantas que nela habitam”. Idem,
p.3.
107
“O termo ‘mundo natural’ é usado em referência a todo o conjunto de ecossistemas naturais em nosso
planeta, junto com as populações de animais e plantas que constituem a comunidade biótica desses
ecossistemas. A ideia de ecossistema natural deve ser entendida nesse livro como qualquer conjunto de
coisas vivas ecologicamente interrelacionadas que, sem a interferência ou controle humano, mantêm sua
existência como espécies através do tempo. Cada população ocupando seu próprio espaço natural e cada
um adaptado de acordo com os processos evolutivos de variação genética e de seleção natural”. Ibidem
108
Por “natural” Taylor refere-se aos fatores ambientais e biológicos determinantes na estrutura de
relações que se mantém entre as espécies constituintes dos ecossistemas sem a interferência humana. O
autor faz distinção entre dois tipos de ecossistemas naturais: 1) ecossistemas que nunca foram explorados
por mãos humanas, nem sofreram mudanças com os efeitos de sua cultura e tecnologia; 2) ecossistemas
que em algum tempo foram cultivadas pelos humanos (agricultura, criação, mineração), sofrendo certas
modificações ocasionadas por essa interferência, mas retornaram a sua condição natural após longo
período de tempo sozinho, sem qualquer intervenção submetidos novamente apenas aos processos
evolutivos e seleção natural. Idem, p. 3-4.
evolucionários e condições ambientais, sem qualquer referência a propósitos humanos
ou efeito de suas ações.
109
2.1 Estrutura paralela das éticas humana e ambiental
Um dos aspectos mais importantes da proposta de Taylor, adotado como ponto de
referência pelo autor, é a concepção de paciente moral (subject). Mas antes de falar de
pacientes morais, é importante ter claras as concepções de agente moral e paciente
moral comparadas a outras propostas éticas.
Taylor afirma que não há qualquer divergência entre as éticas quanto à concepção
de agente moral. Todas concebem o agente moral como aquele ser capaz de certas
habilidades com as quais ele pode agir de forma moral ou imoral, ter deveres e
responsabilidade e ser responsabilizado pelo que faz.
110
Quanto à concepção do que ou
quem são os pacientes morais, Taylor observa que há uma única coisa certa sobre eles: a
possibilidade de serem beneficiados ou prejudicados pelos agentes morais.
111
2.1.1 A simultaneidade da condição agente-paciente moral
É costume associar a humanos somente a capacidade de ser agente moral. Mas
Taylor chama a atenção para o fato de que “seres humanos, que são agentes morais,
podem, ao mesmo tempo, ser pacientes morais”.
112
No papel de agentes morais, os seres
humanos podem agir em relação a outros humanos de maneira certa ou errada. Na
condição de pacientes morais tais humanos podem ser tratados da mesma forma por
outros humanos na condição de agentes morais.
Diante dessa perspectiva, Taylor muda em sua ética o objeto da consideração
moral e de valor. Para melhor compreender como essa simultaneidade acontece, é
importante esclarecer antes o que significa ser um agente moral. Para o autor, está claro
que:
Um agente moral para ambos os tipos de ética [antropocêntrica e biocêntrica] é
qualquer ser que possui aquelas capacidades, em virtude das quais pode agir
109
TAYLOR, 1989, p. 04.
110
Idem, p. 14.
111
Idem, p. 17.
112
Idem, p. 16.
moralmente ou não, pode ter deveres e responsabilidades, e pode ser
responsabilizado pelo que faz. Entre essas capacidades, a mais importante é a
habilidade de fazer julgamentos sobre o certo e o errado; a habilidade de engajar-
se em deliberações morais, isto é, considerar e pesar razões morais em favor e
contra, vários cursos de conduta abertos à escolha; a habilidade de tomar decisões
com base naquelas razões; a habilidade de exercer a necessária determinação e
força de vontade na realização daquelas decisões; e a capacidade de responder
pelo seu fracasso em realizá-las.
113
Importante lembrar, com respeito às características que definem um agente moral,
que Taylor não concorda com a ideia corrente de que essas são exclusivamente
humanas, mostrando que tal pensamento é enganoso por duas razões: 1) nem todos os
humanos são agentes morais, e 2) podem existir agentes morais que não são humanos.
114
Muitos seres humanos carecem permanente ou temporariamente das capacidades
que caracterizam um agente moral. Os bebês recém-nascidos, os anencéfalos, os loucos
incuráveis, os mental ou emocionalmente doentes num grau extremo, entre outros, são
exemplos de seres humanos, no sentido biológico, que, segundo Taylor, não satisfazem
as exigências para serem considerados agentes morais.
Outro ponto importante refere-se aos casos de seres não-humanos que satisfazem
tais exigências. Peter Singer, por exemplo, defende que aos primatas se pode ousar
chamá-los de pessoas, no sentido que o termo é empregado para os humanos, ou seja,
dotados da capacidade de ser racional e autoconsciente. Para Singer, esses animais
apresentam muitos dos comportamentos, analogamente observados nos seres humanos,
que expressam ações e atitudes, correspondentes àquelas que na filosofia moral
tradicional são dignas de consideração moral.
115
113
TAYLOR, 1989, p. 14.
114
Idem, p. 14.
115
As afirmações de Singer são influenciadas principalmente pelos estudos de Frans de Waal e Jane
Goodall. Numa dessas observações Singer revela que De Waal constatou, de modo inequívoco, a
existência tanto de consciência de si quanto a percepção da consciência do outro: “Os chipanzés vivem
em grupos, nos quais um macho vai ser a figura dominante, atacando outros machos que queiram
acasalar-se com as fêmeas receptivas. Apesar disso, uma intensa atividade sexual acontece quando o
macho dominante não está vigilante. Em geral, os chipanzés machos procuram despertar o interesse
sexual das fêmeas sentando-se com as pernas abertas e o pênis ereto. (Os homens que se expõem do
mesmo modo estão dando continuidade a uma forma de comportamento dos chipanzés que se tornou
socialmente inadequada). Numa dessas ocasiões, um jovem macho estava seduzindo assim uma fêmea
quando apareceu o macho dominante. O jovem macho cobriu o pênis com as mãos, para que o macho
dominante não o visse. SINGER, 1998, p. 124-25.
Diferentemente dos agentes morais, a categoria dos pacientes morais é mais
ampla, uma vez que abrange a ambas. Isso se deve, segundo Taylor, ao fato de que um
paciente moral carece, ou pode ter perdido temporária, ou permanentemente, as
capacidades para ser um agente moral. Contudo, tais seres mantêm um status que impõe
aos agentes certos deveres:
Podemos definir um paciente (subject) moral como qualquer ser que pode ser
tratado correta ou erroneamente e para quem os agentes morais podem ter deveres
e responsabilidades. Deve ser possível para tais seres que suas condições de
existência sejam melhoradas ou pioradas pelas ações dos agentes morais. Deve
fazer sentido tratá-los bem ou mal.
116
É importante ressaltar que não faz sentido afirmar deveres de um agente moral
para com algo que não pode ser tratado bem ou mal. Tampouco um agente moral tem
responsabilidades quanto a não causar prejuízos, ou proteger algo, se isso não fizer
qualquer sentido. Para Taylor: “pacientes morais são entidades que podem ser
prejudicadas ou beneficiadas”.
117
O autor ainda chama atenção para o fato relevante de
quetodos os agentes morais são pacientes morais, mas nem todos os pacientes morais
podem ser agentes morais”.
118
Esse status do paciente moral promove uma mudança na
perspectiva da consideração moral, limitando o poder dos agentes morais. Essa sem
dúvida é uma das teses centrais da teoria de Taylor, visto que a perspectiva do paciente
moral propõe uma mudança fundamental no ponto de vista dos julgamentos morais. Diz
o autor:
Talvez o fato eticamente significativo sobre os pacientes [subject] morais seja que
sempre é possível para um agente moral colocar-se na perspectiva do paciente
moral e fazer julgamentos desse ponto de vista, sobre como deve ser tratado.O
padrão implícito nesses julgamentos é a ampliação, ou preservação, do bem-estar
do objeto [da ação], não de quem está julgando.
119
116
TAYLOR, 1989, p. 17.
117
Idem, p. 17.
118
Idem, p. 16-17.
119
TAYLOR, 1989, p. 17.
A perspectiva dos pacientes morais amplia a linha divisória entre os não-
consideráveis e os consideráveis moralmente. Nessa categoria Taylor classifica todas as
entidades vivas de quem se pode afirmar, e faz sentido dizer, que têm um bem que pode
ser beneficiado ou prejudicado, não sendo possível afirmar o mesmo com relação aos
objetos inanimados. Sobre isso, Taylor é enfático:
...objetos inanimados não são objetos morais, as condições puramente físicas de
um ambiente natural devem, de um ponto de vista moral, ser cuidadosamente
separados dos animais e plantas que dependem daquelas condições para sua
sobrevivência.
120
Diretamente, nada obriga os agentes morais terem deveres para com um rio. Mas
certamente deveres para com os peixes e organismos que necessitam das condições
físicas adequadas para o desenvolvimento de suas vidas. Mesmo que um rio não seja um
paciente moral, agentes morais têm o dever de não poluí-lo para cumprir certos deveres
para com os pacientes morais, dependentes dele para sobreviver.
Do ponto de vista moral é significativo, para Taylor, o fato de que, no meio
ambiente natural, objetos inanimados podem ser modificados, destruídos, ou
preservados por agentes morais. Mas a importância dessa preservação se limita ao bem
ou mal-estar proporcionados aos pacientes morais.
121
2.1.2 Condições para a validade dos princípios éticos
A proposta ética de Taylor não difere do formato da ética humana, com respeito
às condições que um princípio ou regra deve satisfazer para ser considerado válido,
dentro de um sistema ético normativo: impor exigências morais aos agentes morais
122
. O
autor constrói sua ética segundo as mesmas condições que constituem o sistema ético
dos humanos.
2.1.2.1 Condições formais
Um princípio ou regra, tanto no modelo de ética ambiental quanto no humano,
segundo Taylor, deve satisfazer algumas condições:
120
Idem, p. 18.
121
Idem, p. 18.
122
Idem, p. 25.
a) Ser geral na forma. Não deve conter qualquer referência a pessoas ou ações
em particular, mencionando somente tipos de coisas em termos de suas
propriedades.
123
b) Ser aplicável universalmente por todos os agentes morais. Regras que não
podem ser aplicáveis universalmente não são morais.
124
c) Ser aplicada imparcialmente, de forma desinteressada. Tais padrões e regras
devem servir como “imperativo categórico”, como um princípio que deve ser
seguido por todos os agentes, independentemente de seus fins ou interesses
particulares.
125
d) Ser defendida como um princípio normativo de caráter público, adotado por
todos. Essa condição reafirma a exigência de generalidade, universalidade e
imparcialidade. Um padrão ou regra moral será válido, somente se todos o
adotam como seu guia normativo, cujos padrões e regras devem ser desejados
como lei universal para todos os seres racionais.
126
e) Ser adotada acima de todas as normas não-morais. Uma consideração moral
válida precede todas as considerações não-morais, visto que, razões não-
morais para o agir são carentes de alguma, ou de todas, as condições listadas
anteriormente.
Uma norma ou regra somente pode ser considerada válida, se obedecer a essas
condições formais, seja na ética humana ou na ambiental.
2.1.2.2 Condições materiais
Satisfeitas as condições formais, o segundo passo para tornar um princípio, ou
regra, válido consiste em levar em conta as condições materiais. Na ética humana,
Taylor lembra que a condição material (conteúdo) de regras e padrões válidos,
corresponde à concepção de seres humanos como pessoas.
Para distinguir os dois conceitos, Taylor apresenta uma importante distinção a ser
considerada: 1) ser humano deve ser entendido como mamífero da espécie Homo
sapiens, enquanto 2) pessoa consiste basicamente em ser um centro de escolha e de
juízo de valor, autônomo. Diz Taylor: “pessoas são seres que direcionam suas vidas
123
TAYLOR, 1989, p. 27.
124
Idem, p. 28.
125
Idem, p. 29.
126
Idem, p. 31.
com base em seus próprios valores”;
127
têm diferentes sistemas de valor que implicam
em variações na suas considerações do que seja uma vida verdadeiramente boa, ou o
tipo de vida que julgam mais valiosa. Mas o autor não concorda com a ideia de pensar o
sistema-valor das pessoas como um conjunto de meras preferências particulares,
tampouco como uma desestruturada série de gostos e dissabores, desejos e aversões,
respostas positivas e negativas para o mundo a sua volta.
128
Para fazer julgamentos e ter preferências, se pressupõe que pessoas têm um senso
de sua própria identidade, sejam capazes de acreditar que no futuro serão as mesmas
pessoas de hoje, mesmo que as circunstâncias externas mudem. Para Taylor, somente
seres com esse tipo de autoconsciência podem ser pessoas.
129
Apesar de reconhecer a possibilidade do desenvolvimento de algum grau de
personalidade em macacos, gorilas, chipanzés e outros primatas, o autor prefere deixar
em aberto, e não se detém em sua teoria, sobre a inquietante questão de saber, se
somente humanos podem ser pessoas.
Cada indivíduo, para defender certas regras e padrões precisa ter em mente que ao
adotá-las universalmente está agindo como um agente moral, não podendo defendê-la
conforme um sistema de valor particular. Segundo Taylor, para serem aceitas por todos,
regras e padrões devem possibilitar a cada pessoa a realização de seu próprio sistema de
valores, desde que compatível com o desejo de todos.
130
Para o autor é conclusivo que pessoas autônomas e racionais, agindo como
agentes morais, somente serão unânimes em adotar padrões e regras que estejam de
acordo com as cinco condições formais, se tais regras e padrões representam o princípio
que respeita a autonomia de cada pessoa em viver de acordo com o sistema-valor
escolhido. Portanto, escreve Taylor: “um sistema humano de ética válido é um conjunto
de regras e padrões morais que representam o princípio de respeito por todas as pessoas
como pessoas”.
131
Três componentes principais constituem a ética humana: 1) sistema
de crenças; 2) atitude de respeito pelas pessoas; 2) sistema de regras e padrões válidos
que atendam as cinco condições formais.
132
127
TAYLOR, 1989, p. 34.
128
Idem, p. 34.
129
Idem, p. 35.
130
Idem, p. 38.
131
Idem, p. 38.
132
TAYLOR, 1989, p. 41-2.
Subsumindo o conteúdo normativo, diferentes nas concepções éticas humana e
ambiental, com respeito aos principais componentes de seu sistema interno, Taylor
defende a existência de paralelos significativos entre ambas.
2.2 A perspectiva biocêntrica
A maneira de ver o mundo e o estatuto de relacionamento para com as coisas
vivas do ambiente natural constitui um sistema de crenças. Diz Taylor: “o que o mundo
natural tem de moral significância para nós, depende da forma como olhamos para o
sistema da natureza como um todo e o nosso papel nele”.
133
Dessa perspectiva, ter a
atitude de respeito frente à natureza significa compartilhar as crenças que formam um
núcleo biocêntrico, a saber:
134
1. Os humanos são membros da Comunidade de Vida da Terra no mesmo
sentido, e nos mesmos termos, em que outras coisas vivas são membros dessa
comunidade;
2. A espécie humana, com todas as outras, é parte essencial num sistema de
interdependência, em que a sobrevivência de cada coisa viva, e suas chances
de viver bem ou mal são determinadas, tanto pelas condições físicas do meio
ambiente quanto pelas relações com as outras coisas vivas;
3. Todos os organismos vivos são centros teleológicos de vida, no sentido que
cada um é um indivíduo singular, buscando seu bem próprio à sua maneira;
4. Seres humanos não são inerentemente superiores às outras coisas vivas.
Para o autor, aceitar essas crenças significa ter uma visão coerente do mundo
natural, e do lugar dos seres humanos nele; compreender como característica
fundamental de sua existência que são uma espécie biológica entre as outras. Além da
consciência de compartilharem com outras formas de vida, em comum, a origem e as
condições ambientais que circundam a todos.
2.2.1 Seres humanos como membros da Comunidade de Vida da Terra
133
Idem, p. 99.
134
Idem, p. 99-100.
O reconhecimento da humana condição de membro da Comunidade de Vida da
Terra, segundo Taylor, fundamenta-se em cinco realidades:
a. Seres humanos, tanto quanto os outros organismos, devem encarar certas
exigências físicas e biológicas para sua sobrevivência e bem-estar
135
.
A constante necessidade de ajustar-se ao ambiente em transformação e às
atividades de outros organismos ao seu redor é uma das condições que se impõe
indistintamente, tanto aos humanos quanto a qualquer outro animal ou planta, para
preservar sua existência como organismos. Todos devem ser constantemente capazes de
manter certas relações com os membros de outras espécies. Para Taylor, a aclamada
diferença entre humanos e outras formas de vida, se constitui unicamente no livre
desejo e autonomia para decidir o que fazer de sua vida, seja para a realização de
valores, ou para fins autodestrutivos, característica que não es presente nas outras
espécies.
b. Todas as formas de vida compartilham o fato de pertencerem à comunidade
de vida da Terra
136
.
No entender de Taylor, esse fato inclui humanos e não-humanos no escopo do
conceito de entidade-com-um-bem-próprio, característica presente em toda coisa viva,
pela qual pode ser beneficiado ou prejudicado.
c. Ideia de liberdade
137
que iguala humanos e não-humanos.
138
Segundo Taylor, ser livre, nesse sentido, é ser capaz de preservar a existência e
promover seu bem, enquanto, estar preso é estar impedido ou ser incapaz de fazer certas
coisas, condição importante para qualquer coisa viva na batalha para a realização de seu
bem.
d. Origem comum dos humanos e as outras coisas vivas.
139
Com respeito à natureza humana e às circunstâncias do seu aparecimento, do
ponto de vista da teoria da evolução, o autor defende que algumas considerações devem
ser feitas:
140
1) a ordem dos processos evolucionários com as mesmas leis da seleção
natural e transmissão de genes culminou na origem da existência humana e de todas as
135
TAYLOR, 1989, p. 102-03.
136
Idem, p. 104.
137
Liberdade cujo sentido equivale à ausência de restrições. Quatro tipos de restrições podem ser
combinadas: 1) Externa positiva portas fechadas, cercas, tortura... 2) Interna positiva pensamentos e
sentimentos obsessivos, desejos compulsivos e incontroláveis, necessidades físicas extremas... 3) Externa
negativa ausência de dinheiro, comida, água, serviços médicos... 4) Interna negativa ausência de
conhecimento, habilidades, saúde, deficiência física e mental. Idem, p. 106.
138
Idem, p. 105-06.
139
Idem, p. 111.
140
TAYLOR, 1989, p. 111-12.
outras espécies, emergindo fundamentalmente da mesma maneira pelo efeito das
mesmas causas básicas; 2) a aparição da espécie Homo sapiens, da perspectiva
evolucionária, é o mais recente evento na história da vida na Terra. Comparada com
algumas espécies de animais e plantas, a existência humana representa um instante no
espectro do tempo; 3) muito antes da aparição dos humanos na Terra, um sistema de
relações entre as espécies já havia se estabelecido, culminando na mútua adaptação e
interdependência, nas mudanças e transmissão genética de acordo com as leis da seleção
natural.
Somente a vaidade, enfatiza Taylor, explica a convicção de que a evolução segue
na direção das formas mais altas de vida, tendo a humana como a expressão de
existência superior.
141
e. De um ponto de vista biológico, humanos são absolutamente dependentes da
solidez e boa saúde da biosfera da Terra.
142
Além de recém-chegados, lembra Taylor, os humanos são incapazes de manter-se
sem o auxílio dos demais integrantes da ordem natural da vida. Da integridade de todo o
reino de vida, os humanos dependem absolutamente. Comprometer essa ordem, também
compromete sua existência.
O contrário, entretanto, não é verdadeiro, afirma Taylor. O desaparecimento total
e absoluto da espécie Homo sapiens não comprometeria a existência da Comunidade de
Vida da Terra, sua presença não é necessária, sua extinção poderia até mesmo ser
benéfica às outras formas de vida, visto que junto com ela desapareceria a destruição
dos habitats naturais, empreendidos para dar lugar aos complexos industriais,
aeroportos, entre outros projetos em grande escala, produtos da cultura humana.
143
141
Idem, p. 113.
142
Idem, p. 113-14.
143
Idem, p. 114.
2.2.2 O mundo natural: um sistema de interdependência
Quando alguém aceita a perspectiva biocêntrica da natureza significa que entende
o reino da vida como um complexo de relações de interdependência amplo, similar ao
que se encontra em cada ecossistema. Diz o autor:
Nenhuma comunidade de vida associada a um sistema ecológico particular é uma
unidade isolada. Ela está diretamente, ou indiretamente, conectada com outras
comunidades de vida. As conexões entre elas são similares àquelas mantidas entre
as populações dentro do ecossistema. O que acontece para um acarretará
consequências para os outros.
144
A perspectiva biocêntrica oferece a base para o entendimento do lugar da vida
humana no sistema natural. Mas não se pode confundir tal perspectiva com uma visão
organicista, ou holística, de ética ambiental.
Taylor critica no organicismo a ausência de preocupação com o bem dos
organismos individuais. O bem individual é considerado apenas quando contribui para o
bem-estar do sistema. O autor particularmente questiona a razoabilidade de considerar
moralmente o bem-estar da Terra como um organismo, ao mesmo tempo em que é
negado semelhante tratamento ao bem de cada organismo.
Com a recusa de uma ética centrada no ser humano, a consideração com o mundo
natural torna-se relevante justamente por referir-se à vida particular dos seres, cujas
ações humanas podem tornar melhor ou pior.
145
2.2.3 Centros teleológicos de vida
Organismos como centros teleológicos de vida não devem ser entendidos dentro
de uma concepção antropomórfica. Segundo Taylor, o conceito não permite,
principalmente, conceber os organismos analogamente às características humanas.
No que se refere particularmente à concepção que se tem quanto ao que seja a
mente, o autor lembra que árvores, protozoários, entre outros organismos, na medida
144
TAYLOR, 1989, p. 117.
145
Idem, p. 118.
que podemos afirmar, não são conscientes do mundo a sua volta, não têm pensamentos
ou sentimentos, nem expressam interesses frente ao que lhes acontece.
146
Cada coisa viva, concebida como um centro teleológico de vida, tem um ponto de
vista único e singular, determinado pelo modo particular desse organismo responder ao
seu ambiente, ao mesmo tempo em que interage com outros organismos, além de
transformações regulares e reguladas pelas quais passam no seu ciclo de vida.
Para o autor, certos aspectos estabelecem critérios para a distinção entre coisas
vivas e objetos inanimados. Diz Taylor:
...o que nossa consciência concebe ser uma pedra difere fundamentalmente de
nossa consciência sobre o que seja uma planta ou animal. A pedra não é um centro
teleológico de vida, enquanto um animal ou planta é. Uma pedra não tem um bem
próprio. Não podemos beneficiá-la promovendo seu bem-estar ou prejudicá-la por
agir contrariamente ao seu bem-estar, que esse conceito de bem-estar
simplesmente não se aplica a ela.
147
Compreender e aceitar que coisas vivas são centros teleológicos de vida implica
incluir todos numa situação de igualdade na comunidade de vida da Terra.
2.2.4 O mito da superioridade humana
O elemento mais importante na proposta de ética ambiental biocentrista de Taylor
consiste na atitude de respeito pela natureza. Contudo, decidir adotar essa atitude
significa, para os humanos, abandonar a crença em sua superioridade frente às outras
formas de vida.
A crença de que a razão e o livre-arbítrio são capacidades que colocam os
humanos numa condição de superioridade, segundo Taylor, perde o sentido em
contraste com certas capacidades observadas somente em outras espécies. O vôo dos
pássaros, a velocidade da pantera, a agilidade dos macacos no topo das árvores são
capacidades valiosas para eles, da mesma forma como são, para os humanos, a razão e o
livre-arbítrio.
146
TAYLOR, 1989, p. 122.
147
Idem, p. 123.
Para Taylor, somente o ponto de vista particular dos seres humanos é capaz de
fundamentar a crença em sua superioridade. Mas a superioridade pode ser pensada do
ponto de vista da capacidade humana para refletir sobre si mesmo, e a semelhante
condição biológica à qual está submetido com as outras formas de vida. Semelhante
reflexão somente seria possível, defende o autor, se os seres humanos, num exercício de
imaginação, concebessem os valores e as capacidades das outras formas de vida, a partir
de seus próprios pontos de vista, percebendo as condições semelhantes de sobrevivência
que cercam todos os organismos.
148
Obviamente, os seres humanos são os únicos seres
capazes de fazer julgamentos de valor significativos sobre o que é bom, excelente ou
belo, de acordo com seus padrões e méritos que não se aplicam as outras formas de
vida.
Contudo, algumas ideias são subjacentes à concepção de superioridade humana e,
segundo Taylor, estão sujeitas a objeções:
1) “Humanos são moralmente superiores porque possuem as capacidades
exigidas para ser agente moral”.
149
Nessa ideia, capacidades humanas tais quais, livre-arbítrio, responsabilidade,
deliberação e razão prática, ausentes em outras espécies, são consideradas nobres e
dignas, pelo fato de pertencerem somente a seres responsáveis moralmente.
No entender de Taylor uma confusão está presente nesse pensamento. O que
caracteriza um agente moral é a possibilidade de qualificá-lo como bom ou mau.
Somente seres com a capacidade de ser agente moral podem ser assim considerados.
Julgamentos quanto à superioridade moral estão baseados em méritos e deficiências
comparativas, determinadas por padrões morais, nas entidades julgadas.
150
Seres humanos não podem ser considerados superiores aos outros animais e
plantas, pois a esses não se aplicam padrões morais. Taylor considera sem sentido falar
de animais e plantas como moralmente bons ou maus, da mesma forma que não faz
sentido considerá-los moralmente inferiores aos humanos.
151
2) “A superioridade humana deve ser entendida simplesmente em virtude de sua
humanidade, tendo um valor inerente maior com respeito a animais e
plantas”.
152
148
TAYLOR, 1989, p. 130.
149
Idem, p. 131.
150
Idem, p. 132.
151
Idem, p. 131-32.
152
Idem, p. 133.
Se qualquer gradação do valor inerente for considerada, tendo o ser humano como
a expressão mais alta desse valor, qualquer conflito que porventura possa surgir entre o
bem-estar desses e dos outros organismos, humanos terão seus interesses considerados
prioritariamente. Embora ambos mereçam consideração moral, Taylor acredita que isso
não aconteceria de forma igual. O bem-estar de um humano, exatamente por ser
humano, estaria sempre acima do bem-estar de um animal, ou planta.
Entretanto, Taylor considera que a negação da superioridade humana é o resultado
lógico de dois passos: 1) mostrar que não boas razões para aceitar a superioridade
humana visto ser uma doutrina totalmente sem fundamento; 2) mostrar que boas
razões para rejeitá-la como uma doutrina frágil ou inaceitável
Ao longo da história, alguns argumentos ofereceram suporte para sustentar a
doutrina da superioridade humana. Numa análise mais detalhada, contudo, Taylor
afirma que tais argumentos não se sustentam. Principalmente três fizeram história:
1) A definição grega clássica de humanos como seres racionais, capacidade essa
essencial e única para distingui-lo dos outros animais, agregando-lhes um
valor especial, ausente nas outras formas de vida.
153
Taylor considera essa visão fraca, no sentido de oferecer alguma justificativa que
possibilite defender a superioridade humana. Visto que a racionalidade deve ser
entendida como uma capacidade, entre outras, que permite aos humanos realizar seu
próprio bem.
2) O conceito da grande cadeia de seres coloca os seres humanos no topo, como
seres inerentemente superiores a todos os outros.
154
Fundamentalmente, essa ideia baseia-se num padrão de crenças em que juntos,
Deus
155
e o mundo, formam a totalidade da existência, numa grande hierarquia que
compreende desde as mais baixas, até as mais altas formas de vida. A proposição de
diferentes graus de valor inerente às coisas vivas está relacionada a sua posição ao longo
da cadeia de seres.
Segundo Taylor, essa ideia de superioridade humana, na perspectiva
antropocêntrica, deve ser entendida num contexto entre anjos
156
e bestas, numa dupla
153
TAYLOR, 1989, p. 135.
154
Idem, p. 139.
155
Para o propósito dessa argumentação, Taylor recomenda que a existência de Deus, como ideia de um
ser necessário, não deve ser questionada. Idem, p. 140.
156
Anjos concebidos como seres espirituais (não-materiais, sem corpos) e imortais. Os seres mais
próximos de Deus na hierarquia. Tão perfeitos quanto finitos e contingentes uma entidade pode ser. De
acordo com a teologia, servem como mensageiros entre Deus e os homens. Ibidem
existência que compartilha da natureza de ambos. Nessa perspectiva, assim como os
anjos, os humanos têm alma imortal, ao mesmo tempo em que têm corpos como as
bestas. Como seres espirituais estão submetidos às leis de Deus, feitos a sua imagem e
semelhança.
Apesar da contingente existência que coloca os seres humanos numa posição
inferior a dos seres divinos, ainda permanecem numa posição superior em relação a
todas as outras criaturas de Deus. Pois, lembra Taylor, na concepção tradicional, Deus
teria concedido aos seres humanos um status superior na Terra, na posição de senhores
e mestres de todas as outras criaturas vivas.
157
Taylor considera esse argumento particularmente antropocêntrico e,
consequentemente, inadequado para justificar a afirmação de que seres humanos têm
valor inerente maior que outras formas de vida. Se o ponto de vista dos animais e
plantas fosse adotado, afirma o autor, Deus não poderia ser considerado amoroso,
piedoso, ou justo, quando concede aos seres humanos domínio total sobre todas as
criaturas, ao mesmo tempo em que concede a essas um status inferior. Essa gradação,
continua Taylor, coloca em dúvida a própria crença na perfeição absoluta do amor de
Deus por todas as suas criaturas.
158
3) A ideia da inerente superioridade humana é reforçada pelo dualismo
metafísico inaugurado por Descartes.
159
Na visão clássica, os humanos são seres superiores porque têm uma alma, ou
mente, e um corpo, enquanto animais e plantas possuem apenas corpos. A combinação
mente-corpo capacita os humanos à razão e ao livre-arbítrio, enquanto os animais e
plantas são autômatos, apenas máquinas físicas.
Para Taylor, essa ideia apresenta três problemas:
160
1) seres humanos concebidos
como uma dupla substância; 2) a demonstração cartesiana da distinção entre seres
humanos e outros animais; 3) a reivindicação de que humanos têm maior valor inerente
que os outros animais porque possuem mente e corpo.
No primeiro problema, Taylor questiona a possibilidade de a mente e o corpo de
uma pessoa serem duas substâncias distintas, com propriedades diferentes. Se a mente é
uma substancia não-espacial, e o corpo um objeto tridimensional sólido, carente das
propriedades do pensamento e consciência, como afirma Descartes, conceber uma
157
TAYLOR, 1989, p. 140.
158
Idem, p. 142.
159
Idem, p. 143.
160
Idem, p. 144-45.
pessoa nesses termos confronta-nos com o problema insondável de saber como essas
duas substâncias se conectam para formar tal indivíduo.
Da mesma forma, se Descartes afirma que a mente não pode ser localizada no
espaço, isso torna incompreensível a tese da conexão mente e corpo, que exige a
ocorrência de transformações químicas no cérebro como resultado direto da intervenção
de algo que não tem qualquer propriedade química. Segundo Taylor, isso acarreta a
rejeição do conceito cartesiano de pessoa pela filosofia contemporânea.
161
Quanto ao segundo problema, o fato dos humanos serem entidades físicas e
mentais, enquanto os animais são apenas físicos, torna-os entidades completamente
diferentes. Segundo Taylor, as descobertas da biologia muito enfraqueceram a tese
cartesiana. Principalmente os mamíferos são exemplos da evidente capacidade de sentir
dor e prazer, expressa por seu comportamento e inferida pela estrutura interna de seu
cérebro e sistema nervoso, os quais possibilitam experimentar uma variedade ampla de
emoções, além das capacidades para a inteligência e pensamento.
Para Taylor, existem mais semelhanças do que diferenças entre os seres humanos
e os outros animais. Embora elas existam, tais diferenças parecem ser mais de grau do
que de tipo.
162
o terceiro problema surge da reivindicação de que humanos têm maior valor
inerente que os animais, porque são seres de mente e corpo, enquanto os animais são
apenas corpóreos. Para Taylor, possuir uma mente torna os seres humanos capazes de
buscar seu bem-próprio, mas não lhe agrega qualquer valor superior em relação às
outras espécies. Ao contrário, a racionalidade não é uma capacidade que os outros seres
careçam, ou necessitem, para a realização de seu bem-próprio. Taylor reforça que
animais e plantas, mesmo carentes de uma mente, realizam seu bem-próprio e vivem o
que se pode afirmar uma vida boa, a seu modo. Somente a parcialidade antropocêntrica,
continua o autor, exige atribuir valor inerente superior para os seres humanos, em
virtude de possuírem algo que os outros organismos não têm.
163
Além dos três históricos argumentos que defendem a superioridade humana, uma
versão contemporânea é defendida por Louis G. Lombardi. Segundo Taylor, os pontos
centrais da tese do autor são:
164
1) animais, plantas e humanos são coisas vivas de tipos
diferentes; 2) o que distingue os tipos de vida é a variedade de capacidades; 3) quanto
161
TAYLOR, 1989, p. 144-45.
162
Idem, p. 145.
163
Idem, p. 146.
164
Idem, p. 147.
maior a variedade de capacidades de uma entidade, mais alto seu valor inerente; e 4)
humanos são os seres com maior variedade de capacidades, isso os torna superiores em
valor aos animais e plantas que apresentam menor variedade.
Fundamentalmente o critério de Lombardi para estabelecer graus de valor está no
conceito de variedade de capacidades. Para Taylor, entretanto, a questão principal é
saber por que a ampla variedade de capacidade seria um critério válido para
fundamentar a gradação do valor inerente. Nenhuma conclusão a favor da superioridade
humana pode ser obtida meramente a partir do fato de os humanos terem capacidades
adicionais, não encontradas em outras espécies.
165
Segundo Taylor, Lombardi ignora o fato de que, se as coisas vivas m valor
inerente, o fundamento desse valor não está na consideração de suas capacidades por si
mesmas, mas na maneira como estão organizadas e inter-relacionadas funcionalmente
para a realização de seu bem.
O valor de um organismo não está em suas capacidades, mas na concepção do que
é bom ou mau, do que o beneficia ou prejudica, na realização desse bem, e na maneira
como busca realizá-lo.
166
Assim, não existindo boas razões para defender a superioridade humana, Taylor
considera qualquer tentativa arbitrária. O modo de resolver esse impasse, continua o
autor, está relacionado à aceitação da perspectiva biocêntrica da natureza: a concepção
de que os humanos são membros da comunidade de vida da Terra, a visão da natureza
como um sistema de interdependência e a concepção de que os organismos são centros
teleológicos de vida.
167
A justificativa de Taylor para defender a negação da superioridade humana
fundamenta-se na adoção da maneira biocêntrica de ver o reino da natureza e da vida.
Diz o autor:
Se virmos o reino da natureza e da vida pela perspectiva dos elementos do
panorama biocêntrico, veremos a nós mesmos como tendo um profundo
parentesco com todas as coisas vivas, compartilhando com elas muitas
características em comum e, de forma semelhante, sendo parte integrante de um
grande todo que engloba a ordem natural da vida em nosso planeta.
168
165
TAYLOR, 1989, p. 148.
166
Idem, p. 148.
167
Idem, p. 153.
168
TAYLOR, 1989, p. 154.
Além disso, a rejeição, tanto da ideia de superioridade humana quanto a de
algumas espécies em relação a outras, significa agir de acordo com o princípio de
imparcialidade, segundo o qual todas as coisas vivas, independentemente de pertencer a
uma outra espécie, merecem igual respeito e consideração da parte dos agentes morais.
Para Taylor, o elo entre o panorama biocêntrico e o respeito pela natureza está na
negação da superioridade humana, ou de qualquer outra espécie, e na afirmação do
princípio de imparcialidade.
169
A perspectiva biocêntrica, com seus quatro elementos constitutivos, adequados
internamente de um modo coerente, forma uma visão compreensiva do reino da
natureza e da vida em nosso planeta. No entender de Taylor, uma espécie de mapa do
mundo natural que possibilita aos humanos verem de que modo se enquadram no
esquema total das coisas; além de apresentar o reino da natureza e da vida como cenário
da existência humana.
170
Da mesma forma, a perspectiva biocêntrica, defende Taylor, proporciona aos
humanos conscientizar-se de sua condição biológica que impõe certas exigências e
restrições na sua conduta em relação ao ambiente físico e as coisas vivas da Terra, uma
vez que todas as coisas vivas, numa relação de interdependência, constituem a ordem
natural do mundo.
171
Taylor busca mostrar que o panorama biocêntrico satisfaz os critérios históricos
para qualificá-lo como visão filosófica de mundo. Na história da filosofia, quatro
critérios são tradicionalmente exigidos:
1. Abrangência e completude: a perspectiva biocêntrica oferece uma visão ampla
e completa da vida e da natureza na Terra, sem deixar brechas em nosso
entendimento.
172
2. Ordenação sistemática, coerência e consistência interna: a perspectiva se
constitui num sistema de crença, um conjunto bem ordenado de conceitos e
proposições.
173
3. Liberdade frente à obscuridade, confusão conceitual e vagueza semântica: o
conteúdo da perspectiva biocêntrica orienta-se pela ciência e sua importante
169
Idem, p. 155.
170
Idem, p. 156.
171
Idem, p. 156-57.
172
Idem, p. 159.
173
TAYLOR, 1989, p. 160.
contribuição para o conhecimento de certos processos da natureza,
principalmente a física e a biologia.
174
4. Consistência com verdades empíricas conhecidas: sempre que descobertas
científicas tornam-se públicas, elas provocam mudanças na perspectiva
biocêntrica da natureza. Tais descobertas são de fundamental importância para
a compreensão do sistema da natureza.
Mas a aceitação da perspectiva biocêntrica como uma filosófica visão de mundo
depende de certas condições ideais. Quando aceitas, essas condições, segundo Taylor,
se convertem em testes para os agentes morais, colocando-os na melhor posição para
escolher uma visão, ao invés de outra, além da maneira própria de compreender o
domínio da realidade na qual atuam como agentes.
Essas condições, continua Taylor, definem traços que de modo ideal tornam o
agente moral um avaliador competente das diferentes visões de mundo. Ao todo, três
condições capacitam o agente moral a aceitar a perspectiva biocêntrica como visão de
mundo:
1. Sensatez de pensamento e julgamento: relacionadas às capacidades de
objetividade e imparcialidade.
175
2. Conhecimento factual: estar plenamente informado, ou tanto quanto possível,
de todas as evidências válidas, com respeito ao conteúdo empírico de todas as
visões de mundo alternativas, entre as quais uma decisão deve ser tomada.
176
3. Consciência da realidade: no caso em questão, da realidade da vida dos
organismos individuais, àqueles cujas condições de vida poderiam ser afetadas
para melhor, ou pior, segundo a visão de mundo aceita pelos agentes morais.
177
A perspectiva biocêntrica não é uma visão de mundo comprovada, nem poderia
ser. Pois, visões de mundo não são sistemas dedutivos formais, teorias científicas,
lógica pura, tampouco procedimentos de confirmação empírica. Mas, decidir sobre a
adequação de uma visão de mundo significa aplicar testes de validade dedutiva e
probabilidade indutiva. Segundo Taylor, tais processos podem ser aplicados à visão
174
Ibidem
175
Objetividade no sentido de estar disposto a considerar somente os méritos de um argumento,
independentemente de quem o ofereça, e de seus motivos. Imparcialidade, a disposição de julgar de modo
desinteressado, sem estar influenciado por interesses pessoais ou de outros como família, amigos, grupos
sociais, raça, sexo, entre outros. Idem, p. 162.
176
Idem, p. 162.
177
Idem, p. 164.
biocêntrica de natureza para mostrar que existem boas razões para que seja aceita pelos
agentes morais.
178
A visão biocêntrica é subjacente, ao mesmo tempo em que oferece suporte, à
atitude de respeito pela natureza, afirma Taylor. Seus quatro elementos constituintes
oferecem a clara compreensão da totalidade da biosfera da Terra, e das relações
humanas. Isso implica que a atitude de respeito parece ser a mais adequada que um
agente moral pode ter frente à natureza. Para o autor, uma vez que existam boas razões
para um agente moral aceitar a visão biocêntrica, o mesmo vale para a atitude de
respeito pela natureza.
179
2.3 A atitude de respeito pela natureza
A proposta de ética ambiental do respeito pela natureza é uma teoria alternativa de
Taylor para substituir a visão antropocêntrica de natureza. Em sua perspectiva
biocêntrica, o autor pretende atribuir bem-inerente (inherent worth) a toda coisa viva
silvestre de quem se pode afirmar que possui um bem-próprio (good of its own).
Segundo o autor, esses dois conceitos são essenciais para compreender o que
significa para um agente autônomo e racional tomar a atitude de respeito pela natureza
como atitude moral última.
2.3.1 O conceito de bem-próprio
Para dizer que um ser pertence à classe de entidades de quem se pode afirmar que
tem um bem, Taylor defende que primeiro é preciso saber se faz sentido falar que algo é
bom ou mau para esse ser. Se pudermos afirmar que faz sentido falar do que é bom ou
mau para esse ser, sem referência a qualquer outra entidade, então se pode dizer que ela
possui um bem que lhe é próprio
180
.
O bem de alguma coisa viva está conectado com o que é bom para ela, e o que lhe
faz bem. Algo que é bom ou faz bem se constitui no que promove, ou protege, esse
bem.
181
178
TAYLOR, 1989, p. 167.
179
Idem, p. 167-68.
180
Idem, p. 61-2.
181
“Promover o bem-próprio significa, ao mesmo tempo, encontrar um estado de bem-estar ainda não
constituído na condução de seu bem, ou extirpar uma condição que reduza seu bem. Proteger o bem-
próprio pode ser feito de diversas formas: evitar causar um dano, prevenir quanto a perda de algo
Conceito igualmente fundamental na teoria de Taylor é o de interesse.
182
Segundo
o autor, existem entidades que possuem um bem próprio, de quem, contudo, não se
pode afirmar que têm interesse. Pode-se definir tais entidades como aquelas coisas vivas
que carecem de consciência, ou, se conscientes, carecem da habilidade de fazer
escolhas. Falar que essas coisas vivas têm um bem faz sentido, visto podermos
igualmente afirmar a possibilidade de serem prejudicadas, ou beneficiadas, por nossas
ações.
Na categoria de seres com bem próprio, segundo Taylor, estão todas as formas de
vida vegetal e as mais simples formas de vida animal. Do ponto de vista desses seres,
coisas podem acontecer a eles que podem ser julgadas favoráveis ou desfavoráveis. Para
tanto, é necessário ter nítida a distinção entre uma entidade tendo um interesse em algo
e algo sendo do interesse de uma entidade. Taylor escreve:
Para saber se algo é do interesse de X, não é necessário descobrir se X tem um
interesse em algo. Mas, se a coisa em questão irá promover objetivamente o bem-
estar total de X, sem a influência de crenças, desejos, sentimentos ou interesses
conscientes que X possa ter. Seguindo essa lógica, objetos inanimados, não
possuem um bem próprio, pois não satisfazem essa noção de interesse.
183
Um dos princípios fundamentais da teoria ética biocêntrica sustenta que todos os
animais, por mais diferentes que possam ser dos humanos, são seres que têm um bem
próprio
184
. Mas, um segundo princípio fundamental afirma que todas as plantas são
igualmente seres que têm um bem-próprio.
Para reconhecer que um bem nas plantas, sem qualquer traço de
antropomorfismo, é necessário que os seres humanos adotem o ponto de vista da
entidade de quem se afirma ter um bem, fazendo um julgamento factualmente
informado e objetivo do que é desejável ou indesejável do ponto de vista dela.
185
Assim,
afirmar que uma entidade tem um bem-próprio é reconhecer que ela tem interesses, no
necessário a preservação de seu bem, mantendo-o salvo de perigos, evitando danos que poderiam advir.
Por definição, todas essas formas de promoção e proteção do bem-próprio são benéficas para a entidade”.
TAYLOR, 1989, p. 62.
182
“No sentido de ter fins e buscar os meios de realizá-lo”. Ibidem
183
Idem, p. 63.
184
Idem, p. 66.
185
TAYLOR, 1989, p. 67.
sentido de ter fins e buscar meios para alcançá-los. A partir dessa atitude pode-se
afirmar que tais entidades têm um bem inerente (inherent worth).
186
Para Taylor, é fundamental ter boa vontade para adotar o ponto de vista das coisas
vivas não-humanas.
187
Fazer julgamentos, desse ponto de vista, é um dos elementos
centrais para a ética do respeito pela natureza.
2.3.2 O conceito de bem inerente
Analogamente à ética humana, em que a atitude de respeito às pessoas requer o
reconhecimento nelas de um valor inerente, na ética do respeito pela natureza, “ter a
atitude de respeito pela natureza”, declara Taylor, “implica considerar plantas e animais
silvestres dos ecossistemas naturais da Terra como possuidores de bem-inerente”.
188
Importante reforçar que no sistema de crenças, proposto pela perspectiva
biocêntrica, a atitude de respeito pela natureza requer o reconhecimento de que as coisas
vivas possuem um bem próprio, conseqüentemente um bem inerente. Somente a partir
desse reconhecimento tal entidade pode ser considerada digna de respeito por parte dos
agentes morais.
189
Outro ponto importante da teoria de Taylor é a distinção que apresenta com
respeito a três concepções de valor conhecidas. Segundo o autor, para tornar claro o que
significa para uma entidade possuir um bem-inerente, é importante separá-lo
cuidadosamente, em nossa mente, de duas outras concepções de valor: valor intrínseco
(intrinsic value) e valor inerente (inherent value)
190
. É importante ter em mente a clara
compreensão das diferenças existentes entre as três concepções:
a. Valor intrínseco (intrinsic value): valor positivo atribuído às experiências,
interesses e metas a serem satisfeitos, buscados ou alcançados, as quais são
consideradas boas, ou valiosas, em virtude de sua agradabilidade.
191
186
Uma coisa viva possui um bem inerente independentemente de possuir qualquer valor instrumental ou
inerente, sem referência ao bem de qualquer outro ser. Idem, p. 75.
187
Nesse sentido de coisas vivas, estão incluídos todos aqueles que carecem de consciência ou, se
conscientes, carecem da habilidade de fazer escolhas: todas as formas de plantas e formas mais simples
de vida animal. Idem, p. 63.
188
Idem, p. 71.
189
Idem, p. 72.
190
A tradução de inherent worth por bem-inerente foi à tradução adotada para distingui-la de valor
inerente, visto que os termos value e worth possuem o mesmo siginificado em português. A intenção do
autor, ao utilizar o termo worth, parece ser afirmar que esse valor é mais significativo que o termo value
poderia oferecer. Algo que ultrapassa a simples avaliação, uma espécie de dignidade, singularidade
presente nas coisas vivas.
191
TAYLOR, 1989, p. 73.
b. Valor inerente (inherent value): tipo de valor atribuído objetos ou lugares os
quais se acredita devam ser preservados simplesmente por sua beleza,
importância histórica, ou significado cultural. Qualquer prejuízo ou dano
causados a esses objetos, ou lugares, é considerado errado do ponto de vista do
valor inerente. Importante considerar, segundo Taylor, que “o valor inerente
de algo é relativo e depende da avaliação de alguém”.
192
c. Bem inerente (inherent worth): nesses termos o valor deve ser atribuído
somente às entidades que têm um bem próprio. À medida que seja verdadeiro
afirmar que coisas vivas têm um bem próprio, então possuem tal valor,
independentemente de qualquer valor instrumental, ou valor inerente, sem
qualquer referência ao bem de algum outro ser. A possibilidade de se afirmar
que uma entidade possui bem inerente origina-se de dois julgamentos morais:
1) reconhecê-la como paciente moral, merecedora de respeito e consideração;
e 2) ter consciência que todos os agentes morais têm deveres prima-facie de
promover e preservar o bem próprio de pacientes morais.
193
Uma característica importante da teoria de Taylor consiste na delimitação dos
pacientes morais a quem o conceito de bem se aplica: às coisas vivas de ecossistemas
em estado silvestre, ou seja, não submetidos ao manejo humano. Nessas comunidades,
os fatores determinantes da vida, e sua estrutura de relações se mantém isentas de
qualquer intervenção humana.
194
Diante de tal delimitação, a teoria de Taylor não se aplica aos entes vivos,
ecossistemas ou comunidades bióticas expostas ao manejo humano, pois o bem inerente
de seres manejados foi destruído no próprio processo de manejo. Uma ética para
respeito desses interesses deve começar pelo princípio da justiça restitutiva, não pelo
respeito “ao estado do bem” no qual se encontram.
Ao tomar a decisão de delimitar o tipo de paciente moral a quem sua teoria se
aplica, Taylor demonstra cautela, expressa principalmente pela sua desconfiança ao
estabelecimento de uma ética ambiental genuína, quando agentes morais produzem,
regulam e exploram de modo sistemático, certos pacientes morais: animais e plantas,
transformados em produtos de consumo.
195
192
Idem, p. 73-4.
193
Apesar de afirmar que sua concepção de valor inerente seja independente daquela proposta por Tom
Regan em, The Case for Animal Rights, Taylor admite que ambas concepções são essencialmente iguais.
Idem, p. 75.
194
Idem, p. 3-4.
195
TAYLOR, 1989, p. 53-58.
Nesse sentido, a questão do manejo, ou não, e, conseqüentemente, a questão da
delimitação dos pacientes morais no individualismo biocêntrico de Taylor, implica num
dos conceitos fundamentais da ética do respeito pela natureza: o bem-inerente. A
igualdade na consideração dos entes com bem-inerente não é compatível com o valor
instrumental dos pacientes morais da biocultura.
196
A atitude de respeito pela natureza corresponde a um conjunto de disposições dos
agentes morais que podem ser classificadas em quatro tipos, cada um deles constituindo
um aspecto dessa atitude: dimensão valorativa (valuational), conativa (conative), prática
(pratical) e afetiva (afetive).
a. A dimensão valorativa é a disposição para considerar todas as coisas vivas
silvestres nos ecossistemas de vida da Terra como possuidoras de bem (worth)
inerente. Para Taylor, a dimensão valorativa é o aspecto central da atitude de
respeito. Todas as outras que a constituem provém dela.
197
b. A dimensão conativa é a disposição para apontar certos fins e buscar certos
propósitos. Um conjunto de quereres e desejos que na atitude de respeito pela
natureza significam: comprometer-se a evitar causar prejuízos, ou interferir
com o status natural das coisas vivas silvestres, bem como preservar sua
existência como parte da ordem da natureza.
198
c. A dimensão prática para a atitude de respeito pela natureza significa estar
disposto a realizar, ou abster-se de certos tipos de ações, em virtude de serem
daquele tipo. Sendo que as razões para realizar, ou abster-se de, certas ações,
julgadas moralmente relevantes, estão relacionadas às suas qualidades, ou
consequências futuras.
199
d. A dimensão afetiva é a disposição para ter sentimentos em resposta a certos
eventos no mundo, proximamente relacionados às outras três dimensões. Ter a
atitude de respeito corresponde a sentir-se contente com respeito a tudo que
acontece para manter a existência das comunidades silvestres de vida da Terra,
bem como as espécies e indivíduos que a constituem. Da mesma forma, sentir-
196
Biocultura definida como um conjunto de práticas e instituições sociais. Aspecto de qualquer cultura
humana em que os humanos criam e regulam o ambiente das coisas vivas, sendo sistematicamente
explorados para benefício humano. Idem, p. 53.
197
Idem, p. 81.
198
Ibidem.
199
Idem, p. 82.
se triste com respeito a qualquer acontecimento que acarrete prejuízos às
coisas vivas silvestres nos ecossistemas naturais da Terra.
200
Para Taylor, quando agentes morais adotam a atitude de respeito escolhem
comprometer-se com certos padrões de caráter e regras de conduta, adotando-as como
seus próprios princípios éticos.
2.4 Regras de conduta, caráter e virtudes do sistema ético-ambiental
No sistema de ética humana são fundamentais algumas diretrizes para orientar a
atitude de respeito pelas pessoas. Da mesma forma, na ética ambiental biocêntrica de
Taylor, um sistema de princípios ordenados é constituído por: 1) regras de conduta, 2)
padrões de bom caráter, e 3) às virtudes associadas às regras de conduta e padrões de
bom caráter também subjaz a atitude de respeito pela natureza.
Na ética biocêntrica são quatro as regras fundamentais de conduta:
1) Regra da Não-Maleficência: dever de não causar dano a qualquer entidade no
meio ambiente natural que possua um bem-próprio. Isso inclui, principalmente,
o dever de não matar um organismo, destruir uma espécie, ou uma comunidade
biótica.
201
2) Regra de Não-Interferência: dever de não impor restrições à liberdade de
organismos individuais, procurando manter distância dos ecossistemas,
comunidades bióticas e organismos individuais.
202
3) Regra da Fidelidade: dever de não quebrar a confiança de um animal silvestre
com respeito ao ambiente em que vive, ou mesmo com relação a um humano
com quem tenha contato. A quebra de fidelidade com animais silvestres
acontece principalmente nos subterfúgios usados para sua caça: armadilhas,
iscas, disfarces, imitações...
203
4) Regra da Justiça Restitutiva: dever de restaurar o equilíbrio da justiça quando
pacientes morais são prejudicados por agentes morais. Aplica-se a justiça
restitutiva quando um paciente moral é injustiçado pela quebra de uma regra
moral válida por parte de um agente moral.
204
200
TAYLOR, 1989, p. 83.
201
Idem, p. 172-73.
202
Idem, p. 173-79.
203
Idem, p. 179-80.
204
TAYLOR, 1989, p. 186.
Com respeito aos padrões de bom caráter, Taylor afirma que a atitude de respeito
pela natureza se expressa no caráter, quando o agente tem a firme disposição de acatar e
expressar as quatro regras do dever. As disposições que o autor se refere são virtudes, ou
traços de bom caráter, divididas em gerais e especiais.
205
Segundo Taylor, são oito as virtudes gerais que garantem a força moral de um
agente:
206
Sentido de dever: o firme desejo de fazer o que deve ser feito porque é seu
dever;
Integridade: consistência entre o pensamento e a conduta; agir, ou abster-se de,
com base em seus julgamentos sobre o certo, e o errado;
Paciência: o poder de ter calma e consistência na realização de uma difícil
tarefa exigida pela lei;
Coragem: a habilidade de pensar e agir de certo modo diante de circunstâncias
assustadoras, perigosas, ou dolorosas;
Temperança ou alto-controle: habilidade de colocar obstáculos e restrições aos
interesses e desejos, quando possam violar o dever;
Imparcialidade: objetividade de julgamento diante de escolhas, livre de
influências e distorções de pensamento;
Perseverança: capacidade de manter-se firme diante de situações
desencorajadoras;
Firmeza de propósito: consistência na conduta correta através do tempo, sem
desviar do dever apesar dos obstáculos e dificuldades.
Cada uma dessas virtudes representa um ideal. Reunidas, constituem a força moral,
padrões de excelência moral que as pessoas assumem, ou não, em graus variados.
207
Mas
as virtudes constituintes da força moral estão estruturadas segundo capacidades e
disposições de responsabilidade moral:
208
1) benevolência, 2) compaixão, 3) simpatia e
4) cuidado.
209
Desenvolver no próprio caráter as virtudes da benevolência e compaixão reforça e
aprofunda as disposições para ter simpatia pelo outro, e cuidado com respeito a seu bem-
205
Idem, p. 199.
206
Idem, p. 201-02.
207
Idem, p. 202.
208
Conjunto dos traços de caráter que qualquer agente moral irá exemplificar quando algum sinceramente
adota a atitude de respeito pela natureza. Formam o pano de fundo valorativo e emocional para todas as
ações expressivas da atitude de respeito, contém a base motivacional para o comprometimento de um
agente moral com o sistema ético como um todo. TAYLOR, 1989, p. 205.
209
Idem, p. 203.
estar, enquanto a simpatia e cuidado são sentimentos que motivam alguém a agir de
modo benévolo e compassivo com os outros.
210
Além das virtudes gerais, Taylor enumera outras seis virtudes especiais, traços de
caráter necessários para a aquiescência com uma, ou algumas, das regras fundamentais
de conduta:
Altruísmo: associada à regra de não-maleficência é a disposição para ser
atencioso e preocupado com o bem-estar de outros, fundamentado no conceito
mais amplo da compaixão;
211
Respeito à liberdade: associado à regra de não-interferência é um traço de
caráter que condena qualquer interferência na liberdade, ou nas condições
ambientais, e restrições artificiais ao modo de vida das coisas vivas;
212
Imparcialidade: também associada à regra de não-interferência, é a disposição
de permanecer neutro e livre de influências com respeito às diferentes
espécies;
213
Confiabilidade: associada à regra de fidelidade é a firme disposição de nunca
falsear, trapacear ou trair a confiança de um animal. Alguém digno de
confiança tem por objetivo estar sempre aberto, e ser honesto na presença de
criaturas sencientes;
214
Justiça: associada à regra de justiça restitutiva é a disposição para querer
restabelecer o equilíbrio da justiça, proporcionar alguma forma de reparação ou
compensação para aqueles que tenham sido tratados erroneamente;
215
Equidade: também associada à regra de justiça restitutiva é a disposição que
consiste em ter um sentido de proporcionalidade correspondente a
reivindicações de justiça relevantemente diferentes, ser equitativo no contexto
da justiça restitutiva.
216
210
Benevolência e compaixão são constituídas por um aglomerado de três disposições: 1) ter certos
sentimentos; 2) atribuir valor ou desvalor (disvalue) a certas coisas; e 3) agir de modo apropriado a tais
sentimentos e valorações. As valorações positivas e negativas, conforme o caso, formam os lados positivo
e negativo da simpatia e do cuidado, disposições para considerar o que é bom para uma entidade e o que
é bom em si mesmo, assim como o que é mau para e o mau em si mesmo. Idem, p. 204.
211
Idem, p. 207.
212
Idem, p. 208.
213
Idem, p. 209.
214
Idem, p. 210.
215
Idem, p. 211.
216
TAYLOR, 1989, p. 211.
Todas essas virtudes são constituintes do bom caráter que o agente moral precisa
desenvolver para ser capaz de seguir as regras prescritas pela ética ambiental biocêntrica
do respeito pela natureza em todas as dimensões de sua vida.
.
2.5 Dilemas morais e princípios prioritários
Muitos são os dilemas e conflitos envolvidos no estabelecimento de regras para
nossa conduta. A proposição de uma ética ambiental representa dificuldades muito
maiores nesse campo.
No último capítulo de Respect for Nature, Taylor apresenta princípios de
prioridade que acredita serem capazes de resolver dilemas surgidos quando valores e
direitos humanos entram inevitavelmente em conflito com o bem de seres não-humanos.
Animais, plantas e seres humanos compartilham do mesmo ambiente natural e
competem para sobreviver. Da perspectiva do respeito pela natureza, o dilema surge
quando interesses básicos de entidades com bem inerente, humanos e não-humanos,
concorrem entre si.
Para Taylor, a imposição de limites pode colocar ordem no caos provocado pelos
humanos no planeta. Mas isso não significa, que para ter respeito pela natureza, valores
humanos devam ser renunciados ou ignorados. Deve-se ter em mente que interesses
humanos não têm maior valor ou tampouco coincidem com os interesses de animais e
plantas para a resolução de dilemas.
217
A principal dificuldade, nas situações de interesses conflitantes entre os humanos
e as outras coisas vivas, consiste na visão de que os humanos são os únicos detentores
de direitos morais. Isso implica, para muitos, na prioridade de suas reivindicações sobre
os interesses de animais e plantas.
218
Para Taylor, é equivocada a interpretação que coloca os humanos como únicos
detentores de direitos morais, incluindo o direito de explorar e dominar os não-humanos
para seu benefício.
219
Da mesma forma, adotar a atitude de respeito consiste considerar
irrelevante o fato de animais e plantas não serem detentores de direitos morais.
220
217
Idem, p. 258-59.
218
Idem, p. 260.
219
TAYLOR, 1989, p. 261.
220
Idem, p. 262.
Para uma resolução justa dos conflitos, Taylor propõe cinco princípios de
prioridade: Princípio de Auto-defesa, Princípio da Proporcionalidade, Princípio do
Mal-menor, Princípio da Justiça Distributiva e Princípio da Justiça Restitutiva.
O Princípio da Auto-defesa declara a permissão para agentes morais protegerem-
se de organismos prejudiciais ou perigosos, podendo eliminá-los. Mas o princípio está
assegurado apenas quando agentes morais, mesmo sendo razoavelmente cuidadosos,
não podem evitar expor-se, nem impedir tais organismos de causar sérios danos às
condições ambientais que tornam possível sua existência e funcionamento como agentes
morais. Além disso, o princípio não permite o uso de quaisquer meios de autoproteção,
somente aqueles que causem o mínimo dano possível a tais organismos, consistente
com o propósito de manter a existência e funcionamento dos agentes morais.
O Princípio de Auto-defesa absolutamente não permite ações que não estejam de
acordo com a preponderância dos agentes morais preservarem a própria existência. Não
são permitidas ações que destruam um organismo para apenas promover interesses ou
valores que agentes morais possam ter como pessoas.
A auto-defesa, conclui Taylor, aplica-se somente à defesa contra organismos
prejudiciais e perigosos, no sentido de que ofereçam ameaça à vida ou às condições
básicas que as pessoas necessitam para manter o funcionamento de seus corpos para
existirem como agentes morais.
Taylor, entretanto, lembra que o princípio faz referência exclusivamente aos seres
na situação de agentes morais, independentemente de estarem envolvidos na situação de
conflito de interesses humanos e não-humanos. Da mesma forma, a aplicação do
princípio não sugere inferioridade do valor daquele de quem o agente se defende.
221
O Princípio de Proporcionalidade aplica-se às situações de conflito entre
interesses básicos
222
de animais e plantas silvestres frente àqueles interesses
223
humanos
não-básicos que são intrinsecamente incompatíveis com a atitude de respeito pela
natureza. Numa situação de conflito entre valores humanos e o bem de animais e plantas
221
Idem, p. 264-68.
222
Valores universais ou bens primários constituem os interesses básicos, enquanto os interesses não-
básicos são os fins particulares que cada um considera digno buscar. Interesses não-básicos variam de
pessoa para pessoa, enquanto os básicos são comuns a todos. Idem, p. 273.
223
Para determinar se interesses são básicos ou não, Taylor apresenta o contexto no qual considera ser
conveniente, se por interesse consideramos aqueles eventos e condições na vida do organismo que são
condutivos para a realização de seu bem enquanto fomentam, promovem ou aperfeiçoam seus interesses.
Eventos e condições prejudiciais para a realização desse bem serão descritos como adversos, opostos ou
desfavoráveis aos interesses. O termo interesse também será usado para referir-se a qualquer que seja o
objeto ou evento que sirva para preservar ou proteger, seja qual for o grau, o bem das coisas vivas.
TAYLOR, 1989, p. 270-71.
silvestres, maior peso deve ser atribuído aos interesses básicos, não importa de que
espécie seja o indivíduo. O princípio proíbe qualquer sobreposição dos interesses
humanos não-básicos frente aos interesses básicos das outras coisas vivas.
224
O Princípio do Mal-menor aplica-se às situações cujos, 1) interesses básicos de
animais e plantas estejam inevitavelmente competindo com interesses humanos não-
básicos; 2) quando tais interesses humanos não sejam intrinsecamente incompatíveis
com o respeito pela natureza; 3) diante das ações necessárias para a realização desses
interesses que acarretem prejuízo aos interesses básicos de animais e plantas silvestres;
e 4) quando os interesses humanos envolvidos são tão importantes que pessoas racionais
e bem informadas, que adotaram para si a atitude de respeito, não podem renunciá-los,
mesmo quando implicam consequências indesejáveis à vida silvestre.
225
Os três
principais tipos de danos aos quais o princípio do mal-menor se aplica são:
Destruição do habitat: para minimizá-la, deve-se fazer uso de áreas que
tenham sido usadas para fins humanos, ao invés de invadir novas áreas que
ainda encontram-se em seu estado natural. Uma espécie de reciclagem
daquelas áreas manipuladas que se encontram muito tempo abandonadas.
Mas, caso isso não seja possível, e a destruição de um habitat seja inevitável,
deve-se escolher a alternativa menos prejudicial.
226
Poluição ambiental: sabe-se que a poluição do ambiente não necessariamente
precisa acompanhar o desenvolvimento da mais alta cultura humana. Mas,
nem sempre é possível evitá-la, apesar de ser o ideal a se buscar. Para tanto,
deve-se adotar ações que representem tanto o respeito pelas pessoas quanto
pela natureza. A boa vontade para mudar o estilo de vida buscando tecnologias
apropriadas, alternativas às atuais.
227
Morte direta: o Princípio do Mal-menor se aplica nos casos em que humanos
intencionalmente causam a morte de animais e plantas silvestres. Exemplos
desse tipo de morte são retirar plantas e animais silvestres de seu habitat
natural para usá-los em atividades artísticas e propósitos educacionais,
colecionar espécimes para estudos científicos, aspergir herbicidas e inseticidas
nos habitats de vida silvestre, entre outros. Todas essas práticas humanas estão
relacionadas a interesses não-básicos, centrais para o modo de vida da
224
Idem, p. 277-78.
225
Idem, p. 280.
226
Idem, p. 288.
227
Idem, p. 288-89.
sociedade ou sistema de valores dos indivíduos, aos quais se julga que o
Princípio do Mal-menor deva ser aplicado. Mas pode ocorrer que o princípio
não seja capaz de oferecer uma solução justa. Nesse caso, deve-se: 1) refletir
se os valores humanos são dignos do custo imposto às outras coisas vivas; 2)
examinar cuidadosamente todas as alternativas possíveis quanto a maneira de
buscar tais valores e modos de vida; finalmente, 3) o respeito pela natureza
deve promover o sentimento de aversão a qualquer que seja a morte
provocada, reconhecendo o dever da reparação, ou alguma forma de
compensação do prejuízo causado às coisas vivas no mundo natural.
228
Para Taylor, o Princípio do Mal-menor oferece diretrizes para solucionar alguns
problemas práticos, tais quais, a construção de obras imprescindíveis ao
desenvolvimento da cultura humana: estradas, hidrelétricas, termelétricas, entre outros.
O Princípio da Justiça Distributiva fornece o critério para a justa distribuição dos
bens que garantam a satisfação dos interesses básicos e de igual importância para todas
as partes em conflito. Esse fato requer que aos interesses dos envolvidos seja atribuído o
mesmo peso moral, preservado na decisão para que esta seja justa.
Na prática, o princípio da Justiça Distributiva não garante igualdade perfeita dos
indivíduos envolvidos, mas deve adotar medidas de reparação e compensação
semelhante aos casos submetidos ao princípio do Mal-menor.
Segundo Taylor, o Princípio da Justiça Distributiva exige dos humanos a invenção
de maneiras de transformar situações de confronto, em situações de acomodação mútua,
sempre que isso seja possível.
229
Algumas aproximações para a igualdade no tratamento
entre humanos e não-humanos são apresentadas pelo autor como possibilidades de
ajustes dessas relações. Quatro métodos parecem suficientes para a realização dessa
tarefa:
1) Alocação permanente do habitat: estratégia de reservar certas áreas e água da
superfície da Terra para manutenção do estado selvagem. Identificada pela
política de preservação de áreas silvestres (parques e áreas de proteção
permanente);
230
228
TAYLOR, 1989, p. 291.
229
Idem, p. 292-93.
230
TAYLOR, 1989, p. 297.
2) Conservação comum: os recursos são compartilhados entre humanos e não-
humanos, uma prática que não deve restringir-se exclusivamente ao benefício
humano;
231
3) Integração ambiental: tentativa de adequar construções e o desenvolvimento
humano dentro da natureza circundante, de modo a preservar a integridade
ecológica de uma região, como um todo;
232
4) Rotação: distribuição dos benefícios por rotação ou revezamento. Segundo esse
método, sempre que possível deve-se dar às espécies das comunidades bióticas
silvestres a chance de receberem os benefícios por habitar um setor particular
da Terra, da mesma forma que os humanos tenham se beneficiado por um
período de tempo na realização de seus interesses com respeito a esse lugar.
Esse método propõe uma espécie de tempo de alocação, em contraste com o
espaço de alocação, característico das propostas de preservação permanente
das áreas silvestres.
233
O Princípio da Justiça Restitutiva sempre se aplica após os princípios do Mal-
menor e Justiça Distributiva não terem conseguido impedir o dano. O princípio funciona
como uma espécie de suplementação, quando danos forem causados a animais e plantas,
visto que alguma forma de reparação, ou compensação, deve ser feita para que ações
com respeito aos pacientes morais sejam completamente consistentes com a atitude de
respeito pela natureza.
234
Taylor considera que dois fatores, o da quantidade e o da qualidade da vida
afetada, devem ser levados em conta para determinar que tipo de reparação ou
compensação será ser a mais adequada, a saber: 1) quanto maior for o prejuízo causado,
maior deve ser a reparação exigida; 2) manter a consideração focada na solidez e saúde
da totalidade dos ecossistemas e suas comunidades bióticas, ao invés de no bem de
indivíduos particulares.
235
Para Taylor, os cinco princípios prioritários da teoria ética biocêntrica
providenciam a fundação sistemática para o conceito de justiça interespecífica nas
situações em que interesses de organismos pertencentes a outras espécies não possam
231
Idem, p. 298.
232
Idem, p. 299.
233
Idem, p. 302.
234
Idem, p. 304-05.
235
Idem, p. 305.
ser realizados. A concepção de “luta pela sobrevivência”, nesse caso, é substituída por
restrições de ordem moral, definidas por princípios racionais de justiça.
236
Embora acredite na abrangência desses princípios, nos principais modos de
julgamento imparcial entre reivindicações conflitantes, surgidas do choque entre os
deveres da ética humana e aqueles da ética ambiental, Taylor adverte que eles não
fornecem uma solução pronta para todas as possíveis situações de conflito. O uso dos
princípios não evita os casos complexos. Nessas situações, o autor recomenda apelar
para o que denomina ideal ético: o melhor mundo possível, segundo um ideal de
harmonia entre natureza e civilização humana.
237
A perspectiva biocêntrica é uma maneira racional e cientificamente esclarecida de
conceber o lugar dos seres humanos no mundo natural, mas Taylor adverte que sua
aceitação pelas culturas não deve limitar-se à realização do ideal ético de harmonia
entre a natureza e civilização humana. A harmonia, nesse sentido, significa preservar o
equilíbrio entre valores humanos e o bem-estar de animais e plantas no ecossistema
natural.
238
Nesse ideal ético, lembra Taylor, os agentes morais têm o papel de dirigir e
controlar sua conduta com respeito aos animais e plantas na natureza, acatando as
quatro regras básicas da ética ambiental: Não-maleficência, Não-interferência,
Fidelidade e Justiça Restitutiva.
239
Para o autor, o ideal ético tem uma função
normativa:
A principal função do ideal ético é providenciar um foco para as metas práticas.
Pois, especifica um tipo de ordem do mundo cuja realização gradual é o propósito
moral permanente, de longo alcance por detrás do exercício de racionalidade
instrumental dos agentes morais.
240
Com essa proposta de ética ambiental, Taylor não tem por metas mudanças
políticas, legais ou econômicas da cultura. Colocar em prática o respeito pela natureza,
numa perspectiva biocêntrica de natureza, requer dos humanos uma mudança interna
das crenças, valores, compromissos morais e modo de vida. Para o autor, esse é o
primeiro passo fundamental, psicologicamente possível para os agentes morais
236
TAYLOR, 1989, p. 306-07
237
Idem, p. 264.
238
Idem, p. 309.
239
Idem, p. 309-10.
240
Idem, p. 310.
humanos, no processo de mudança da perspectiva antropocêntrica para uma visão
biocêntrica de natureza.
241
O autor reconhece que os humanos precisam empenhar grandes esforços para se
emanciparem com respeito ao modo instituído de ver animais não-humanos e plantas.
Contudo, conclui Taylor, não nada que impeça o exercício dos poderes para
autonomia e racionalidade humanas, no que se refere a aproximar gradualmente o
mundo atual ao que ele deveria ser.
242
A filosofia moral tradicional duvida da possibilidade de se transpor a barreira da
racionalidade e linguagem, enquanto filósofos morais contemporâneos, como Regan e
Singer duvidam da possibilidade de se transpor o limite da senciência quando o assunto
envolve valor inerente e sua extensão as formas de vida que não satisfazem tais
características.
A teoria de Taylor não é abrangente no sentido de abarcar todas as situações
envolvendo a relação entre os humanos e as outras coisas vivas da natureza. O autor não
se envolve, por exemplo, com as questões polêmicas da biocultura. Mas sua ética é
bastante consistente em relação às exigências de generalidade, universalidade e
imparcialidade de uma teoria.
A ética do respeito pela natureza se preocupa particularmente com as coisas vivas
silvestres, cuja vida permanece livre da interferência humana, e o bem-inerente
(inherent worth) refere-se à singularidade subjacente de cada forma de vida em seu
modo particular de viver e buscar seu bem próprio.
241
TAYLOR, 1989, p. 312.
242
Idem, p. 313.
III. Críticas, objeções e outras perspectivas para a Ética do Respeito
pela Natureza
A tarefa de traçar os contornos de uma teoria ética, cujo objetivo seja abranger
formas de vida diferentes da espécie humana é um desafio para aqueles que estejam
dispostos a abandonar velhos paradigmas, procurando principalmente mudar a sua
forma de ver o mundo e relacionar-se com ele.
Semelhante ao que acontece nas éticas que orientam as relações entre humanos
existem divergências entre pontos de vista na discussão de uma ética ambiental. Suas
questões são significativamente mais polêmicas. A adoção de um critério cujas
exigências de universalidade, generalidade e imparcialidade capazes de colocar no
mesmo patamar de importância o âmbito das relações humanas e os desdobramentos
dessas ações junto ao meio ambiente natural, ainda está longe de consenso.
De acordo com Regan, muitos autores da tradição antropocêntrica não consideram
possível, nem mesmo necessário, o desenvolvimento de uma ética ambiental. Num
incansável esforço, os teóricos dessa tradição e, também os senciocêntricos, tentam
desqualificar o empenho dos éticos ambientalistas em transpor a fronteira tradicional da
ética para além das considerações de interesses ou metas, seja dos humanos somente ou
de todas as formas de vida sencientes.
A ética ambiental de Paul Taylor não é, segundo o próprio autor, uma teoria
conclusiva, tampouco ele tem essa pretensão. Sua teoria ética preocupa-se
principalmente com um tipo de vida em especial: as coisas vivas silvestres. O autor
defende consideração moral por essas formas de vida que ainda não sofreram a direta
interferência humana, ou há muito tempo deixaram de ser manipuladas pela sua cultura.
Apesar da preocupação, o autor não trata das questões envolvendo plantas, e
principalmente, animais, sub-produtos do que denomina biocultura.
Taylor desenvolve sua teoria buscando satisfazer as exigências formais e de
conteúdo, estabelecidas para o desenvolvimento de uma ética aceitável. Entretanto, as
críticas são inevitáveis. No caso de Taylor, os críticos o auxiliam a aprimorar
argumentos, e nos auxiliam na melhor compreensão de sua proposta.
Nesse capítulo serão apresentados três autores, com perspectivas distintas em
relação e essa proposta de ética ambiental. O primeiro deles, Nicholas Agar
243
, não é
243
Em 1995, o autor fazia parte do grupo de pós-doutorado da Victoria University of Wellington, Kelburn
– New Zealand. Tem interesses na área de ética ambiental, filosofia da biologia e filosofia da mente.
propriamente um crítico, pois filia-se a algumas ideias da ética do respeito pela natureza
para propor uma alternativa à concepção individualista, implícita no conceito de bem
próprio.
Gene Spitler,
244
por outro lado, faz observações importantes sobre alguns pontos
fundamentais da teoria de Taylor. O autor se dedica especialmente à ideia de
interdependência entre os membros constituintes dos ecossistemas, um dos principais
elementos da perspectiva biocêntrica de natureza. Spitler considera existir uma
inconsistência na maneira como Taylor apresenta essa ideia. Segundo o autor, Taylor
defende a importância da preservação de cada ecossistema e seus membros constituintes
para o bem-estar de todos, ao mesmo tempo em que considera dispensável, sem
qualquer prejuízo para os outros ecossistemas, a presença da espécie humana.
Por fim, Louis G. Lombardi
245
critica em Taylor a negação da superioridade
humana. A partir de um ponto de vista antropocêntrico, o autor se apropria do conceito
de bem inerente e defende que a espécie humana o possui num grau superior, em
comparação às outras formas de vida. O autor baseia-se na ideia de grau de
complexidade. Numa escala ascendente, a espécie humana ocuparia o lugar mais alto.
Todas essas considerações auxiliam a melhor compreensão e julgamento da
proposta de ética ambiental de Taylor e contribuem no aperfeiçoamento de sua
capacidade para superar a resistência antropocêntrica em aceitar que a forma de vida
humana é mais uma entre as outras.
3.1 Individualismo alternativo
Nicholas Agar defende uma proposta de ética ambiental que explora a conexão
entre a perspectiva de ética não-antropocêntrica para a preservação de espécies, e as
reivindicações sobre o status moral de organismos individuais. O autor considera que
uma ética fundamentada no respeito pelas espécies, oferece uma explicação mais bem
fundamentada para o valor dos organismos individuais.
246
244
Vice-Presidente de Pesquisa Diversificada em, Chevron Research Company. Anteriormente, Diretor
do Planejamento Ambiental da Chevron U.S.A.. Interessa-se pelos aspectos filosóficos do movimento
ambiental. Também é autor de “Sensible Environmental Principles for the Future” Environmental Ethics
2 (1980): 339-52.
245
Membro do Departamento de Filosofia do Lake Forest College em Lake Forest. Suas áreas de
interesse incluem filosofia política e assuntos da moral contemporânea.
246
Agar recorre ao conceito de espécie biológica de Ernest Mayr sobre a ideia de isolamento reprodutivo.
“A espécie é uma coleção de organismos que internamente se reproduzem, de fato ou potencialmente”.
MAYR, Ernest. Animal Species and Evolution.. Cambridge: Harvard University Press, 1963 and MAYR,
E. & ASHLOCK, P. Principles in Sistematic Zoology. New York: McGraw Hill, 1991. Apud. AGAR,
Agar considera que uma ética não-antropocêntrica aceitável para a preservação de
espécies tem origem num certo tipo de consideração pelos organismos individuais: a
capacidade de representar.
247
Da mesma forma que os antropocentristas acreditam que os seres humanos são
valiosos intrinsecamente porque possuem propriedades, tais quais a autoconsciência, a
capacidade de crer e desejar, os não-antropocentristas procuram propriedades capazes de
fundamentar o valor intrínseco na natureza.
Enquanto as teorias individualistas se constituem em torno de propriedades que um
organismo possui, independentemente de ser membro de um grupo, Agar lembra que os
teóricos da preservação de espécies atribuem maior ou menor importância a um
organismo, dependendo do grupo ao qual ele pertence.
248
3.1.1 Interesse considerável moralmente
A consideração do valor da natureza é uma das questões centrais na teoria de Agar.
Filiado a uma perspectiva de ética não-antropocêntrica que leva em conta especialmente
o valor das espécies, o autor defende a importância de certa tendência observável nas
espécies para manter sua estrutura, frente a uma série de ameaças externas, interesse que
considera moralmente relevante.
As principais teorias individualistas, às quais Agar criticamente se refere, são as de
Paul Taylor, Peter Singer e Tom Regan. Em relação às concepções de Singer e Regan, o
autor questiona principalmente o fato de ambos considerarem dignas de respeito e valor
nos animais aquelas propriedades que eles possuem analogamente aos humanos:
consciência, autoconsciência e sensibilidade.
249
Ao se deslocar o valor do indivíduo para
as espécies, percebe-se que um número significativamente grande delas não atende às
exigências feitas por essas propostas éticas para a consideração e respeito moral. Para
Agar, aquelas características abrangem uma fração muito pequena dos seres vivos.
Nicholas. “Valuing Species and Valuing Individuals”. In: Environmental Ethics, 4 (1995), p. 414.
247
Para Agar existem dois modos conhecidos pelos filósofos para atribuir valor a natureza: a
antropocêntrica em que as razões para valorizar a natureza estão focadas no interesse dos seres humanos;
e a não-antropocêntrica em que as espécies são intrinsecamente valiosas, ou valiosas apesar de qualquer
utilidade ou benefício que possam proporcionar aos seres humanos. AGAR, 1995, p. 397
248
Idem, p. 402.
249
Singer exige que os agentes morais ampliem suas considerações para além dos humanos, incorporando
todos os seres capazes de senciência ou autoconsciência. Regan vai além, e sugere considerar os animais
autoconscientes, com a capacidade de crer e desejar e metas com respeito ao futuro, os quais qualifica
como sujeitos-de-uma-vida. AGAR, 1995, p. 398.
Com respeito à teoria ética ambiental biocêntrica de Taylor, Agar afirma que a
proposta do autor amplia a variedade de indivíduos na classe dos moralmente
consideráveis, até então excluídos pelos limites da senciência ou autoconsciência. Em
contrapartida, Agar considera que a ética do respeito de Taylor é apenas um paliativo
para tentar amenizar esse problema nas concepções de Singer e Regan.
A teoria de Taylor defende o bem inerente
250
em todas as coisas vivas silvestres em
virtude de elas possuírem um bem próprio.
251
Essa característica da vida é apresentada
como o critério que distingue as coisas moralmente consideráveis das não-consideráveis,
a saber, as coisas vivas, das coisas não-vivas. Para Agar, Taylor apenas desloca dos seres
sencientes a posição de objetos da consideração moral, para colocar em seu lugar a vida
como critério delimitador.
Agar adverte, entretanto, que as considerações em relação às propostas
individualistas de ética ambiental não devem ser entendidas como algo que implique na
negação do valor dos indivíduos, por parte dos defensores da preservação de espécies.
Ao contrário, afirma que os adeptos da preservação de espécies reconhecem ser a dor ou
o dano sofridos pelo indivíduo, independentes da espécie à qual pertence.
252
Mas, centralizar a consideração moral nas propriedades que indivíduos possuem,
obriga-nos a seguir numa direção contrária, em relação àquelas propriedades que os
indivíduos possuem somente em virtude de pertencerem a uma espécie. Para Agar,
“teorias individualistas são declaradas em termos das propriedades que um organismo
possui, independentemente de pertencer a qualquer grupo. Para os teóricos da
preservação de espécies, um organismo é mais ou menos importante, dependendo da
espécie à qual pertence”.
253
Na perspectiva da preservação de espécies, muitos organismos são intrinsecamente
valiosos porque representam o mundo e produzem comportamento apropriado que
exterioriza essas representações. Na proposta de Agar, o conceito de meta
representacional é central.
254
Um organismo cujos interesses se identificam com a
satisfação de metas representacionais é intrinsecamente valioso, pois seu comportamento
250
Uma coisa viva possui um bem inerente independentemente de possuir qualquer valor instrumental,
sem referência ao bem de qualquer outro ser. TAYLOR, 1989, p. 75.
251
Dizer que algo tem um bem próprio é afirmar que faz sentido falar que alguma coisa o beneficia ou
prejudica, quando julgadas do seu próprio ponto de vista como favoráveis ou desfavoráveis. TAYLOR,
1989, p. 63.
252
AGAR, 1995, p. 403.
253
Idem, p. 402.
254
“Uma representação se designa por produzir certo comportamento, em resposta a certos estímulos.
Metas representacionais ou preferências são comportamentos selecionados que tendem a mudar o
ambiente do organismo de certo modo”. AGAR, 1995, p. 406.
está direcionado para sua satisfação. Dois fatores pesam na consideração de uma meta
representacional, segundo Agar: 1) sua importância para aquele que a possui; 2) sua
sofisticação representacional.
255
Quanto menor for a influência do ambiente no indivíduo,
maior será a independência e sofisticação de seu comportamento.
256
A sofisticação das metas representacionais e sua importância podem ser
observadas, segundo Agar, nos casos de altruísmo biológico.
Um exemplo pode ser
observado no comportamento de certas aves. Quando sentem que seu ninho está
ameaçado elas exibem um comportamento perigoso: fingem estar com a asa quebrada
para chamar a atenção do predador, colocando-se em perigo para proteger os filhotes.
257
Semelhante altruísmo também pode ser observado nas abelhas. Para proteger a colméia
invadida, elas colocam-se na frente do invasor para dificultar seu avanço.
258
Outra meta representacional igualmente importante, segundo Agar, pode ser
observada nos organismos que se reproduzem sexualmente. A significância dessa meta
pode ser observada no interesse premente dos indivíduos para encontrar parceiros com
quem se acasalar, produzir filhotes e passar adiante seus genes. Essa meta é globalmente
a mais importante expressa por esses organismos. Não satisfazê-la, segundo Agar,
significa a pior coisa que poderia lhes acontecer.
259
Tais metas representacionais,
evidentes nos organismos são, para Agar, as mais dignas de consideração e respeito
moral, tanto pela sua sofisticação quanto pela importância para quem a possui.
3.1.2 Preservação e respeito pelas espécies
255
AGAR, 1995, p. 409.
256
A ideia de sofisticação representacional na teoria de Agar tem como principal referência a concepção
liberal de representação e comportamento desenvolvida por Fred Dretske, que apresenta uma distinção
entre “comportamento representado-dirigido e mero movimento ambiente-dirigido” A complexidade
estrutural interna especializada tem um papel central para o organismo, pois o torna capaz de selecionar
movimentos apropriados para certos ambientes. Idem, p. 404.
257
Ave esbelta e graciosa, a pied stilts ou poaka (Himantopus himantopus), uma dessas aves que
apresentam comportamento altruísta, pode ser vista em seus milhares nos principais estuários e lagos da
Austrália, durante o outono e inverno, antes do seu período de reprodução, que acontece entre o final do
inverno e início da primavera. Caracteriza-se pela cor negra sobre a copa, nuca, costas e asas, e pela cor
branca em outros pontos do corpo. Pesam aproximadamente 190 gramas e medem 35 centímetros.
“Teara: The Encyclopedia of New Zealand”. www.teara.gov.nz. Disponível em: 19/11/2007.
258
AGAR, 1995, p. 412.
259
Essa ideia é evidenciada na cena dos pássaros canoros de Bachman, descrita por E. O. Wilson e
apresentada pelo autor, que chama a atenção para a “frustração” de um macho em perfeitas condições de
se reproduzir que, por duas primaveras seguidas voltou ao mesmo lugar e durante duas horas cantou para
atrair uma fêmea com quem pudesse se acasalar. Seu chamado foi em vão. Nenhuma fêmea apareceu e o
pássaro não conseguiu satisfazer sua meta. Ibidem
A proposta ética da preservação, segundo Agar, busca proteger os interesse das
espécies, segundo dois critérios: 1) respeitar um organismo é respeitar sua meta
representacional; 2) a meta representacional de um organismo é digna de respeito, de
acordo com sua importância ou grau de evidência causal e nível de sofisticação.
260
A proposta alternativa de individualismo considera digna de respeito o interesse de
preservar e dar continuidade à espécie, tendo o altruísmo biológico de certos organismos
como seu principal critério. Este, em muitas espécies, observado na determinação dos
indivíduos para proteger parceiros e filhotes de predadores. Da mesma forma, o interesse
premente naqueles que se reproduzem sexualmente deve ser levado em conta.
Ao afirmar que tais metas representacionais são evidentes nos organismos, Agar
propõe proteger as espécies biológicas como concepção alternativa ao individualismo
subjacente nas teorias de Singer, Regan e Taylor, defendendo a partir desse ponto de
vista uma ética de preservação das espécies.
261
A proposta de Agar não se constitui necessariamente em uma crítica à teoria de
Taylor. Na verdade, o autor retoma a ideia de bem-próprio, com o nome de meta-
representacional, tentando justificar que essa meta reflete um interesse da espécie em
preservar-se, numa tentativa de apresentar outra perspectiva para o bem próprio,
contrária àquela apresentada por Taylor, segundo o que entende por bem da espécie.
3.1.3 O bem da espécie: um conceito estatístico
Em relação à proposta de Taylor, Agar não apresenta novidades para o
desenvolvimento de uma ética ambiental universalmente aceitável. Sua teoria de respeito
pela meta representacional evidente num organismo está presente na concepção de
respeito ao bem próprio na teoria de Taylor, sem a necessidade de desenvolver outra
concepção de ética para tratar dos interesses da espécie.
O conceito de meta representacional se justifica como a expressão de um interesse
do organismo, em virtude de pertencer a uma espécie. Mas Taylor chama a atenção para
um fato que não deve ser esquecido: espécie é apenas uma classificação arbitrária,
utilizada para agrupar indivíduos com capacidades e características semelhantes.
Agar insiste que não preservar a espécie pode representar um grande dano para
aqueles organismos que se reproduzem sexualmente. Pois, inexistindo machos ou fêmeas
260
AGAR, 1995, p. 409.
261
Idem, p. 414.
que possam formar pares para o acasalamento, seja isso um bem-próprio ou meta
representacional evidente, acarreta a frustração da satisfação desse interesse. Da mesma
forma, a proteção da prole ou de seus pares, representada pelo altruísmo biológico,
evidencia uma meta ou bem que o indivíduo tem como valioso.
Por outro lado, a exigência de Agar para que a meta representacional de um
organismo seja a mais evidente, limita a consideração de respeito somente àqueles seres
capazes de desempenhar certo tipo de comportamento. Nesse sentido, retornamos ao
problema da ampliação da fronteira da moralidade, cujo critério apresentado tem efeito
contrário e acaba restringindo ainda mais a participação de muitas formas de vida
incapazes de satisfazer as exigências.
Taylor, ao contrário, não exige nenhum tipo de demonstração objetiva do interesse
de realizar seu bem próprio, para incluir indivíduos no âmbito da consideração moral e
de valor. Basta a boa vontade do agente em adotar o ponto de vista deles, reconhecendo
neles um bem inerente, independentemente do interesse de terceiros ou de sua utilidade
para alguém. O agente moral está especialmente munido de boas razões para adotar a
atitude de respeito, pois é suficiente considerar que faz sentido falar do bem de uma
entidade, a partir do ponto de vista próprio do seu modo de vida.
Os autores não discordam radicalmente sobre quem é digno de consideração e
respeito, se o indivíduo ou a espécie. Enquanto Taylor considera que o bem da espécie é
o reflexo do bem do indivíduo, Agar reivindica que o bem da espécie e sua preservação
são metas importantes para o indivíduo e devem ser consideradas moralmente.
Taylor nega a existência de um bem próprio da espécie e não compartilha da
concepção holista de equilíbrio da natureza:
[...] se organismos individuais têm um bem que pode ser promovido, então falar de
promover o bem de toda uma espécie é inteligível estatisticamente. A espécie não
tem um bem-próprio independente de seus membros. Além disso, promover ou
proteger o bem das espécies não significa que o bem de cada um de seus membros
também seja promovido ou protegido. O nível de bem de uma espécie é
determinado pelo ponto médio de distribuição do bem de seus membros
individuais.
262
262
TAYLOR, 1989, p. 69
A ideia de espécie, segundo Taylor, se resume a um conceito, um termo para
referir-se a indivíduos que pertencem a certo grupo característico. Em si mesma, a
espécie não tem qualquer bem que possa ser promovido ou protegido.
Considerando a proposta de Agar, ela não apresenta nada de novo para o
desenvolvimento de uma ética ambiental, em comparação com a teoria de Taylor. Pelo
contrário, a proposta de respeitar a meta-representacional evidente de um organismo
apenas reforça a concepção de que o bem-próprio de organismos individuais deve ser
protegido e promovido, sem necessidade de considerar sua classificação em espécies.
Agar limita sua ética de preservação das espécies à exigência de respeito e
consideração pela meta representacional mais evidente de um organismo, restringindo-a
àqueles seres capazes de desempenhar certo tipo de comportamento como o altruísmo
biológico ou a reprodução sexuada.
Diferentemente, Taylor não exige nenhum tipo de demonstração comportamental
ou de interesse num organismo para que ele tenha valor e seja considerado digno de
consideração moral. Para a atitude de respeito é suficiente considerar o bem estar da
perspectiva do próprio organismo, cujo bem inerente deve ser promovido e protegido,
independentemente de sua utilidade ou interesse para terceiros. Para Taylor, é suficiente
considerar que faz sentido falar do bem da coisa viva do seu ponto de vista, como algo
que lhe é singular, próprio do seu modo de vida.
Apesar da tentativa de apresentar uma perspectiva alternativa ao individualismo,
baseado no interesse de preservar-se que a espécie exterioriza nos indivíduos, Agar
acaba reforçando a importância de considerar o bem do indivíduo a partir de sua própria
perspectiva. Os exemplos de metas-representacionais apresentados por Agar reiteram a
ideia de que organismos possuem um bem próprio que corresponde singularmente à sua
forma de vida. A singularidade das formas de vida e o que significa para elas ter seu bem
próprio protegido ou promovido torna-se um critério mais digno de consideração moral
que a expressão de um comportamento, cujo reconhecimento de valor depende de
manifestações observáveis.
3.2 O problema da justificação na Ética do respeito pela natureza
Importante crítico da ética biocêntrica de Taylor, Gene Spitler aponta
inconsistências nos quatro elementos constituintes dessa perspectiva, principalmente
aquelas que dizem respeito à: 1) possibilidade de os humanos abandonarem a perspectiva
antropocêntrica, adotando a biocêntrica como sua visão de mundo; 2) adoção do
princípio ecológico da interdependência entre espécies, em que a ideia de superioridade
humana precisa ser abandonada definitivamente.
263
Antes, de avançar no exame crítico da concepção ética biocêntrica de Taylor,
Spitler considera importante esclarecer qual concepção antropocêntrica é alvo de sua
crítica. O autor recorre ao dicionário Webster e apresenta de três maneiras de definir
“antropocêntrico”:
Centrado no homem, 1) considerando ser o homem o fato mais central ou
significante do universo; 2) assumindo que o homem é a medida de todas as coisas,
e 3) interpretando ou considerando o mundo em termos de valores e experiências
humanas.
264
Spitler concorda parcialmente com a primeira afirmação, considerando que no
presente momento, o homem é o fato mais significante do planeta Terra. Contudo,
considera um pouco forçado extrapolar essa significância em termos de universo. O
autor defende que Taylor refere-se à segunda definição de antropocentrismo em sua
crítica.
Quanto à terceira definição, Spitler considera difícil evitar esse ponto de vista, e
inerentemente impossível interpretar o mundo em termos distintos das experiências e
valores humanos. Com base nessa definição, Spitler assume não ser capaz de abandonar
a visão antropocêntrica como sua visão humana de mundo.
265
263
SPITLER, Gene. “Justifying a Respect for Nature” In: Environmental Ethics 4 (1982): 255-60.
264
Idem, p. 256.
265
Ibidem.
3.2.1 Perspectiva antropocêntrico-biocêntrica
É inevitável pensar, argumenta Spitler, que Taylor é um humano discutindo uma
questão ética séria com outros seres humanos, cujo propósito é convence-los a escolher
um sistema de crenças cuja adoção implica num maior respeito pela natureza. Mas
Taylor parece não ter percebido que talvez seja impossível escapar do antropocentrismo,
uma vez que seus argumentos baseiam-se em interpretações e experiências humanas.
Para Spitler, o mais perto que os seres humanos podem chegar de uma visão biocêntrica
corresponde à interpretação humana. Uma visão inevitavelmente construída, reunindo
inevitavelmente necessidades e desejos humanos.
266
Nesses termos, acredita Spitler, uma distinção entre a visão antropocêntrica e a
biocêntrica pode tornar-se menos clara. Não significa, entretanto, que o autor tenha a
intenção de sugerir a inexistência de diferenças entre ambas. Sua intenção é mostrar que
há limites reais na possibilidade de qualquer ser humano adotar a perspectiva biocêntrica
em detrimento da antropocêntrica.
Para Spitler, é preciso encarar tanto as possibilidades quanto as limitações no
desenvolvimento de uma ética ambiental.
267
Taylor concorda com a afirmação de Spliter, se o autor entende por
antropocêntrica a maneira de ver o mundo simplesmente porque essa é a sua maneira de
vê-lo. De fato essa é uma verdade, pois todas as crenças, atitudes, perspectivas e valores
adotados o são a partir da visão humana, mas considera precipitado pensar que a
perspectiva biocêntrica proposta aos humanos, de algum modo, não é genuína e
corresponde a uma variação da visão antropocêntrica.
268
Spliter pode até ver as coisas dessa perspectiva, admite Taylor, mas considera que
tal inferência não pode ser obtida validamente. uma tendência de confundir três
pontos importantes: 1) o conteúdo da perspectiva biocêntrica; 2) a implicação prática
para os humanos, ao adotarem essa perspectiva como sua própria maneira de ver o
mundo; 3) a explicação psicológica para entender porque alguém pode aceitar a
perspectiva biocêntrica, agir de acordo com ela, adotar a atitude de respeito e,
consequentemente, seguir o sistema ético que a personifica.
269
266
SPITLER, 1982, p. 256.
267
SPITLER, 1982, p. 256.
268
TAYLOR, Paul. “In Defense of Biocentrism”. In: Environmental Ethics 5 (1983), p. 239.
269
TAYLOR, 1983, p. 240.
Em relação àqueles que questionam a possibilidade de os humanos adotarem a
atitude de respeito pela natureza, Taylor argumenta que seria necessário recorrer à
consideração de fatores psicológicos relativos aos desejos e necessidades humanas.
Qualquer crença ou atitude humana, em última análise, é para satisfazer essas
necessidades e desejos.
270
Embora a explicação psicológica se refira às necessidades e desejos humanos, isso
não implica que seja impossível para os seres humanos aceitarem uma perspectiva com
conteúdo ético genuinamente biocêntrico em relação à natureza, ou adotarem o
compromisso moral de obedecerem a certas regras e padrões de respeito pelas coisas
vivas silvestres, quando vistas à luz dessa perspectiva.
Taylor enfatiza que aceitar a perspectiva biocêntrica significa compreender o
lugar dos humanos no reino de vida da Terra, fundamentalmente igual ao dos outros
membros do reino animal. Essa igualdade se estende a todas as formas de vida nos
ecossistemas naturais do planeta. O compromisso moral dos seres humanos, associado à
perspectiva biocêntrica, corresponde à disposição de atribuir a animais e plantas o
mesmo bem inerente que se atribui aos colegas humanos, considerando-os merecedores
de igual consideração moral.
271
Taylor concorda com Spliter sobre ser o sistema de crenças, que constitui a
perspectiva biocêntrica, um conjunto de crenças humanas. Porém, essas crenças não
representam um conjunto de fatos relacionados à vida humana somente. Tampouco,
adotar a perspectiva biocêntrica, na prática, promove interesses e fins humanos.
A aceitação do sistema de crenças da perspectiva biocêntrica, conclui Taylor,
implica aceitar uma interpretação humana do reino da vida e da natureza na Terra. Isso
não significa necessariamente que os seres humanos estejam inevitavelmente
comprometidos com a visão antropocêntrica. Essa visão não oferece considerações
exclusivas ou primárias sobre os interesses humanos estarem acima do bem de outras
espécies.
Segundo Taylor, da mesma forma que é possível para os humanos serem
imparciais entre si, eles o podem ser em relação a outras formas de vida quanto à
consideração do seu bem-estar. Apesar de a imparcialidade, em si, ser uma instância
moral que somente os humanos são capazes de entender e respeitar, o compromisso
270
TAYLOR, 1983, p. 241.
271
TAYLOR, 1983, p. 240.
envolvido exige dos humanos tratar as outras criaturas de um modo que não existe
parcialidade em favor dos humanos, simplesmente por serem humanos.
272
3.2.2 A rede de interdependência
Taylor defende que humanos e não-humanos pertencem à comunidade de vida da
Terra em termos semelhantes. Para Spitler, parte dessa afirmação corresponde a fatos
conhecidos, visto que todas as formas de vida são dependentes das condições terrenas.
Mas o autor coloca em dúvida se a dependência das formas de vida em relação às
condições terrenas acontece nos mesmos termos, conforme o afirma Taylor. O poder de
manipular as condições de vida da Terra coloca os seres humanos numa situação
diferente em relação às outras formas de vida. Para melhor ou pior, transformações
podem ser impostas pelos humanos ao ambiente da Terra. Isso implica considerar
responsabilidades especiais com respeito ao seu próprio bem, e ao bem da mais ampla
comunidade de vida. Do contrário não haveria necessidade de desenvolvimento de uma
ética ambiental.
273
Em outro ponto importante de sua ética, afirma Spitler, Taylor declara que “os
ecossistemas naturais da Terra, em sua totalidade, são vistos como uma rede complexa
de elementos interconectados, cujo sólido funcionamento biológico de um depende do
sólido funcionamento biológico de outros”.
274
Para Spitler, Taylor não se esforça muito
para fundamentar essa posição, uma vez que acredita ser esse um aspecto factual da
realidade biológica”.
275
Se cada ecossistema da Terra deve ser preservado para manter a integridade do
todo, então o princípio da interdependência de Taylor apresenta uma grave
inconsistência. O autor, segundo Spitler, declara que “cada último homem, mulher ou
criança poderiam desaparecer da face da Terra, sem acarretar qualquer prejuízo ao bem
de animais e plantas silvestres.”
276
Qualquer um que esteja inclinado a concordar com
Taylor, alerta Spitler, precisa ficar atento. Se, os seres humanos são absolutamente
dispensáveis ao bem-estar da vida silvestre, e se o seu desaparecimento não oferece
272
TAYLOR, 1983, p. 240-241.
273
SPITLER, 1982, p. 257.
274
TAYLOR, Paul W. “The Ethics of Respect for Nature”. Environmental Ethics 3 (1981), p. 206. Apud.
SPITLER, 1982, p. 257.
275
Idem, p. 209. Ibidem.
276
TAYLOR, 1989, p. 208. Ibidem.
qualquer influência na intrincada rede da vida, podendo ser extintos sem qualquer
prejuízo sério para o bem de outras espécies, o que Taylor de fato quer preservar?
Taylor concorda com as objeções de Spitler, mas se defende afirmando que de
acordo com as ideias básicas de ecologia, os aspectos gerais da biosfera da Terra podem
assegurar a verdade do princípio de interdependência.
277
O princípio não defende que
para o funcionamento saudável do sistema como um todo, seja essencial a participação
de cada sistema em particular. Tampouco a vida de cada organismo, necessária para
manter sua integridade. Mas, lembra Taylor, se cada animal ou planta deve realizar seu
bem, do seu próprio modo, ele deve adequar-se ao sistema do qual faz parte e manter
certas relações com outros organismos e seu ambiente físico, situação semelhante no
caso dos humanos como entidades biológicas.
A menos que os humanos sejam capazes de manter sólidas relações ecológicas
com outras formas de vida e seu ambiente físico, não conseguirão sobreviver. Se não
forem capazes de sobreviver como seres biológicos, declara Taylor, os seres humanos
também não serão capazes de existir como agentes morais, intelectuais, estéticos,
políticos ou religiosos.
278
Na perspectiva biocêntrica, o princípio de interdependência não deve ser mal
interpretado. Não se deve entender que o sistema todo entrará em colapso caso qualquer
ecossistema em particular, ou espécie, seja completamente destruído. Com relação à
objeção de Spliter à ideia de interdependência, Taylor admite exageros e lembra que a
realidade e universalidade das condições de interdependência ecológica, no reino de
vida da Terra, unem humanos e não-humanos em um único sistema de relações,
constituindo-se num componente básico da perspectiva biocêntrica.
279
3.2.3 Organismos buscam seu próprio bem
O terceiro componente fundamental da ética biocêntrica de Taylor consiste em
afirmar que cada organismo é um centro teleológico de vida que busca seu próprio bem a
seu próprio modo. Spitler considera que Taylor simplifica as descobertas científicas
sobre a grande variedade das formas de vida existentes no planeta. Observações mostram
que muitos organismos parecem apresentar tendências de comportamento altruísta.
277
TAYLOR, Paul. “In Defense of Biocentrism”. In: Environmental Ethics 5 (1983), p. 238.
278
TAYLOR, 1983, p. 238-39.
279
TAYLOR, 1983, p. 239.
Assim como Agar, Spitler considera muito mais plausível acreditar que indivíduos
possuem instintivas características comportamentais que ajudam a preservar a espécie,
mesmo que isso aconteça às custas do indivíduo.
Talvez cada organismo nem sempre esteja buscando seu próprio bem a seu próprio
modo, visto que as espécies de plantas e animais que existem atualmente na Terra
evoluíram seus mecanismos de sobrevivência. Spitler acredita que o comportamento
altruísta de algum modo seja preservado no gene de alguns membros da espécie.
280
Outro ponto que Spitler considera problemático nesse componente da ética de
Taylor corresponde à negligência dele em considerar as diferenças de grau no cuidado
que os organismos dispensam ao seu bem. Para fundamentar sua objeção, Spitler recorre
à tese de Southwood, para quem a energia disponível em um organismo capaz de
reprodução pode ser usada de três modos: 1) sobrevivência e crescimento desse
organismo, 2) produção de filhotes ou 3) uma combinação dos dois. Diferenças de
mecanismos de sobrevivência podem ser exemplificadas, segundo Southwood, nos
chamados r-strategists e K-strategists.
281
Os r-strategists dedicam muito da sua energia disponível para a reprodução. Os
organismos vivem uma existência com baixas repentinas em suas populações, com altos
índices de mortalidade, podendo chegar à extinção. Mesmo assim, em geral, as espécies
se recuperam. No outro extremo, os K-strategist com uma forma de vida longa têm
populações relativamente estáveis, com baixas taxas de reprodução; organismos que
desenvolveram um forte mecanismo de defesa.
Em resumo, os K-strategist lutarão por sua vida com muito mais vigor que um r-
strategist. Talvez Taylor precise reformular o terceiro componente. Um organismo pode
buscar o bem de sua espécie a seu modo, ao invés do seu bem-próprio.
282
Pela perspectiva biocêntrica, seres humanos também são organismos que buscam
seu bem. Se o terceiro componente se aplica a eles, questiona Spitler, como poderiam
adotar um ponto de vista que exige deles igual consideração pelo bem de indivíduos de
outras espécies? É o caso de pensar se o terceiro componente seja mais contrário do que
favorável à adoção da perspectiva biocêntrica, conclui Spitler.
283
280
SPITLER, 1982, p.258.
281
SOUTHWOOD, T. R. E. “Bionomic Strategies and Population Parameters,” Theoretical Ecology.
Philadelphia: W. B Saunders, 1976, p. 34. Apud. SPITLER, 1982, p.258.
282
SPITLER, 1982, p.259.
283
Ibidem
Em resposta, Taylor reforça que o conceito de organismo que busca seu próprio
bem não corresponde a um conceito particular sobre o que é o bem.
284
Nas sociedades de formigas e abelhas que dedicam sua vida pelo bem do grupo,
elas precisam primariamente sobreviver como indivíduos antes de poderem desempenhar
seus papéis na comunidade. Formigas e abelhas somente podem executar bem sua
função, se estiverem com as suas capacidades específicas, plenamente desenvolvidas.
Quando uma abelha ou formiga está enferma ou ferida, ela não é um bom
instrumento para a manutenção saudável da comunidade. Para Taylor, o fato de alguns
animais e plantas não dispensarem tanta energia para manter individualmente suas vidas,
não pode ser considerado um indicativo de que não possuam um bem próprio. Mesmo
que esse bem signifique simplesmente contribuir com sua parte para o bom
funcionamento de sua sociedade.
285
No que diz respeito aos humanos, a busca pelo próprio bem se agrega ao fato de
serem sujeitos morais agentes, capazes de agir por princípio. Para Taylor isso não difere
humanos de outros seres. Relevante é o fato de que humanos e não-humanos
compartilham uma característica fundamental: cada um a seu modo tem um bem próprio
e sua realização pode ser fomentada ou impedida de algum modo, característica
considerada eticamente significativa pelo autor.
A adoção da perspectiva biocêntrica possibilita aos seres humanos julgar, a partir
do ponto de vista dos próprios organismos afetados, o quanto podem ser tratados bem ou
mal pelos agentes morais.
286
3.2.4 A difícil aceitação da igualdade biocêntrica
A perspectiva biocêntrica defende o mesmo valor para todas as coisas vivas:
plantas, animais e seres humanos. Nenhuma espécie é superior ou inferior a qualquer
outra. Para Taylor, certas características ou méritos não tornam os seres humanos
superiores às outras formas de vida.
Spliter, entretanto, coloca em dúvida a possibilidade de se conceder tal igualdade
ao que é atribuído às diferentes formas de vida. Para o autor, é inaceitável pensar que
pisar uma flor ou esmagar com a mão um inseto, seja tão repreensível quanto matar
284
TAYLOR, 1983, p. 237.
285
TAYLOR, 1983, p. 238.
286
Ibidem.
seres humanos.
287
O autor também questiona Taylor, um membro da espécie Homo
sapiens, por adotar essa posição quando a maioria dos outros a considera totalmente
inaceitável.
288
Spitler talvez não tenha percebido que Taylor não adota a perspectiva da
vida que é destruída, mas daquela vida que busca a realização do seu bem próprio.
Para Spitler, existem dúvidas quanto à capacidade humana de ver a vida de outra
perspectiva, senão de sua própria. Isso não implica negar a preciosidade da vida.
Mesmo motivados por razões de bem-estar, os humanos podem e devem reconhecer a
preciosidade de outras formas de vida, sem precisar declará-la nos mesmos termos da
humana.
289
Para Taylor, a dúvida de Spliter expressa o principal obstáculo a transpor, mesmo
por aquelas pessoas eticamente sensíveis, na teoria do respeito pela natureza: aceitar a
concepção de igualdade biocêntrica.
Quase todos os filósofos morais consideram errado, a não ser em casos
excepcionais, matar seres humanos. Taylor lembra que existem exceções justificáveis
para a regra de não matar. Uma delas é agir em autodefesa, que justifica matar para
proteger a própria vida a de familiares, ou a de alguém próximo, frequentemente
admitido como um caso de legítima exceção à regra.
O ato de matar em autodefesa, contudo, não implica que o agente agressor tenha
menos bem inerente. Significa, segundo Taylor, que o agressor tem menos rito
moral, talvez nem isso possa ser considerado quando o agressor é louco, por exemplo.
Nesse caso, ele é visto como moralmente inocente.
290
Também pode ser o caso, quando duas pessoas entram em conflito com respeito a
seus direitos, podendo ser necessário infringir justificadamente os direitos de uma para
impedir uma injustificada violação dos direitos da outra. Um exemplo seria restringir a
liberdade de expressão de alguém para evitar um tumulto. Isso não implica, justifica
Taylor, que exista uma desigualdade de valor entre as pessoas envolvidas no conflito.
Seja qual for o ato, ele é errado, na medida em que seja prejudicial ao bem de outro.
291
Ações desse tipo devem ser evitadas, a menos que existam razões justificáveis para agir
em contrário.
Com respeito às coisas vivas não-humanas, Taylor insiste que se aceitamos a
perspectiva biocêntrica e consideramos que tais coisas possuem bem inerente, então será
287
SPITLER, 1982, p.260.
288
Ibidem
289
Ibidem
290
TAYLOR, 1983, p. 241.
291
Idem, p. 242.
errado, exceto em casos excepcionais, matar ou prejudicar qualquer uma delas, tão
errado quanto matar ou prejudicar um ser humano. Mas Taylor não quer dizer com isso
que humanos nunca devam matar ou prejudicar um animal ou planta silvestre, esmagar
um mosquito ou pisar uma flor do campo. Da mesma forma como se aplica nos casos
entre humanos, ações contrárias ao bem não devem ser realizadas, a não ser que razões
morais adequadas justifiquem-nas.
292
Razões que justificam matar um animal podem ser totalmente diferentes daquelas
que justificam matar um ser humano. Para Taylor, essas diferenças acarretam problemas
adicionais para a solução de conflitos entre seres humanos e as formas de vida silvestre.
Dependendo das circunstâncias, matar uma flor do campo é tão errado quanto matar um
humano. Destruir gratuitamente uma vida silvestre é mais repreensível que matar ou
prejudicar para defender-se.
Em uma situação em que duas ou mais regras contrárias se aplicam, nos
confrontamos com o conflito de deveres. Seguindo uma regra, violamos outra.
Então precisamos saber o que devemos fazer, considerando tudo. Para decidir
sobre qual o curso de ação nessas circunstâncias, é preciso descobrir, entre as
alternativas que se apresentam para escolha, aquela que traz consigo o maior peso
moral; isto é, devemos saber quais dos deveres conflitantes têm prioridade sobre
todos os outros. Isso será determinado por uma ordem de regras de acordo com o
conjunto de princípios prioritários. Na base desses princípios podemos fazer
julgamentos bem fundamentados, assim como quais deveres superam outros em
certas circunstâncias.
293
Contudo, não se deve entender que, num igualitarismo do tipo biocêntrico,
humanos devam sacrificar-se por outras formas de vida. Taylor defende que a ética do
respeito pela natureza não determina o dever de promover o bem-estar das coisas vivas
silvestres em detrimento do nosso próprio bem-estar. O igualitarismo biocêntrico exige
apenas que dispensemos ao bem das coisas vivas silvestres a mesma consideração moral
dispensada ao bem dos humanos.
A resolução justa dos conflitos entre o bem dos humanos e das outras formas de
vida exigiria dos humanos abandonar certas conveniências, confortos e outros bens de
292
TAYLOR, 1983, p. 242.
293
TAYLOR, 1989, p. 170.
menor valor para proteger e promover algo de grande importância para o bem-estar
deles. O respeito pela natureza, defende Taylor, impõe sobre os humanos a suprema
obrigação de resolver conflitos entre sua espécie e as outras, sem qualquer parcialidade
inicial em seu favor: “ações corretas são sempre ações que expressam a atitude de
respeito [...] Elas devem também ser ações que podemos aprovar à luz dos vários
componentes da perspectiva biocêntrica”.
294
A imparcialidade exigida nessas
circunstâncias não difere em nada daquela exigida na resolução dos conflitos entre os
humanos.
295
Quanto à objeção de Spliter, Taylor defende que a adoção do biocentrismo, como
perspectiva aceitável para uma ética ambiental, possibilita abandonar o
antropocentrismo, visão cultural parcial que não permite às pessoas adotarem seriamente
o igualitarismo do tipo biocêntrico. Para Taylor, aceitar genuinamente a perspectiva
biocêntrica na natureza é uma possibilidade real para os seres humanos, e uma razoável
perspectiva a adotar como base para uma ética ambiental.
296
3.3 A resistência antropocêntrica em favor da superioridade humana
Na ética do Respeito pela Natureza, Taylor defende que todas as coisas vivas
possuem bem inerente (inherent worth) igual. Essa ideia, entretanto, não fica imune à
tentativa dos teóricos da visão antropocêntrica de desqualificar qualquer teoria ética
ambiental que não esteja vinculada à crença na superioridade humana em relação às
outras formas de vida.
Diferentemente de Spitler, que duvida da possibilidade de o ser humano abandonar
o antropocentrismo como sua visão de mundo, Louis G. Lombardi, a partir da própria
teoria de Taylor, reinventa a concepção de superioridade humana.
294
TAYLOR, 1989, p. 171.
295
TAYLOR, 1983, p. 243.
296
Ibidem
3.3.1 O valor da vida não- humana
Taylor fundamenta sua ideia de igualdade biocêntrica na concepção de que se
atribui igual bem inerente a todas as formas de vida. Mas Lombardi considera que esses
assuntos devem ser tratados separadamente. Ainda que seja inevitável aceitar que todas
as formas de vida têm um bem inerente, é possível fazer distinções quanto aos tipos de
vida.
297
Impulsionado pela ideia de que existem diferenças de nível no bem inerente,
Lombardi defende que a ética biocêntrica de Taylor ignora a distinção existente entre
“superioridade moral”, que nega aos humanos, e o “bem inerente” superior que a eles é
possível atribuir, não pela qualidade, mas pelo seu tipo de vida.
298
Para Lombardi, a atitude filosófica predominante em relação à ideia de bem
inerente deriva da visão inaugurada por Kant. Segundo essa concepção, somente seres
racionais são fins em si mesmos e possuem bem inerente (inherent worth), enquanto os
outros seres têm algum valor apenas como meios. Essa visão antropocêntrica é
antagônica à concepção biocêntrica de consideração e respeito pela natureza, defendida
por Taylor.
299
Mas Lombardi, diferentemente de Kant, defende que nossa sensibilidade moral
reconhece bem inerente a vidas não humanas. Hoje em dia é unânime considerar
deplorável a morte desnecessária ou sem sentido de animais e, mesmo, das plantas.
Qualquer um evitaria o atropelamento de um animal atravessando uma rodovia e
consideraria problemático alguém passar o dia derrubando árvores, mesmo que fossem
de sua propriedade. Em contrapartida, também considera-se a possibilidade de atropelar
o mesmo animal, caso seja necessário evitar um acidente. Uma árvore também pode ser
derrubada para proporcionar calor a alguém. Lombardi acredita na existência de alguma
razão significativa que justificaria matar animais e plantas.
300
A vida em geral é muito especial. O ser humano, com todo o avanço no
conhecimento, ainda não foi capaz de produzi-la a partir da matéria inanimada. A
característica singular, mesmo com o advento da clonagem, ainda manter-se-á
assegurada, em virtude das condições ambientais e de desenvolvimento dessa vida. No
297
LOMBARDI, Louis G. “Inherent Worth, Respect and Rights”. In: Environmental Ethics 5 (1983), p.
257.
298
Ibidem
299
LOMBARDI, 1983, p. 258.
300
Ibidem
entanto, Lombardi considera que a singularidade sozinha não oferece razões suficientes
para justificar atribuir bem inerente a animais e plantas. Uma rocha também é singular,
mas não se pode considerá-la valiosa inerentemente, uma vez que coisas não vivas não
se empenham na busca e na realização do seu bem próprio.
A ênfase no valor da coisa viva é a linha divisória que Taylor estabelece
claramente em sua proposta ética. Somente das coisas vivas pode-se afirmar que
possuem um bem inerente.
Numa referência a Mark Sagoff, Lombardi afirma que as coisas naturais expressam
qualidades e virtudes que respeitamos, mas alerta que é preciso ter em mente a
significativa diferença entre ter capacidades e expressar qualidades. Uma montanha, por
exemplo, pode expressar qualidades como nobreza, força e liberdade para alguém que a
percebe assim. Entretanto, a base para atribuir valor às coisas não se deve à percepção
que temos delas, mas às capacidades próprias que possuem.
301
Lombardi reconhece que a ética biocêntrica de Taylor apresenta razões
justificáveis para sua aceitação. A concepção de organismos como centros teleológicos
de vida, sua nobreza e fragilidade, juntamente com a singularidade são as características
mais importantes que todas as coisas vivas comumente compartilham e, portanto, dignas
de valor por si mesmas.
302
Mas é importante compreender que são as capacidades que tornam cada coisa viva,
cada uma a seu modo, uma entidade única que busca o seu bem. Isso é o que justifica
atribuir bem inerente à vida em geral.
A batalha das plantas e animais para realizar seus fins desmente a ideia de que são
somente meios para realização de metas humanas. Para Lombardi, “muito do que é
valorizado na vida humana também pode ser encontrado em outras formas de vida e
somente nelas. Ignorar isso corresponde a ignorar fatos referentes aos próprios seres
humanos”.
303
O que está em questão, para Lombardi são fatos sobre cada ser no seu tipo
de vida, e cada tipo de vida a seu modo, dotado de características suficientes para que lhe
seja atribuído bem inerente.
Taylor é um crítico da visão organicista, mas Lombardi considera que o princípio
de interdependência entre as formas de vida constituintes do ecossistema terrestre, parece
enfatizar a ideia de mundo como sistema orgânico. O princípio da interdependência é um
301
SAGOFF, Mark. “On Preserving the Natural Environment,” Yale Law Journal 84 (1974): 205-67;
reprinted in Richard Wassertrom, Today’s Moral Problems, 2d ed. (New York: Macmillan Publishing
Co., 1979), p. 620. Apud. LOMBARDI, 1983, p. 260.
302
LOMBARDI, 1983, p. 259.
303
Idem, p. 260-61.
dos quatro elementos constituintes da perspectiva biocêntrica de natureza, que concebe
os organismos como mutuamente dependentes, sendo essencial a integridade de toda
biosfera do planeta para realização do bem de suas comunidades de vida, humanas ou
não-humanas. Qualquer valor que venha a surgir dessa situação, defende Lombardi, não
será intrínseco, mas um valor instrumental. Os indivíduos estarão protegidos enquanto
forem necessários à manutenção do equilíbrio do sistema.
304
Lombardi concorda que as espécies são mutuamente dependentes, mas lembra que
também existe muita competição entre as coisas vivas. Para o autor, a ideia de
interdependência das espécies não parece ser suficiente para explicar o bem inerente de
toda a vida, visto que indivíduos de uma espécie necessitam usar indivíduos de outras
espécies como meios e competem quando os recursos são escassos.
305
Talvez Lombardi não tenha entendido com clareza a concepção de
interdependência apresentada por Taylor. É importante destacar que a ideia de Taylor
nada tem a ver com a perspectiva organicista das concepções holísticas de ética
ambiental, cuja atitude correta, em relação ao mundo natural corresponde a preservar o
equilíbrio, a estabilidade e a integridade ecológica das comunidades bióticas, sendo
erradas as ações que venham destruir ou romper esse equilíbrio. Lombardi parece ignorar
que Taylor critica a visão organicista por não levar em conta o fato de os organismos
constituintes dos ecossistemas são indivíduos que possuem um bem próprio, os
verdadeiros merecedores da consideração moral dos agentes.
306
Para Taylor, é questionável uma teoria ética cuja Terra seja uma entidade a ser
considerada moralmente, enquanto aos indivíduos é atribuído um valor meramente
instrumental para a manutenção da integridade, estabilidade e equilíbrio dela.
307
Nossas concepções éticas não podem ignorar o valor de toda a vida, levando-se em
conta sua singularidade, origem e necessidades similares, fatores teleológicos, ainda que
as espécies utilizem outras e compitam entre si para sobreviver.
Numa referência a Goodpaster
308
, Lombardi afirma que num aspecto regulativo as
pessoas podem ser obrigadas a atribuir valor a todas as coisas vivas, mas tal obrigação
304
LOMBARDI, 1983, p. 261.
305
Ibidem
306
TAYLOR, 1989, p. 118.
307
Idem, p. 119.
308
Sobre o pensamento ético ambiental de Goodpaster informações importantes podem ser encontradas
em FELIPE, “Da Considerabilidade Moral dos Seres Vivos: a bioética ambiental de Kenneth E.
Goodpaster”, 2006, p. 105-18; NEGRÃO, “O critério da vida para uma ética ambiental: concepção,
filiação, conceitos, argumentos e propostas de Kenneth Goodpaster”, 2006, p. 119-23 e SALLES, Paulo
Benincá. Libertarianismo e Socialismo: limites e possibilidades de uma ética ambiental”. Ethic@ 5,
Florianópolis, 2006, p. 179-83.
não pode tornar-se plenamente operativa, em virtude da necessidade de comer e destruir
outras espécies para sobreviver. Para Lombardi, essa distinção desloca o problema, mas
permanece a necessidade de determinar quando é apropriado para os humanos usar
outras espécies para seus fins.
309
3.3.2 Tipos de vida
Um dos objetivos centrais da ética biocêntrica de Taylor é a negação da
superioridade biológica humana em relação às outras espécies de vida. Para Lombardi,
tal visão representa uma ameaça para muitos de nossos juízos morais. A própria
utilização de animais e plantas para alimentação e outros fins humanos deriva da
concepção de sua superioridade.
310
Além da controvérsia em torno de certas ações para com outras formas de vida,
entre elas a necessidade de matar animais para servir de alimento aos humanos,
Lombardi considera existirem outras situações em que a morte de animais pode ser
legitimada. Quando está em questão o bem-estar humano, alguns exemplos servem para
ilustrar essa situação: livrar as cidades dos ratos para proporcionar ambiente saudável,
utilizar animais em laboratório e matá-los, para a obtenção de drogas que auxiliem na
cura de doenças.
311
Para Lombardi, faz sentido falar de gradação do bem inerente em que os humanos
estariam no ponto mais alto dessa escala, em comparação às outras coisas vivas. O autor
acredita que talvez esse seja o meio termo que pode resolver o impasse entre a visão
antropocêntrica e o igualitarismo biocêntrico de Taylor.
312
No discurso de Taylor, organismos têm bem inerente porque são formas de vida
específicas. Distinção fundamental para definir o estatuto moral de coisas vivas, distintas
das não vivas. Mas, para Lombardi possibilidade de se fazer distinções ainda mais
sutis quanto aos diferentes tipos de vida.
313
Mas o bem inerente não se assemelha às questões de mérito, não pode ser
organizado em uma escala, rebate Taylor. Quando é aplicado a humanos, a ideia de
309
LOMBARDI, 1983, p. 261.
310
Idem, p. 262.
311
Ibidem
312
Ibidem
313
Ibidem
graduar o bem inerente torna-se incompatível com a noção de igualdade humana, porque
representa a injustiça social personificada no sistema de classes:
Quem vive nas modernas democracias não acredita mais na distinção social
hereditária... Devemos pensar o sistema de classes como um paradigma da
injustiça social, visto que o princípio central do modo de vida democrático é a
inexistência de superiores e inferiores entre os humanos. Assim, deve-se rejeitar a
totalidade da estrutura conceitual, na qual se julga que pessoas têm diferentes graus
de valor.
314
Lombardi concorda que não fundamentos para considerar a possibilidade de
fazer distinções entre os humanos. Todas as tentativas registradas pela história
confirmam que distinções baseadas em características como raça, sexo ou ancestralidade
não foram capazes de fundamentar níveis distintos de bem inerente entre os humanos.
Contudo, Lombardi não acredita que isso implique na inexistência de um fundamento
capaz de justificá-los. É absolutamente possível descobrir diferenças relevantes entre as
espécies.
315
Todos os seres vivos compartilham as capacidades vegetativas. Quanto a isso,
Lombardi está de acordo. Contudo, muitos desses seres também são ativos e conscientes,
enquanto outros, além de ativos e conscientes, são agentes morais. No caso dos animais,
ser ativo e consciente são capacidades adicionais, em relação à vida vegetativa
compartilhada com as plantas. Para Lombardi, divisões biológicas podem justificar a
gradação do bem inerente e correspondem às divisões entre plantas, animais e seres
humanos.
316
Lombardi reconhece que as plantas, embora não sejam conscientes nem capazes de
expressar sentimentos de dor e prazer ou agir autonomamente, são formas de vida que
possuem bem inerente. os animais expressam essas características em virtude do tipo
de vida senciente que são.
Quando entram em questão as ações humanas, Lombardi considera sem sentido
afirmar, por exemplo, que existam obrigações de evitar causar dor psicológica às plantas.
Pode-se afirmar que tais obrigações são devidas aos animais, o que justificaria afirmar
314
TAYLOR, 1981, p. 214.
315
LOMBARDI, 1983, p. 263.
316
Ibidem
que o seu bem inerente excede o das plantas, simplesmente porque seu tipo de vida não é
meramente vegetativo.
317
A diferença entre animais e plantas pode ter como critério a variedade de
capacidade de ambos, acredita Lombardi. Para tanto, é crucial aceitar que: 1) se um tipo
de ser possui as capacidades de outros seres; e, 2) possui capacidades adicionais que
tipicamente o distinguem dos outros, ele consequentemente tem maior bem inerente. É
importante lembrar que o princípio propõe descrever diferenças de tipo, não
simplesmente de grau. Lombardi defende que diferenças no bem inerente surgem
unicamente quando capacidades novas ou adicionais se fazem presentes.
318
Animais e seres humanos compartilham algumas capacidades tais como
consciência, sentimentos de dor e prazer, ações autônomas. O fato de animais poderem
mover-se rapidamente ou de diferentes modos, representa diferenças de grau dessas
capacidades. Por outro lado, ser agente moral corresponde a uma capacidade adicional, à
qual, em comparação aos outros seres e suas capacidades, Lombardi considera
consistente, coerente e razoável agregar maior bem inerente.
A presença da capacidade de ser agente moral, nos humanos, os torna
significativamente diferentes, mas não superiores moralmente aos outros seres. A
diferença entre humanos e não-humanos obedece ao mesmo critério pelo qual se
distingue animais e plantas: diferença de espécie, de tipos de vida.
319
Para Lombardi, o fato de a distinção entre animais e plantas não ser adotada como
critério de evidência de superioridade moral dos animais em relação às plantas,
diferenças entre animais e seres humanos não necessita indicar superioridade moral dos
seres humanos. Por esse motivo, o autor considera a visão de superioridade de Taylor
equivocada, e seu argumento contra a superioridade humana defeituoso. Estabelecer
distinções, em termos de bem inerente, segundo Lombardi, exige olhar as capacidades
que os seres possuem, ao invés de deter-se em sua bondade moral (moral goodness).
320
3.3.3 Respeito versus direito
317
LOMBARDI, 1983, p. 263.
318
Idem, p. 264.
319
Idem, p. 266.
320
Idem, p. 266-67.
Lombardi não rejeita a ideia de que a vida tem bem inerente. Mas, diferentemente
de Taylor, considera que podem existir diferentes níveis de bem, conforme os tipos de
vida.
A aceitação de que o bem inerente pode ser escalonado em diferentes níveis
conforme o tipo de vida oferece sentido ao que Taylor defende sobre a esfera dos direitos
morais, segundo Lombardi, restrita aos seres humanos, sem tentativas de estendê-la para
as outras formas de vida.
321
Da mesma forma, a existência de diferenças entre o nível de bem inerente de
plantas, animais e seres humanos justifica a possibilidade de matar plantas cultivadas
para servir de alimento, matar árvores para obter papel, usar animais em laboratórios
para obter drogas necessárias à cura de enfermidades humanas, entre outras
possibilidades. Segundo Lombardi, conforme a situação, essas diferenças fundamentam a
ideia de que outras espécies podem ser mortas para satisfazer fins humanos.
Na relação entre humanos, também existem situações cuja máxima de não matar
tem exceções. O princípio de autodefesa pode ser usado para justificar matar um ser
humano quando a vida de outro estiver ameaçada por ele.
322
Nesse caso, uma vida
humana é tão valiosa que o valor somente pode ser excedido por outra vida humana.
Plantas e animais, embora possuam bem inerente, não o possuem nesse grau.
Para justificar sua posição, de restringir direitos morais à esfera dos humanos,
Lombardi lembra o que diz Feinberg: ter direitos corresponde a reivindicar algo contra
alguém, reconhecendo que são descritos por regras ou, no caso de direitos morais, são
reconhecidos como princípios por uma consciência esclarecida”.
323
Refere-se ainda a
Wasserstrom que concebe direito como “o tipo mais forte de reivindicação que existe”.
324
E também Singer e Haworth: o primeiro defende que seres de diferentes tipos têm tipos
diferentes de direitos e o segundo apresenta uma versão mais forte, definindo que, em
geral, os direitos dos seres não-humanos são mais fracos que os direitos e, mesmo, os
interesses dos humanos.
325
Junto com a tese das diferenças de capacidades, tais
321
LOMBARDI, 1983, p. 267.
322
Ibidem
323
FEINBERG, Joel. “The Rights of Animals and Unborn Generation”. In: Rights, Justice and the
Bounds of Liberty. Princeton: Princeton University Press: 1980, p. 159-60. Apud. LOMBARDI, 1983, p.
267.
324
WASSERSTROM, Richard. “Rights, Human Rights and Racial Discrimination”. In: The Journal of
Philosophy 61. 1964. Reprinted in: MELDEN, A. I. (ed.) Human Rights. Belmont, California: Wadsworth
Publishing Co., 1970, p. 99. Apud. Idem, p. 268.
325
HAWORTH, Lawrence. “Rights, Wrongs, and Animals,” Ethics 88 (1978): 100. Apud. Idem, p. 268.
considerações tornam razoável restringir à ideia de direitos morais à esfera dos humanos
agentes morais.
326
O desenvolvimento de um conceito apropriado de direitos necessita levar em conta
qual papel se espera que represente no sistema moral. Em virtude das diferenças de
capacidade entre humanos e outras coisas vivas, Lombardi considera que
justificadamente é possível fazer reivindicações especiais, em favor dos humanos,
principalmente a exclusividade na consideração de direitos morais.
327
Para reivindicar que animais e plantas possuem um bem inerente que merece ser
promovido ou protegido, Lombardi defende que a concepção de respeito apresentada por
Taylor pode ser ajustada ao tipo de ser em questão, sendo mais suscetível à ideia de
gradação do bem do que à concepção de direitos.
As plantas, por exemplo, merecem respeito porque são vivas, não porque sejam
conscientes ou ativas. Da mesma forma, deve-se respeitar seres ativos e conscientes, mas
não porque venham a tornar-se agentes morais.
Embora o respeito pela vida de animais implique providenciar um tipo mais fraco
de direito à vida, a defesa de animais e plantas acontecerá de forma mais consistente por
meio da reivindicação equilibrada, ainda que exigente, de respeito.
328
Para Lombardi, as exigências propostas na ética biocêntrica de Taylor poderão ter
apoio se forem admitidas distinções entre os tipos de vida. Ao se reconhecer que a vida
possui bem inerente é possível aceitar que estejamos moralmente obrigados a proteger ou
promover o bem das coisas vivas silvestres, por elas mesmas.
Uma vez aceito que o nível de bem dos seres são distintos, Lombardi considera que
o igualitarismo biocêntrico de Taylor não se sustenta, principalmente porque a negação
da superioridade humana está baseada numa equivocada conexão que o autor faz entre
bem inerente (inherente worth) superior e bem moral (moral goodness) superior.
329
Além disso, o critério apresentado por Taylor para estabelecer a distinção entre
coisas vivas
330
e não vivas, também pode ser adotado para justificar distinções entre os
tipos de vida e o grau de bem inerente. Tais distinções, segundo Lombardi ofereceriam a
base capaz de justificar respeito pela natureza e direitos morais para os seres humanos.
331
326
LOMBARDI, 1983, p. 268.
327
Ibidem
328
Idem, p. 269.
329
Idem, p. 270.
330
Cada coisa viva silvestre possui um bem próprio dela, o que justifica afirmar que possui um bem
inerente (inherent worth).
331
LOMBARDI, 1983, p. 270.
3.3.4 A insustentável ideia de superioridade humana
A defesa da superioridade da vida humana é histórica. Lombardi, filiado à tradição
antropocêntrica, propõe uma concepção contemporânea de superioridade, cuja ideia tem
como fundamento uma insustentável gradação do bem, escala definida de acordo com a
adição de capacidades àquelas que todos têm em comum, que tornariam possível de
estabelecer diferenças entre as formas de vida. Além da concepção de Lombardi, outras
três ideias marcam a história do pensamento ético-filosófico da superioridade humana,
segundo Taylor:
1) A definição grega clássica do ser humano como animal racional; capacidade
singular que o distingue significativamente dos outros animais.
332
2) A ideia da Grande Cadeia de Seres (Great Chains of Beings) em que todas as
coisas vivas existentes ocupam lugar numa infinita hierarquia de seres em que
no topo está Deus, o ser mais perfeito, e a partir dele, em escala descendente, os
outros seres ocupam seus lugares até chegar à criatura mais imperfeita.
333
3) A metafísica dualista de Descartes, que concede superioridade aos seres
humanos em virtude de possuírem uma mente e um corpo, enquanto animais e
plantas possuiriam apenas corpo.
334
Para Taylor, tanto na tradição ocidental quanto na oriental pode-se perceber a
persistente ideia de que seres humanos pertencem a um nível mais alto de vida, enquanto
todos os outros seres vivos, animais e plantas ocupam posições abaixo deles.
O denominador comum do pensamento filosófico ocidental e oriental, e das
grandes tradições religiosas do Judaísmo, Cristianismo, Hinduísmo subjaz, segundo
Taylor, na crença de que a existência humana é mais valiosa que a existência de animais
e plantas.
335
Nas diversas culturas persiste o apelo a certa metafísica intuitiva, obscura que
Taylor acredita fundamentada na crença da existência de uma diferença óbvia de valores
entre humanos e não-humanos. Entretanto, nenhum dos argumentos apresentados, seja
332
TAYLOR, 1989, p. 135.
333
Idem, p. 139.
334
Idem, p. 143.
335
TAYLOR, Paul. “Are Human Superior to Animal and Plants”. In: Environmental Ethics 6 (1984), p.
149.
pelas tradições filosóficas e religiosas, tampouco a proposta de Lombardi, resistem a um
minucioso e crítico exame.
336
Apesar do esforço de raciocínio de Lombardi, Taylor aponta que ele não tem êxito
em seu propósito de justificar maior bem inerente (inherent worth) humano, em relação
às outras coisas vivas, baseado num critério de variação e amplitude de capacidades para
a realização do bem próprio.
O primeiro passo para tratar dessa questão, segundo Taylor, exige conhecer
claramente os conceitos de valor envolvidos. Especialmente, deve-se distinguir a
concepção de bem inerente das outras concepções de valor. Taylor enumera seis tipos de
valor que orientam as discussões:
337
1) Valor Instrumental: atribuído a algo pela sua efetiva importância como meio
para alcançar um fim;
2) Valor Comercial: medido pelo seu preço no mercado, ou soma, pelo qual pode
ser vendido;
3) Por Mérito ou Excelência: atribuído a uma propriedade que alguém possui,
classificando-a num grau ou escala padrão;
4) Valor Intrínseco ou Imediatamente Bom: atribuído a qualquer experiência ou
atividade de um ser consciente, que para ele é agradável, prazerosa, desfrutável
ou que vale a pena, por si mesma;
5) Intrinsecamente Valioso: dependente de um avaliador. Qualquer entidade, seja
humana, animal ou planta, objeto, lugar ou prática social, somente tem valor se
alguém lhe tem apreço, carinho, ama, admira pelo que é, em si mesma;
6) Bem Inerente (inherent worth): algo ou alguém com esse valor possui um bem
próprio dele (good of its own). Afirmar que alguma coisa tem esse valor
implica aos agentes morais reconhecer que esse é um bem que merece
consideração. Da mesma forma, deve ser protegido e promovido como um fim
em si mesmo, pelo bem daquele a quem o bem pertence.
Para Taylor, quando se reconhece que algo tem bem inerente, parece apropriado
considerá-lo o objeto da atitude moral de respeito, sem confundi-lo com atitudes de
amor, admiração ou de apreço, dirigidas a entidades intrinsecamente valiosas.
338
É
preciso ter claro que o valor de uma entidade com bem inerente não depende da
consideração de um avaliador.
336
TAYLOR, 1984, p. 149-50.
337
Idem, p. 150-51.
338
TAYLOR, 1984, p. 151.
Em sua visão antropocêntrica, Lombardi defende que seres humanos têm maior
grau de bem inerente, porque expressam um tipo de vida com uma variedade maior de
capacidades, adicionais àquelas que possui em comum com as outras coisas vivas. Isso
seria suficiente para distingui-los dos demais. Entretanto, Taylor duvida que o critério de
Lombardi seja suficientemente forte para sustentar a superioridade humana.
Não está em questão duvidar que a variedade de capacidades dos humanos seja
mais ampla, com relação àquelas que animais e plantas possuem, se por “variedade”
entende-se a referência às capacidades intelectuais, morais, psicológicas, culturais,
estéticas, religiosas e políticas, todas importantes para a realização do bem humano. Em
contraste estão as capacidades biológicas, compartilhadas com todas as coisas vivas:
reprodução, crescimento, adaptação ao meio ambiente, entre outras, seguidas das
capacidades físicas para locomoção, descanso e uso de energia.
Mas, a questão principal, para Taylor, é saber se essa variedade de capacidades
justifica defender a existência de graus de bem inerente (inherent worth). Lombardi não
consegue estabelecer uma clara conexão entre variedade de capacidades e a proposta de
gradação do bem inerente.
339
Lombardi ainda propõe o princípio p, segundo o qual, um tipo de ser que: 1) possui
capacidades de outros seres; e, 2) possui capacidades adicionais, de tipo diferente
daquelas compartilhadas com outros seres, deve ter o seu bem inerente considerado
maior que o bem dos outros.
340
Essa estratégia Lombardi defende como sendo a mesma
utilizada por Taylor para estabelecer a distinção entre coisas vivas e não vivas.
341
Para Taylor, o raciocínio de Lombardi ignora um fato importante: todas as coisas
vivas possuem bem inerente, mas não são suas capacidades, tomadas em si mesmas, que
lhes concedem esse valor. De fato, são as capacidades inter-relacionadas funcionalmente,
que possibilitam afirmar de um organismo, como um todo, que ele possui um bem
próprio o qual busca realizar.
342
Na medida em que se atribui algum bem inerente às coisas vivas, admite-se como
verdade simples que cada um tem um bem que é próprio dele, que serve como
fundamento suficiente para conceder-lhe valor. Para Taylor, isso permite estabelecer a
distinção entre afirmar que algo possui bem inerente (inherent worth), e que algo possui
um valor intrínsico (intrinsic value), cuja avaliação depende de uma pessoa ou grupo.
343
339
Idem, p. 154.
340
LOMBARDI, 1983, p. 263-64.
341
Idem, p. 264.
342
TAYLOR, 1984, p. 154 e 1989, p. 148.
343
TAYLOR, 1984, p. 155.
Assumindo-se que o bem inerente de uma entidade não é algo que esteja
condicionado à avaliação, mas depende somente de se reconhecer que ele possui um bem
o qual busca realizar, Taylor defende que a variedade de capacidades apenas demonstra a
existência de diferenças na realização desse bem, nos diferentes tipos de vida.
Assim, o fato de algumas entidades possuírem ampla variedade de capacidades,
confirma a sua necessidade de mais capacidades que outros para a realização de seu bem.
Nada disso tem a ver com a atribuição de maior ou menor bem inerente. Sobre isso,
Taylor escreve:
Aqueles com uma variedade relativamente limitada de capacidades (plantas e
protozoários unicelulares, por exemplo) podem, absolutamente, realizar seu bem,
no melhor nível possível, por meio daquelas capacidades, sob condições
ambientais favoráveis. Eles não necessitam de quaisquer capacidades adicionais
para ter um tipo de existência que, para seu tipo específico, constitui uma boa vida.
Por que suas capacidades deveriam ser subestimadas ou classificadas num grau
mais baixo, simplesmente porque não são tão amplas quanto às capacidades de
outros (que necessitam de tais capacidades para realização de seu bem)?
344
Lombardi também recorre a uma declaração de Singer para justificar sua tese da
superioridade do valor inerente da vida humana. Singer, segundo Lombardi, afirma que
considerações quanto ao bem-estar de crianças crescendo na América exigem que as
ensinemos a ler, enquanto considerações quanto ao bem-estar de porcos exigem apenas
que os deixemos na companhia de seus pares, num lugar adequado com comida e espaço
para correr.
345
Contrariamente ao que pretende Lombardi, Taylor considera que a afirmação de
Singer apenas confirma a tese de que variações nas ações que promovem o bem-estar de
crianças e porcos apenas diferem para um e outro. O conjunto de capacidades associadas
a agência moral: racionalidade, habilidades comunicativas complexas, entendimento de
valores morais que Lombardi considera instrumentalmente mais valiosas que as
capacidades de animais e plantas, para Taylor não providenciam fundamento para
justificar um nível mais alto de bem inerente dos humanos. Segundo Taylor, tais
capacidades apenas definem o que é ser um agente moral, nada tendo a ver com maior ou
344
TAYLOR, 1984, p. 155; e 1989, p. 149.
345
SINGER, Peter. Animal Liberation. New York: New York Review Book, Random House, 1975, p. 6.
Apud. LOMBARDI, 1983, p. 265.
menor grau do bem inerente, visto que animais e plantas não precisam delas para realizar
seu bem próprio.
No entender de Taylor, Lombardi não oferece nenhuma razão positiva capaz de
explicar porque não se deve usar a capacidade humana para ser agente moral, na negação
de sua superioridade. Essa questão, diz Taylor, corresponde a:
...que graus mais altos ou baixos de mérito moral (virtudes e vícios) não podem ser
atribuídos a entidades que são agentes morais, e tais diferenças de mérito não
devem ser confundidas com diferenças de grau de bem inerente entre seres que são
agentes morais daqueles que não são.
346
Outro equívoco de Lombardi corresponde, segundo Taylor, à maneira como o
autor aborda a ideia dos direitos. Ambos concordam com o fato de que não se pode
reivindicar direitos morais para animais e plantas. Entretanto, Taylor considera que
Lombardi interpreta confusamente sua restrição de direitos à esfera humana, da mesma
forma que essa restrição não tem qualquer relação com a tese da negação da
superioridade humana.
O argumento equivocado de Lombardi sobre direitos, segundo Taylor, se
caracteriza pela maneira similar que o autor trata as relações entre humanos e as relações
desses com as outras formas de vida. O fato de termos reivindicações morais válidas, as
quais outros agentes morais têm o dever de reconhecer e respeitar, não trazem, segundo
Taylor, quaisquer implicações na maneira como devemos tratar, ou ser tratados, por
animais e plantas: “direitos humanos são reivindicações morais válidas que os portadores
de direitos têm frente a outros humanos”.
347
Por fim, Taylor critica o apelo de Lombardi ao senso comum, cuja maioria
esmagadora das pessoas consideraria que animais e plantas têm certo grau de bem
inerente num nível diferente dos humanos. Visão que Lombardi considera ser aceita
universalmente. Essa crença, segundo Taylor, reflete uma imagem completa e
profundamente distorcida, enganosa, das relações entre humanos e de humanos com os
animais e plantas. Parte da explicação para esse engano parece provir da ideia de um
poder cada vez maior dos humanos sobre o mundo natural. Isso parece refletir a ideia de
346
TAYLOR, 1984, p. 156.
347
Idem, p. 157.
que quanto maior o poder de controlar e dominar o mundo no qual vivem, menor
respeito se tem por ele.
348
Embora pareça ser uma explicação pouco significativa para a crença na
superioridade humana, Taylor afirma sua importância e significância para a compreensão
dessa crença. Um julgamento de valor que não é posto em dúvida e permeia as
considerações sobre o modo de vida humana, em contraste com o valor de animais e
plantas. Para Taylor, quando são comparadas, a variedade e riqueza das experiências
humanas, com a limitada e estreita experiência dos animais e plantas, tende-se a pensar
que, em relação à vida humana, animais e plantas têm uma existência empobrecida e
maçante. Diante disso, prevalece um sentimento de gratidão entre os humanos pela sorte
de terem nascido humanos.
349
Tais reações, segundo Taylor, correspondem a uma visão estritamente humana,
cujo bem-estar corresponde ao padrão do que se entende por vida boa, que vale a pena
ser vivida. Mudar essa perspectiva implica num esforço de imaginação e pensamento da
parte dos humanos para o exercício de se colocar no lugar desses seres e perceber o que
seria para eles uma vida boa. Além disso, reconhecer o valor genuíno de suas
capacidades específicas (species-specifics) para o funcionamento biológico saudável,
indispensável na luta pela promoção de seu bem-estar. Quando somos capazes, segundo
Taylor, de ver a vida dos animais e plantas pela sua perspectiva, “abrimos a possibilidade
de que, como membros da comunidade total de vida da Terra, eles possam possuir um
bem inerente igual ao que é atribuído a nós mesmos, como pessoas”,
350
sem que existam
razões para que sejam feitas avaliações mais baixas do seu bem, em comparação ao bem
dos humanos.
Precisamos nos livrar da parcialidade e das distorções estanques de nossa história
antropocêntrica. Para Taylor, somente uma mente aberta e esclarecida pode tratar das
questões conflitantes na relação entre humanos e não-humanos. Consequentemente, tal
mente será capaz de atender ao mais alto e nobre chamado no domínio da ética:
promover a revolução com respeito aos princípios igualitários, no domínio das relações
entre humanos e não humanos, similar à revolução em curso no domínio das relações
humanas.
351
348
TAYLOR, 1984, p. 158.
349
Ibidem
350
Idem, p. 159.
351
TAYLOR, 1984, p. 160.
Considerações finais
Com respeito a tudo o que foi exposto sobre as questões ambientais, pode-se
perceber o nível em que se encontram as discussões sobre a relação dos humanos com o
restante da comunidade de vida da Terra.
A maioria dos humanos tem dificuldades para reconhecer que sua relação e o
tratamento dispensado às outras coisas vivas da Terra precisam mudar. Muitos admitem
essa necessidade, mas não conseguem abandonar velhos hábitos, herdados da tradição
antropocêntrica.
Apesar de todos os argumentos em contrário, o discurso sobre a superioridade da
espécie humana sempre retorna como forte argumento para desqualificar a defesa de
uma igualdade biocêntrica e a perspectiva de desenvolvimento de uma ética com base
nessa visão.
Os antropocentristas insistem que o ser humano, em todos os aspectos, é superior
a todas as outras coisas vivas da Terra. Comprovadamente, humanos são os únicos
capazes de ser agentes morais. Contudo, essa característica somente torna-se evidente
nos humanos ao longo de seu desenvolvimento. Muitos, no entanto, sequer
desenvolvem habilidades mínimas, necessárias para sobreviver biologicamente. Alguns
tornam-se dependentes de outros para conseguir satisfazer suas necessidades básicas.
Talvez não seja possível negar absolutamente a superioridade humana.
Intuitivamente percebemos que algo nos distingue dos outros seres vivos, assim como
eles entre si. O que se questiona, entretanto, é a forma como se entende superioridade:
no sentido de permissão para dominar outras formas de vida de maneira predatória.
Uma concepção de superioridade humana defensável se justifica unicamente pela
capacidade humana de refletir sobre sua própria condição biológica que o torna igual a
todos os outros organismos na busca pela sobrevivência.
Nesse contexto, Taylor propõe a reflexão sobre uma igualdade entre os
organismos, baseada em condições biológicas semelhantes de sobrevivência, a qual
todos estão submetidos. Nessa proposta, a visão antropocêntrica de natureza deve ser
abandonada, em favor de uma perspectiva biocêntrica, única capaz de promover
mudanças na sua maneira de ver o seu lugar na comunidade de vida da Terra.
Os problemas ambientais refletem a necessidade de se repensar uma nova
concepção humana de mundo. Muitas são as propostas, mas a de Taylor apresenta-se de
modo consistente com as exigências formais e materiais para o desenvolvimento de uma
teoria ética. O autor se preocupa em estruturar uma teoria ética ambiental de modo
familiar ao modelo subjacente das éticas humanas. Procura também estabelecer critérios
para a definição do objeto de valor e consideração moral; dos princípios para a
resolução de conflitos de interesses entre humanos e não-humanos, além das virtudes
associadas a princípios capazes de oferecer boas razões para os humanos decidirem
adotar uma atitude de respeito pela natureza.
A ética de Taylor consegue apresentar limites defensáveis para restringir as ações
humanas frente a um tipo de vida em particular: aquelas que mantiveram seu caráter
silvestre. Taylor elege as coisas vivas silvestres porque acredita que possuam um bem
próprio delas, que ainda não foi destruído pela atividade humana ou que muito
tempo, ao não ser mais manejado, recuperou seu modo singular de vida.
A delimitação da ética do respeito às coisas vivas silvestres tem o mérito de
oferecer maior consistência aos argumentos de Taylor em sua defesa pela atitude de
respeito pela natureza. Mas não tem alcance quando os objetos da reflexão ética são os
animais e plantas produzidos pela cultura humana. Pois a manipulação humana
transformou esse bem próprio num bem instrumental; tais vidas carecem da
singularidade que caracteriza o bem próprio nas coisas vivas silvestres.
Apesar do alcance da ética do respeito pela natureza para a preservação do meio
ambiente, a teoria de Taylor apresenta um problema em especial. Um dos princípios
prioritários, eleito para a resolução de conflitos entre os interesses de humanos e não
humanos pode levar sua teoria a inconsistências em relação às exigências formais de
generalidade, universalidade e, especialmente, imparcialidade.
Os princípios prioritários propostos para a resolução de conflitos têm o papel de
intervir quando interesses de humanos e não-humanos competem entre si. Um princípio
é especialmente problemático: o princípio do Mau-menor.
Tal princípio tem por objetivo dirimir o conflito que se estabelece entre interesses
básicos dos seres não-humanos e não-básicos dos seres humanos. Segundo Taylor,
alguns interesses não básicos dos humanos seriam tão significativos para a promoção do
seu modo de vida que, mesmo os adeptos da perspectiva biocêntrica estariam dispostos
a considerar.
Nesse caso, para promover um interesse humano não-básico, em detrimento a um
interesse básico não-humano, o princípio recomenda causar o menor mal possível, com
relação ao interesse básico dos seres não-humanos afetados.
A questão é saber o quanto um mal é maior ou menor para a entidade que tem o
seu interesse básico subestimado. O princípio do Mal-menor abre a possibilidade de os
humanos subestimarem os interesses básicos das outras formas de vida, fazendo
prevalecer sempre o seu interesse não-básico, sob pretexto de ser um interesse
imprescindível para o desenvolvimento do seu modo de vida, o qual não poderia abrir
mão.
Todo trabalho de reflexão filosófica, em torno da importância de preservar o bem-
próprio da coisa viva silvestre, porque isso implica reconhecer nela um bem inerente,
independente de quaisquer interesses de terceiros, parece sem sentido diante dessa
parcialidade em favor dos humanos.
Uma ética ambiental genuína não deve fazer concessões, quando estão em questão
interesses básicos, sejam eles dos seres humanos ou dos seres não-humanos. A ética de
Taylor é capaz de cumprir essa exigência, mas precisa rever a prioridade do princípio do
Mau-menor ou sua exclusão do conjunto de princípios prioritários para a resolução dos
conflitos de interesses.
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