Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DE RAGAZZI DI VITA A ACCATTONE:
PIER PAOLO PASOLINI DA LITERATURA AO CINEMA
CÉSAR CASIMIRO FERREIRA
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
DE RAGAZZI DI VITA A ACCATTONE:
PIER PAOLO PASOLINI DA LITERATURA AO CINEMA
CÉSAR CASIMIRO FERREIRA
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
ads:
3
DE RAGAZZI DI VITA A ACCATTONE:
PIER PAOLO PASOLINI DA LITERATURA AO CINEMA
César Casimiro Ferreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
Examinada por:
_________________________________________________
Presidente, Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos – UFRJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Maria Franca Zuccarello – UERJ
_________________________________________________
Profa. Dra. Sonia Cristina Reis – UFRJ
_________________________________________________
Prof. Dr. Carlos da Silva Sobral – UFRJ – Suplente
_________________________________________________
Prof. Dr. Aníbal Francisco Alves Bragança – UFF – Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
4
FICHA CATALOGRÁFICA
Ferreira, César Casimiro.
De Ragazzi di Vita a Accattone
: Pier Paolo Pasolini da Literatura ao Cinema. /
César Casimiro Ferreira. – Rio de Janeiro: UFRJ/ FL, 2009.
137f. : il.
Orientadora: Maria Lizete dos Santos.
Dissertação (Mestrado)
Faculdade de Letras, Departamento de Letras
Neolatinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.
Referências Bibliográficas: f. 131-134
1. Pasolini, Pier Paolo. 2. Ragazzi di Vita. 3. Accattone. 4. Narrativa italiana – S
éc.
XX. 5. Cinema italiano. 6. Adaptação. 7. Tempo e Narrativa.
I. Santos, Maria
Lizete. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. De Ragazzi di Vita
a
Accattone: Pier Paolo Pasolini da Literatura ao Cinema.
5
RESUMO
De Ragazzi di Vita a Accattone:
Pier Paolo Pasolini da Literatura ao Cinema
César Casimiro Ferreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos.
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
Neste trabalho, focalizam-se o romance Ragazzi di vita e o filme Accattone,
ambos de autoria do escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, com o escopo
de se analisar as relações entre Literatura e Cinema, sob diversos ângulos. A
análise se centra, em especial, na questão da transposição da narrativa literária
em escrita cinematográfica (argumento, roteiro) e decupagem. Também, reflete-
se sobre a forma de vida nas periferias romanas do pós-guerra, nas borgate, nos
anos 1950. O estudo proposto encontra-se alinhado a Giorgio Tinazzi, Caterina
Selvaggi, Marcel Martin e Tarkovski, dentre outros, para o exame da relação
literatura-cinema, e a Giampiero Carocci, para a compreensão da sociedade
italiana dos anos 1950.
Palavras-chave: Pier Paolo Pasolini – Ragazzi di Vita – Accattone – Cimena
Italiano – Literatura Italiana – Adaptação – Tempo e Narrativa
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
6
RIASSUNTO
De Ragazzi di Vita a Accattone:
Pier Paolo Pasolini da Literatura ao Cinema
César Casimiro Ferreira
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos.
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos, opção: Literatura Italiana).
In questo lavoro si esaminano il romanzo Ragazzi di vita e il film Accattone, dello
scrittore e regista italiano Pier Paolo Pasolini, con lo scopo di si analizzare le
interrelazioni fra Letteratura e Cinema, sotto diversi profili. L’analisi si sofferma, in
particolare, sulla questione della trasposizione testo letterario in scrittura
cinematografica (soggetto e sceneggiatura) e la messa in scena. Inoltre si riflette
sulla forma di vita nella periferia di Roma, nelle borgate, degli anni 1950.
Per quanto concerne i presupposti teorici, lo studio si affianca a Giorgio Tinazzi,
Caterina Selvaggi, Marcel Martin e Tarkovski, tra altri, per l’esame del rapporto
letteratura-cinema, e a Giampiero Carocci per comprendere la società italiana
degli anni 1950.
Parole-chiave: Pier Paolo Pasolini – Ragazzi di Vita – Accattone – Cinena Italiano
– Letteratura Italiana – Adattamento – Tempo e Narrativa
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
7
A meu pai, Raimundo Casimiro, in memoriam.
8
AGRADECIMENTOS
Nestes sete anos encontrei pessoas que me ajudaram com conselhos ou
simplesmente acreditaram em mim.
Obrigado:
A todos os meus amigos de graduação e pós na Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Àqueles que me fizeram companhia no
dia-a-dia do curso, na rotina desgastante e, ao mesmo tempo, enriquecedora.
Minha gratidão especial a:
Ana Cristina Barbuto, Andrea Batista Cabral, Daniele Soares, Elias Ferreira,
Flávia Menezes, Izabel Costa, Lisandra Mateus, Luciana Nascimento, Luís Carlos
Guimarães, Michele Ferreira, Miriam Pereira Louback, Mozilene Neri, Thiago
Sampaio e Weverton Pereira.
Na impossibilidade de citar todos os nomes, sei que aqueles que realmente foram
importantes se reconhecerão ao lerem estas linhas. A vocês que sonharam junto
comigo, agradeço pelas inúmeras horas de conversas que me fizeram bem.
Aos meus ex-professores do bacharelado, que foram os grandes incentivadores,
de forma direta ou não, neste meu percurso no mundo da língua e literatura,
assim como todos os outros que me instigaram um sentimento de interesse pelo
universo das pesquisas na área de Letras, em especial a:
Professor Doutor Carlos da Silva Sobral, por ter-me apresentado à língua italiana,
fazendo a minha vontade de aprender inicial crescer de maneira a me tornar mais
um apaixonado por esse idioma.
Professora Doutora Sonia Cristina Reis, pelas aulas de língua e cultura italianas,
que foram fundamentais à minha formação cultural.
Professora Doutora Annita Gullo, pelo auxílio intelectual nas longas horas
dedicadas a nos orientar na prática e reflexão sobre a língua e cultura italianas.
Presença importantíssima nas aulas do curso de graduação, nas inúmeras e
agradáveis horas de orientação do projeto CLAC e, ainda, nas aulas no curso de
Mestrado. Obrigado por ter-me ajudado a entender/ conhecer melhor um povo e
uma cultura tão querida por todos os cidadãos brasileiros.
9
Agradeço, ainda, à Professora Doutora Maria Lizete dos Santos, que um dia
sonhou junto comigo ao acreditar nas idéias apresentadas por mim. Nestes quase
três anos de orientação sempre esteve disposta a me ajudar nos momentos de
dúvida, nunca se negando a parar alguns minutos/horas para me tirar de um
estado de aflição intelectual. Minha eterna gratidão e, verdadeiramente, muito
obrigado por estar presente durante a jornada do meu curso de Mestrado.
À CAPES pela bolsa de estudos que financiou parte desta pesquisa.
Aos funcionários da Pós-graduação e da Biblioteca da Faculdade de Letras.
À minha família, por ter suportado as diversas horas de ausência,
compreendendo o meu esforço na busca de um objetivo maior.
À minha mãe, Francisca Monteiro Ferreira.
Aos meus sobrinhos, Andrey e Igor, por me fazerem sorrir, sempre.
A todos vocês o meu obrigado mais sincero!
10
Départ
Assez vu. La vision s'est rencontrée à tous les airs.
Assez eu. Rumeurs de villes, le soir, et au soleil, et toujours.
Assez connu. Les arrêts de la vie. O Rumeurs et Visions!
Départ dans l'affection et le bruit neufs!
Artur Rimbaud
___________________________________
Partida
Visto demais. A visão abarcou todos os céus.
Por demais sofrido. Rumores das cidades, à tarde, e ao sol, e sempre.
Por demais sabido. As estocadas da vida. - Oh Rumores e Visões!
Partida na afeição e no estrépito novos!
(tradução nossa)
Em: Rimbaud, Jean Nicolas Arthur. Œuvres poétiques d’Arthur Rimbaud. Cronologie et préface par Michel
Décaudin. Garnier-Flammarion. Paris, 1964.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 12
CAPÍTULO I
A ESCRITA E O OLHAR 14
1.1 Pier Paolo Pasolini: o homem, a poética 14
1.2 Pasolini: entre Literatura e Cinema 22
1.2.1 Vendo Ragazzi di vita 24
1.2.2 Lendo Accattone 64
1.2.3 Olhando as borgate 91
CAPÍTULO II
Do romance ao set: a adaptação 107
2.1 sobre a adaptação 107
2.2 sobre o tempo na narrativa 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS 129
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 131
ANEXO 135
12
INTRODUÇÃO
A produção poética de Pier Paolo Pasolini (Bolonha, 1922 Roma, 1975)
vem instigando, ao longo dos últimos quarenta anos, o interesse de
pesquisadores de várias partes do mundo a novas leituras. Por isto, o estudioso
que se dispõe a analisá-la sabe, de antemão, que, inevitavelmente, seguirá
caminhos percorridos. Mas, como acreditamos na possibilidade de
encontrarmos atalhos pouco trilhados, que nos permitam alcançar o âmago da
obra desse multifacetado escritor italiano, nos atrevemos a apresentar uma
proposta para o exame do romance Ragazzi di vita e do filme Accattone.
Tal exame nos conduzirá a duas reflexões: a primeira, sobre a questão da
transposição / adaptação de narrativas literárias em fílmicas; a segunda, sobre a
vida na periferia romana dos anos 1950, sob o olhar de Pasolini.
Para o bom desenvolvimento de nosso trabalho, o dividiremos em dois
capítulos. No primeiro, apresentaremos o autor e o nosso corpus o romance
Ragazzi di vita e o filme Accattone –, e, ainda, sugeriremos uma leitura para
ambas narrativas, procurando acompanhar o olhar de Pasolini sobre as borgate,
as periferias romanas do pós-guerra, então habitadas por pessoas de baixo poder
aquisitivo, marginais à sociedade de consumo.
No segundo capítulo, traremos à reflexão algumas teorias que tratem da
transposição / adaptação de romances em filmes. Tal reflexão nos possibilitará
abordar o fazer poético do nosso autor, escritor e cineasta, e discutir a questão da
“fidelidade” devida pelo diretor ao romancista, e, talvez, aportar alguma
13
contribuição, ainda que mínima, para esse tema, que não raramente é carregado
de polêmicas.
Para alicerçamos nosso estudo, nos valeremos dos pressupostos teóricos
de Giorgio Tinazzi, Sara Cortellazzo e Dario Tomasi, Caterina Selvaggi, Marcel
Martin, dentre outros, para as questões relativas ao binômio Literatura-Cinema. A
fundamentação atinente às reflexões sobre o tempo no romance e no cinema virá,
especialmente, de Martin e Tarkovski. E, por fim, para compreendermos o olhar
de Pasolini sobre a sociedade italiana dos anos 1950 recorreremos, sempre que
necessário, a textos de Giampiero Carocci.
Passemos, pois a acompanhar o percurso de Pasolini do romance ao set.
Vejamos Ragazzi di vita; leiamos Accattone.
14
CAPÍTULO I
A ESCRITA E O OLHAR
1.1 Pier Paolo Pasolini: o homem, a poética.
Este capítulo tem início com acenos biobibliográficos a Pier Paolo Pasolini,
visando à melhor compreensão de sua produção poética, na qual se encontra
sinalizada sua opção por focalizar as sociedades que chama de “autênticas”, por
se encontrarem à margem da sociedade capitalista.
Cabe esclarecer, de pronto, que o vocábulo autêntico” é utilizado pelo
autor em seu sentido denotativo, significando “não imitativo”, “verdadeiro”,
“primeiro”, conforme se no verbete registrado no Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa (2001: 348), do qual damos destaque à acepção n. 6: “em que não há
falsidade; espontâneo, real”.
Para a construção de sua obra poética, que persegue a “sociedade
autêntica”, o escritor volta inicialmente o seu olhar para um lugarejo da região do
Friuli
1
Casarsa, de hábitos de vida camponeses –, no qual, ele acreditava, as
pessoas tinham um convívio “autêntico”. Depois, já residindo em Roma, lança sua
mirada sobre as borgate, as periferias pobres e degradadas da capital italiana,
nos anos 1950, que, a seu ver, por se encontrarem relegadas à própria sorte, à
margem do sistema capitalista, conservavam-se autênticas. E, por último, quando,
no início dos anos 1960, percebe que os moradores das borgate se rendiam à
1
A região Friuli – Venezia Giulia situa-se a Nordeste da Itália.
15
sociedade de consumo
2
e procuravam imitar o padrão de vida da burguesia da
época, perdendo, portanto, a sua “autenticidade”, muda seu foco para outros
grupos, ainda “não contaminados”; passa a escrever sobre os povos do Terceiro
Mundo e, também, a buscar no Cinema o lugar ideal para a representação da
sociedade por ele idealizada.
Mas, quem foi Pasolini? Assim, o autor se define:
Fui poeta
cantai la divisione nella coscienza, di chi è fuggito dalla sua città
distrutta, e va verso una città che deve essere ancora costruita. E,
nel dolore della distruzione misto alla speranza della fondazione,
esaurisce oscuramente il suo mandato.
3
(La divina mimesis, p. 15)
Foi poeta, romancista, ensaísta, teórico, cineasta, dramaturgo, tradutor,
filólogo, professor de letras. Nasceu em Bolonha em 5 de março de 1922.
2
Terminada a Segunda Guerra Mundial, para reconstrução da Itália, foram instituídos vários planos
econômicos. Informa Giampiero Carocci (1995: 79) que Il miracolo economico propriamente detto è durato
dal 1955 al 1963. [...] In questi anni e nei successivi la ricchezza degli italiani è aumentata più che nell’intero
secolo precedente. È stato un boom industriale che ha fatto quasi raddoppiare la potenza motrice installata
nelle fabbriche fra il 1951 e il 1961; un boom basato sulla motorizzazione di massa che ha dato un impulso
fortissimo alla fabbricazione dapprima di Vespe e Lambrette e poi di automobili; un boom che ha fatto nascere
una miriade di nuove fabbriche medie e piccole non solo al nord ma successivamente anche al centro, nei
settori degli elettrodomestici, dei mobili, delle scarpe [...] Il merito del ‘miracolo’ va attribuito in parti uguali allo
spirito d’iniziativa, all’inventiva, al coraggio di tanti nuovi piccoli imprenditori e allo spirito di sacrifici degli
operai. [...]
La crescita dei salari ha fatto entrare anche l’Italia nella fase dei consumi di massa, della società del
benessere, profondamente diversa da quella tradizionale non solo sotto il profilo econômico ma sotto tutti gli
altri aspetti della vita associata e individuale. (Ibidem: 80) Grifo nosso.
O milagre econômico propriamente dito durou de 1955 a 1963. [...] Nestes anos e nos sucessivos, a riqueza
dos italianos aumentou mais que em todo o século anterior. Foi um boom industrial que fez quase dobrar a
força motriz instalada nas fábricas entre 1951 e 1961; um boom baseado na motorização em massa, que deu
um impulso fortíssimo à fabricação, primeiramente de Vespas e Lambretas e, depois, de automóveis; um
boom que fez nascer um sem-número de novas fábricas médias e pequenas, não só ao Norte, mas,
sucessivamente, também no Centro, nos setores de eletrodomésticos, de móveis, de sapatos [...]. O mérito
do milagre” deve ser atribuído, igualmente, ao espírito de iniciativa, à criatividade, à coragem de tantos
novos pequenos empreendedores e ao espírito de sacrifício dos operários. [...]
O crescimento dos salários fez também a Itália entrar na fase dos consumos de massa, da sociedade do
bem-estar, profundamente diferente da tradicional, não somente sob o perfil econômico, mas sob todos os
outros aspectos da vida em grupo e individual. (Tradução nossa)
3
Fui poeta / cantei a divisão na consciência, de quem fugiu da sua cidade / destruída, e vai para uma cidade
que deve ainda ser construída. E, / na dor da destruição misturada à esperança da fundação, / esgota
obscuramente o seu mandato. (Tradução nossa)
16
Filho de Carlo Pasolini, tenente de infantaria, e de Susanna Colussi,
professora, até o ano de 1936 o escritor não teve residência fixa, em
conseqüência das várias transferências do pai militar. O único ponto de referência
nesse período de sua vida estava em Casarsa, cidade à qual ia com sua mãe,
todos os anos, no verão. É nessa localidade que escreve seus primeiros versos,
aos sete anos de idade.
A partir de 1937, sua residência se fixa na sua cidade de nascimento,
Bolonha, onde realiza seus estudos de nível médio e superior, licenciando-se em
Letras, com uma tese sobre o poeta Giovanni Pascoli.
No ambiente universitário tomam forma as primeiras idéias para a
concretização de seus interesses literários e artísticos. Um primeiro projeto de
revista, Eredi, desenvolvido com Leonetti, Roversi e Luciano Serra, em 1941, não
se materializa por causa das leis que regulavam o consumo de papel. De fins de
1942 a maio de 1943, Pasolini colabora com o jornal Il Setaccio, escrevendo
poesias em dialeto friulano e em italiano. Faz incursões pelas artes plásticas,
realizando seus primeiros desenhos e pinturas.
Com o recrudescer da Segunda Guerra Mundial e os constantes
bombardeios que golpeavam as grandes cidades italianas, a família Pasolini se
refugia no Friuli. Vivem, primeiramente, em Casarsa e, quando essa localidade
começa a sentir o terror da Guerra, transferem-se para Versuta, uma cidadezinha
mais tranquila, na mesma região.
No período de 1945 a 1949, trabalha como professor do ensino secundário,
nas proximidades de Casarsa. Naqueles anos, seus interesses literários tomam
forma em uma revista, Stroligut na qual participam vários de seus amigos
17
friulanos e na formação de um grupo de trabalho, composto pelos mesmos
amigos, denominado “Academiuta di lenga furlana”, dedicado a estudos filológicos
sobre a cultura e a língua daquela região. Seu interesse pelo dialeto torna-se,
então, naqueles anos, uma espécie de oposição ao fascismo, como aponta a
professora Maria Lizete dos Santos (2001: 16), em sua análise a partir de alguns
poemas extraídos do livro P.P.Pasolini. Una vita futura: Il fascismo non tollerava i
dialetti, segni / dellirrazionale unità di questo paese dove sono nato / inammissibili
e spudorate realtà nel cuore dei nazionalisti
4
.
Interessado, sempre, por questões literárias, em parceria com Luciano
Serra, Franco Farolfi, Ermes Parini e Fabio Mauri, o autor vida a uma espécie
de grupo, cujo tema principal de discussão é poesia e política. “Começa, assim, a
construir a ideologia que norteará sua futura intervenção na sociedade, como
homem de artes, multifacetado, como intelectual polêmico” (SANTOS, 2001: 16).
Filia-se ao Partido Comunista Italiano PCI, em 1947, afiliação que marca
o início de seu engajamento político e de sua participação nos debates públicos
sobre o problema do desemprego. “A seção comunista a que se agrega, marcada
por forte polêmica anticlerical, adota uma linha crítica mais contundente quando,
em 1949, Pasolini assume a função de secretário. Escreve diversos textos para
os panfletos do partido; faz conferências, comícios; participa de debates; escreve
para jornais; começa, enfim, a imprimir sua digital na sociedade italiana e a ser
reconhecido como intelectual, brilhante e controvertido” (SANTOS, 2001: 17).
Ainda em 1947, participa do Prêmio Libera Stampa, promovido pelo Cantão
4
O fascismo não tolerava os dialetos, sinal / da irracional unidade deste país no qual nasci / inadmissível e
despudorada realidade no coração dos nacionalistas. (Tradução nossa)
18
Ticino, Suíça, e ganha o prêmio “Angelo” – pela sua lírica em dialeto friulano.
Os anos, “vividos intensamente num mundo camponês, serão para o poeta
uma experiência fundamental, modelo que se esforça por não trair e que evocará
mais tarde como o símbolo do frescor, da Itália autêntica, contrapondo-se à
sociedade de consumo contra a qual se revolta como voz clamando num deserto
de conformismo” (SANTOS, 2001: 16).
Nesse período, o escritor amadurece, também, os romances que compõem
a sua trilogia friulana: Atti impuri, Amado mio e Il sogno di una cosa. O primeiro
deles, Atti impuri, escrito em forma de diário e memória autobiográfica, prende-se
à lembrança da juventude vivida no Friuli. O fulcro do romance é a paixão que o
narrador sente por um rapazinho, Nisiuti, e a moldura é uma realidade camponesa
feita de devoção religiosa – o rosário, na igreja, à noite – e de prazeres pagãos. O
segundo livro, Amado mio, narra de maneira mais dramática que Atti impuri o
relacionamento amoroso entre dois rapazes, Desiderio e Benito, e traz à reflexão
o conflito Eros versus Religião. Por fim, o terceiro romance, Il sogno di una cosa,
centra-se no engajamento político e no mundo rural da região friulana.
“Pode-se afirmar que Casarsa determina em Pasolini uma mudança radical
de perspectiva, sobretudo quanto ao modo de conceber a literatura. A poesia
escrita entre 1943 e 1949 – publicada em 1958 no volume L' usignolo della chiesa
cattolica é bem exemplo disso, se considerarmos que a última parte do volume
se intitula precisamente ‘A descoberta de Marx’”. (SANTOS, 2001: 18).
Pasolini teve forte atuação cultural e política no período em que viveu em
Casarsa: incentivou a cultura; organizou um cineclube; criou uma companhia
teatral com a qual encenava autores contemporâneos; traçou uma linha de
19
política cultural para o PCI da região; viajou a Paris para participar do Congresso
da Paz.
No início dos anos 1950, vê-se forçado a sair do Friuli e se transfere para
Roma, acompanhado de sua mãe. Nos primeiros anos de sua vida na Cidade
Eterna, paupérrimo, desempregado, ele vive dias amargos. Esse difícil momento
da vida será rememorado em várias poesias por Pasolini, que se impelido a
residir em diferentes localidades humildes da periferia: primeiramente, na Piazza
Costaguti, no Portico d’Ottavia; depois; na borgata, na ponte Mammolo, perto da
prisão de Rebibbia.
“Registrar mudanças de endereço teria pouca ou nenhuma importância se
tratássemos de um outro escritor. Mas esses lugares, esses nomes como via
Fonteiana, onde Pasolini foi morar tão logo sua situação econômica melhorou
são familiares aos seus leitores, porque essas paisagens, e as experiências que
elas comportam, alimentam boa parte de sua produção artística” (SANTOS, 2001:
18). Esse é o caso do romance Ragazzi di vita e do filme Accattone, que
constituem o nosso corpus.
Contudo, apesar de todas as provações que experimentava, o escritor se
rendeu rapidamente aos encantos da Cidade Eterna. Consegue seu primeiro
emprego como professor de uma escola da periferia e, mais tarde, por
intervenção do escritor Giorgio Bassani, trava seus contatos com o mundo
cinematográfico, ocupando-se, inicialmente, da produção de roteiros.
Compelido a viver na periferia, Pier Paolo pôde aguçar os ouvidos ao
jargão dos marginalizados, ao dialeto romano, principal veículo daquela realidade
da qual já era parte integrante. À observação do mundo rural, consolidada em sua
20
estada no Friuli, associa-se o contato com o mundo das borgate, aquele mundo
"degradado e atroz", mas que conservava um seu "código de vida e de língua", e
que lhe serviu de motivação para os romances Ragazzi di vita e Una vita violenta
e, também, para o seu primeiro filme, Accattone, cujo protagonista é um anti-herói
representante do subproletariado.
Em 1954, vem a público sua antologia de poemas friulanos La meglio
gioventù. Em 1955, em colaboração com os escritores Roversi, Leonetti, Romanò
e Fortini, funda a revista Officina que, não obstante a sua breve duração
(concluía-se em 1959, precisamente com uma sátira de Pasolini contra o Papa
Pio XII), constitui uma importante contribuição à cultura italiana. Alguns textos de
Passione e ideologia (1960), livro de ensaios, e do livro de poesias La religione
del mio tempo (1961) representam a contribuição do autor à Officina.
Ainda em 1955, é publicado pela editora Garzanti o seu primeiro grande
sucesso literário, Ragazzi di vita uma epopéia pícaro-romanesca, como a
chamou o escritor Gianfranco Contini. Em 1957, a mesma editora publica a
coletânea lírica Le ceneri di Gramsci, com a qual o autor obtém, nesse mesmo
ano, o Prêmio Viareggio, confirmando-se como poeta engajado.
Dois anos mais tarde, é a vez da publicação, também pela Garzanti, do
romance Una vita violenta, o segundo grande afresco do mundo das borgate.
A afirmação de Pasolini como figura de primeiro plano, na Itália, não sofre
contestação. Mas sua produção enriqueceu-se, ainda, com as antologias poéticas
La religione del mio tempo (1961), Poesia in forma di rosa (1964), Trasumanar e
organizzar (1971) e La nuova gioventù (1975), este último volume recolhendo
toda a sua lírica em dialeto friulano. E, no campo da ficção, somam-se o romance
21
Il sogno di una cosa (1962), o livro de contos Alì dagli occhi azzurri (1964), e,
ainda, o romance Teorema (1968).
Nos últimos anos de sua vida, constata-se a intensificação de sua febril
atividade política e ensaística, em todos os setores do debate público italiano.
Suas intervenções podem ser conferidas através dos textos recolhidos em
Empirismo eretico (1972), e nos livros póstumos La divina mimesis e Scritti
corsari, ambos de 1975.
Quanto à sua não menos extensa produção cinematográfica, o escritor-
cineasta deu vida a uma série de películas (ver Anexo com a relação de todas as
obras do autor), que marcaram a filmografia italiana, e internacional. Dessas
citamos, além de Accattone (1961), que compõe o nosso corpus, Mamma Roma
(1962) Teorema (1968), Il Decameron (1971) e Salò o le 120 giornate di Sodoma
(1975).
A brilhante carreira de Pier Paolo Pasolini interrompeu-se, violentamente,
na madrugada de 2 de novembro de 1975: seu corpo foi encontrado sem vida, na
localidade de Óstia, no litoral romano. Foi vítima de um crime que, ainda hoje, não
se encontra satisfatoriamente esclarecido, apesar de seu homicida ter sido
reconhecido e julgado culpado.
Mas Pasolini vive em sua obra, que a seguir passaremos a examinar.
22
1.2 Pasolini: entre Literatura e Cinema
Pasolini foi um autor multifacetado comprova-o a sua fortuna crítica –,
cuja obra tem como Norte a Poesia. Poesia como gênero literário, mas não só.
Poesia como consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento
com a realidade. Poesia, pois, como matéria-prima, o visgo da vida.
Esse amor pela Poesia, pela vida, digamos, in natura, pode ser detectado
em toda a sua produção, na qual seu olhar se volta amorosamente para o
cotidiano, o prosaico, os menos favorecidos, principalmente. Assim, os campos de
Casarsa, as ruas de Roma, os moradores de borgata, as classes populares, por
exemplo, servem de inspiração para poemas, romances e filmes.
Sua passagem da literatura para o cinema transcorre de forma gradual e
singular, afirma Maria Lizete (2001: 34): “Antes mesmo de estrear como cineasta,
Pasolini experimentara teorizar a respeito da Sétima Arte, além de estagiar
junto a diretores consagrados”. A professora lembra-nos que Pasolini “foi o
responsável pelos diálogos de Cabiria, a personagem magistral de Fellini”.
E o próprio escritor-cineasta afirma que:
In realtà non c’è mai stato un passaggio [...] ho sempre pensato di
far del cinema. Prima della guerra pensavo che sarei venuto a
Roma a fare il Centro Sperimentale, se avessi potuto. Questa
idea di fare del cinema, vecchissima, poi si è arenata, si è
sperduta. Infine ho avuto l’occasione di fare un film e lo fatto . Se
prendete, ad esempio, certe pagine di Ragazzi di vita, vi rendete
conto che sono già visive. Cioè, nella mia letteratura esiste una
forte dose di elementi cinematografici. Avvicinarsi al cinema è
stato quindi avvicinarsi a una tecnica nuova che già da tempo
avevo elaborato
5
. (D’AVACK, 1964: 111)
5
Na realidade nunca houve uma passagem [...] sempre pensei em fazer cinema. Antes da guerra, pensava
que viria a Roma para fazer o Centro Experimental, se tivesse podido. Esta idéia de fazer cinema, velhíssima,
depois parou, se perdeu. Enfim, tive a oportunidade de fazer um filme e o fiz. Se lerem, por exemplo, algumas
páginas de Ragazzi di vita, poderão perceber que são visuais. Isto é, na minha literatura existe uma forte
23
E, com mais veemência, em outra ocasião, sobre a técnica cinematográfica
que dizia já estar presente em sua produção literária, afirma:
Se io mi son deciso a fare dei film è perché ho voluto farli
esattamente così come scrivo delle poesie, come scrivo i romanzi.
Io dovevo per forza essere autore dei miei film, non potevo essere
un coautore, o un regista nel senso profissionale di colui che mette
in scena qualcosa, dovevo essere autore, in qualsiasi momento
della mia opera
6
.
Nessas e em outras declarações, o escritor sublinha que o
descontinuidade entre a sua produção cinematográfica e a literária, atividades
artísticas que, em sua opinião, são análogas: L’esperienza cinematografica e
quella letteraria non sono antitetiche. Direi, anzi, che esse sono forme analoghe. Il
desiderio di esprimermi attraverso il cinema rientra nel mio bisogno di adottare
una tecnica nuova, una tecnica che rinnovi
7
(MARTINI, 1961).
Essa renovação técnica, muito aplaudida, não foi, porém, reconhecida por
alguns críticos literários. Quando, em 1961, Pasolini lança seu primeiro filme
Accattone (Desajuste social) recebe severas e desfavoráveis críticas: Alberto
Asor Rosa (1965: 538) afirma que “la produzione cinematografica [...] ricalca
senza grandi novità gli esperimenti narrativi e assinala a involução di una
avventura estetica, la quale può essere definita nel suo complesso un fallimento
8
.
dose de elementos cinematográficos. Aproximar-se do cinema foi, portanto, aproximar-se de uma nova
técnica que há tempo já tinha elaborado. (Tradução nossa)
6
P.P. Pasolini (colloquio con). Una visione del mondo epico-religiosa. In: Bianco e Nero, n. 6, Junho de 1964:
Se eu me decidi a fazer filmes é porque quis fazê-los exatamente como escrevo as poesias, como escrevo os
romances. Eu tinha de ser necessariamente o autor dos meus filmes, não poderia ser coautor, ou um diretor
no sentido profissional daquele que coloca em cena qualquer coisa; deveria ser autor, em qualquer momento
da minha obra. (Tradução nossa)
7
A experiência cinematográfica e a literária não são contrárias. Diria, ao invés, que são formas análogas. O
desejo de me exprimir através do cinema entra na minha necessidade de adotar uma técnica nova, uma
técnica que renove. (Tradução nossa)
8
A produção cinematográfica [...] decalca sem grandes novidades os experimentos narrativos” e assinala a
involução “de uma aventura estética, a qual pode ser definida em sua total falência”. (Tradução nossa)
24
Na mesma direção de Asor Rosa, Giuliano Manacorda (1967: 255) afirma
que a produção cinematográfica de Pasolini não se dissocia da literária. Mas a
obra cinematográfica tem de se dissociar da literária, quando se trata,
principalmente, da produção de um mesmo autor?
Se, a partir das afirmações de Pasolini, nos propusermos a examinar
Accattone, poderemos concluir que o filme não é uma tradução, ou uma variante
menos importante, da experiência bem-sucedida do autor como poeta e
romancista, mas, sim, um aprofundamento de seu discurso, através dos meios
expressivos oferecidos pelo Cinema. Se confrontarmos Accattone e Ragazzi di
vita, identificaremos o tema comum às duas obras a vida nas borgate e
constataremos a originalidade de ambas. Vejamos, pois, o romance e leiamos o
filme.
1.2.1 Vendo Ragazzi di vita
Ragazzi di vita (1955), o primeiro romance de sucesso de Pier Paolo
Pasolini, focaliza a vida nas borgate, ou seja, nas periferias romanas do pós-
guerra. O autor, que convivera e, inclusive, residira durante longo tempo nos
bairros periféricos de Roma, no mundo daqueles que se encontravam à margem
da sociedade de consumo italiana, pôde retirar de sua experiência na “Roma
africana”, como costumava nomear as periferias, inspiração suficiente para urdir
esse romance.
25
Os ragazzi da trama habitam um mundo de excluídos, um ambiente
marcado pelo degrado material e, diríamos, moral, no qual cada pessoa procura
se manter da forma que lhe é possível, sem ter consciência de que é vítima de um
sistema socioeconômico injusto.
O romance, de certa forma, é transgressivo considerando-se o contexto
cultural da época em que foi publicado, anos 1950 –, visto que em suas páginas
traz termos dialetais, de calão e vulgarismos. Essa “transgressão” estilística de
Pasolini lhe valeu um processo por obscenidade do qual foi, ao fim, absolvido.
Antes, porém, de iniciarmos o estudo do romance, queremos sublinhar a
necessária distinção entre o conceito de narrador e autor, citando Vitor Manuel de
Aguiar e Silva (1974: 26): “O narrador constitui a instância produtora do discurso
narrativo, não devendo ser confundido, na sua natureza e na sua função, com o
autor, pois o narrador é uma criatura fictícia como qualquer outra personagem”.
Sobre o mesmo tema, Carlos Reis afirma (2000: 257):
a definição do conceito de narrador deve partir da distinção
inequívoca relativamente ao conceito de autor, não raro
susceptível de ser confundido com aquele, mas realmente dotado
de diferente estatuto ontológico e funcional. Se o autor
corresponde a uma entidade real e empírica, o narrador será
entendido fundamentalmente como autor textual, entidade
fictícia a quem, no cenário da ficção, cabe a tarefa de enunciar o
discurso, como protagonista da comunicação narrativa.
E observa que a descrição do conceito de narrador “não deve processar-se
de forma rigidamente formalista. Mesmo reconhecendo-se a sua especificidade
ontológica, importa não esquecer que o narrador é de facto, uma invenção do
autor” (REIS, 2000: 257). Essa afirmação nos remete a Umberto Eco e a seu
conceito de Autor-Modelo, que também pode ser lido como “estilo do autor”.
26
Essa observação sobre o conceito de autor / narrador fez-se necessária
porque, não raramente, na crítica à produção de Pier Paolo Pasolini se tem uma
confusão entre o eu civil (Pasolini) e o eu lírico (o narrador). Isso acontece, talvez,
porque o escritor foi morador da borgata romana e, além disso, diversas vezes,
afirmou que tinha na Realidade a matéria-prima do seu fazer poético.
De volta a Ragazzi di vita. A narrativa do romance pode ser dividida em
três partes: a primeira aborda o início da adolescência de Riccetto, o protagonista
do romance (capítulos 1 e 2); a segunda trata, ainda, da adolescência do
protagonista, então um pouco mais amadurecido (capítulos 3 a 5); e, por fim, a
terceira parte focaliza Ricetto já adulto, homem feito, quando, apesar de se
manter como personagem fundamental ao desenvolvimento da narrativa, passa a
ocupar o segundo plano (capítulos 5 a 8).
O romance é composto de várias personagens de adolescentes, todos
moradores de borgate, que, ao longo da história, tornam-se adultos. Tem na
personagem Riccetto o fio condutor da narrativa; a partir dele são narrados os
episódios do romance.
Convém assinalar que as personagens, tanto Ricetto quanto os demais
borgatari adolescentes, nunca atingem uma composição fixa, ou seja, ao longo do
tempo elas estão sempre se realinhando com as saídas e entradas de novos
componentes, caracterizando-se por uma forma mutável segundo as
circunstâncias.
Também, que o tempo da narrativa é marcado como o da adolescência de
Ricetto, que é descrito como um garoto sensível, como se pode apreender logo
no primeiro capítulo, a partir de um gesto singelo: salva a vida de uma andorinha,
27
enquanto os demais adolescentes a ignoram. Essa sensibilidade, no entanto,
surpreende o leitor, considerando-se o ambiente precário no qual o rapaz vivia e
que, portanto, lhe poderia exigir uma atitude de maior dureza diante das
adversidades da vida, para que conseguisse sobreviver.
As demais personagens Agnolo, Marcello, Alvaro, il Caciotta, il Lenzetta,
Amerigo, dentre outros são fundamentais e funcionais para o desenvolvimento
dos acontecimentos; cada uma delas, ao seu modo, marca uma fase na vida do
protagonista.
O romance é narrado em terceira pessoa. O espaço onde se movem as
personagens é composto de vários bairros da periferia de Roma até o centro
histórico. O narrador heterodiegético
9
descreve com riqueza de detalhes diversas
ruas e monumentos da cidade e, ainda, traça o perfil geográfico do rio Aniene. O
arco de tempo no qual a ação transcorre não se encontra marcado com traços
fortes, mas pode ser delimitado, aproximadamente, do início da adolescência de
Riccetto até seus vinte anos de idade, entre os anos de 1946 a 1953.
O espaço físico apresentado as periferias é de um ambiente marcado
pela pobreza, pela falta de condições dignas de vida. São descritos os delitos
cometidos por aqueles adolescentes que vivem cada dia, perigosamente, sem
qualquer perspectiva. Percebe-se uma resignação comum a todas as
personagens, que nada esperam do próprio futuro. Assim, se desenvolve a
narrativa, que é composta por diversos episódios que abordam o cotidiano de
cada um daqueles jovens: algumas passagens trágicas, outras alegres ou,
9
Narrador heterodiegético – “expressão introduzida no domínio da narratologia por Genette (1972: 251 ss.), designa uma
particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem
integrou, como personagem, o universo diegético em questão.” (REIS, 2000: 262-3)
28
simplesmente, apenas a rotina calma e estagnada no tempo.
Enfim, percebemos a valorização do dialeto romano ao longo de todo o
romance, através dos diálogos entre as personagens borgatari, e este é um dos
elementos marcantes no livro, por aproximar o público leitor a esse mundo da
periferia, pouco valorizado, até então, pela literatura.
Ao nos aproximarmos do romance, para analisá-lo, devemos esclarecer
que estamos trabalhando com a edição princeps de Ragazzi di vita, de 1955, e
que as citações, por isto, serão indicadas somente pelo número da página da qual
foram extraídas. Devemos esclarecer, ainda, que a tradução para o português,
que será indicada somente na primeira citação, é de autoria de Rosa A. Petraitis.
O romance tem como epígrafe um verso de uma canção popular italiana:
E sotto er monumento de Mazzini...”
10
(PASOLINI, 1955: 1).
Era una caldissima giornata di luglio”. (p. 1). Assim tem início a
apresentação do mundo dos Meninos da vida, um mundo caracterizado pelo
calor. As personagens são iluminadas e maltratadas pela luz do sol, a energia que
rege suas vidas em um ambiente marcado pelo abandono e degrado. Imaginamos
peles bronzeadas e, ao mesmo tempo, castigadas por esse ambiente. O primeiro
capítulo, “O Ferrobedò”, inicia-se com a narrativa dos momentos que antecedem
a primeira comunhão de Mastraccia Claudio, codinome Riccetto
11
, o protagonista
10
E sob o monumento de Mazzini...
11
Ricetto – Raggruppamento medievale di case cinto da mure turrite a difesa collettiva di uomini e bene da
scorrerie e saccheggi, diffuso spec. nelle aree rurale di tutto il Piemonte. (lett.) Luogo che dà rifugio, ricovero”.
(LO ZINGARELI, 1999: 1512) - Agrupamento medieval de casas cercadas por muros com torres, para defesa
coletiva de homens e bens contra ataques e roubos, difundidos especialmente nas áreas rurais de todo o
29
do romance. Percebemos, de início, na descrição da personagem, que ele era um
garoto que levava uma forma de vida livre, com seus amigos:
Il Riccetto che doveva farsi la prima comunione e la cresima, s’era
alzato già alle cinque; ma mentre scendeva giù per Via Donna
Olimpia coi calzoni lunghi e grigi e la camicetta bianca, piuttosto
che un comunicando o un soldato di Gesù pareva un pischello
quando se ne va acchittato pei lungoteveri a rimorchiare
12
. (p. 1)
Na primeira parte do capítulo, Riccetto é apresentado como um garoto mal
educado, que gosta de aproveitar a vida na companhia de seu grupo de amigos.
Não se preocupa com nada e sua vida é baseada em cada episódio diário. Foge,
logo após o término da cerimônia de sua primeira comunhão:
Il Riccetto che si sentiva roder, li in mezzo, e si decise a piantare
tutti: uscì per la chiesa vuota, ma sulla porta incontrò il compare
che gli disse: <Aòh, ad vai?> <A casa vado,> fece il Riccetto,
<Tengo fame.> <Vie’ a casa mia, no, fijo de na mignotta,> gli gridò
dietro Il compare, <che ce star er pranzo.> Ma il Riccetto non lo
filò per niente e corse via sull’asfalto che bolliva al sole
13
. (p. 1)
Em seguida, o protagonista começa seu peregrinar pela cidade
“incandescente”, em pleno verão. O narrador modelo
14
descreve o ambiente no
qual a trama se desenvolve. Sobre a questão do espaço no romance, vejamos o
verbete encontrado no Dicionário de Narratologia:
Piemonte. (lit.) lugar que dá refúgio, abrigo (Tradução nossa)
12
Riccetto, que devia receber a Primeira Comunhão e a Crisma, levantara-se às cinco; mas, descendo a rua
Dona Olímpia, de calça cinza e camisa branca, mais parecia um moleque em busca de companhia que um
soldado de Cristo. (Trad. Rosa A. Petraitis)
13
Riccetto, inquieto e ansioso, resolveu abandonar aquilo tudo e saiu pela igreja vazia. Mas na porta
encontrou o padrinho, que lhe perguntou: Ei, aonde vai?” “Vou pra casa”, Riccetto respondeu, “estou com
fome”. Pois vem almoçar comigo, filho da puta”, gritou o padrinho, “que tem comida na mesa”. Mas Riccetto
nem olhava pra ele; foi embora, correndo pelo asfalto que queimava ao sol.
14
Autor Modelo categoria formulada por Umberto Eco para designar o narrador da obra, aquele que
estabelece o pacto narrativo com o “leitor modelo”.
30
O espaço constitui uma das mais importantes categorias da
narrativa, não pelas articulações funcionais que estabelece com
as restantes categorias, mas também pelas incidências semânticas
que o caracterizam. Entendido como domínio específico da história,
o espaço integra, em primeira instância, os componentes físicos
que servem de cenário ao desenrolar da acção e à movimentação
das personagens: cenários geográficos, interiores, decorações,
objectos, etc.; em segunda instância, o conceito de espaço pode
ser entendido em sentido translato, abarcando então tanto as
atmosferas sociais (espaço social) como até as psicológicas
(espaço psicológico). (REIS, 2000: 135)
Nessas páginas iniciais, e também ao longo de todo o romance,
encontram-se descrições do cenário urbano, da periferia romana. Será recorrente
este aspecto em toda a narrativa. A descrição às vezes é detalhada e explícita e
nos sugere que o narrador tenha tido o intuito de representar uma realidade
“social datada e localizada” e o “desejo de salvaguardar a condição ficcional do
relato” (Idem). O narrador se detém sobre o espaço físico, o espaço geográfico
romano, no qual se movem as personagens do romance, e possibilita ao leitor
traçar a cartografia de parte de Roma. Os nomes das ruas, das vielas, dos rios,
das pontes são valorizados:
Da Monteverde Vecchio ai Granatieri la strada è corta: basta
passare Il prato, e tagliare tra le palazzini in costruzione intorno al
viale dei Quattro Venti: valanghe d’immondezza, case non ancora
finite e già in rovina, grandi sterri fangosi, scarpate piene di
zonzerie
15
. (p. 2)
Il Ferrobedò sotto era come un immenso cortile, una prateria
recintata, infossata in una valetta della grandezza di una piazza o
d’un mercato di bestiame: lungo il recinto rettangolare s’aprivano
delle porte: da una parte erano collocate delle casette regolari di
legno, dall’altra i magazzini
16
. (p. 2)
15
De Monteverde aos Granadeiros o caminho era curto: bastava passar o Prado e cortar pelas casas em
construção ao redor da alameda dos Quatro Ventos, em meio a uma imundice sem fim, casas inacabadas e
já em ruínas, grandes terrenos baldios, lamacentos, encostas cheias de lixo.
16
O Ferrobedò, ali embaixo, era como um quintal imenso, uma campina cercada, encravada num pequeno
vale, grande como uma praça ou um mercado de gado. Ao longo daquele recinto retangular abriam-se várias
portas. De um lado alinhavam-se casinhas comuns de madeira; no outro ficavam os depósitos. (Trad. Rosa
A. Petraitis)
31
Mas, em Ragazzi di vita, a narrativa nos faz, também, visualizar o espaço
social, que, na definição de Reis (REIS: 136) “configura-se sobretudo em função
da presença de tipos e figurantese trata de “descrever ambientes que ilustrem,
quase sempre num contexto periodológico de intenção crítica, vícios e
deformações da sociedade”.
No Ferrobedò – palavra em dialeto romano, deturpação de “Sociedade
Ferro Beton”, uma fábrica instalada em Roma se pode observar o espaço
social, ou seja, o modo de vida difícil enfrentada pelos adolescentes que lutavam
pela sobrevivência: no meio do caos da cidade que sofria as conseqüências da
Segunda Guerra Mundial, habitantes da periferia pobre, eles tentam encontrar
alguma forma de ganhar dinheiro.
A cidade descrita na narrativa encontra-se dilacerada pelos problemas
sociais; as oportunidades de trabalho são poucas e as pessoas buscam um meio
de subsistência, e, diante desse difícil quadro social, cada um procura a sua
forma de escapar à miséria.
E as personagens de adolescentes focalizadas levam uma vida marginal
17
dentro da própria marginalidade, ou seja, esses garotos que já são excluídos pela
sociedade capitalista vivem de forma mais marginal ainda ao cometerem atos
ilegais, como roubos e pequenos furtos.
Desde o início do primeiro capítulo, Ferrobedò, são narradas aventuras
picarescas do protagonista, o Riccetto, e de seus amigos, “Pischelli”, “Regazzini”.
17
Marginal vocábulo usado em seu sentido social, cf Houaiss 8: diz-se de pessoa que vive entre duas
culturas em conflito 9 p.ext. que vive à margem do meio social em que deveria estar integrado,
desconsiderando os costumes, valores, leis e normas predominantes nesse meio; delinqüente, vagabundo,
mendigo” (HOUAISS, 2001: 1852)
32
Anos de fome, sobretudo para o subproletariado romano, e de procura
desesperada por comida, como no episódio referente aos Mercati Generali”, no
qual o narrador relata o descontrole da multidão que entra num estabelecimento
comercial, e registra a brutalidade da morte de uma mulher. Ela, no meio do
tumulto, cai de uma escada quando o corrimão se quebra. O que importava a
todos, nesse momento, era fugir daquela situação, sem se interessarem pela vida
que se perdia entre as pisadas aflitas de um grupo de pessoas que queria,
apenas, carregar o resultado de mais um furto.
O corpo estático daquela mulher pode simbolizar a resignação das pessoas
desesperançadas, que não conseguem enxergar alternativas para suas vidas,
que nada esperavam de melhor; aquela vida perdida, pisoteada, é um detalhe
na situação caótica:
Il Ricceto e Marcello erano in mezzo. Vennero ingoiati per il
risucchio della folla, quasi senza toccar coi piedi, attraverso la
porta. Si scedeva giù per una scala a chiocciola: la scaletta a
chiocciola si straboccava di gente. Una ringhiera di ferro, sottile,
cedette, si spaccò, e una donna cadde giù urlando e sbatté la
testa in fondo contro un scalino. Quelli rimasti fuori continuavano a
spingere. È morta, gridò un uomo in fondo alla cantina. È
morta, si misero a strillare spaventate delle donne; non era
possibile entrare uscire. Marcello continuava a scendere gli
scalini. In fondo fece un salto scavalcando il cadavere, si precipi
dentro la cantina e riempí di copertoni la sporta insieme agli altri
giovani che predevano rotto quello che potevano. Il Riccetto era
scomparso, forse era riuscito fuori. La folla si era dispersa.
Marcello tornò a scavalcare la donna morta e corse verso a
casa
18
. (p. 6)
18
Riccetto e Marcelo foram tragados pela multidão e carregados porta adentro. Viram-se descendo uma
escada em caracol enquanto a multidão atrás empurrava e mulheres gritavam, meio sufocadas. Um corrimão
de ferro, frágil, cedeu, partiu-se, e uma mulher caiu, gritando, batendo a cabeça num degrau. Os de fora
continuavam empurrando. “Morreu!”, gritou um homem, do fundo da adega. “Morreu”, berravam, horrorizadas,
as mulheres. Não se podia entrar nem sair. Marcelo, que continuava descendo os degraus, deu um pulo,
saltando por cima do cadáver; precipitou-se para dentro da adega e encheu a sacola com pneus. Perto dele
outros rapazes pegavam tudo que podiam. Riccetto havia sumido; talvez tivesse saído. A multidão
dispersara-se. Marcelo saltou de novo por cima da mulher morta e correu para casa. (Trad. Rosa A. Petraitis)
33
A citação acima ilustra de forma bastante apropriada o conceito de “espaço
psicológico” que “constitui-se em função da necessidade de evidenciar atmosferas
densas e perturbantes, projectadas sobre o comportamento, também ele
normalmente conturbado, das personagens” (REIS, 2000: 136).
Toda a segunda parte do capítulo é ambientada às margens do rio
Tevere
19
.
As personagens continuam unidas em grupo e praticam seus pequenos
delitos, como, por exemplo, roubar moedas de um homem cego que pedia
esmolas, sentado numa calçada. Em outro momento os rapazes perturbam o
sossego de uma moradora da Via Manara, ao furtarem uma tampa de bueiro.
Depois, com a quantia obtida com a venda do bem público, vão jogar cartas e
acabam perdendo todo o dinheiro que tinham. As páginas seguintes narram
algumas passagens aventurosas ao longo da margem do rio Tevere. Os ragazzi
resolvem, depois de mergulharem e conversarem expostos ao sol, passear de
barco nas águas agitadas do rio: Il Tevere trascinava la barca verso il ponte
Garibaldi come una delle casette di legno o delle carcasse che filavano sul pelo
della corrente” (p. 24).
O narrador modelo se concentra nesse passeio de barco, que tem como
centro a reação de Riccetto ao ver uma andorinha se afogando. O garoto não só
reage de forma emocional, mostrando-se abalado com aquela situação, como
também faz esforços no sentido de salvar aquela avezinha. Nesse episódio é
acentuada a sua sensibilidade: sente-se comovido com a possibilidade de a ave
19
Tevere – Tibre, em português: rio que nasce na Toscana, atravessa a Úmbria e o Lácio e deságua no mar
Tirreno. É o rio mais longo da Itália, depois do Pó e do Adige.
34
se afogar e se esforça para salvá-la. De certa forma, podemos pressupor que,
apesar de todas as dificuldades enfrentadas por Ricetto, ele ainda se preocupava
com preservação da vida, mesmo que fosse a dos animais. Contrastando com a
reação diante da narrativa anterior, a da morte nos Mercati Generali, dessa vez
não existe resignação nem indiferença; sozinho ele salva a vida da andorinha e,
mesmo sem saber o porquê, sente-se fascinado por aquela situação, ou seja, sua
inocência e sensibilidade ainda não tinham sido apagadas totalmente. Corre risco
de vida, pois a correnteza arrastava a barca onde se encontrava:
Il Riccetto cercava di acchiappare la rondine, che gli scappava
sbattendo le ali e tutti due ormai erano trascinati verso il pilone
della corrente che sotto si faceva forte e piena di mulinelli <A
Riccetto,> gridarono i compagni della barca, <e lassala perde!>
Ma in quel momento il Riccetto s’era deciso ad acchiaparla e
nuotava con una mano verso verso la riva. <Tornamo indietro,
daje,> disse Marcello a quello che remava. Girarono. Il Riccetto li
aspettava seduto sull’erba sporca della riva, con le rondine tra le
mani. <E che l’hai sarvata a ffà,> gli disse Marcello, <era così bello
vedella che se moriva!> Il Riccetto non gli rispose subito. tutta
fracica!> disse dopo un pò, <aspettamo che s’asciughi!> Ci vuole
poco perché s’asciugasse: dopo cinque minuti era che rivolava
tra le compagne, sopra il Tevere, e il Riccetto ormai non la
distingueva più dalle altre
20
. (p. 24)
O segundo capítulo do romance, intitulado Il Riccetto”, narra o momento
em que se inicia a transformação psicológica do protagonista, que passa a
enfrentar as adversidades da vida de forma, diríamos, não muito correta. Envolve-
se ainda mais com a vida marginal, aproximando-se de alguns napolitanos que
20
Riccetto tentava apanhar a andorinha que, batendo as asas, lhe escapara, e os dois eram arrastados
para o pilar da correnteza que ali embaixo tornava-se forte e cheia de redemoinhos. “Riccetto”, gritaram os
companheiros do barco, “deixa isso pra lá”. Mas, naquele momento, Riccetto acabara de pegar a andorinha e
nadava em direção à margem. “Vamos voltar!”, ordenou Marcelo ao que remava. E voltaram. Riccetto os
esperava, sentado na grama suja da margem, com a andorinha nas mãos. “Por que a salvou?”, perguntou
Marcelo. “Era tão bonito vê-la morrendo!”. Riccetto não respondeu de imediato. Está ensopada!”, disse,
depois de algum tempo. “Vamos esperar que seque.” Num momento, secou. Depois de cinco minutos, estava
lá, voando entre as companheiras, sobre o Tibre, e Riccetto já não a distinguia mais. (Trad. Rosa A. Petraitis)
35
viviam de aplicar golpes com jogos de carta, no meio da rua. O jovem se liga
rapidamente a esse grupo de golpistas e logo se transforma em um deles.
In mezzo al gruppo di tredici o quattordici persone e gli ombrelli
lucidi, era aperto un ombrello molto più grande del comune, nero,
con sopra messe in fila tre carte, l’asso di denari, l’asso di coppe e
un sei. Le mescolava un napoletano, e la gente puntava sulle
carte cinquecento, mille e anche duemila lire. Il Riccetto se ne
rimase per una mezzoretta a guardare il gioco. [...] Il Riccetto
s’accostò al napoletano che stava a mescolare le carte
21
. (p. 25)
Assim, ele faz amizade com o napolitano e pede que o ensine a jogar. Leva
o novo amigo para sua casa, na Via Dona Olímpia, onde bebem até altas horas.
Tenta aprender o jogo de cartas e, para tanto, escuta várias vezes a explicação
do napolitano; entretanto, compreende pouco aquele mecanismo. Esse momento
de entusiasmo do rapaz o leva a fortalecer sua mais recente amizade e lhe
permite alcançar seu intento, de passar a integrar aquele grupo de golpistas.
A descrição física do napolitano bêbado é um exemplo de exposição
deformada, ou seja, a descrição, plasticamente deturpada, de um indivíduo com o
rosto corrompido pelos efeitos da bebida alcoólica:
Ma mano a mano che beveva il napoletano si faceva sempre più
strano; alla fine del secondo bicchiere era come se gli avessero
sfregato la faccia con della carta vetrata, e gli avessero cancellato
i connotati: la faccia gli s’era fatta come un pezzo di carne
scottata, con gli occhi mezzi chiusi che pareva che li accecasse
una gran luce che chissà da dove veniva, e le labbrone che
pendevano giù appiccicate fra loro
22
. (p. 30)
21
No meio do grupo de treze ou quatorze pessoas e os guarda-chuvas brilhantes, estava aberto um guarda-
chuva, muito maior que o comum, preto, e sobre ele, enfileiradas, três cartas: o ás de ouro, o ás de copas e
um seis. Um napolitano as embaralhava e as pessoas apostavam quinhentas, mil e até duas mil liras.
Riccetto permaneceu ali por cerca de meia hora, olhando o jogo; [...] Riccetto aproximou-se do napolitano,
que estava misturando as cartas. (Trad. Rosa A. Petraitis; revisão: Maria Lizete dos Santos)
22
Enquanto ia bebendo, o napolitano tornava-se cada vez mais estranho; após o segundo copo era como se
tivessem esfregado lixa em sua pele até lhe apagarem as feições: o rosto parecia um pedaço de carne
aferventada; os olhos estavam semicerrados, como se uma forte luz vinda sabe-se de onde o cegasse, e
os lábios enormes, caídos, pendiam grudados.
36
A noite termina com um mútuo contar de histórias aventurosas. Primeiro, o
napolitano descreve um episódio no qual ele teria cometido um assassinato; para
não se sentir rebaixado, Riccetto relata um acontecimento ainda mais brutal.
Enfim, os dois se despendem com uma longa demonstração de afeto. Ele sobe no
bonde, feliz, porque sabia que a partir daquela noite teria uma profissão.
Passados dois anos, Riccetto “s’era fatto un fijo de na mignota completo
23
. (p. 31)
O cotidiano de golpista do rapaz, no entanto, dura pouco, pois logo a
polícia descobre o golpe aplicado pelo grupo e prende todos os napolitanos.
Riccetto, porém, consegue escapar à prisão, e conhecendo o endereço onde seus
parceiros moravam da gruta na ladeira da Ponte Sublicio
24
–, ele vai até lá e
acha um maço de notas contendo todo o dinheiro dos rapazes, 50 mil liras. Em
liberdade e com os bolsos cheios de dinheiro, ele resolve buscar uma forma de
tirar proveito de tal situação. Sai pela manhã, bem vestido. Encontra seus amigos
Rocco e Álvaro e decidem ir juntos ao mar, em Ostia, para usufruírem os serviços
de prostitutas. Compram os serviços de Nádia, uma mulher de aproximadamente
quarenta anos, que irá satisfazê-los:
La Nadia stava distesa in mezzo con un costume nero, con tanti
peli, neri come quelli del diavolo, che gli s’intorcinavano sudati
sotto le ascelle, e neri, di carbone, aveva pure i capelli e quegli
occhi che ardevano inveliti.
Era sui quarant’anni, bella grossa, con certe zinne e certi coscini
tosti che facevano tante piaghe con dei pezzi di ciccia lucidi e tirati
che parevano gonfiati con la pompa.
25
(p. 39)
23
“se tornara um filho da puta por completo”. (Trad. Rosa A. Petraitis)
24
Ponte Sublicio – trata-se da ponte mais antiga de Roma, sobre o rio Tibre.
25
Nadia estava deitada ali no meio com um maiô preto, e com pêlos pretos como os do diabo que se
emaranhavam, suados, nas axilas; e preto como carvão tinha também o cabelo e os olhos, que ardiam. /
Tinha uns quarenta anos e era bem cheia. Os seios e as coxonas firmes tinham carnes tão brilhantes e
esticadas que pareciam infladas a bomba.
37
A descrição nos parece um pouco exagerada, entretanto um tom irônico
à situação vivida pelos rapazes. O último a usar os serviços de Nadia é Riccetto
que, apesar de considerar-se muito esperto, cai no golpe da mulher, também “da
vida”, mais velha e consequentemente mais astuta. Ao se encontrarem na cabine
usada para a prática dos atos sexuais, a mulher, aproveitando-se do estado de
desatenção do rapaz, lhe furta o maço de notas do bolso de suas calças:
Nadia si teneva stretto il pischello tra le braccia con la faccia
affondata tra le zinne, piano piano con una mano, scivolò su lungo i
calzoni appesi contro la parete, infilò nella saccoccia di dietro, levò
il pacco dei soldi e lo mise dentro la sua borsa che pendeva
appresso.
26
(p. 42)
Na continuidade do capítulo, o focalizados os acontecimentos tristes que
se passam na Via Dona Olímpia, com o desmoronamento do edifício da escola na
qual vivia a mãe de Riccetto.
Algumas páginas são dedicadas à descrição detalhada da personagem
Marcello. É apresentado como um garoto simples, igual a qualquer outro da Rua
Dona Olímpia, capaz de se encantar com alguns filhotes de cachorro trazidos por
um outro rapaz, chamado Zambuia. Marcello brinca alegremente com os
pequenos animais e decide comprar um deles. Logo após, ao sair do prédio da
escola, onde estivera a procurar por Agnolo, sofre uma pancada com a queda do
edifício:
Marcello scese giù a razzo per le scale tutte rosicchiate e annerite,
[...] ma aveva appena traversato di qualche passo la soglia, che
senti dietro un gran fracasso, che pareva una bomba e si senti
dare alle spalle una botta secca,[...] Marcello cadendo per terra a
26
Nadia segurava o rapaz nos braços, com a cabeça afundada entre as tetas, devagarinho escorregou uma
das mãos pelas calças penduradas na parede, enfiou-a no bolso de trás, tirou o pacote de dinheiro e o
colocou dentro da bolsa, pendurada ao lado. (Trad. Rosa A. Petraitis)
38
pancia in basso, con negli orecchi un frastuono e accecato da una
nuvola di polverone bianco.
27
(p. 48)
Marcello é internado no hospital com ferimentos no fígado e baço,
causados pela ruptura de duas costelas. Seus amigos, solidários, e tomando
conhecimento através da irmã do menino que ele não resistiria por muito tempo,
decidem visitá-lo. No hospital encontram um jovem resignado com a iminência da
própria morte. Marcello morre aos poucos no leito, assistido por sua mãe,
desconsolada, em lágrimas, e por seus companheiros numa cena tornada mais
dolorosa pela consciência que tinha do trágico destino:
<Ah, ma allora,> disse dopo un poco, <me ne devo proprio annà!>
Nessuno gli disse niente. <Ma allora,> riprese Marcello,
guardando fisso quelli che gli stavano intorno, <devo proprio
morì...>
28
(p. 56)
A tragédia da morte de pessoas jovens é recorrente em Ragazzi di vita, e
se repetirá, por exemplo, no capítulo final do romance. Mas, a morte, então,
receberá tratamento diferente. Nos capítulos iniciais, a morte aparece de forma
banalizada, como algo superficial; ao longo do romance, ganha destaque na
narrativa. A tragédia da perda da vida desse menino, o Marcello, é vista como
acidental, como casualidade, tratada com resignação pelas personagens.
No Capitulo III Noitada em Villa Borghese é narrado o progressivo
amadurecer do protagonista, Riccetto, particularmente nas artes da
27
Marcelo desceu feito um foguete pela escada corroída e enegrecida, [...] mal acabava de atravessar a
soleira quando ouviu um barulho forte e sentiu nas costas uma pancada seca, [...] caído de barriga para
baixo, ouvindo um estrondo terrível e cegado por uma nuvem de poeira branca. (Trad. Rosa A. Petraitis)
28
“Ah! Mas então é isso!”, disse depois de algum tempo. “Devo mesmo ir embora.” Ninguém respondeu
nada. “Mas então”, acrescentou Marcelo, olhando fixamente os que estavam em volta, “devo mesmo morrer!”
39
marginalidade. Ele, então, não é apenas um menino com suas ingenuidades
características; é despertado para um mundo onde não espaço para esse tipo
de comportamento. E, neste ponto, voltamos a tratar de espaço, introduzindo a
categoria “tempo”:
Outra categoria da narrativa com a qual o espaço estreitamente
se articula é o tempo. Submetido à dinâmica temporal que
caracteriza a narrativa, o espaço é duplamente afectado, “já que,
neste caso, a transformação de um objecto num sistema de
signos, envolve também uma transformação de uma disposição
espacial numa disposição temporal” (Zoran, 1984: 313). A partir
daqui, aprofundam-se consideravelmente as relações espaço /
tempo na narrativa [...] (REIS, 2000: 138)
A forma de encarar a realidade vai passando, aos poucos, para algo rígido,
ou seja, a cada nova dificuldade o protagonista se fecha num tipo de
personalidade criada pelas cicatrizes deixadas através dos sacrifícios diários pela
sobrevivência.
Nesse capitulo, é interessante observar, os meninos excluídos, ao
conseguirem um pouco de dinheiro, o passar a noite em Villa Borghese
29
.
Assim, podemos perceber a ironia das personagens serem inseridas num
ambiente que não é o seu, o mundo dos burgueses, dos ricos. Eles tentam,
ingenuamente, se colocar ou pelo menos viver um pouco da vida por eles
desejada.
O capítulo tem início com a descrição do viaduto da Rua Tiburtina, no qual
Riccetto e seu companheiro Caciotta empurram numa carreta duas poltronas. Ao
pararem para descansar e fumar, enquanto conversam, surgem dois outros
rapazes Alduccio e Begalone , os quais são reconhecidos e dão início a uma
29
Villa Borghese – famoso parque da cidade de Roma.
40
conversa amistosa. Decidem vender, em Porta Portese
30
, os objetos que não lhes
pertencia.
Riccetto tirando fuori dalla saccoccia un pezzo di sigaretta.
<Quanto dichi che ce remediamo a Riccè?> chiese ingenuo il
Caciotta. <Ce famo poco poco na trentina de sacchi,> rispose
l’altro. <E chi ce torna ppiù a casa, > aggiunse poi tirando
allegramente le ultime boccate dalla cicca.
31
(p. 62)
Depois de terem vendido as poltronas por quinze mil liras, dirigem-se ao
Campo dei Fiori (Campo das Flores) para comprarem roupas e sapatos novos. E
Caciotta realiza o sonho de ter seus primeiros óculos de sol. Aqui, as
personagens são retratadas amorosamente; observamos que o passavam de
meninos e que, como tal, sonhavam em ter uma vida melhor; buscavam, com o
dinheiro obtido com a venda dos objetos furtados, concretizar os pequenos
desejos comuns a todo menino, de consumirem e se adequarem à moda da
época. Comem pizza e depois vão ao cinema Sistina. Após essas horas de
diversão, eles encontram um grupo de rapazes ociosos com os quais irão passar
o resto daquela noite; entre eles estão alguns conhecidos de Caciotta. Caminham
o restante do tempo pela Villa Borghese, entre as pessoas mais ricas da cidade:
Andarono tutti e sette in una pizzeria [...]; poi tornarono su per Via
Veneto, con le camicie che gli sventolavano fuori dai calzoni, o in
canottiera, con le magliette intorcinate intorno al collo, gridando,
cantando e prendendo di petto i ricchi che ancora a quell’ora
passeggiavano tutti acchittati, con l’Alfa che li aspettava.
32
(p. 71)
30
Porta Portese é uma das portas de Roma, construída em 1644 em substituição à antiga Porta Portuensis.
A partir da Porta tem início a via Portuense, que leva ao Porto, à foz do rio Tibre, próximo a Óstia. O passeio
dominical à Porta Portese está entre os preferidos dos romanos.
31
Riccetto, tirando do bolso um pedaço de cigarro. Quanto acha que vamos receber, Riccetto?” “No mínimo
umas trinta mil liras. E depois... farra! Quem vai querer voltar pra casa com toda esta grana?”, falou, tirando
alegremente as últimas tragadas da bituca. (Trad. Rosa A. Petraitis)
32
Foram os sete a uma pizzaria [...] depois voltaram pela Via Veneto, com as camisas fora das calças ou
com as camisetas em volta do pescoço, gritando, cantando e enfrentando os milionários que àquela hora
41
Enfim, exaustos, cedem ao cansaço e dormem num banco de praça.
Quando acordam, percebem que tinham tido seus sapatos e o dinheiro roubados.
Logo, sem terem o que comer, eles seguem na direção da Rua Marsala onde
alguns frades serviam refeições às pessoas carentes. Durante alguns dias,
almoçam por ali e, no restante do tempo, praticam seus pequenos delitos. Isso,
até terem a “sorte” de encontrar, dentro de um ônibus, uma senhora que eles
vinham espionando e sabiam que ela estava com bastante dinheiro na carteira:
Ognuno entrò per conto suo e andarono a mettersi appresso alla
signora. Quella se ne stava attaccata al mancorrente, guardando
con odio i vicini. Il Riccetto le si mise paccosto, perché era lui
che se la doveva lavorare, il Caciotta gli stette dietro per
nascondergli i movimenti, mentre che il Riccetto, aperta piano
piano la borsa levava il borsellino con la mano destra, e se lo
faceva scorrere contro il costato sotto il braccio sinistro, fino a
stringerselo sotto l’ascella.
33
(p. 75)
Em seguida, os dois rapazes fogem felizes, caminhando pelas ruas de
Roma, em direção à parada do ônibus, onde ficariam várias horas esperando o
embarque, pois, naquele horário, os coletivos passavam repletos de operários
que voltavam para casa depois de um longo dia de trabalho. Apesar de tudo, da
longa espera, sentiam-se contentes, pois estavam com os bolsos cheios de
dinheiro, de La grana, che è la fonte di ogni piacere e ogni soddisfazione in
questo zozzo mondo”.
34
(p.76)
Assim, nas páginas finais do terceiro capítulo, lemos que, após algumas
ainda passeavam, bem arrumadinhos de Alfa-Romeo. (Trad. Rosa A. Petraitis)
33
Separaram-se e colocaram-se perto da mulher que segurava a alça da bolsa e olhava os vizinhos com
ódio. Riccetto se aproximou um pouco mais, pois era ele quem devia fazer o trabalho, e Caciotta foi atrás,
para esconder os movimentos do companheiro, que, após ter aberto devagar a bolsa, tirou a carteira com a
mão direita e a fez deslizar embaixo do braço esquerdo, até apertá-la sob a axila. (Trad. Rosa A. Petraitis)
34
A grana que é fonte de todo prazer e de toda satisfação neste mundo porco.
42
horas de espera, Riccetto e Caciotta conseguem subir num ônibus rumo as suas
casas. Nessa viagem, encontram um grupo de velhos amigos e entabulam uma
conversa animada. Entre os rapazes está Amerigo, que se tornará amigo de
Riccetto e exercerá uma função importante no capítulo seguinte. A nova
personagem é apresentada da seguinte forma:
Tra gli altri di Tiburtino, [...] c’era uno di Pietralata, nero di faccia e
di chioma come una serpe, un cristone che gli altri arrivavano tutti
sotto le ascelle: s’era messo accanto a loro, con una mano sul
mancorrente, fiacco a concentrato, ad ascoltarli con
un’espressione carezzevole nella faccia losca, era un certo
Amerigo.
35
(p. 80)
O Capitulo IV Ragazzi di vita começa com uma citação de Tolstoi: “O
povo é um grande selvagem no meio da sociedade” (p. 82).
As primeiras páginas do capítulo são dedicadas à descrição mais precisa
de Amerigo. O narrador mostra esse rapaz como sendo mais experiente que os
demais e o apresenta como alguém arrogante, um valentão que não suporta ser
contrariado: Col Caciotta e il Riccetto continuava a fare il ragazzo serio, che non
pensa manco per niente alla forza che cha e alla reputazione di meglio guappo di
Pietralata”.
36
(p. 83)
Assim Amerigo, sabendo que Caciotta e Riccetto teriam dinheiro,
convence-os a ficarem juntos, com bastante dificuldade, pois Riccetto se sentia
muito sonolento; pressentia, de certa forma, que acabaria perdendo seus ganhos
anteriores. Porém, Amerigo consegue persuadi-los e os leva a uma espelunca
35
Entre os rapazes de Tiburtino, [...] havia um de Pietralata, preto de rosto e de cabelo e com um corpaço
alto; estava ali a escutá-los com uma expressão suave. Era um tal de Amerigo. (Trad. Rosa A. Petraitis)
36
Com Caciotta e Riccetto continuava sendo o rapaz sério que nem pensa na força que possuía e na
reputação de maior durão de Pietralata.
43
onde um grupo de homens ociosos jogava cartas. Pouco depois de chegarem a
esse local e observarem por um tempo os jogadores, Amerigo pede dinheiro
emprestado a Caciotta, que indica o Riccetto como o portador dos valores. Após
muita insistência, Amerigo, ressaltando os laços de amizade e camaradagem que
os uniam, consegue obter o que queria e começa a jogar, com a promessa de
que, ao fim das rodadas, restituiria a quantia tomada por empréstimo. No entanto,
o rapaz perde o jogo e retorna ao amigo para pedir-lhe que financiasse mais uma
rodada, a fim de que pudesse recuperar o que fora perdido. Fracassa novamente
e fica ali, observando, buscando entender o mecanismo do jogo e como vencê-lo.
Depois, saem daquele ambiente e, enquanto caminham pelas ruas, na direção da
via Tiburtina, Amerigo tenta convencer o amigo a lhe fazer novo empréstimo em
dinheiro; ele controla a sua raiva, para poder alcançar seu objetivo, e faz uso de
um jogo psicológico, contando sua passagem pela prisão, que teria sido por
causa injusta:
Quella moina delle frustate e la sua lagna avevano avuto l’effetto
di portare alla discussione degli argomenti davanti ai quali, ormai
per comune accordo, il Riccetto non poteva che ammollare, e
senza più una parola.
37
(p. 92)
Amerigo logra convencer o Riccetto a emprestar-lhe novamente dinheiro
quinhentas liras e volta ao local onde se realizava o jogo. Entretanto, dessa vez,
Riccetto mostra-se mais inteligente e, prevendo que o amigo perderia todo o
dinheiro outra vez, sai discretamente da cozinha onde os jogadores se
concentravam. Ao sair, percebe a chegada dos carabinieri, e, por sorte, consegue
37
Aquela história de chicotadas teve o efeito de balançar o Riccetto, conforme Amerigo esperava. Agora
ele teria que ceder. De qualquer jeito. (Trad. Rosa A. Petraitis)
44
fugir, enquanto os demais são levados presos.
Nosso protagonista fica sozinho, mas por pouco tempo. Reencontra
Lenzetta, entre um grupo de garotos, e ficam juntos, conversando e caminhando.
Decidem fazer uso dos serviços de uma prostituta e, logo a seguir, se deitam
sobre uma cama improvisada, de palha, dentro de canos enferrujados e
abandonados, onde dormem até a manhã seguinte. Um dia, ao caminharem num
pântano, encontram Alduccio que lhes noticias de Tiburtino. Riccetto ouve o
relato da prisão de Caciotta e, também, toma conhecimento da morte de Amerigo:
o rapaz, resistindo à prisão, tenta fugir pulando muros; cai, fere o joelho, mas
continua sua fuga, seguido pelos carabinieri que disparam contra ele e o atingem
no ombro; Amerigo desmaia e é levado para o hospital em custódia da polícia.
Recuperado, tenta suicidar-se, cortando-se os pulsos, mas atinge seu objetivo
ao pular da janela do segundo andar do hospital onde se encontrava e agonizar,
durante uma semana, até a morte.
Nos parágrafos finais desse capitulo encontra-se a narração do velório e
enterro de Amerigo. Novamente, o leitor tem uma descrição detalhada da imagem
do cadáver, segundo a qual Amerigo “parecia vivo”, pois conservara as mesmas
feições, com a fisionomia de arrogância, valentia:
Amerigo stava disteso sul letto col vestito blu nuovo, la camicia
bianca e le scarpe nere. Gli avevano incrociato le braccia sul
petto, [...] le mani in croce sul doppiopetto: ma il colletto gli stava
ancora sbottonato alla malandrina incorniciandogli il volto che era
stato da morto anche quand’era vivo. Tanto che pareva si fosse
appena addormito, e faceva ancora paura.
38
(p. 104)
38
Haviam vestido Amerigo com o terno azul-marinho novo, a camisa branca, o sapato preto. Haviam-lhe
cruzado os braços no peito. [...] As mãos em cruz no peito até lhe dariam um ar solene, respeitoso, não fosse
pelo colarinho aberto, marca do malandro que nunca deixou de ser, emoldurando o rosto que fora de morto
mesmo quando vivo. Tanto, que parecia que acabara de adormecer, e ainda dava medo.
45
Riccetto e Alduccio acompanham, a contragosto, o velório que se realizava
em um pequeno cômodo e, não suportando permanecer ali por muito tempo,
fazem o sinal da cruz de forma meio desajeitada e saem para conversar na
calçada. Em seguida acompanham o cortejo e ironizam aquela situação, fazendo
esforço para não rirem diante das outras pessoas.
Após o cortejo fúnebre de Amerigo, chegamos ao Capítulo V – Noites
quentes.
O capítulo inicia-se com a citação seguinte: “Barriga cheia não crê no
jejum”, de G. G. Belli, que antecipa o tema mais forte ao longo desse trecho do
romance: a fome.
Lenzetta está a esperar que Riccetto e Alduccio retornem do funeral de
Amerigo. Enquanto aguarda, impacientemente, a chegada dos companheiros, se
distrai observando uns garotos que jogam bola na rua. Depois, como passatempo,
brinca com bolas de gude.
Após sair da cadeia com a condicional, Lenzetta fugira de casa por causa
de um sério desentendimento com o irmão mais velho; o motivo: ao chegar
embriagado e não conseguir conciliar o sono, cantarola durante toda a noite,
perturbando e impedindo que o irmão dormisse. É interessante notar como o
narrador fala sobre a briga entre os irmãos, posicionando-se a favor da
personagem Lenzetta:
Mica s’era comportato male, secondo lui, in senso morale... !
Morale! Che c... gliene fregava a lui e al fratello della morale! Era
stata una quistione d’onore, e, per dire la sincera verità, mica una
stupidaggine da niente. Che cavolo s’era messo nella capoccia
quella notte il Lenzetta...
39
(p. 112)
39
Não se portara mal, na sua opinião, em sentido moral... Sim! Moral! Que diabo interessava a ele e ao irmão
a moral? Tinha sido uma questão de honra, para dizer a verdade, e não uma simples bobagem. Que diabo
Lenzetta metera na cabeça, naquela noite? (Trad. Rosa A. Petraitis)
46
Na manhã seguinte à briga, ele, Riccetto e Alduccio, ao vagarem pelas
ruas, encontram uma oficina repleta de semi-eixos; logo traçam um plano para
furtar o material, à noite. Para executar esse “trabalho”, precisariam de um triciclo,
pois a mercadoria a ser roubada pesava bastante. Sentiam-se, no entanto,
cansados, sem forças para caminharem até Maranella e tomarem como
empréstimo ao garrafeiro Remo o equipamento necessário. Alduccio, então,
afirma que arranjaria o dinheiro para as passagens do bonde; os três seguem até
a praça da Porta San Giovanni e, após longa espera, o rapaz consegue o dinheiro
pretendido.
Nesse parágrafo, de forma sutil, o narrador sugere que, além dos furtos, os
rapazes, nessa vida de exclusão, também se prostituíam:
Ritornarono lì al muretto, videro Alduccio già pronto ad andarsene,
tutto felice. <Namo, dáje,> fece: Affondò una mano in saccoccia e
mostrò tre piotte tutte ciancicate. passato uno,> spiegò, <e me
l’ha date senza niente, pe’ simpatia, boh.> <Pe’ tastà un
momento,> aggiunse tutto allegro. Gli altri non stettero a cercare
tante spiegazioni: erano cose che succedevano.
40
(p. 117)
Com o dinheiro obtido, chegam ao garrafeiro, que lhes empresta o triciclo.
Assim, à noite, dirigem-se à oficina, pedalando em turnos. E, no “paraíso do
ferro”, começam a carregar o veículo com as peças mais valiosas. Enchem o
triciclo com baterias de carro, coroas de bronze, canos de ferro, semi-eixos e mais
uns cinqüenta quilos de chumbo e, depois, empurram o triciclo pelas ruas, com
grande esforço físico. Ao chegarem a Maranella, encontram a loja fechada e, por
40
Quando voltaram ao murinho, viram Alduccio pronto pra ir embora, todo feliz. “Vamos, força”, disse,
afundando uma das mãos no bolso e mostrando três notas de cem, amassadas. “Passou um fulano”,
explicou, “e me deu por nada, por simpatia”. Riu. Para apalpar um pouco”, acrescentou, todo alegre. Os
outros nem quiseram explicações: eram coisas que aconteciam. (Trad. Rosa A. Petraitis)
47
isso, ao voltam para onde estava Alduccio. Ali, Riccetto depara com um velho que
o tinha ajudado a despistar os carabinieri; logo entabulam uma conversa amistosa
e o rapaz descobre o que aquele senhor estava fazendo na rua durante a
madrugada: planejava roubar couve-flor para alimentar a família:
<Vado a rubbà li cavoli fiori pe da magnà a cinque bocche,>
rispose il vecchio. <Cinque fiji?> chiese il Lenzetta. <No, cinque
fije,> rispose il vecchio. Il Lenzetta e il Riccetto drizzarono
l’orecchi. <E quanti anni c’hanno?>
41
(p. 124)
Riccetto e Lenzetta, interessados em conhecer as filhas do idoso, decidem
acompanhá-lo; dispensam o Alduccio e convidam o ancião, chamado Antonio,
para beber vinho num bar das imediações. Começam uma discussão acerca de
religião, sobre a existência ou não da Virgem Maria. Depois, caminham até a
horta indicada por Antonio e enchem um saco com a maior quantidade de couves
possível. Em seguida, se dirigem à casa de Antonio, carregando o saco repleto de
couves. São recebidos por Nadia, a filha mais velha de Antonio, que, tímida, se
esconde atrás de um biombo. As apresentações são feitas e, pela primeira vez ao
longo do romance, tomamos conhecimento do nome de batismo de Riccetto:
Mastraccia Claudio. Nadia mostra-se emocionada e constrangida com a situação
de miséria na qual viviam e não consegue conter o choro. Seu soluçar acorda as
demais meninas e a esposa de Antonio. A cozinha daquela casa pobre se torna o
ambiente de uma conversa no meio da madrugada, enquanto as outras meninas
brincam na cama do quarto ao lado. Bebem café sem açúcar, pois a bebida
adoçada era um luxo que não podiam oferecer às visitas. Na despedida, Antonio
41
Vou roubar couve-flor para dar de comer a cinco bocas”, respondeu o velho. “Cinco filhos?”, perguntou
Lenzetta. “Não, cinco filhas”, respondeu o velho. Lenzetta e Riccetto se interessaram na hora por aquela
conversa. “E quantos anos elas têm?”. (Trad. Rosa A. Petraitis)
48
os acompanha e Riccetto, tendo em mente seus interesses futuros em relação
àquela moças, pede o dinheiro que Lenzetta tinha nos bolsos e o oferece ao
velho:
<Tenete, aaa sor maè!> fece sbrigativo il Riccetto allungandogli in
un mucchietto tutto ciancicato la piotta e mezza. Il sor Antonio
guardò la grana, osservandola attentamente. <Ma no ma no, ce
mancherebbe...> fece.
<Annamo, pijatela,> L’incoraggiò il Lenzetta.
Il vecchio continuò a fare un po’ di polemica, ma intanto però, alla
fine si prese la piotta e mezza.
42
(p. 141)
Riccetto começa a namorar uma das filhas mais jovens de Antonio e o fato
repercute nos bares do subúrbio romano. Sentindo-se mais importante e
responsável, decide trabalhar de forma honesta, tendo em vista o futuro noivado.
O namoro o obrigava a levar uma vida mais regrada, porém o conseguia ficar
longe do seu grupo de vagabundos e, sempre que lhe era possível, estava entre
os camaradas a praticar seus pequenos furtos. Somente no episódio do namoro
se registra um movimento do rapaz no sentido de construir uma vida dedicada ao
trabalho, respeitando as leis sociais. Mesmo assim, a narrativa nos revela uma
tentativa frustrada: Riccetto não suporta a idéia de viver separado de seus amigos
e o narrador deixa claro que, em nenhum momento, ele tinha tido comportamento
totalmente digno. Apesar de gostar da menina, com a qual firmara compromisso
de namoro, ele a agredia e continuava com a vida de malandro fracassado:
Il Riccetto tutto contento di recitare quella parte di ragazzo serio,
ch’era quella su cui al Bar della Pugnalata si facevano i commenti
più solidi che gli davano più piacere. [...] quando era solo con lei
42
“Pegue, tio!”, disse Riccetto, decidido, entregando-lhe, um montinho todo amassado, as cento e cinqüenta
liras. Seu Antonio olhou o dinheiro atentamente. “Mas não, mas não, só faltava essa!”
“Vamos, pegue”, encorajou Lenzetta.
O velho fez um pouco de cera mas finalmente pegou o dinheiro. (Trad. Rosa A. Petraitis)
49
[...] allora metteva una scusa qualsiasi per litigare, e finiva sempre
col darle qualche ceffone.
Contemporaneamente, però, mica rinunciava, per fare il ragazzo
serio, alle altre tentazioni e occupazioni d’un dritto fijo de na
mignotta.
43
(p. 143)
O trabalho que conseguira como ajudante de vendedor de peixes não o
satisfazia e, logo, precisando de dinheiro para comprar as alianças, organiza um
roubo a um botim de semi-eixos de um depósito. No entanto, o roubo não sai
como o planejado porque o vigia os e luta com eles. Os rapazes conseguem
fugir e, durante a fuga, ao tentar pular uma grade metálica, Alduccio se fere;
Riccetto o carrega até a porta do hospital Fatebenefratelli e, em seguida, sai
caminhando novamente pelas ruas, sem rumo. Sentindo-se faminto, na
esperança de conseguir comida, dirige-se à rua onde se montavam as barracas
do mercado. Encontra as ruas desertas e ouve apenas o ruído do caminhão de
lixo; segue até e ajuda a carregar as latas com detritos, num esforço enorme,
considerando-se a sua condição de faminto. Após três horas de trabalho, Riccetto
acompanha os outros catadores ao local do despejo, onde irá revirar o lixo em
busca de objetos de valor ou de comida: Il Riccetto e l’altro restarono soli nella
tanfa, con sotto il piano della cava e intorno i campicelli slabbrati. Si misero a
sedere uno in alto e uno in basso, e cominciarono a cercare tra i rifiuti
44
(p. 151)
O rapaz não resiste àquilo e desiste de catar o lixo. Retorna à Rua Taranto
e consegue furtar alguns pêssegos e maçãs. Não satisfeito, furta ainda um
43
E Riccetto, contente em representar o papel de rapaz direito, assunto sobre o qual, no Bar da Punhalada,
se faziam os comentários sólidos que o agradavam muito, [...] Quando estava com ela [...] Então achava um
pretexto qualquer para brigar e acabava dando algum tapa na moça. [...] Porém não renunciava às tentações
e ocupações de um valentão filho da puta. (Trad. Rosa A. Petraitis)
44
Riccetto e o outro ficaram sozinhos naquele fedor, com a jazida embaixo e os campos sujos em volta.
Então começaram a catar lixo.
50
pedaço de queijo gruyère, porém o dono da barraca percebe e inicia uma luta
corporal com o rapaz que, não tendo forças para resistir, devolve o pedaço de
queijo furtado.
Por fim, depois de todas essas intempéries, vai dormir num apartamento
cujas portas estavam abertas, porque, na noite anterior, tinha sido saqueado;
desconhecendo o fato, deita-se e dorme profundamente. É acordado
repentinamente por dois policiais, aos chutes. É preso sem saber por que motivo
e condenado a três anos de prisão.
A tragédia da vida de Riccetto evidencia-se nesse capítulo, no qual
encontramos uma profunda reflexão sobre a situação de vida dos garotos de
borgate, que viviam abandonados à própria sorte, sem esperança de um futuro
melhor. Em poucas páginas acompanhamos um jovem no ato de roubar
ferragens, couve-flor, catar lixo e, por fim, ser encarcerado por um crime que,
ironicamente, não cometera.
Chegamos ao sexto capítulo Banho no Aniene que se inicia com uma
citação de Dante:
Traiti avanti, Alichino, e Calcabrina
### cominciò egli a dire ### e tu, Cagnazzo;
E Barbariccia guidi la decina.
Libicocco vegna oltre, Draghinazzo,
Ciriatto sannuto, Graffiacane.
E Farfarello, Rubicante pazzo.
(Dante, Inferno)
45
45
“Eia, aqui, Aliquino, e Calabrina”, / começou a dizer, “e tu, Caguazzo; /
Barbarícia guiará a horda malina”.
Irão mais Libicoco e Draghignazzo, / Grafiacane e Ciriato, que é dentudo /
e Farfarelo, e Rubicante, o raso.
(Dante Alighieri - A Divina Comédia - Inferno - Canto XXI, versos 118 a 123 (Trad. Xavier Pinheiro)
51
Nesse capítulo encontra-se uma história breve da rotina dos meninos da
vida. O narrador apresenta algumas novas personagens; a maioria terá papel
restrito a esse capítulo do romance.
Riccetto, cumpridos os três anos na cadeia, está de volta à borgata e toma
banho no Aniene com um grupo de amigos. A trama do capítulo se desenvolve
quase toda nesse ambiente das margens do rio.
Begalone e Caciotta aparecem decididos a mergulhar no rio quando
encontram um grupo de moleques que faziam o mesmo. Nadam naquela água
poluída, próximo ao muro de uma fábrica de água sanitária de onde escoava o
esgoto.
Piattoletta é apresentado como um menino frágil, franzino:
Lui non rispondeva, chinato a terra, con le scapole che
sporgevano, i braccini stecchiti e la faccia da topo con la scucchia
puntata contro le costole. In testa teneva un berretto penzolante
per coprire le croste, e la nuca pelata pareva ancora più piccola e
piena di bozzi. Aveva una faccia gialla, con due grosse occhiaie e
le labbra infuori come quelle di una scimmietta.
46
(p. 158)
Os rapazes permanecem ao redor do rio, enquanto conversam entre si.
Aos poucos vão encontrando outros meninos, conhecidos ou não, e a partir daí se
divertem com uma série de situações. Primeiramente, fazem um mútuo desafio de
cruzar nadando de uma margem a outra. Caciotta é o único a hesitar e discute
com Begalone.
Nesse trecho, são descritas as margens do rio Aniene, que é símbolo do
crescimento industrial da Roma dos anos 1940; ganha relevo a poluição das
46
Ele não respondia. Agachado, com suas omoplatas salientes, os bracinhos magros e a cara de rato enfiada
no peito, tinha na cabeça um gorro caído, para esconder as crostas, e a nuca sem cabelo parecia ainda
menor e cheia de galos. Sua pele era amarelada, com duas grandes olheiras, e os lábios grossos pareciam
os de um macaquinho. (Trad. Rosa A. Petraitis)
52
águas fluviais. É evidente que a narrativa nos permite supor que havia descaso
em relação à questão ambiental. A preocupação era não somente da crítica
social, mas também do que significava para a cidade crescer de forma não
planejada: Un rivoletto bianco come la calce la tagliava a metà, tra la fanga
indurita e le vecchie fratte, sotto il muro della fabbrica della varecchina, coi suoi
serbatoi verdi e i muretti color tabacco, senza finestre
47
. (p.156)
O capítulo continua com a narrativa do relacionamento entre os rapazes,
naquele local sujo e degradado. São meninos maltrapilhos, desnutridos, cujos
sonhos não ultrapassam aquele ambiente. A alegria do Caciotta está, naquele
momento, em se exibir usando o short roubado ao sobrinho, enquanto a maioria
deles não possuía roupa de banho. A dimensão dessas personagens é
puramente a das ruas de Roma; o narrador delimita esse ambiente, sempre,
citando o nome de cada rua, ponte, estrada etc.
Sobre o espaço, lemos no Dicionário de Narratologia (REIS, 2000: 138):
enquanto categoria narrativa detentora de inegáveis
potencialidades de representação semântica, pode ser entendido
como signo ideológico. Quando é possível observar nele a
presença variavelmente explícita de atributos de natureza social,
econômica, histórica, etc., o espaço adquire então uma certa
contextura ideológica, remetendo, em articulação com outros
signos, para o sistema ideológico que na narrativa
predominantemente se representa.
Assim, apoiados em Reis, concluímos que os espaços físicos de Ragazzi di
vita associados “às personagens, às suas acções e aos juízos do narrador”
(Idem) remetem para a opressão que no romance se denuncia como aspecto
47
Um regato branco como cal a cortava, “correndo entre a lama endurecida e as velhas moitas sob o muro
da fábrica de água sanitária, com seus tanques verdes e as muretas cor de tabaco, sem janelas. (Trad. Rosa
A. Petraitis)
53
particular de um universo socioeconômico atravessado pela miséria e o
abandono.
Voltando à narrativa, ao fumar, Genesio torna-se alvo de vários moleques
que lhe pediam uma tragada; a partilha do cigarro promove um momento de
confraternização entre eles. A chegada da personagem Borgo Antico traz um
instante de harmonia entre os rapazes, que lhe pedem insistentemente para
cantar. Em napolitano, canta Luna Rossa
48
em um dos raros momentos, ao longo
do romance, em que, nos parece, sentem um pouco de paz.
Na seqüência, Piattoletta é alvo de uma brincadeira de mau gosto; ao
descobrirem que ele falava alemão, Begalone o pressiona psicologicamente,
ameaçando sumir com suas roupas, caso ele não falasse algumas frases naquela
língua. Piattoletta cede e logo depois todos vão embora.
Genesio e seus irmãos retornam para casa junto com Riccetto. Ao longo do
caminho deparam com operários trabalhando em obras de saneamento. Em tom
irônico, o narrador refere-se à atuação dos políticos, que realizam obras públicas
visando às eleições: “Gli operai che stavano facendo i buchi per le fogne lungo via
Casal dei Pazzi, perché sera in tempo d’elezioni, dormivano a pancia all’aria,
distesi sotto l’ombra di un muretto
49
. (p. 167)
em casa, Genesio e seus dois irmãos olham a figura decadente do pai,
que acabara de espancar a sua mãe. A narrativa volta-se para cães, que
48
Luna Rossa (1950), música napolitana de autoria de Antonio Visciane e De Crescenzo, fez sucesso na voz
de Claudio Villa. Foi também gravada por Caetano Veloso.
49
Os operários, que deviam estar fazendo buracos para os esgotos ao longo da rua Casal dei Pazzi pois
era tempo de eleições —, dormiam de barriga pro ar, deitados à sombra de uma mureta. (Trad. Rosa A.
Petraitis)
54
brincavam. Os rapazes incitam os cães a brigarem e assistem aquela cena de
violência com grande excitação. Os animais repetiam o comportamento dos
humanos. Ou seria o contrário?
Caciotta e Alduccio resolvem tomar outro banho no rio. O primeiro, ao
apanhar suas roupas, percebe que as cento e cinqüenta liras que reservara para
ir ao cinema tinham sido furtadas; revista a roupa de todos os meninos, mas não
encontra nada; se retira do local em silêncio.
Saem daquele lugar e, no caminho, encontram algumas meninas que os
seguem. Entretanto, a relação não é amistosa e começam uma leve discussão,
enquanto atiram gravetos contra elas. No fim, continuam com os jogos entre eles
e elegem o inocente Piattoletta como alvo de uma brincadeira de péssimo gosto,
o “pau da tortura”.
Il Roscietto lasciandolo tutto eccitato fece uno zompo all’indietro.
<Giocamo a l’indiani!> gridò. <E vattene, > fecero gli altri
sprezzanti, <Daje, che se divertimo,> insistette il Roscietto. <Uh, è
na robba,> disse ghignando Armandino, <Ihi, iuhuuu, ihu,> gridò
saltando il Roscietto. <daje, a Piattolè!>
50
(p. 179)
Seguram-no e amarram-no; simulando serem índios, criam uma dança em
volta do menino, que se sente assustado e humilhado diante da brutalidade da
qual é tima. Acendem uma fogueira aos pés do garoto que, amarrado, nada
pode fazer. As meninas, que assistem a tudo, divertindo-se, incitam ainda mais a
violência dos garotos. O capítulo termina com a descrição dessa cena de
brutalidade, mas deixando velado o destino de Piattoletta.
50
Roscietto, deixando-o todo excitado, deu um pulo para trás. “Brinquemos de índios”, gritou. “Vai embora”,
disseram os outros, desdenhosos. “Vamos, vai ser divertido”, insistiu Roscietto. “Uh, grande coisa”, vaiou
Armandinho. “Ihi, iuhuuu, ihu”, urrou o Roscietto, pulando. “Vamos Piatoletta!” (Trad. Rosa A. Petraitis)
55
Dentro de Roma o sétimo e penúltimo capítulo do romance se inicia
com a narrativa de cenas da rotina da borgata; aborda o comportamento de seus
habitantes, que viviam em casas enfileiradas, de modos pequenos, sem
qualquer privacidade: ouviam-se as vozes das mulheres preparando o jantar, ou
crianças chorando, a conversa dos homens que jogavam baralho nos bares, o
grande movimento de rapazolas e meninos e dos ônibus lotados de gente que
voltava do trabalho.
Alduccio despede-se de Begalone e volta para sua casa; encontra sua irmã
e a ofende, dizendo alguns palavrões. Na cozinha está sua mãe, que também o
ofende e diz que, como ele não trabalhava, não poderia comer naquela casa.
Segue-se uma discussão forte entre Alduccio e sua mãe, numa demonstração de
total falta de respeito entre os dois. Ela, não contente com a briga com o filho,
começa a gritar com as vizinhas. A chegada do pai, em jejum e bêbado, é outro
exemplo do desajuste no lar do rapaz. Debilitado pelo jejum e o efeito do vinho, o
homem não esboça qualquer reação diante do tom agressivo de sua esposa; mal
consegue articular algumas palavras.
Il vino che aveva bevuto per l’intero dopopranzo l’aveva fatto
diventare bianco come un lenzuolo e gli aveva come intostato le
tre dita di pellaccia rasposa di barba intorno alle froce del naso e
agli angoli della bocca, scura umida e rugosa come quella dei
cani. Era tutto spiovente; spioventi le braccia distese sul copriletto,
spiovente la bocca semiaperta, spioventi le ganascie e le fessure
degli occhi.
51
(p.187)
Enfim, Alduccio se veste e sai de casa para reencontrar Begalone que
51
O vinho que tomara durante toda a tarde tornara-o branco como um lenço e endurecera-lhe a pele de
barba por fazer, áspera, escura, úmida e rugosa como as dos cães. Parecia estar despencando: os braços
caíam, esticados, na colcha, a boca caía entreaberta, as bochechas caíam junto com os olhos, caindo
estavam os cabelos ainda pretos e brilhantes de suor, parecia brilhantina. (Trad. Rosa A. Petraitis)
56
trazia no bolso as cento e cinqüenta liras roubadas de Caciotta. Caminham pelas
ruas. Begalone se recorda de sua família e, principalmente, de sua mãe, que teria
problemas psiquiátricos. Famintos, os dois brincam com a situação em que
viviam.
Na seqüência, encontramos a descrição do centro da cidade de Roma,
durante a noite: um lugar repleto de desordeiros, de pessoas que se provocavam,
gritavam, zombavam dos transeuntes. Eram todos desocupados, prostitutas e
homossexuais, que tinham uma preocupação: a eventual chegada da polícia.
E, Begalone, sabendo disso, ao passar por aquele local, começa a gritar,
insinuando que os policiais estariam chegando, com o intuito de se divertir com a
reação das pessoas que ali se encontravam:
<< ’A squadra mobbile! >> gridò ironico il Bègalo con una mano a
ventaglio contro la bocca, cominciando a sganassare.
Continuarono a sganassare per un po’ pure quando le mignote
non li potevano più sentire, piegandosi sulle ginocchia,
appoggiandosi al muretto [...] più che ridere facevano dei versacci
con la bocca e sputavano.
52
(p.195)
Begalone e Alduccio seguem na noite a procura de diversão e prazer.
Avistam duas moças sentadas nas escadas do Templo da Vesta. Admiram-nas e
se insinuam. Porém as duas parecem ignorá-los. Assim, permanecem por perto,
tentando impressioná-las de alguma forma. Os dois começam a se despir e,
seminus, se exibem para as meninas que, apesar de os olharem,
disfarçadamente, pouco tempo depois vão embora. São seguidas pelos rapazes
52 “A polícia!”, gritou Bergalone, irônico, com as mãos em leque contra a boca, começando a gargalhar. /
Continuaram a rir mais um pouco, também quando as prostitutas não podiam ouvi-los, dobrando-se sobre
os joelhos, apoiando-se na mureta [...] mais do que rir, faziam trejeitos com a boca e cuspiam. (Trad. Rosa A.
Petraitis)
57
que as veem entrar em um carro. Ficam sozinhos e decidem arranjar mais
dinheiro. Begalone resolve pedir esmola a dois senhores que se encontram nas
proximidades, fazendo uma encenação, como se fosse uma pessoa que
efetivamente necessitasse de ajuda:
Un’altra rimediarno a Ponte Sisto, da uno anziano, con una borsa
sotto il braccio, che attaccò con loro una moina fuoriscena che
faceva venir il latte alle vecchie. Fu il Begalone a tagliar corto:
fece: <Tenemo na nun magnamo!> Il signore gli ammollò cento lire
che si comprassero quattro bombe, e loro tagliarono subito su per
via dei Giubbonari.
53
(p. 202)
Não satisfeitos com o dinheiro que tinham arranjado, partem para outra
atividade, a prostituição. Alduccio e Begalone, usando da esperteza de sempre,
encontram com facilidade um cliente. Rapidamente terminam o “serviço”.
Percebem a presença de Riccetto, no mesmo lugar, a procura de alguém que se
dispusesse a sair com ele:
Tra il Ponte Sisto e Ponte Garibaldi, non passava più quasi
nessuno, e il Riccetto invece si ricordava di quando era ragazzino,
subito dopo finita la guerra, quello che succedeva lì: lungo la
saleta, seduti con lui adesso, ce n’erano almeno venti, di
giovincelli, pronti a vendersi al primo venuto.
54
(p. 205)
Riccetto, depois de acompanhar os amigos a um lugar isolado, em
Monteverde, e de ter rejeitado brutalmente as investidas de um homossexual,
circula pelos lugares da sua infância, pelo local onde ficava o edifício da Escola
Franceschini, sua casa, que desmoronara. As ruínas continuam lá, da mesma
53
Outras cem liras conseguiram na Ponte Sixto, de um ancião com uma pasta debaixo do braço, que
começou uma encenação tão convincente a ponto de tirar leite de velhas. Mas Begalone cortou logo a
conversa. Disse: “Temos uma fome danada, desde manque não comemos. Urra!” o senhor deu-lhes cem
liras para que comprassem quatro doces e eles saíram correndo pela rua dos Giubbonari. (Trad. Rosa A.
Petraitis)
54
Entre a Ponte Sixto e a Ponte Garibaldi quase não passava ninguém àquela hora. Riccetto começou a
lembrar-se do que acontecia ali quando era garoto, logo depois da guerra: ao longo da mureta, sentados
como ele estava agora, havia pelo menos vinte rapazes prontos a se venderem a quem chegasse primeiro.
58
forma, como se o desmoronamento tivesse acontecido recentemente. Vaga,
meditando tranquilamente, pelos quarteirões da Rua Dona Olímpia, um lugar que
lhe evoca inúmeras recordações. Riccetto crescera e se tornara mais
amadurecido, mas também se corrompera, perdera a inocência, assim como
mudara a paisagem urbana ao redor, que agora demonstrava uma retomada à
“ordem” não existente no imediato pós-guerra. Encontra um velho amigo,
Alduccio, que mal o reconhece. Pergunta pelos antigos companheiros e recebe
notícias não muito agradáveis.
Alduccio descreve o destino trágico de Álvaro que, numa noite qualquer,
furtara um automóvel e saíra com outros rapazes, em alta velocidade, cometendo
pequenos delitos, até sofrerem um acidente grave. Álvaro foi o único a sobreviver
ao sinistro, mas em estado lastimável: perdera um braço e ficara cego. Após seu
relato, o rapaz despede-se de Riccetto, que volta para casa e estranha as
mudanças havidas enquanto ele estivera ausente: o cenário não era o mesmo;
o ambiente estava limpo, conservado e em ordem, diferentemente de quando o
ele havia deixado o Ferrobedò.
Begalone e Alduccio decidem ir a um bordel e a dona do negócio os trata
com arrogância. Esse episódio nos permite refletir sobre o uso do dialeto / língua
standard, como segregação social:
<Questi cretini,> fece la signora, che ogni tanto parlava in italiano,
perché, siccome era possiede, si considerava nel rango delle
persone elevate. < Che, volevate marchetta senza caccià na
lira? Robba da matti!>
55
(p. 217)
55
“Estes cretinos”, disse a senhora que, de vez em quando, falava italiano, pois, como era proprietária, se
achava uma pessoa fina. Que queriam? Fazer amor sem soltar uma lira? Coisa de louco!” (Trad. Rosa A.
Petraitis)
59
A ida ao prostíbulo é conturbada devido a acontecimentos que afetam a
moral de Alduccio, que é humilhado por uma meretriz diante de todos os demais
clientes. Assim, acompanhado de Genésio, ele decide ir para casa, aborrecido.
Embarcam num ônibus e, enquanto esperam a partida, um menino maltrapilho
entra no coletivo e começa a cantar diante dos passageiros; uns se mostram
constrangidos, outros indiferentes ou irônicos. Begalone, sensibilizado, dá ao
menino as cinco liras que lhe restavam.
No final da Tiburtina, se despedem e cada um toma seu rumo. Alduccio, ao
entrar em casa, encontra uma cena semelhante à que deixara ao sair: um
ambiente sujo e mal cuidado. A irmã que, aos berros, ameaçava se matar, discute
com ele e acaba sendo agredida. A mãe, ao vê-lo comer um pedaço de pão, fica
furiosa, porque ele não trazia dinheiro para as despesas da casa. Não suportando
a cobrança da mãe, o rapaz cospe o pão que devorava, provocando com tal gesto
uma maior indignação na senhora.
Nas linhas finais do capítulo, lemos os momentos de tensão gerados pela
miséria na qual estavam inseridas as personagens dessa história. É relatada a
forma degradante da vida marginal na periferia romana, pois nem mesmo em
casa, no seio da família, os rapazes encontravam a paz desejada. A família de
Alduccio é totalmente desajustada: o pai é alcoólatra, a irmã depressiva, os
irmãos pequenos passam fome, enquanto ele vive vagando pela cidade,
praticando pequenos furtos, se prostituindo e se tornando sempre mais violento.
Chegamos, por fim, ao último capítulo do romance: La comare secca, que
se inicia com uma citação de G. G. Belli: “... La commaraccia Secca de Strada-
60
Giulia arza er rampino
56
(p. 56).
La Comare Secca
57
é uma metáfora para Morte. Faz, também, referência à
igreja Santa Maria dell’Orazione e Morte, situada na Via Giulia, Roma, atrás do
Palazzo dei Farnesi.
Nessas páginas finais do romance leremos sobre o desfecho da história
dos ragazzi di vita.
Num domingo, após o almoço, dois carabinieri se dirigem à Rua Selmi para
prender os rapazes acusados de terem ateado fogo no Piattoletta. Entretanto, não
os encontra em casa, pois os três irmãos Genesio, Borgo Antigo e Mariuccio
haviam fugido, por não suportarem mais o comportamento agressivo do pai.
Estavam nas escarpas do rio Aniene, se divertindo e tomando banho.
Pela primeira vez, a personagem Genesio ganha uma descrição
psicológica, na qual se acentuam os problemas experimentados em sua família:
os espancamentos sofridos por sua mãe, o pai sempre embriagado e agressivo.
Nesse trecho, o homem durão e sério demonstra ser apenas mais um menino,
perdido num mundo em que era obrigado a se fechar para poder sobreviver:
Genesio, ch’era buono di cuore e sempre combattuto, povero
ragazzino, dalle emozioni e dagli affetti, nascondeva tutto dentro di
sé, e parlava meno che poteva per non scoprirsi. i suoi fratelli
l’avevano svagato, e lo obedivano sempre, però mica avevano
paura di lui, e qualche volta, obbedendolo con tutto rispetto, si
permetevano pure di prenderlo appena appena un pochetto in
giro.
58
(p. 230)
56
“... a morte da rua Giulia levanta o gancho”
57
La comare secca (1962) é o título do primeiro filme de Bernardo Bertolucci, realizado a partir de um roteiro
original de Pasolini. Cabe registrar que Bertolucci foi ajudante de direção de Pasolini na realização do filme
Accattone (1961), que constitui o corpus desta pesquisa.
58
Genésio, bondoso de coração, vivia em luta, pobre coitado, com as emoções e os afetos, e escondia tudo
dentro de si, falando o menos possível para não se revelar. Seus irmãozinhos sabiam disso e lhe obedeciam
61
Os três irmãos se dirigem a uma parte mais perigosa do rio, onde a
margem era sinuosa e selvagem. encontram Alduccio, Caciotta e Begalone,
que conversavam de forma descontraída. Begalone exige que Borgo Antico cante
para eles, enquanto Genesio desce pela escarpa e se prepara para mergulhar,
afirmando que, naquela tarde, atravessaria o rio a nado. Seus dois irmãos
demonstram excitação com o anúncio e ansiedade para vê-lo nadando.
Genesio dizia que, quando ele e os irmãos fossem maiores, matariam o pai
e se mudariam com a mãe para outra parte da cidade. Seus dois irmãos
concordavam com essa idéia e o mais velho fica pensando que, talvez, naquela
manhã, seu pai teria agredido sua mãe. Depois mergulha no rio e nada até a
metade, mas não o atravessa. Queria somente calcular a distância entre as duas
margens.
Na seqüência, Begalone reaparece às margens do rio; sente-se mal e tem
um acesso de tosses: uma tuberculose lhe consumia os pulmões. Logo, ouve-se
a sirene de alguns carros militares que passavam nas imediações, e isso é motivo
de uma grande algazarra entre os meninos, que correm para verem a passagem
dos bersaglieri.
Begalone continua a sentir-se mal, com enjôos, e decide mergulhar no rio,
achando que se restabeleceria. Mas, sentindo-se debilitado, sai do rio e cai no
chão, no meio do barro das margens sujas do Aniene:
sempre; porém não tinham medo dele e, às vezes, com todo o respeito, permitiam-se até zombar um
pouquinho. (Trad. Rosa A. Petraitis)
62
Così trovarono quelli ch’erano corsi sulla strada a vedersi passare
i carri armati fino a che l’ultimo era svoltato su verso Ponte
Mammolo. < Er Begalone se sente male! > annunciò gridando il
Caciotta, scorgendolo per primo disteso a terra con la bocca sulla
fanga.
59
(p. 241)
Os amigos o encontram e decidem levá-lo para casa. No caminho
reaparece o Riccetto, que zomba daquela situação e se desentende com
Alduccio, dizendo que ele teria o mesmo destino de Lenzetta (Nesse trecho é
narrada a prisão de Lenzetta, por ter assassinado um taxista e lhe roubado cinco
mil liras, e sua condenação a trinta anos de cadeia).
Riccetto aconselha Alduccio a voltar para casa, de onde ele havia fugido
depois da briga que tivera com sua mãe. Em seguida retorna ao rio e avisa a
Genesio e aos irmãos que os carabinieri os estavam procurando por causa da
agressão (queimaduras) ao Piattoletta.
Mariuccio, desolado, começa a chorar e Riccetto se sensibiliza. Lembra-se
de seu passado, de quando era menino e ainda tinha aquela pureza que não
existia nele. Ele se havia corrompido, se transformara em virtude das experiências
negativas da vida:
< Piagni, piagni, > diceva ogni tanto a Mariuccio, interrompendosi
per un momento di cantare. Però gli faceva pure un pò di pena: gli
era venuto in mente di quand’era come loro, che i grossi ai
Grattacieli lo menavano, e lui se ne andava a cicche, disprezzato
e ignorato da tutto il mondo, con Marcello e Agnoletto. Si ricordò
per esempio di quella volta che avevano rubato i soldi al cieco, e
se n’erano andati a fare il bagno nel Ciriola, che avevano preso la
barca, e lui aveva salvato quella rondinella che si stava a affogare
sotto Ponte Sisto...
60
(p. 248)
59
Assim o acharam os que tinham ido à estrada para ver passar os tanques até que o último virasse para a
Ponte Mammolo. Begalone se sente mal!”, anunciou, gritando, Cacciotta, vendo-o deitado no chão, com a
boca no barro. (Trad. Rosa A. Petraitis)
60
“Chora, chora”, falava de vez em quando a Mariuccio, interrompendo a cantoria. Porém teve um pouco de
pena: veio-lhe a lembrança de quando era pequeno e os mais velhos dos Blocos batiam nele, que ia à
procura de bitucas, desprezado e ignorado por todos, com Marcelo e Agnoletto. Lembrou-se, por exemplo,
daquela vez que roubaram o dinheiro do cego, e foram tomar banho no Ciriola, alugando um barco, e ele
63
Passado esse breve momento de sensibilidade, Riccetto mergulha no rio e
é seguido por Genesio. O protagonista faz uma verdadeira exibição dentro d’água
e o amigo o acompanha com o incentivo de seus dois irmãos, que o estimulavam
a cruzar o rio até a margem oposta.
Riccetto sai do rio, se veste e vai embora, ameaçando contar à polícia a
localização dos três irmãos. No meio do caminho, olha para a vidraça de uma
fábrica e uma jovem a limpar janelas; logo tem a idéia de se despir e exibir-se
para ela.
Nas páginas finais do romance, é narrada a morte trágica de Genésio.
Mariuccio grita para o irmão, que estava na outra margem do Aniene, pedindo-lhe
para voltar; após hesitar, pula na água e começa a nadar. Na ida, tinha
atravessado com facilidade; na volta, porém, a correnteza o puxava. Borgo Antico
e Mariuccio o encorajavam, gritando, sem compreender por que ele não
conseguia atravessar. Genesio estava sendo arrastado e não respondia aos
chamados dos irmãos, que tentavam acompanhá-lo, correndo ao longo do rio.
Riccetto, que ainda estava se exibindo para a moça, ao ver os garotos
passarem aflitos, os segue para compreender o que acontecia. Pensou que
brincassem, mas logo percebeu que se tratava de uma situação séria. E não
havia nada a fazer:
Genesio ormai non resisteva più, povero ragazzino, e sbatteva in
disordine le braccia, ma sempre senza chiedere aiuto. Ogni tanto
affondava sotto il pelo della corrente e poi risortiva un poco più in
basso; finalmente quand’era già quasi vicino al ponte, dove la
corrente si rompeva e schiumeggiava sugli scogli, andò sotto per
l’ultima volta, senza un grido, e si vide solo ancora per un poco
affiorare la sua testina nera.
61
(p. 253)
tinha salvado aquela andorinha que estava se afogando sob a Ponte Sixto. (Trad. Rosa A. Petraitis)
61
Genésio não resistia mais, coitado, e batia desordenadamente os braços, mas sem pedir socorro. De
64
Os dois irmãos de Genesio gritam e choram sob a ponte; Mariuccio ainda
tinha nas mãos a roupa do irmão que fora levado pela correnteza. Diante daquela
situação trágica, Riccetto se resigna e decide voltar para casa. Não havia mais
nada a ser feito. Em volta, tudo era silêncio, o silêncio que o acompanha na sua
caminhada.
1.2 .2 Lendo Accattone
Er sangue mio nun se lo beve nessuno! Er lavoro! Le bestie lavorano!
62
Accattone, 1961, marca a estréia de Pier Paolo Pasolini como diretor
cinematográfico. O longa-metragem tem boa recepção da crítica e projeta seu
diretor no campo da Sétima Arte.
O filme pode ter a seguinte sinopse, que orientará a apresentação deste
capítulo: a trama gira em torno de um jovem subproletário, residente de borgata,
Vittorio Cataldi, codinome Accattone
63
, que vive de explorar Maddalena, uma
prostituta, “ex-propriedade” de Ciccio, um napolitano que se encontrava
encarcerado.
Vittorio, que mora com Maddalena e Nannina – a mulher de Ciccio, mãe de
cinco filhos –, em um casebre na periferia de Roma, não trabalha e gasta todo o
vez em quando afundava para depois reaparecer um pouco mais abaixo; finalmente, quando já estava quase
perto da ponte, onde a correnteza se quebrava e espumava sobre as pedras, submergiu pela última vez, sem
um grito. (Trad. Rosa A. Petraitis)
62
O meu sangue ninguém bebe! O trabalho! Os animais trabalham! (Tradução nossa).
63
Accattone pode-se traduzir como mendigo, pedinte.
65
seu tempo em bares, com os amigos, ladrões e exploradores de mulheres.
Certo dia, desafiando a morte, mergulha nas águas do rio Tevere, após o
almoço, para honrar uma aposta que fizera de que não morreria de indigestão.
Na cena seguinte, chegam à borgata os amigos napolitanos de Ciccio;
desejam descobrir quem o havia denunciado. Suspeitam de Accattone, que joga a
culpa em Maddalena. Os napolitanos, então, colocam a prostituta no carro e a
levam, à noite, para um local deserto onde a agridem e a abandonam.
Na delegacia, depois de ter negado conhecer Accattone, a prostituta
aponta como seus agressores uns rapazes inocentes, que mais tarde serão
libertados. Por causa de seu perjúrio, é acusada e condenada a um ano de
prisão. Assim, Vittorio fica sem a sua única fonte de renda Maddalena –, sofre
com a fome e pede ajuda a sua esposa, Ascenza, mãe de seu filho, da qual
estava separado. A mulher se nega a aceitá-lo de volta e a sustentá-lo
novamente; e o cunhado, depois de tê-lo agredido, o expulsa da casa.
Accattone conhece, então, Stella, moça pura e inocente, e logo a convence
a se prostituir. Porém, quando se vê diante de seu primeiro cliente, a jovem não
consegue executar a função para a qual fora contratada e acaba abandonada na
rua, no meio da noite.
Sentindo-se enfraquecido por causa do amor devotado a Stella, decide,
pela primeira vez, trabalhar. Leva a amada para viver com ele e a Nannina, e,
além disso, consegue empregar-se. Entretanto, não resiste mais do que um dia
ao serviço pesado. Durante a noite tem um sonho, ou melhor, um pesadelo com o
próprio funeral.
66
Por intermédio de Amore, uma amiga de oficio, que fora presa e colocada
na mesma cela em que se encontrava Maddalena, a prostituta toma
conhecimento de que Vittorio se apaixonara por outra mulher e, enciumada,
denuncia o seu explorador à polícia. A partir de então, o gigolô passa a ser
seguido.
Não querendo voltar ao trabalho e não concordando que Stella retornasse
às ruas, arquiteta um roubo com o auxílio de Balilla e Cartagine. Enquanto furtam
um caminhão carregado com salames, são surpreendidos pela polícia, que
andava investigando Accattone; o protagonista rouba uma motocicleta e tenta
fugir à prisão; sofre um acidente fatal. Agonizante, pronuncia suas últimas
palavras: “Agora estou bem”.
Esta é a trama do filme que, a seguir, comentaremos, voltando sempre que
necessário a esta sinopse inicial.
Na versão em português, o filme Accattone recebeu o título Desajuste
social, bastante adequado à caracterização do protagonista e do ambiente por ele
frequentado.
O filme, que se baseia nos romances precedentes de Pasolini, em Ragazzi
di vita principalmente, focaliza o modo de vida nas periferias de Roma, nos anos
1950, nas quais, como conseqüência do flagelo da guerra, existia uma total
degradação das condições básicas de subsistência. O espaço físico onde se
movem as personagens é caracterizado por uma estrutura precária, degradada e
degradante. O cineasta não constrói cenários; as locações são espaços de
borgate.
67
Ao assistir o filme, seguramente, seremos sensibilizados por aquelas
personagens, cuja forma humilde de vida reflete uma resignação diante das
dificuldades enfrentadas no dia-a-dia. Essas personagens, de certa forma,
simbolizam todo um povo que vivia uma situação de estagnação e abandono, em
habitações precárias e decadentes, de onde, aparentemente, não se poderia sair.
Referindo-se à borgata, escreve o crítico Adelio Ferrero em seu livro Il
cinema di Pier Paolo Pasolini (2005: 36): Dalla borgata non si esce, e la
rettilineità stanca e senza meta di Accattone, l’interazione monocorde e ossessiva
di questi viaggi dentro l’inferno, riportano sempre a questa impossibilità di
salvezza
64
.
As imagens iniciais do filme são as dos créditos, mostrados lentamente, ao
som da Paixão segundo São Mateus de J. S. Bach. O demorar-se da câmara, ou
seja, o lento passar dos caracteres sinaliza como será o andamento do filme,
lento, em ritmo próximo ao da música, na maior parte do tempo.
O ritmo cor a uma obra, imprimindo-lhe marcas estilísticas. Ele
não é inventado, nem composto em bases arbitrárias e teóricas,
mas nasce espontaneamente num filme, em resposta à
consciência inata da vida que tem o diretor, à sua “procura do
tempo”. (TARKOVSKI, 2002: 143)
A ouverture da película se com uma citação de Dante Alighieri
(Purgatório, Canto V), apresentada na sequência dos créditos:
...l’angel di Dio mi prese, e quel d’inferno
gridava: "O tu del ciel, perché mi privi?
Tu te ne porti di costui l’eterno
per una lagrimetta che’l mi toglie...
65
64
Da borgata não se sai, e a retilineidade cansada e sem meta de Accattone, a interação monocórdia e
obsessiva destas viagens dentro do inferno, remetem sempre a esta impossibilidade de salvação. (tradução
nossa)
65
...o anjo do céu me pegou e do inferno / gritava... “Por que me priva do céu?” / nega-lhe o eterno por uma
lágrima minha...
68
Na opinião de Isadora Cordazzo, ao inserir a citação de Dante logo no
início do filme, Pasolini objetivou atribuir à morte um sentido de redenção, ou seja,
a pacificação de Accattone viria somente através desse ato final; ele seria uma
personagem com a existência voltada para a “condenação”.
Siamo sul contesto di un brano tra i più belli e drammatici della
cantica: Dante e la sua Guida, lasciatisi alle spalle la schiera dei
pigri, incontrano gli spiriti dei peccatori spirati di morte violenta,
che non ebbero modo di pentirsi se non nell’attimo prima di morire.
Tra loro, spicca la figura di Bonconte da Montefeltro, descrito da
Dante come un uomo di coraggio e un valoroso condottiero di
parte ghibellina, che trovò la morte durante la Battaglia di
Campaldino (1289). La sua anima [...] fu strappata dall’angelo di
Dio a quello infernale, che reagì con furia, poiché il morente versò,
spirando, una calda lacrima di pentimento. Dunque, non un pianto
solenne, non una lunga preghiera, bensì una sola lagrimetta, che,
nonostante la sua piccolezza, si è revelata nella concessione
divina della salvezza eterna a Bonconte.
66
(CORDAZZO, 2008: 48)
As imagens do filme compõem, ao todo, o panorama de uma sociedade
que excluía uma parcela da população. É um mundo seco, marcado pela poeira,
onde se vive maltrapilho e esquecido.
As personagens retratam, em grande parte, pessoas desocupadas, que
levam uma vida de expedientes baseada em pequenos golpes e furtos, para
poderem sobreviver. São homens amorais, ladrões ou cafetões, e mulheres
donas de casa, mães ou prostitutas –, além do grande número de crianças que
testemunham e experimentam todas as dificuldades para sobreviverem. Um
ambiente constituído por uma maioria sem assistência alguma, do ponto de vista
66
Estamos no contexto de um trecho entre os mais belos e dramáticos do canto: Dante e seu Guia, deixada para trás a
legião dos preguiçosos, encontram os espíritos dos pecadores mortos de forma violenta, que não tiveram modo de se
arrepender senão no instante da morrer. Entre eles, destaca-se a figura de Bonconte da Montefeltro, descrito por Dante
como um homem de coragem e um valoroso comandante ghibellino, que encontrou a morte durante a Batalha de Campal
Dino (1289). A sua alma [...] foi arrancada do anjo infernal pelo anjo de Deus, porque o moribundo, expirando,
derramara uma lagrima de arrependimento. Então, não um choro solene, não uma longa oração, apenas uma pequenina
lágrima, que, apesar de sua pequenez, propiciou salvação eterna a Bonconte. (Tradução nossa)
69
econômico. Além disso, paralelamente, uma outra forma de vida é focada na
trama, a da exploração sexual de mulheres: de um lado, existia um quadro de
mulheres que ganhavam a vida se oferecendo nas ruas de Roma, por não terem
outra forma de sustento; e, de outro, estavam os rufiões, que as exploravam.
Vittorio representa exatamente essa categoria de homem e vive de explorar
Maddalena, indiferente ao papel agressivo e abominável que exerce.
Desde o início do filme, o protagonista mostra-se descontente com a sua
forma de vida, pois tem consciência do próprio declínio. Porém, sua insatisfação
não surge como um elemento de autocensura ou como impedimento para seus
crimes. Pelo contrário, ele age sem constrangimentos ao agredir moralmente
Maddalena, ou seja, apesar de se definir como um “homem acabado”, não
demonstra arrependimento ao explorar sua parceira. Preferia ser ladrão a
trabalhador, pois considerava o trabalho um modo de sustento infame, indigno.
A decadência de Accattone simboliza, também, a decadência de uma
forma de vida que existia, provavelmente, pela falta de oportunidades dadas
àquelas pessoas. O “homem acabado” é Vittorio, mas “acabados” são, também,
seus amigos, que se contentam em viver de explorar mulheres. Mas, num
momento em que manifesta a sua insatisfação, o protagonista afirma que mudaria
o seu destino, se pudesse voltar no tempo.
Essa sociedade de “mortos de fome” é o retrato de uma parcela de
renegados pela denominada “burguesia”, que se mantinha distante e alheia à
realidade das periferias romanas e, assim, os jovens borgatari, resignados, eram
condenados a viver naquele mundo estreito, sem qualquer esperança de melhora.
70
O filme nos possibilita refletir sobre essa face cruel das sociedades
contemporâneas e, principalmente, capitalistas.
Na Itália dos anos 1950, Vittorio-Accattone vive a sua história de homem
fracassado em quase todos os sentidos, mas com a pureza e a inocência
características de uma pessoa que se mantém resignada diante das dificuldades,
como se sua condição fosse natural. Essa personagem representa um típico
homem corrompido pelo meio social no qual se encontra inserido. É difícil de se
imaginar como alguns daqueles garotos que correm pelas margens sujas dos rios,
ou que brincam no chão de terra batida, que testemunham a violência física de
seus pais contra suas mães, que passam fome e toda sorte de privação,
poderiam fugir à reprodução desse modelo que lhes é imposto, se era
praticamente o único modelo conhecido. Vittorio provavelmente fugiria desse
paradigma de transgressor, se tivesse tido alguma chance antes de se corromper.
No filme, somente um episódio mostra uma tentativa do protagonista fugir
do seu destino; depois de ter aprendido a ganhar seu dinheiro facilmente,
explorando e pervertendo mulheres, ele não conseguiria suportar o trabalho
braçal. Accattone fracassa, mas não por falta de consciência, mas, sim, por pura
e simples incapacidade de reaprender a ganhar seu sustento com o suor do rosto.
Ele é um fannullone, ou seja, um boa-vida, que se preocupa somente em
satisfazer-se, sem qualquer interesse por seu próximo. Nem seu filho o reconhece
como pai.
Ao procurar sua ex-mulher, Ascenza, na tentativa de reatar o
relacionamento (porque passava por dificuldades, como já foi dito) é recebido com
hostilidade por todos, agredido e humilhado, numa cena simbólica de sua
71
decadência. A propósito dessa cena, escreve Ferrero (2005: 32):
Impossibile il ritorno in famiglia: il tentativo finisce nella rissa con il
cognato, esplosione di un fondo represso di rabbia, rancore, cieca
violenza, identità disperata nella soprafflazione: i corpi avvinghiati
nella lotta non vogliono staccarsi, stretti in un abbraccio disperato
e violento, acentuato dal rallentamento dei gesti e dei movimenti.
Anche qui come nella sequenza del pestaggio di Maddalena, la
musica di Bach, che esplode altissima, allontana la brutalità dei
fatti riscattandone la sacralità della disperazione e del dolore; con
il lento e straziato allontanarsi di Accattone in primo piano, seguito
dagli insulti dell’altro, si risolve in un’atroce stazione di calvario.
67
Briga com o cunhado e, sem forças físicas para se defender, é jogado no
chão, no meio da poeira, diante de todos que o observam. A tentativa de retorno
para sua família é fracassada e o rapaz é o símbolo da autodegradação. Sente-se
humilhado pelas agressões físicas sofridas diante de uma platéia formada pelos
populares curiosos. É a luta do desespero. Como se na citação, a música
clássica marca o distanciamento da brutalidade de um mundo de excluídos dando
um tom de sagrado à cena. O “som burguês” serviria para uma espécie de
afastamento do “mundo selvagem”.
Humilhado e empoeirado, ele levanta-se e caminha cabisbaixo, em
silêncio, ouvindo as ofensas e os xingamentos, como foi escrito por Ferrero, em
imagens que lembram uma estação do calvário; aproximando a figura de
Accattone à de um Cristo.
A decadência do rapaz continua a ser mostrada, quando ele volta a se
67
É impossível o retorno à família: a tentativa termina na briga com o cunhado, explosão de uma raiva
reprimida, de rancor, violência cega, identidade desesperada na prepotência: os corpos agarrados na luta
não querem separar-se, unidos num abraço desesperado e violento, acentuado pela lentidão dos gestos e
dos movimentos. Também aqui, como na sequência da agressão à Maddalena, a música de Bach, que
explode altíssima, distancia a brutalidade dos fatos resgatando a sacralidade do desespero e da dor; com o
lento e dilacerado distanciar de Accattone, em primeiro plano, seguido de outros insultos, se resolve numa
atroz estação de Calvário. (Tradução nossa)
72
juntar com seu grupo de desocupados. Conseguem macarrão, doado pelo serviço
assistencial da Igreja, e vão cozê-lo na casa de Fúlvio, onde Vittorio reflete sobre
o sentido da fome: Eppure che è la fame? Un vizio! E tutta un’impressione!. Ah,
se nun c’avessero abituati a magnà, da ragazzini.
68
Um dos rapazes que acompanha Accattone, na cozinha, enquanto espera
a preparação do macarrão, morde um maço de flores que estava ao seu lado; a
imagem do rapaz mastigando aquelas pétalas provoca uma risada coletiva no
recinto. O que refletiria um tom libertário, ou seja, uma vontade inconsciente,
levada pelo desespero e o descontrole causados pela fome, de sair daquele
mundo. O que testemunharemos nas cenas finais, onde Cartagine ri de si mesmo,
como lemos no trecho abaixo:
Ma in altri luoghi del film la risata, così frequente e ossessiva,
carica di autoironia o di feroce sarcasmo, assume un timbro
liberatorio, come nella sequenza in casa di Fulvio e in quella
dell’autoderisione di <Cartagine> in cui si sciolgono la fatica e la
pena di una giornata <balorda>.
69
(FERRERO, 2005: 30)
Depois, engendra um plano com Fulvio, com vistas a se livrarem dos outros
rapazes e, assim, poderem comer sozinhos todo o macarrão recebido da Igreja.
Após o êxito do estratagema, reencontra Stella e a convence a aceitar uma
carona, levando-a a uma casa de penhores. No caminho, a moça avista algumas
mulheres que se prostituíam embaixo de um viaduto e mostra-se curiosa com a
imagem das prostitutas.
68
E o que é a fome? Um vício! É somente uma impressão! Ah, se não nos tivessem acostumado a comer
desde criança. (Tradução nossa)
69
Mas, em outros momentos do filme, a risada, tão freqüente e obsessiva, carregada de auto-ironia ou de
violento sarcasmo, assume um timbre libertário, como na sequência na casa de Fúlvio e na do deboche de
Cartagine, na qual se desfazem o cansaço e a pena de uma jornada inútil. (Tradução nossa)
73
Vittorio promete dar sapatos novos para Stella e, para isso, rouba o cordão
de seu filho, Iaio, enquanto abraça e recebe um beijo do menino, que não o
reconhece como pai.
Assim, a moça começa a ser seduzida pelo rufião, que a presenteia com
um colar: Accattone, enfim, se declara, dizendo amá-la verdadeiramente. A jovem
conta-lhe a sua triste história pessoal, falando que, depois da morte de seu pai, na
guerra, sua mãe tivera de se prostituir para poder sustentá-la e, por isso, a
odiava. A vaidade do rapaz o leva a irritar-se com a jovem, que o chama de
Vittorio; afirma: “Vitórios existem tantos, Accattone existe só eu”, o que nos
mostra a vontade de se individualizar, de manter o status adquirido dentro da
borgata.
Se Maddalena trazia consigo a esperteza de uma mulher experiente na
vida, Stella, outra “vítima” de Accattone, é portadora da pureza de alguém que
ainda acreditava nos bons sentimentos e intenções do ser humano.
Com Stella, Accattone tenta se reerguer, mais uma vez explorando uma
mulher. Seu poder de persuasão é grande e, aproveitando-se da inocência da
moça, facilmente a convence a se prostituir com um jogo de sedução, através de
presentes materiais, como afirmamos. Ela, carente e abandonada, cai
facilmente na conversa de Vittorio.
Vittorio Cataldi, dito Accattone, ao longo da narrativa fílmica morre várias
vezes, simbolicamente, antes da morte real”, na última sequência do filme:
primeiramente, quando Maddalena é presa e ele fica sem fonte de renda, sendo
forçado a sair de uma rotina confortável; depois, tem sua segunda morte, quando
74
se apaixona por Stella e não consegue controlar esse sentimento, perdendo a sua
identidade de cafetão. Não sendo capaz de explorar a moça, inverte as
circunstâncias, se colocando do lado no qual nunca imaginou estar, de
trabalhador braçal; em seguida, sonha com a própria morte e, por fim, morre
verdadeiramente, libertando-se de uma vida vivida como uma doença.
Além dessas “mortes” simbólicas, experimenta as inúmeras “partidas”
comuns a todos nós: parte no seu sonho de acreditar que é um homem feliz com
seu modo de vida, e logo renega tudo isso; parte para viver um amor, um
sentimento que lhe é novo; parte na tentativa de construir uma vida honesta,
pautada pelo trabalho, mas logo desiste; e, por fim, parte para o caminho do
crime, no qual esperava encontrar uma saída, e acaba por sucumbir em um
acidente de trânsito.
Assim pode ser caracterizado Accattone, uma personagem que traz o
anseio tão humano da mudança, da morte diária, das inúmeras partidas que a
vida de expedientes exige e, dessa forma, podemos perceber as sutis
transformações por que passa no breve período de tempo focalizado pela
narrativa fílmica, apenas alguns dias de sua vida.
Se nos fosse dada a conhecer a infância de Vittorio Cataldi, poderíamos,
talvez, imaginar que ele seria um menino “normal”, que se corrompera aos poucos
e que, como todos os demais, desejara uma vida diferente daquela que viveu,
uma existência marcada pelo degrado pessoal.
O filme não é linear e, por isto, retornamos à cena inicial: sentados numa
mesa de bar, em pleno dia, jogando baralho, homens desocupados conversam.
Essa é a cena na qual somos apresentados a essas personagens decadentes,
75
maltrapilhas, que levam uma vida de expediente.
Vittorio Cataldi faz uma aposta com um de seus amigos. Diz que nadaria
no rio, depois de ter comido muito, e não sofreria de indigestão. Enquanto um dos
rapazes afirma que é uma morte honrada aquela de quem morre trabalhando,
Sabino, o irmão de Vittorio, fala que iria trabalhar e arranjaria um emprego. Outro
rapaz, Mommoletto, ironizando Sabino, diz que o rapaz falara uma blasfêmia, ou
seja, fica nítida a vontade de se viver daquela forma marginal. Vejamos as
afirmativas de Cordazzo (2008: 54):
La frase che Mommoletto pronuncia con foga rimanda alla
questione successiva ed in maniera diretta: ciò che Pasolini, per
bocca di Mommoletto, intende riportare alla mente del pubblico
con quel Ha blasfemato è l’atavica incapacità del sottoproletario di
concepire l’idea del lavoro e del mantenimento onesto della
propria persona, che sono considerati, nell’ottica borghese, i mezzi
di realizzazione umana per eccellenza.
70
Esse episódio nos sugere que o trabalho, definitivamente, não era
considerado algo digno por aqueles homens. Em todo o filme, veremos a narrativa
voltada apenas para esse mundo de desocupados conscientes do papel que
exerciam. O único que se aproxima do mundo do trabalho é Sabino e, por isso,
como vimos acima, é excluído pelo riso sarcástico dos amigos de seu irmão.
Accattone é um personagem que ri de seu próprio desespero e que, não
tendo nada a perder, desafia a morte. A idéia de suicídio fica explícita, se
pensarmos que o protagonista tinha consciência de seu papel parasitário na
sociedade. Após comer, sobe na ponte sobre o rio Tevere e de salta em meio
aos gritos dos populares, que ironizam a situação, pedindo que ele retirasse as
70
A frase que Mommoletto pronuncia com ravia remete à questão sucessiva, e de maneira direta: o que
Pasolini, pela boca de Mommoletto, pretende trazer à mente do público com aquele “Blasfemoué a atávica
incapacidade do subproletariado de aceitar a idéia do trabalho e do sustento honesto, são considerados, na
ótica burguesa, os meios de realização humana por excelência. (Tradução nossa)
76
jóias do corpo antes de morrer. E ele responde: Vojo morì come i faraoni!
Deseja morrer como os faraós e, assim, pula nas águas e sai triunfante,
porque havia provado para seus amigos a sua teoria sobre a indigestão. Seus
companheiros demonstram insensibilidade diante de uma provável morte do
amigo Vittorio; ao contrário, se divertem com aquela situação inusitada. A cena do
suicídio é o primeiro indicador do tema Morte, que perpassa todo o filme. A
propósito dessa cena, Adelio Ferrero afirma (2005: 31):
Il primissimo piano del volto di Accattone immobile sul ponte, con il
grande Angelo di marmo sullo fondo, e il segno della croce prima
di tuffarsi nel fiume introducono fin dall’inizio quella nota di
sacralità di cui tutto Il racconto sarà pervaso.
71
A cena mostra em primeiro plano Accattone, com o peito nu, coberto
apenas pelo cordão, pelo ouro; ao lado, a imagem de um anjo de pedra
segurando uma cruz. O ouro é a marca do sucesso alcançado entre os cafetões,
naquele mundo de marginais. Ao fazer o sinal da cruz, o rapaz introduz no filme
um tom de sacralidade, como afirmou Ferrero. É interessante observar que o
mesmo sinal de fé, o sinal da cruz, será feito ao fim do filme, marcando o
fechamento desse “ciclo do sagrado”.
Antonino Repetto (1998: 58) emite sua opinão sobre a idéia de “suicídio” de
Accattone:
L’attrazione inconscia verso la morte è anche d’altra parte la
componente fondamentale della psicologia di quell’eroe
preideologico e preistorico che è Accattone, come è subito chiaro
fin dalla prima sequenza, potente ouverture tematica del film:
quando il giovane sottoproletario, come celebrando un rito
71
O primeiríssimo plano do vulto de Accattone, imóvel sobre a ponte, com o grande Anjo de mármore ao
fundo, e o sinal da cruz antes de mergulhar no rio introduzem, desde o início, aquela nota de sacralidade que
perpassa toda a história. (Tradução nossa)
77
propiziatorio ed esorcistico primitivo, sfida la morte gettandosi
nelle acque del Tevere.
72
O desejo da morte, inconsciente no jovem subproletário, seria a celebração
de um rito primitivo pico da idéia de pureza não contaminada idealizada pelo
escritor-diretor Pasolini.
Relembrando: no início do filme, Accattone mora com Nannina, uma
napolitana mãe de cinco filhos, e, também, com Maddalena, a prostituta que
explora.
Ainda às margens do rio, é avisado que Maddalena havia caído de uma
moto e se encontrava em casa, com uma perna ferida. Ao vê-la naquele estado,
acamada, com a perna enfaixada, se irrita e afirma que aquele acidente não
deveria impedi-la de “trabalhar” à noite. Com esse discurso, testemunhamos o
lado mais cruel, diríamos, de Accattone, que, insensivelmente, mesmo consciente
de seu trabalho “indigno”, demonstra não aceitar a possibilidade de vir a ter
prejuízos financeiros.
Em seguida, Vittorio conhece Salvatore, que vai até sua casa agradecer a
forma pela qual trata Nannina. Juntam-se aos outros napolitanos e o a um bar
para beber vinho; naquele ambiente, faz uma cena de choro, contando histórias
tristes de seu passado pobre. Entretanto, não sensibiliza ninguém e, ainda, torna-
se alvo de ironias e risadas.
72
A atração inconsciente pela morte é, por um lado, parte do componente fundamental da psicologia do herói
pré-ideológico e pré-histórico que é Accattone, como fica evidente desde a primeira sequência, forte abertura
temática do filme: quando o jovem subproletário, como que celebrando um rito de passagem e exorcismo
primitivo, desafia a morte ao jogar-se nas águas do Tibre. (Tradução nossa)
78
Voltando para casa, reencontra Maddalena e discute com ela, exigindo-lhe
que fosse trabalhar naquela noite, ameaçando quebrar-lhe a outra perna. Enfim, a
moça retorna ao ponto de prostituição, forçada pelo gigolô, e ouve uma
manifestação de espanto da amiga Amore, que critica o comportamento de
Vittorio. A prostituta, no entanto, afirma que seu companheiro a queria bem e a
amava. Amore ironiza a afirmativa de Maddalena, aconselhando-a a imitá-la, a
não amar ninguém, apesar de todos a chamarem de Amor, demonstrando um
endurecimento afetivo: Fa come me, che non ama più nessuno... e apposta me
chiameno Amore!
73
Maddalena discute com alguns vagabundos, acreditando-se amada por
Vittorio, apesar de ter sido obrigada a ir para a rua, mesmo estando com a perna
ferida. Logo, é abordada por um grupo de napolitanos que a levam de carro para
um local ermo, onde irão usufruir de seus serviços; atende um de cada vez e,
enquanto está ocupada, em serviço, um dos rapazes revira a sua bolsa em busca
de objetos de valor. Antes de partirem, agridem-na violentamente; a prostituta fica
caída no chão, a pedir por socorro. Cena tétrica: ao fundo, a escuridão da noite
serve como uma cortina negra para ilustrar o sofrimento de Maddalena; o ar é
sufocante. A seqüência termina com a moça deitada no chão. Ao lado, num
enquadramento fechado, vemos a sua bolsa, aberta, e um par de sapatos jogados
no meio da grama seca.
O grito de aiuto de Maddalena, de certa forma, pode simbolizar o
desespero de todo aquele povo que vivia em condições péssimas. Ela grita na
escuridão, pedindo por um auxilio que não vem. Encontra-se absolutamente
73
Faz como eu, que não amo ninguém... e justamente me chamam Amor! (Tradução nossa)
79
sozinha, rastejando no meio da poeira de uma cidade que, para ela e outros
tantos, está “fechada”.
A seqüência continua com a ida de Maddalena à delegacia, para denunciar
as agressões sofridas.
Num bar, um dos rapazes, ao acordar de um cochilo, em tom de galhofa,
declama: LItalia s’è desta! (A Itália se despertou!) Faz referência a um verso do
hino nacional italiano. Logo surge um menino, que brinca no chão de terra batida,
enquanto o mesmo rapaz, o que acabara de despertar do cochilo, aconselha a
criança a brincar, porque no futuro ela também “morreria de fome”. A figura do
menino, de cabelos louros, é um símbolo “angelical” dentro da borgata.
Dois policiais vão àquele bar e prendem Accattone, para averiguação. Ele
demonstra indignação e contrariedade ao acompanhar os policiais. Na delegacia,
espera longamente pelo início da sessão de reconhecimento, relativa à agressão
sofrida por Maddalena; perde a paciência e tem um descontrole emocional,
revoltando-se contra os guardas; é contido com brutalidade. Na cena seguinte, a
moça tentará reconhecer seus agressores.
A duração da cena em que ocorre a sessão de reconhecimento é lenta.
Sentada, naquela sala quente da delegacia, Maddalena olha cada grupo que
entra: os rapazes são postos enfileirados, uns ao lado do outro; o delegado toma
café num copo de vidro; os guardas enxugam o suor. Os rapazes são observados
pela prostituta. O movimento da câmera reproduz o olhar de Maddalena, que
afirma reconhecer um dos rapazes: a imagem fecha-se no rosto dele. Ela aponta
um dos jovens, que se mostra transtornado com a acusação. Apesar dos avisos
feitos pelo delegado, sobre perjúrio, ela mantém o que diz.
80
Ao descobrir que a prostituta ficaria presa e que, por isso, não teria como
se sustentar, Vittorio resolve vender os poucos bens que possuía. Quando
oferece seu anel, ouve de um dos amigos uma espécie de profecia: “hoje vai o
anel, amanhã o cordão, em sete dias o relógio e daqui a setenta e sete dias não
lhe restarão nem os olhos para chorar”.
Sobre o episódio, afirma Repetto (1998: 57):
Gli amici del baretto, ad esempio, hanno la funzione del coro nelle
tragedie: scandiscono la narrazione, commentano o annunciano
gli avvenimenti via via vissuti e subiti da Accattone. Il personagem
del <<profeta>> si alza dalla sedia del bar di borgata e, con aria
derisoriamente profetica appunto, come una parodia
sottoproletaria della Pizia, divina le mosse imminenti del destino
tragico di Accattone: che, passo dopo passo, si avvicina alla sua
fine ineluttabile, lungo un percorso narrativo disseminato di segnali
premonitori, come il corteo funebre, che incontra durante una delle
sue passeggiate, o come nel sogno del suo funerale [...]
74
O supracitado crítico compara o grupo de amigos de Vittorio ao coro da
Tragédia, tendo a função de comentar ou anunciar futuros eventos. Eles estão em
toda parte e sempre desempenham esse tom de comentário sarcástico e irônico
como se, de certa forma, assumissem a voz onisciente do narrador.
Sozinho, sem ter o que comer, Accattone começa a se desesperar, mas
não perde o orgulho próprio e nega para todos que passa por dificuldades.
Encontra Balilla, que tenta convencê-lo a começar a roubar. É na cena que
antecede sua entrada no grupo dos ladrões, que resolve recorrer à sua ex-mulher;
porém, foi mal-sucedido, como vimos.
74
Os amigos do barzinho, por exemplo, têm a função do coro nas tragédias: dividem a narração, comentam
ou anunciam os acontecimentos vividos e sofridos por Accattone. A personagem do “profeta” se levanta da
cadeira do bar de borgata e, com ar ironicamente profético, como uma paródia subproletária ao Pizia,
adivinha os movimentos iminentes ao destino trágico de Accattone que, gradativamente, caminha para seu
fim inevitável, ao longo de um percurso narrativo marcado por sinais premonitórios, como o cortejo fúnebre,
que encontra durante um de seus passeios, ou como no sonho do seu funeral [...] (Tradução nossa)
81
Quando sai daquele ambiente que lhe fora hostil, a casa de Ascenza,
encontra e se apaixona pela jovem Stella, que trabalhava com sua ex-mulher e
estava a lavar garrafas usadas.
Per il ruolo della mesta accompagnatrice di Vittorio Cataldi,
Pasolini sceglie l’attrice friulana Franca Pasut, che ben si presta
ad incarnare le facoltà fisiche e morali della Beatrice dantesca:
con la chioma bionda, il viso illuminato da un incarnato perlaceo, e
vividi occhi ceruli, Stella come la prosopopea di Speranza e,
soprattutto, di Salvezza.
75
(CORDAZZO, 2008: 94)
Novamente estamos diante de uma figura angelical, Stella, que surge como
algo verdadeiramente redentor na vida de Vittorio que, esperançoso, na moça
a possibilidade de salvação.
O rapaz começa a conversar com Stella e, nesse diálogo, se registra um
dos poucos momentos de reflexão de Accattone. Com um pensamento de certa
forma revolucionário, afirma saber o que era necessário para consertar a Itália: o
fim do trabalho escravo que, em sua opinião, estaria instituído naquele país. Diz
que a liberdade só seria conquistada, empunhando-se uma metralhadora.
“Stella, Stella me indica o Caminho”, com esta frase Vittorio resume, de
certa forma, a sua existência; ele estava e perdido, sem rumo, sem saber que
caminho seguir. Encontra a sua “Estrela”. Surpreende-se ao conhecer uma jovem
como aquela que, nas suas palavras, era boa, ingênua, sem maldade. Accattone
era incapaz de compreender como alguém de natureza tão sensível e pura
pudesse existir naquela realidade cruel das borgate. A imagem áulica da moça
contrasta com aquele mundo de renegados:
75
Para o papel da melancólica companheira de Vittorio Cataldi, Pasolini escolhe a atriz friulana Franca Pasut,
bem adequada aos atributos físicos e morais da Beatriz dantesca: com a cabeleira loura, o rosto iluminado
por um carmim perolado, e vívidos olhos celestes, Stella como prosopopéia de Esperança e, sobretudo, de
Salvação. (Tradução nossa)
82
Resta, come possibilità di uscita della propria <condizione>,
l’amore per Stella il cui <angelismo>, se non felliniano, fortemente
connotato da indugi elegiaci troppo scoperti e suadenti (si veda
l’<apparizione della ragazza, improvvisa e miracolosa, in quel
paesaggio di bottiglie e di rifiuti) si colloca fra le ribellioni
esasperate ed efimere di Maddalena e i silenzi dolorosi di
Nannina, che si aggira per casa come un’ombra, attorniata da una
torma di figli e chiusa in una rassegnazione antica: <umiltà
vivente> [...]
76
(FERRERO, 2005: 32)
Para Adelio Ferrero, a personagem Stella surge como possibilidade de
Accattone fugir àquelas condições precárias de vida. O amor, o único que vemos
verdadeiramente nos olhos de Accattone, por ela, é a forma pela qual o jovem
tentará escapar ao seu destino. Assim, a figura calma de Stella contrasta com a
de Maddalena, seu oposto, que se mostra desesperada e inquieta, e também com
a de Nannina, que é o símbolo de resignação com seu modo de vida: mãe de
cinco filhos, não sente esperanças no futuro e traz a conformação no seu olhar de
profunda humildade.
A figura de Nannina se aproxima das características que marcam a
personagem prostituta Amore que, em sua péssima condição de vida, tem um
olhar “vazio”, sem brilho, no qual podemos identificar a falta de esperança de um
futuro diferente e fora das borgate.
Seus amigos o ironizam, o “novo” Accattone, colocando em suspeição os
seus sentimentos, o seu amor por Stella.
76
Fica como possibilidade de fuga da própria “condição”, o amor por Stella cujo angelismo, se não felliniano,
fortemente conotado por hesitações elegíacas muito aparentes e persuasivas (vejamos a “aparição da moça,
repentina e milagrosa”, naquela paisagem de garrafas e detritos.) se coloca entre as revoltas exasperadas e
efêmeras de Maddalena e os silêncios dolorosos de Nannina, que vaga pela casa como uma sombra,
atormentada por um bando de filhos e presa a uma resignação antiga: humildade vivente” [...] (Tradução
nossa)
83
Ao passar pelo grupo de desocupados, o irmão de Vittorio Sabino é
hostilizado, porque todos consideravam o trabalho como algo infame; riem dele,
dizendo que, para eles, todo dia era feriado, enquanto que para o rapaz só
existiria descanso no dia Primeiro de Maio.
Accattone leva Stella para um bar com uma pista de dança às margens de
um rio, onde ela é assediada por alguns rapazes, sob o olhar observador e atento
do “namorado” e de algumas prostitutas; uma delas, vendo a situação e
percebendo as intenções do protagonista, faz uma ironia ao citar a Comédia de
Dante: Lasciate ogni speranza, voi chentrate!
77
Pasolini torna intelectualmente
contaminado o discurso da prostituta, citando, novamente, a Divina Comédia
(Inferno, canto III - verso 09), o trecho no qual Virgilio e Dante chegam à porta do
Inferno, onde estão inscritas terríveis palavras. É a entrada deles no ambiente
infernal, onde encontram as almas daqueles que não foram fiéis a Deus.
Na seqüência, Accattone mantém um olhar atento para a jovem Stella e
observa as investidas de um homem que estava sentado ao lado da moça, que
lhe abraçava e deixava a mão escorregar sobre as suas costas. O jovem não se
controla e corre em direção ao rio, numa cena que sugere novamente uma
vontade de suicídio do protagonista. Entretanto, na interpretação de Ferrero,
como se lê abaixo, a reação de raiva manifestada por Accattone, diante da própria
impotência, termina com o jovem, após lavar o rosto, esfregando a face molhada
na areia, constituindo uma das imagens mais surpreendentes e marcantes do
filme; nas palavras do crítico uma “máscara de morte”:
77
“Deixai toda esperança vós que entrais!”
84
Si veda, ad esempio, la determinazione violenta e improvvisa con
cui Accattone, nella bellissima sequenza noturna della balera,
corre verso il fiume: la rabbia e il furore della corsa si spengono in
un senso di fonda, irrimediabile, impotenza che fa tutt’uno con
quella maschera di fango e di morte che è il volto del giovane
riemerso dalla sabbia.
78
(FERRERO, 2005: 33)
Cena seguinte, outro dia: o rapaz reencontra Stella e, num acesso de raiva,
a responsabiliza pela miséria na qual se encontrava; aqui, podemos entender que
ele, apesar de se sensibilizar com o choro da moça, finalmente a convence a se
prostituir. A jovem vai ao local reservado para tal atividade e logo é abordada por
um cliente de Amore, que fica indignada por ter sido trocada por Stella. Porém, o
primeiro “trabalho” da jovem termina num verdadeiro fracasso; ela se recusa a
tocar no cliente e é largada aos prantos, sozinha, no meio da noite. Na mesma
sequência, policiais chegam ao ponto de prostituição e prendem Amore; a
colocam na mesma cela em se encontra Maddalena que, imediatamente, é
informada que Accattone estava apaixonado por outra mulher. Revoltada, a ex-
“mina” do gigolô o denuncia ao delegado pelo crime de exploração sexual.
A partir dessa cena, uma tentativa de mudança na vida de Accattone
que, mostrando-se arrependido pela forma de vida amoral que levava, decide
trabalhar para sustentar sua nova mulher. Como já dissemos, leva-a para morar
com ele e, num momento de felicidade, comemora ao lado de Nannina e Stella
brindando com Marsala
79
, que o faz relembrar dos velhos tempos no qual tinha
dinheiro. A cena, na fala da própria personagem, se assemelha à de um presépio.
78
Vejamos, por exemplo, a determinação violenta e repentina com a qual Accattone, na lindíssima sequência
noturna do baile, corre em direção ao rio; a raiva e a fúria da corrida diluem em um sentimento de profunda,
irremediável impotência que funde aquela máscara de lama e de morte que é o rosto do jovem saído da
areia.
79
Marsala é um tipo de vinho produzido nos arredores da cidade que lhe dá nome, na Sicília, Itália.
85
Seu irmão consegue arranjar-lhe um emprego, no qual deveria carregar um
pequeno caminhão com ferragens; o trabalho era pesado demais para ele, que se
sentia extenuado e voltava para casa como um “homem acabado”. Briga com
seus amigos, que zombam de sua figura ao retornar caminhando para casa, após
um dia de trabalho. Ferrero (2005: 33), comenta:
Si veda come il contatto di Accattone con il lavoro, con la sua
<insostenibilità> fisica e morale, si risolva in un nuovo e definitivo
fallimento. L’<evoluzione> del personaggio, il suo tentativo incerto
e contrastato di liberazione avviene in un mondo alienato e senza
appigli, sullo sfondo di una città stranea ma sempre incombente,
dentro l’inferno e l’esilio della borgata, respinta inesorabilmente ai
margini.
80
A citação acima nos remete, novamente, à idéia de que a tentativa de
Accattone de viver honestamente e encontrar a “liberdade” termina em frustração.
A cidade de Roma seria algo estranho mas, ao mesmo tempo, presente dentro do
inferno e do exílio da vida na borgata.
Stella se surpreende com o estado físico de Vittorio e, percebendo que ele
não suportaria aquele pesado serviço braçal, se oferece ao sacrifício de prostituir-
se, mas ele recusa ferozmente tal proposta, dizendo: Quando me metto 'n testa
'na cosa io, deve da esse quella! O il mondo ammazza a me, o io ammazzo a
lui”
81
.
Na opinião de Cordazzo, o coro dos amigos que ironizam Vittorio ao voltar
do trabalho provoca o aumento de sua agressividade e, com a proposta da jovem
80
Observemos como o contato de Accattone com o trabalho, com a sua “insustentabilidade” física e moral,
resulte em novo e definitivo fracasso. A “evolução” da personagem, a sua tentativa incerta e contrastada de
libertação, acontece em um mundo alienado e sem sustentação, como fundo de uma cidade estranha, mas
sempre ameaçadora, dentro do inferno e do exílio da borgata, rechaçada inexoravelmente à margem.
(Tradução nossa)
81
Quando coloco uma coisa na cabeça, não tem jeito! Ou o mundo me esmaga, ou eu esmago ele.
(Tradução nossa)
86
Stella de se prostituir, o rapaz faz uma espécie de “desafio cósmico” no qual o
universo seria o causador de toda a sua desgraça:
Su di lui, gli fanno eco gli amici di borgata, il lavoro sortisce
pessimi effetti, che si risolvono nell’accresciuta aggressività verso i
compari e nella volontà di lanciare una “sfida cosmica” contro
l’universo, responsabile della sua tragica degradazione.
82
(CORDAZZO, 2008: 69)
Na cena seguinte, Vittorio dorme e tem um pesadelo no qual o seu
próprio funeral. A passagem da “realidade” para o sonho se com a
transposição da imagem do sonho (Accattone caminhando sobre a mureta de
uma ponte) sobre a imagem do rapaz, agitando-se na cama enquanto dorme.
O pesadelo: enquanto caminhava sobre uma ponte, é chamado por alguns
amigos que se encontravam sentados no chão; ao se aproximar, os nus, com
parte dos corpos enterrada. Pouco depois, ouve novo chamado e, quando olha
para trás, que todos vestiam ternos de cor escura e traziam, nas mãos, um
maço de flores. Pergunta-lhes onde tinham apanhado aquelas flores e ouve como
resposta: “lá ao longe”. Silêncio. O protagonista encontra Balilla, que sussurra
algo incompreensível, apoiado numa fonte de água. Accattone segue os
companheiros, até ser informado que ele, Accattone, estava morto e que aquele
era seu funeral. O cortejo chega à porta do cemitério e ao protagonista é barrada
a entrada. Fica evidente a metáfora da privação da qual ele era vítima.
Duas crianças nuas brincam ao lado do portão de entrada do cemitério:
82
Sobre ele, fazem eco os amigos da borgata, o trabalho provoca péssimos efeitos, que se resolvem com o
aumento da agressividade em relação aos amigos e na vontade de lançar um “desafio cósmico” contra o
universo, responsável pela sua trágica degradação. (Tradução nossa)
87
L’introduzione della immagine dei bambini nudi che si dilettano,
quieti, di giochi semplici restituisce al lettore il senso di quella idea
di innocenza propria dei piccoli che non hanno ancora esperito le
brutture e gli affanni esistenziali e che, nella loro “umiltà
stracciona”, appaiono agli occhi di Pasolini del tutto assomiglianti
agli angeli.
83
(CORDAZZO, 2008: 70)
A partir do trecho supracitado, podemos entender que Pasolini novamente
nos remete à imagem de inocência e pureza inerentes às crianças que ainda não
se contaminaram, e que, na visão do autor, refletem uma imagem angelical.
Ainda no sonho: Accattone resolve pular o muro do cemitério e, ao entrar
no Campo Santo, o coveiro no ato de cavar aquela que seria a sua sepultura,
em uma parte sombreada do terreno seco. Aflito, pede que procure um lugar ao
sol, dando a idéia de que, através da luz do astro-rei, ele poderia encontrar a
pacificação, ao menos após a morte.
É evidente que esse sonho antecipa o desfecho da narrativa e, ao mesmo
tempo, desvela o mundo que lhe tirava todos os direitos. As metáforas oníricas
sinalizam a negação à Accattone de entrar no cemitério, como se lê no início do
filme “até do céu são privados” e o fato de seu túmulo ser cavado à sombra
aponta para algo ilegítimo; é como se ele não fosse merecedor da luz do sol, sinal
que aqui funciona como a negação, novamente, do Céu. Ou seja, no seu
descanso final, o rapaz continuaria na escuridão, nos guiando aos conceitos
católicos de Céu e Inferno.
Enfim, aproxima-se o desfecho da vida de Vittorio.
83
A introdução da imagem dos meninos nus – que se divertem quietos, com brincadeiras simples – restitui ao
leitor o sentido da idéia de inocência, comum às crianças que ainda não experimentaram as coisas feias e as
angústias existenciais e que, em sua “humildade indigente”, parecem aos olhos de Pasolini totalmente
semelhantes a anjos. (Tradução nossa)
88
De volta à “realidade”, no filme: o rapaz, desprovido de todo bem material,
decadente e com fome, recorre a seus amigos ladrões na tentativa de conseguir
algum dinheiro. A figura do protagonista é de alguém que perdera todo o orgulho
apresentado no início do filme. Nessa cena, vê-se um homem que não se
envergonha de confessar que o possui nada, nem um pedaço de o para
comer, de mostrar-se sem forças físicas, humilhado e, como expressou um de
seus amigos, un uomo finito.
Balilla, mostrando-se satisfeito com o novo membro de seu bando de
ladrões, afirma com ironia: “Er mondo è de chi cià li denti
84
.
Caminham durante todo o dia, empurrando uma carroça cheia de flores,
até avistarem um caminhão com carregamento de mortadela e salame. Ignorando
que a polícia os vigiava, furtam alguns embutidos do veículo.
É importante dar destaque, neste ponto, à aparição de um jovem
motociclista que, repetidas vezes, cruza o caminho de Accattone. Após ouvir voz
de prisão, o protagonista irá subtrair a moto ao rapaz e sairá, em uma tentativa de
fuga, desesperadamente, para a morte.
Na leitura de Isadora Cordazzo, a imagem desse motociclista um
adolescente louro e de olhos claros remeteria, uma vez mais, à figura simbólica
de um anjo, no caso, de um “anjo da morte”, e, ao mesmo tempo, simbolizaria a
juventude que se perderia em seguida. Afirma a estudiosa (2008: 103):
Pasolini introduce, in questo frangente, l’enesimo simbolismo: Il
cineasta indugia più volte con la macchina da presa sul
proprietario della moto, sulla quale poco dopo fugge il
84
O mundo é de quem tem dentes.
89
protagonista, mentre questo sfreccia per le strade del quartiere
Testaccio. Si tratta di un adolescente biondo che, da un lato, può
essere considerato una sorta di prosopopea della giovinezza che
fugge, dall’altro, un “angelo della morte” che reca con sé la
premonizione del funesto esito della vicenda di Cataldi.
85
Últimas tomadas de cena: após o furto, os rapazes são interceptados
pelos policiais e Accattone, num ato de desespero, rouba uma motocicleta e tenta
fugir. Ouve-se uma freada e um grito; os amigos acorrem e o encontram caído no
asfalto.
Cartagine pergunta o que havia acontecido e Vittorio somente diz: “agora
estou bem”.
Balilla, com as mãos algemadas, faz o sinal da cruz.
Na tela, lê-se a inscrição: FINE.
Fine, também deste item, com a apresentação da ficha técnica do longa-
metragem. Logo após os créditos, antes do próximo capítulo, que enquadrará a
questão da adaptação de romances em filmes, voltaremos a tratar do romance e
do filme, agora em confronto.
Accattone (Ficha técnica)
Filme de Pier Paolo Pasolini
Elenco:
Accattone (Mendigo) - Franco Citti
Stella - Franca Pasut
Maddalena - Silvana Corsini
Ascenza - Paola Guidi
Amore - Adriana Asti
85
Pasolini introduz, nesse trecho, mais um simbolismo: o cineasta várias vezes nos mostra, com movimento
lento de câmera, o proprietário da moto, com a qual logo após foge o protagonista, enquanto corre pelas
estradas do bairro Testaccio. Trata-se de um adolescente louro que, de um lado, pode ser considerado um
tipo de prosopopéia da juventude que foge, de outro, um “anjo da morte” que traz consigo a premonição do
funesto êxito da tentativa de furto de Cataldi. (Tradução nossa)
90
Amigos de Accattone:
Moicano - Luciano Conti
Piede d’oro (Pé de ouro) - Luciano Gonini
Capogna - Renato Capogna
Pupo Biondo (Boneco louro) - Alfredo Leggi
Cipolla (Cebola) - Galeazzo Riccardi
Mommoletto- Leonardo Muraglia
Peppe Il folle (“o louco”) - Giuseppe Ristagno
Tedesco (Alemão) - Roberto Giovannoni
Balilla - Mario Cipriani
Cartagine - Roberto Scaringella
Sabino - Silvio Citti
Scucchia (Queixudo) - Giovanni Orgitano
Pio - Piero Morgia
Os napoletanos:
Salvatore - Umberto Bevilacqua
Franco - Franco Bevilacqua
Amerigo - Amerigo Bevilacqua
Gennarino - Sergio Fioravanti
Nannina - Adele Cambria
O cliente de Amore - Adriano Mazzelli
Mario - Mario Castiglione
Dino - Dino Frondi
Tommaso - Tommaso Nuovo
Sogro de Accattone - Romolo Orazi
Cunhado de Accattone - Massimo Cacciafeste
O Burino ( Caipira) - Francesco Orazi
O Delegado - Mario Guerani
O juiz instrutor - Stefano D’Arrigo
Primeiro Agente - Enrico Fioravanti
Segundo Agente - Nino Russo
Primeiro farlocco - Edgardo Siroli
Segundo farlocco - Renato Terra
Senhor Pietro - Emanuele di Bari
Franco - Franco Marucci
Carlo - Carlo Sardoni
Margheritona - Adriana Moneta
Becchino (Coveiro) - Polidor
Iaio - Danilo Alleva
O garçom - Sergio Citti
Uma detenta - Elsa Morante
Inspetor de Produção - Eliseo Boschi
Cenógrafo - Gino Lazzari
Maquiagem - Cesare Biseo
Secretaria de Edição - Lino D’amico
Operador de câmera - Franco delli Colli
Assistente operador- Gioacchino Sofia
Editor de som - Luigi Puri
Microfonista - Manlio Magara
91
Colaboração aos diálogos - Sergio Citti
Ajudante de direção - Bernardo Bertolucci
Montagem - Nino Baragli
Assistente de direção - Leopoldo Savona
Diretor de Produção - Marcello Bollero
Ambientação e cenografia - Flavio Mogherini
Diretor de fotografia - Tonino delli Colli
Músicas - Johann Sebastian Bach
Coordenação musical - Carlo Rustichelli
Negativos e positivos - Ferrania P. 30
Revelação e Publicação - Istituto Nazionale Luce
Estúdios - Incir de Paolis
Dublagem e Sincronização - Titanus
Um filme – Arco Film - Cino del Duca
Produzido por Afredo Bini
Escrito e dirigido por Pier Paolo Pasolini
1.2.3 Olhando as borgate
Na arte, uma idéia existe nas idéias que lhe dão forma, e a
imagem existe como uma espécie de apreensão da realidade
através da vontade, que o artista realiza de acordo com suas
próprias tendências e as idiossincrasias de sua visão de mundo.
(TARKOVSKI, 2002: 61)
Ao produzir Accattone Pasolini baseou-se, fundamentalmente, em seus
romances escritos em Roma, em especial em Ragazzi di vita, o que nos permite
confrontar a obra literária com a fílmica, procurando encontrar no filme
características que se assemelhem ou representem uma tentativa de reprodução
“fiel” do texto literário, como: personagens, ambiente, tempo etc, considerando,
logicamente, as diversidades existentes entre as duas formas de arte.
Notamos que a obra é construída a partir de uma idéia básica de retratar o
mundo dos excluídos (os habitantes de borgata) pelo sistema econômico italiano
do pós-guerra. Ou seja, o olhar de Pasolini sobre os menos favorecidos
92
economicamente, sobre aquela parte da cidade que ele chamava de “Roma
africana”, é tema fundamental nas duas formas de expressão, no romance e no
filme. Nessas narrativas lemos / vemos a descrição dramática da vida nas
distantes periferias romanas, nos anos 1950, de jovens marginalizados pelas
injustiças sociais que contrastavam a pureza de valores com os burgueses, que
estariam “contaminados” pelo consumismo.
Para compreendermos a produção poética de Pasolini e sua opção pelos
excluídos, convém explicar que o artista tem como Norte o conceito de Realidade:
Per realtà intendo dire il modo fisico e sociale in cui si vive, qualunque questo
sia
86
, informa em seu livro de ensaios Empirismo eretico (1972: 232).
Sobre tal conceito, escreve De Carolis (2008: 17):
Il concetto di realtà è presente in molti scritti di Pasolini ed è denso
di sfumature. In primis la realtà è per l’autore italiano ciò che è per
tutti gli esseri razionali privi di difetti nella capacità percettive: è
l’insieme di cose (e delle persone) esistenti. Questa accezione di
realtà coincide con quella che si può ritrovare in un comune
dizionario.
87
No filme vemos exatamente a valorização do mundo dos excluídos; a
borgata é usada como cenário, como uma ‘cortina’ ao fundo, imóvel de onde não
se pode sair. Il cinema altro non è dunque che la ngua scritta della realtà
88
,
afirma Pasolini (1972: 233).
86
Por realidade, entendo o modo físico e social no qual se vive, qualquer que este seja.
87
O conceito de realidade está presente em muitos escritos de Pasolini e é denso de nuanças. In primis a
realidade é para o autor italiano aquilo que é para todos os seres racionais privados de defeitos na
capacidade perceptiva: é o conjunto de coisas (e de pessoas) existentes. Esta acepção de realidade coincide
com aquela que se pode encontrar em um dicionário comum. (Tradução nossa)
88
O cinema nada mais é do que a língua escrita da realidade. (Tradução nossa)
93
O espaço no romance é basicamente o mesmo: o ambiente das periferias e
a própria cidade de Roma, principalmente na região central, além da descrição do
litoral, na praia de Ostia. Essa fuga para o mar é o único divisor entre os
ambientes do filme e do romance. A propósito da película, é importante ressaltar
uma natureza, digamos, claustrofóbica, ou seja, o mundo está sempre fechado
para Accattone. Enquanto, na maioria das vezes, vemos as personagens em
primeiro plano, ao fundo se encontram construções decadentes e uma Roma
intocável:
Bastano le prime inquadrature della borgata, immobile nel bianco
ossessivo di un paesaggio in cui <tutto brucia>, ad avvertici che, al
di delle apparenti analogie di ambiente e di situazione, siamo
ben lontani dal torbido impasto di molti capitoli dei romanzi.
89
(FERRERO, 2005: 31)
Para o supracitado estudioso, o ambiente do filme difere significativamente
daquele do romance. Na realidade, se pensarmos no cenário, na descrição do
espaço físico, nas primeiras páginas de Ragazzi di vita, encontraremos uma forte
semelhança entre a descrição do calor, da luz forte e de um lugar seco.
Verdadeiramente, na maior parte da narrativa do romance, encontraremos um
ambiente diverso na sua essência; no entanto, geograficamente mantém-se o
mesmo. Assim, no livro “veremos” cenas à noite, na praia, ao redor das margens
do Aniene, muito mais freqüente do que as poucas cenas às margens do rio,
presentes em Accattone. Diríamos que o romance traz uma mobilidade que não
testemunhamos na película.
89
Bastam os primeiros enquadramentos da borgata, imóvel no branco obsessivo de uma paisagem na qual
“tudo queima”, para nos advertir que, além das aparentes analogias de ambientes e de situações, estamos
bem longe da conturbada mistura de muitos dos capítulos do romance. (Tradução nossa)
94
[...] quelle file di pallazzacci bianchi e grigi, sullo sfondo, che
allontanano e chiudono nel suo isolamento il lager sottoproletario.
Il lager, la coazione concentrazionaria sono, del resto, uno dei
luoghi persistenti del film: l’incontro con i napoletani, davanti alla
casa di Nannina e poi all’osteria, è chiuso in spazi soffocanti; nella
notte, bastioni e ruderi affiorano dal buio come torrette; le figure
sono spesso inquadrate dietro recinti di filo spinato o tra fenditure
e anfratti di pietra; i lamenti di Maddalena finiscono, con una
rapida panoramica dal bosco, sul <sipario> chiuso e compatto
della città; una radura sterminata separa Accattone e Stella dalle
case sul fondo.
90
(FERRERO, 2005: 33)
Segundo o crítico supracitado, o ambiente fechado em Accattone,
corresponderia a um lager nazista de onde não se poderia escapar, a uma parte
da cidade excluída, na qual as personagens estariam condenadas a um destino
difícil e incerto.
Em relação ao tempo na narrativa de Ragazzi di vita, pode-se observar
uma marcação mais abrangente, ou seja, a linha de tempo é bem mais longa que
no filme. O arco de tempo transcorrido não é bem precisado, mas sugere que seja
de cerca sete, oito anos, visto que a história se passa num período que vai do
início da adolescência de Riccetto e seus companheiros até o começo da vida
adulta deles (1946-1953, aproximadamente). Essa marcação se faz presente
através de algumas citações de datas como, por exemplo, no seguinte fragmento:
Estate 1946. All’angolo di via delle Zoccolette, sotto la pioggia, il
Riccetto vede un gruppo di persone, e piano piano ci s’accosta. In
mezzo al gruppo di tredici o quattordici persone e gli ombrelli
lucidi, era aperto un ombrello molto più grande del comune, nero,
con sopra messe in fila tre carte, [...].
91
(PASOLINI, 1976: 25)
90
[...] aquelas filas de prédios brancos e cinzas, ao fundo, que distanciam e fecham no seu isolamento o
lager subproletário. O lager, a coação concentradora são um dos ligares persistentes do filme: O encontro
com os napolitanos, na frente da casa de Nannina e, depois, na taverna, é fechado em espaços sufocantes;
na noite, aterros e ruínas afloram do escuro como pequenas torres; as figuras são freqüentemente
enquadradas atrás de locais com arame farpado ou entre fendas e caminhos tortuosos de pedra; os lamentos
de Maddalena terminam com uma rápida panorâmica do bosque, sobre a cortina” fechada e compacta da
cidade; um descampado destruído separa Accattone e Stella das casas ao fundo. (Tradução nossa)
91
Verão de 1946. Na esquina da rua dos Tamanquinhos, sob a chuva, Riccetto vê um grupo de pessoas e se
aproxima lentamente. No meio do grupo havia um guarda-chuva aberto, maior que o comum, preto, e sobre
95
Pasolini recorre repetidamente a elipses e, depois, a analepses,
alternando-as para criar uma atmosfera correta, justificando e reconstruindo os
passos de seus personagens através dessa última figura de linguagem.
A narrativa de Ragazzi di vita apresenta uma sequência de fatos que,
algumas vezes, atinge um ritmo rápido numa acelerada sucessão de idéias. Logo
no primeiro capítulo, temos a sensação de celeridade, na descrição das cenas
iniciais da vida do pequeno Riccetto. O parágrafo inicial nos adianta a técnica que
encontraremos ao longo de todo o romance, de cortes bruscos nas descrições:
mal acabamos de ler uma linha e, ao estarmos ainda criando em nossa mente as
imagens sugeridas, já somos convocados a compor uma nova imagem:
Era una caldissima giornata di luglio. Il Riccetto che doveva farsi la
prima comunione e la cresima, s’era alzato già alle cinque; ma
mentre scendeva giù per via Donna Olimpia coi calzoni grigi e la
camicetta bianca, piuttosto che un comunicando o un soldato di
Gesù pareva un pischello quando se ne va acchittato pei
lungoteveri a rimorchiare. Con la compagnia di maschi uguali a lui,
tutti vestiti di bianco, scese giù alla chiesa della Divina
Provvidenza, dove alle nove Don Pizzuto gli fece la comunione e
alle undici il Vescovo lo cresimò. Il Riccetto peaveva una gran
prescia di tagliare: da Monteverde giù alla stazione di Trastevere
non si sentivano clacson e i motori che sprangavano su per le
salite e le curve, empiendo la periferia già bruciata dal sole della
prima mattina con un rombo assordante. Appena finito il
sermoncino del Vescovo, Don Pizzuto e due tre chierici giovani
portarono i ragazzi nel cortile del recreatorio per fare le fotografie:
il Vescovo camminava fra loro benedicendo i familiari dei ragazzi
che s’inginocchiavano al suo passaggio. Il Riccetto che si sentiva
roder, in mezzo, e si decise a piantare tutti: uscì per la chiesa
vuota, ma sulla porta incontrò Il compare che gli disse: <Aòh, addò
vai?> <A casa vado,> fece il Riccetto, <Tengo fame.> <Vie’ a casa
mia, no, fijo de na mignotta,> gli gridò dietro il compare, <che ce
star er pranzo.> Ma il Riccetto non lo filò per niente e corse via
sull’asfalto che bolliva al sole. Tutta Roma era un solo rombo: solo
su in alto, c’era silenzio, ma era carico come una mina. Il
Riccetto s’andò a cambiare.
92
(p. 10)
ele três cartas enfileiradas. (Trad. Rosa A. Petraitis)
92
Era um dia quente de julho. Riccetto, que devia receber a primeira comunhão e a crisma, levantara-se às
cinco; mas, descendo a rua Dona Olímpia, de calça cinza e camisa branca, mas parecia um moleque em
busca de companhia que um soldado de Cristo. Juntos com outros meninos iguais a ele, todos vestidos de
96
No segundo parágrafo, continuamos a testemunhar o ritmo acelerado na
narrativa, agora na descrição da geografia de Roma, que provoca uma sensação
de movimento no espaço. É como se estivéssemos nas ruas da Cidade Eterna e
pudéssemos acompanhar o deslocamento das pessoas. O romancista passa de
uma descrição a outra, com cortes abruptos, não se alongando em nenhuma
delas. Vejamos: “De Monteverde Vecchio ao Granatieri a estrada é curta [...] > Via
Abate era a dois passos [...] > a multidão seguia em direção aos Arranha-céus [...]
> Riccetto juntou-se à multidão que se lançava rumo aos depósitos”. Assim
“vemos” essa seqüência de imagens:
Da Monteverde Vecchio ai Granatieri la strada è corta: basta
passare Il prato, e tagliare tra le palazzini in costruzione intorno al
viale dei Quattro Venti: valanghe d’immondezza, case non ancora
finite e già in rovina, grandi sterri fangosi, scarpate piene di
zonzerie. Via Abate Ugone era a due passi. La folla giù dalle
stradine quiete e asfaltate di Monteverde Vecchio, scendeva tutta
in direzione dei Grattacieli: già si vedevano anche i camion,
colonne senza fine, miste a cammionette, motociclette, autoblinde.
Il Riccetto s’imbarcò tra la folla che si buttava verso i magazzini.
93
(p. 10)
No filme, o tempo da diegese é muito mais curto. Testemunhamos apenas
branco, desceu até a igreja da Divina Providência, onde às nove padre Pizzuto deu-lhe a comunhão e às
onze o bispo o crismou.
Riccetto tinha pressa; queria sumir dali. De Monteverde até a estação de Trastevere só se ouvia um mesmo
incessante ruído: o de buzinas e motores que arrancavam nas subidas e nas curvas, enchendo com um
ronco ensurdecedor a periferia já castigada pelo sol quente da manhã. Logo depois do sermão do bispo,
padre Pizzuto e os dois ou três jovens religiosos levaram os meninos ao pátio, para as fotografias. O bispo
caminhava entre eles, abençoando seus familiares, que se ajoelhavam à sua passagem. Riccetto, inquieto e
ansioso, resolveu abandonar aquilo tudo e saiu pela igreja vazia. Mas na porta encontrou o padrinho, que lhe
perguntou: “Ei, aonde vai?” “Vou pra casa”, Riccetto respondeu, estou com fome”. “Pois vem almoçar
comigo, filho da puta”, gritou o padrinho, que tem comida na mesa”. Mas Riccetto nem olhava pra ele; foi
embora, correndo pelo asfalto que queimava ao sol. Roma inteira era um barulho só. Apenas ali, no alto,
havia silêncio. Um silêncio carregado como uma mina.
Riccetto foi trocar de roupa. (Trad. Rosa A. Petraitis)
93
De Monteverde aos Granadeiros o caminho era curto: bastava passar o Prado e cortar pelas casas em
construção ao redor da alameda dos Quatro Ventos, em meio a uma imundice sem fim, casas inacabadas e
em ruínas, grandes terrenos baldios, lamacentos, encostas cheias de lixo. A rua Abade Ugoni ficava
pertinho dali. A multidão descia as alamedas silenciosas e asfaltadas de Monteverde Velho em direção aos
Blocos. se avistavam os caminhões, os feixes intermináveis de colunas misturados às peruas, às
motocicletas e aos tanques de guerra. Riccetto juntou-se à multidão que se lançava rumo aos depósitos.
97
alguns dias na vida de Vittorio: dos momentos finais do modo confortável e
exuberante no qual vivia até sua decadência e morte. A sensação de tempo
decorrido é muito mais simples de ser verificado, e a sucessão de cenas nos
permite afirmar que a história se passa em alguns dias / semanas. Vemos poucas
noites e manhãs. A narrativa fílmica é construída de forma plana, numa linha de
tempo única e direta, sem retomadas significativas ao passado ou antecipação do
futuro (a exceção a este último se faz no sonho / pesadelo de Vittorio).
O tempo é lento como o caminhar de Accattone nas ruas empoeiradas da
borgata. Vejamos o que Maria Lizete dos Santos (2008) afirma sobre essa técnica
de longos planos fechados, que é valorizada por Pasolini:
No plano da expressão cinematográfica, Pasolini corpo a uma
poética de imagens escabrosas, com enquadramentos longos. O
demorar-se sobre os rostos, os lugares, na narrativa em preto e
branco, sublinha a tragédia de um mundo – o das borgate
abandonado ao próprio destino, de miséria e desolação.
As personagens de Ragazzi di vita são, em sua maioria, meninos ou jovens
rapazes que vivem de forma humilde e amoral dentro de uma Roma sem
“inocência”. Como dito anteriormente, o Riccetto, verdadeiro protagonista, é o
fio condutor da narrativa. Mas, apesar de ser personagem fundamental na maior
parte dos episódios, na última parte do livro passa a ocupar segundo plano,
porém sustentando um papel significativo no desenrolar dos acontecimentos.
Os grupos de rapazes não mantêm, ao longo do romance, uma forma fixa:
são mutáveis. Ora possuem uma composição ora outra; contudo, sempre, em
cada capitulo, teremos um deles eleito como protagonista. O espaço físico é
fechado. Assim como em Accattone, esses rapazes não possuem perspectivas
de vida e suas relações com as demais personagens são sempre conflitantes,
98
numa luta radical, como lemos abaixo:
In Ragazzi di vita, Pasolini descrive un mondo fermo, immobile,
chiuso a qualsiasi forma di contatto e di influenza esterna.
All’interno di questa dimensione, il rapporto tra vecchi e giovani,
padri e figli, tende a radicalizzarsi come scontro di generazioni,
diversamente reattive al ciclo naturale dell’esistenza e anche la
miseria, al di delle conotazioni sociologiche sovraposte
dall’autore, viene riassorbita in un ritmo di accadimento
crudamente necessitati.
94
(FERRERO, 2005: 28)
A presença de outras personagens se concretiza ao longo dos capítulos,
como policiais, prostitutas, os napolitanos que aplicam o golpe com cartas, o
bispo da crisma de Riccetto, as mães de alguns dos meninos, ou seja, são
inúmeros esses elementos secundários. Interessante é que essas figuras
periféricas têm importância limitada ao capitulo em que surgem, não passando,
quase nunca, para os episódios seguintes. Pasolini talvez tenha querido centrar o
enredo naqueles meninos e essas personagens de segundo plano têm, ao longo
do livro, as suas existências dependentes dos demais rapazes. Ou melhor, seriam
coadjuvantes dos próprios coadjuvantes, no caso de considerarmos Riccetto
como o Protagonista. Assim, teríamos um núcleo, um centro que seria o menino
Riccetto e, a partir dele, surgiriam as demais personagens: seus amigos, sua
família, policiais, dentre outras.
Em Accattone, a narrativa centrada novamente na figura de um rapaz de
borgata. Contudo, agora, temos verdadeiramente um protagonista. E, junto a ele,
outro grupo de rapazes, ou melhor, de homens. No filme, ao contrário do que
94
Em Ragazzi di vita, Pasolini descreve um mundo parado, imóvel, fechado a qualquer forma de contato e de
influência externa. Nessa dimensão, a relação entre velhos e jovens, pais e filhos, tende a radicalizar-se
como um conflito de gerações, diferentemente reagentes ao ciclo natural da existência e, também, à miséria,
além das conotações sociológicas sobrepostas pelo autor, vem absorvida num ritmo de acontecimentos
cruamente necessitados. (Tradução nossa)
99
fizera no romance, Pasolini valoriza não mais os meninos da vida, mas, sim, os
homens da vida. Essa é uma diferença fundamental entre as duas obras. Talvez,
porque o submundo adulto, naquele momento, interessasse mais ao autor do que
o mundo dos meninos que, apesar das crueldades praticadas e sofridas,
mantinham certa ingenuidade e a sensibilidade típica da infância.
Na Roma de Accattone, diferentemente daquela de Riccetto, não se
encontra com facilidade o lirismo no modo de vida; ao contrário, vê-se retratado
um mundo muito mais duro. As personagens do filme são basicamente
compostas de gigolôs, ladrões e prostitutas. Leiamos as palavras de Pasolini:
Os personagens de Accattone eram todos ladrões, rufiões, ou
gente que vivia de expedientes: tratava-se, em suma, de um filme
sobre o submundo. Naturalmente, à sua volta existia também o
mundo da periferia, comprometida talvez por solidariedade com o
submundo, mas, afinal, normalmente trabalhadora (em troca de
um salário miserável: veja Sabino, o irmão de Accattone). Mas,
enquanto autor e cidadão italiano, não exprimia no filme nenhum
juízo negativo sobre estes personagens do submundo: todos os
seus defeitos me pareciam defeitos humanos, perdoáveis, além
de perfeitamente justificáveis socialmente. Defeitos de homens
que obedecem a uma escala de valores “diversa” da burguesa:
isto é, de homens que são “eles próprios” de modo absoluto,
como já disse. (PASOLINI, 1990: 141)
Para o cineasta essas personagens viviam num submundo de forma a lutar
pela própria sobrevivência. Como afirma, sem subterfúgios, o importante não era
julgar o papel desempenhado por cada um, mas sim mostrar essa realidade. Os
“defeitos” seriam totalmente perdoáveis, considerando que tais personagens
seriam amorais, porque viviam num mundo com valores diferentes dos nossos,
valores burgueses. Não nos caberia, portanto, estabelecer julgamentos de valor,
mas, apenas, compreender os valores desse mundo particular.
O tema de Accattone e de Ragazzi di vita é a Morte, fundamental no
100
destino das personagens. A morte ronda a vida dos meninos do romance,
fazendo-se presente algumas vezes. No filme, vemos uma única cena de morte,
do protagonista, no final da narrativa; morte que representa a única possibilidade
de fuga daquele mundo estático e fechado da borgata.
Nel mondo di Accattone, dunque, Pasolini proieta la sua
dominante passione di morte. E lo fa adottando alcuni
procedimenti tipici della sua scrittura cinematografica con un
impeto lirico che avvicina questo film più al suo mondo poetico che
al suo universo romanesco. La frontalità sacrale delle inquadrature
non racconta gli avvenimenti, ma li rappresenta, anzi li contempla,
come splorando un quadro nell’insieme.
95
(REPETTO, 1988: 59)
Segundo Repetto, como se acima, Pasolini projeta em seu primeiro filme
o fascínio que sente pela morte, ou seja, representa metaforicamente através de
imagens o mesmo argumento (a morte) tão presente em Ragazzi di vita.
Entretanto, agora, em imagens, esse simbolismo ganha nova percepção; esse
fascínio pode ser entendido, também, como fascínio pela Paixão de Cristo,
através das imagens de Accattone, que representam na sua totalidade um
verdadeiro calvário ao longo do filme, como já dito anteriormente.
A cena final do filme mostra o desfecho da vida de Vittorio, que encontra na
morte sua única forma de redenção. Para Santos também existe algo de sagrado
e cristão nessa cena derradeira. Assim, a música de Bach serviria como símbolo
dessa verdadeira redenção, de um cristo que humilhado, perseguido e injustiçado,
morre diante dos olhos de todos, afirmando que então estaria bem. Nas palavras
95
No mundo de Accattone, Pasolini projeta a sua dominante paixão pela morte. E o faz adotando alguns
procedimentos típicos da sua escritura cinematográfica, com um ímpeto lírico que aproxima este filme mais
ao seu mundo poético que ao seu universo romanesco. A frontalidade sagrada dos enquadramentos não
narra os acontecimentos, mas os representa; mais, os contempla, como que explorando um quadro na sua
totalidade. (Tradução nossa)
101
finais de Vittorio temos um exemplo, talvez, máximo, da profunda resignação com
sua morte e poderíamos afirmar que, assim como Cristo, ele perdoa seus
perseguidores, no caso a fome, a miséria e as injustiças sociais:
Exatamente como acontece nos romances Ragazzi di vita e Una
vita violenta, o protagonista morre. E a morte é metaforizada como
condenação, pelo fato de Accattone não ter sabido aceitar as
condições do modelo burguês de vida.
Na cena em que o protagonista morre ouve-se um trecho de A
Paixão segundo São Mateus de Sebastian Bach; e com esse,
digamos, réquiem, produz-se uma espécie de contaminação entre
violência, brutalidade e sublime, para evocar a Paixão desse novo
cristo. O coro final da Paixão é inserido, seja na cena da
perseguição a Accattone seja nos últimos enquadramentos do
filme, quando se cumpre o destino trágico da personagem e
advém o seu martírio, a morte, única forma verdadeira de
liberdade concedida pela sociedade aos homens “sem dignidade”,
que ignoram ou rechaçam as leis da razão dominante. (SANTOS,
2008)
Em Ragazzi di vita o tema Morte é tratado de forma diversa, nas quatro
ocasiões em que é narrado. Primeiramente, vê-se que esse elemento aparece em
um segundo plano; é apresentado como nuança de uma cena de violência e
brutalidade diante da luta pela sobrevivência. Pode-se dizer, portanto, que é uma
metáfora da maneira como as personagens tratam a morte, ou seja, com
superficialidade. As pessoas passam sobre o cadáver da mulher, com indiferença
e naturalidade, como narramos no item 1.2.1:
[...] Si scendeva giù per una scala a chiocciola: la scaletta a
chiocciola si straboccava di gente. Una ringhiera di ferro, sottile,
cedette, si spaccò, e una donna cadde giù urlando e sbatté la
testa in fondo contro un scalino. [...] È morta, - gridò un uomo in
fondo alla cantina. [...] Marcello continuava a scendere gli scalini.
In fondo fece un salto scavalcando il cadavere [...] La folla si era
dispersa. Marcello tornò a scavalcare la donna morta e corse
verso a casa.
96
(PASOLINI, 1976: 6)
96
[...] Viram-se descendo uma escada em caracol enquanto a multidão atrás empurrava e mulheres gritavam,
meio sufocadas. Um corrimão de ferro, frágil, cedeu, partiu-se, e uma mulher caiu, gritando, batendo a
cabeça num degrau. [...] “Morreu!”, gritou um homem, do fundo da adega. [...] Marcelo, que continuava
descendo os degraus, deu um pulo, saltando por cima do cadáver; [...] A multidão dispersara-se. Marcelo
102
A morte da personagem Marcelo, no segundo capítulo, demonstra, então,
uma nova focalização desse tema. Porém, nesse ponto, o narrador dedica uma
descrição mais minuciosa à “indesejada” e valoriza a resignação do próprio
moribundo diante de seu destino. A diferença, em relação à primeira narrativa de
Morte, está no tempo dedicado ao tema, que ocupa algumas páginas do romance:
Marcello si guardò intorno meglio, come se stesse pensando
intensamente a qualcosa.- Ah, ma allora, - disse dopo un poco, -
me ne devo proprio annà! Nessuno gli disse niente. Ma allora, -
riprese Macello, guardando fisso quelli che gli stavano intorno, -
devo proprio morí...Agnolo e l’altro se ne stavano zitti e accigliati.
Dopo qualche minuto di silenzio, Agnolo si fece coraggio,
s’accostò al letto e toccò Marcello s’una spalla: - Noi te salutamo,
a Marcè, disse se ne dovemo annà, mo che c’avemo ’a puntata
coll’amici.- Ve saluto, a Agnolè!disse con voce debole ma ferma
Marcello. Poi dopo aver pensato un momento, aggiunse ancora: -
e salutateme tutti giù a Donna Olimpia, si è proprio ch’io non ce
ritorno piú... E teje che nun s’accorassero tanto! Agnolo spinse
Oberdan per una spalla, se ne andarono giù per la corsia ormai
quasi buia, senza dire una parola.
97
(PASOLINI, 1976: 57)
Mais adiante, no capítulo quatro, temos a descrição da morte de Amerigo,
tragédia narrada como sendo algo banal, exatamente como acontece no primeiro
capítulo. O importante, para aquelas personagens, é o relato e a emoção contidos
na forma trágica na qual o jovem morreu. A excitação diante de tal notícia é
evidente:
saltou de novo por cima da mulher morta e correu para casa. (Trad. Rosa A. Petraitis)
97
Marcelo olhou em volta atentamente, como se estivesse pensando em alguma coisa.
“Ah! Mas então é isso!”, disse depois de algum tempo. “Devo mesmo ir embora.” Ninguém respondeu nada.
“Mas então”, acrescentou Marcelo, olhando fixamente os que estavam em volta, devo mesmo morrer!”
Agnolo e Oberdan mantinham-se calados. Estavam perturbados. Após alguns minutos de silêncio, Agnolo
tomou coragem, aproximou-se da cama e tocou Marcelo no ombro: “Nos despedimos, Marcelo”, disse.
“Precisamos ir agora, pois temos um encontro com os amigos.”
“Tchau, Agnoletto!”, disse com voz fraca, mas firme, Marcelo. E, após ter pensado um momento,
acrescentou: “Saudações a todos lá em Olímpia, se eu não voltar mais... E digam pra não sofrerem muito!”
Agnolo empurrou Oberdan pelo ombro e os dois foram embora pelo pátio já quase escuro, sem dizer uma
palavra. (Trad. Rosa A. Petraitis)
103
- ’O so, ’o so, - fece astuto il Riccetto, ce stavano pure io - . Alduccio
lo guardò con interesse. - Amerigo è morto, - disse. Il Riccetto s’alzò
a sedere puntando i gomiti e lo guardò in faccia. Gli angoli della
bocca gli tremavano come per un sorrisetto divertito; era una notizia
eccitante, e si sentiva tutto pieno di curiosità. - Ch’hai fatto? -
chiese. - È morto, è morto ripeAlduccio, contento di dare quella
notizia inaspettata. - È morto ieri ar Poricrinico, - aggiunse.
98
(p.
102)
Por fim, no romance, temos a morte focalizada de forma diferente, com
novos contornos narrativos; não é vista como algo superficial, indiferente às
personagens; agora, todos crescidos, apesar da profunda resignação, eles são
capazes de entender verdadeiramente o significado da morte, a “Iniludível”, como
a denomina o poeta brasileiro Manuel Bandeira.
Subito non si capitò, credeva che scherzassero; ma poi capì e si
buttò di corsa giù per la scesa, scivolando, ma nel tempo stesso
vedeva che non c’era più niente da fare: gettarsi al fiume sotto il
ponte voleva proprio dire esser stanchi della vita, nessuno
avrebbe potuto farcela. Si fermò pallido come un morto. Genesio
ormai non resisteva più, povero ragazzino, e sbateva in disordine
le braccia, ma sempre senza chiedere aiuto. Ogni tanto affondava
sotto il pelo della corrente e poi risortiva un poco più in basso;
finalmente quando era già quasi vicino al ponte, dove la corrente
si rompeva e schiumeggiava sugli scogli, andò sotto per l’ultima
volta, senza un grido, e si vede solo ancora per un poco affiorare
la sua testina nera.
99
(p. 253)
Não havia nada a fazer, a vida se perde entre as águas. Pasolini faz uso da
metáfora da Morte como forma de elevação dessas personagens a uma
98
Sei, sei”, fez Riccetto, astuto, “eu também estava lá”. Alduccio olhou-o com interesse e informou, seco:
“Amerigo morreu”. Riccettou sentou-se, apoiando-se nos cotovelos, e o encarou. Aquela era uma noticia
excitante, que o deixava cheio de curiosidade. “Que fez?”, perguntou.
“Morreu, morreu”, repetiu Alduccio, feliz por contar a novidade. Morreu ontem, na policlínica”, acrescentou.
(Trad. Rosa A. Petraitis)
99
A principio pensou que eles estivessem brincando, mas logo percebeu a situação e saiu correndo,
escorregando, mas percebendo que não havia mais nada a fazer: atirar-se no rio, ali embaixo da ponte, era o
mesmo que dizer “estou cansado da vida”; ninguém teria conseguido. Parou, pálido como um morto. Genésio
não resistia mais, coitado, e batia desordenadamente os braços, mas sem pedir socorro. De vez em
quando afundava para depois reaparecer um pouco mais abaixo; finalmente, quando estava quase perto
da ponte, onde a correnteza se quebrava e espumava sobre as pedras, submergiu pela última vez, sem um
grito.
104
redenção, talvez a única forma possível de salvação. Semelhante ao lento fluir do
rio Aniene é o fluir da vida dos meninos, e nada melhor do que metaforizar a
redenção com a vida que foge e se perde entre as águas do rio.
O mundo da exclusão foi também abordado por Pasolini através da
questão da segregação linguística. Nas obras tratadas neste trabalho, e ao longo
de sua vida, o artista fez veemente defesa dos dialetos na Itália, num período de
crescimento econômico acelerado e conseqüente desvalorização da cultura mais
primitiva (no sentido de original) presente no mundo dos falantes dialetais.
O ambiente onde foi filmado Accattone era o próprio espaço físico da
periferia romana, que conservava os valores das borgate. As personagens, em
seus diálogos, usam o dialeto romano, “la lingua parlata nelle borgate”.
O pequeno mundo das personagens retratadas conserva traços de uma
cultura única, que trazia consigo uma tradição antiga. Essa tradição se fazia
presente o somente pelos hábitos e modos de vida, mas, também, pelo uso da
linguagem dialetal. De certa forma, poderia ser a melhor maneira de demonstrar a
diferença entre o “mundo” da burguesia e o dos excluídos.
Em Ragazzi di vita, percebemos o tema da exclusão tratado da mesma
forma que em Accattone. Entretanto, no romance, é interessante notar que o
autor valoriza a distinção linguística através da reprodução de um dialeto filtrado
pela sua criatividade artística:
Spesse volte, se pedinato, sarei colto in qualche pizzeria di
Torpignattara, della Borgata Alessandrina, di Torre Maura o di
Pietralata, mentre su un foglio di carta annoto modi idiomatici, punte
espressive o vivaci, lessici gergali presi di prima mano delle bocche
dei <parlanti> fatti parlare apposta. Questo, naturalmente accade in
occasioni specifiche. Per esempio a un certo punto del racconto uno
dei miei personaggi ruba una valigia e qualche borsa: c’è un termine
gergale per indicare valigia o borsa? Come no! Valigia si dice
105
<cricca>, borsa <campana>: la refurtiva in genere, oltre che
<morto>, si dice <riboncia>, ecc. (invece che dire <ecc>, o <cose di
questo genere>, nel mio romanzo metterò sempre <e tanti
benedetti>, quando un non meno vivace <e tante belle cose>). Non
sempre questo materiale strumentale a livello bassissimo e
particolarissimo lo trascrivo direttamente: lo faccio solo nei casi in
cui mi presenti una difficoltà o una necessità stilistica a tavolino,
mentre scrivo tutto solo.
100
(PASOLINI, 1983: 212)
O denominado “dialeto romano” utilizado por Pasolini em seu romance
Ragazzi di vita é, na realidade, uma espécie de reconstituição artificial da língua
falada nas borgate, a partir de suas observações in loco, como se apreende do
trecho acima citado, quando o autor tentava criar uma língua que não pretendia
ser a reprodução exata do verdadeiro dialeto romano, mas, sim, uma “língua” de
natureza literária criada com vistas a “reconstruir” a realidade linguística das
periferias romanas dos anos 1940-50.
Pasolini sempre com a sua preocupação de defesa dos dialetos italianos
escreveu uma série de textos tratando desse argumento.
O dialeto é, para os protagonistas, uma arma de defesa, ou de ofensa, faz
parte de seu comportamento, é uma espécie de resgate cultural.
Nos ensaios de Pasolini, reunidos no livro Empirismo eretico, podemos ler
que existia na Itália dos anos 1960 um processo de perda e desvalorização
gradual dos falantes de dialetos. Tendência que vinha de várias décadas, pelo
100
Várias vezes, se procurado, seria encontrado plantado em alguma pizzaria da Torpignattara, da borgata
Alessandrina, da Torre Maura ou de Pietralata, enquanto em uma folha de papel anoto expressões
idiomáticas, pontos expressivos ou vivazes, gírias ouvidas em primeira mão da boca dos “falantes” feitos
falarem de propósito. Isto, naturalmente, acontece em ocasiões específicas. Por exemplo, a um certo ponto
da narrativa, uma das minhas personagens rouba uma pasta ou alguma bolsa: existe uma gíria para indicar
pasta ou bolsa? Como não! Pasta se diz cricca, bolsa campana: A negação em geral, além de morto, se diz
riboncia etc. (Ao invés de dizer etc, ou coisas do gênero, no meu romance colocarei sempre e tanti benedetti,
quando um não menos vivaz e tante belle cose). Nem sempre transcrevo diretamente esse material
instrumental, em nível baixíssimo e particularíssimo: o transcrevo somente nos casos nos quais me surge
uma dificuldade ou uma necessidade estilística à escrivaninha, enquanto escrevo tudo sozinho. (Tradução
nossa)
106
processo de imposição de uma língua padrão, o denominado italiano standard,
que objetivava a unificação linguística do país.
Esse mecanismo de imposição da língua através da educação escolar,
literária ou rádio-televisiva teve seus efeitos diretos no modo de agir e pensar dos
cidadãos italianos, como Pasolini detectou ao longo de seus estudos. O correto, o
desejável era o italiano padrão; não se deveria falar usando a sua língua materna
fora de casa. O dialeto esteve restrito ao ambiente familiar e, para o autor, era
inaceitável que línguas tão ricas, fonética e lexicalmente, fossem preteridas em
relação a um único modelo. Como ele diz:O dialeto ainda está cheio de riquezas
que, todavia, não se pode mais gastar, de jóias que não se pode mais ofertar”.
Essas jóias linguísticas não poderiam se perder no tempo. Era impossível calar-se
diante de tal processo, pois se tratava, a seu ver, de uma verdadeira tragédia.
A tragédia referida por Pasolini é, sem dúvida, irreparável e, felizmente,
não se concretizou por inteiro. Quando um italiano usa seu dialeto porta consigo
toda uma tradição, uma herança histórica que o marca, o delimita em um
determinado espaço geográfico e, às vezes, até mesmo em uma época histórica.
Em Ragazzi di vita e Accattone Pasolini podia apenas fazer uma
“representação simbólica” daquilo que via e ouvia. Sua narrativa trazia uma
reconstrução, uma espécie de apropriação do romanesco; enquanto seu filme
trazia a aproximação ao mundo real através da reprodução “exata” do dialeto de
Roma.
E, neste ponto, começamos a nos encaminhar para o segundo capítulo, no
qual continuaremos a tratar da passagem de Pasolini do romance ao cinema.
107
CAPÍTULO II
DO ROMANCE AO SET: A ADAPTAÇÃO
Quantos, muitas vezes, ao ouvirem a afirmação de que bons livros dão
filmes ruins e vice-versa, podem considerar que essa seja uma verdade absoluta?
Costumamos ouvir, por exemplo, que esta ou aquela obra é uma boa / má
adaptação de um determinado romance para o cinema. Não raro classificam: “o
romance é muito melhor do que o filme”. E nos perguntamos: essas são
considerações válidas, com fundamentação teórica, ou apenas diz respeito a
preferências do leitor / espectador? São indagações como essas que nos movem
a examinar a questão da adaptação / transposição de uma narrativa literária para
a fílmica, a partir do romance Ragazzi di Vita e do filme Accattone, ambos de
autoria de Pier Paolo Pasolini. Como tratar a adaptação no caso de Pasolini?
Vamos procurar responder neste capítulo ou, ao menos, sugerir possíveis
respostas.
2.1 Sobre a adaptação
Toda forma de arte, porém, nasce e vive de acordo com suas leis
particular. Quando as pessoas falam sobre as normas específicas
ao cinema, fazem-no em geral em comparação com a literatura. Na
minha opinião, é extremamente importante que a interação entre
cinema e literatura seja explorada e exposta o máximo possível,
para que as duas atividades possam afinal se separar e nunca
mais voltem a ser confundidas. Em quais aspectos a literatura e o
cinema são semelhantes e correlatos? O que os une? Acima de
tudo, a liberdade única, de que desfrutam os artistas de ambos os
campos, de escolher os elementos que desejam em meio ao que
lhes é oferecido pelo mundo real, e de organizá-los em sequência.
Esta definição pode parecer por demais ampla e genérica, mas ela
me parece abranger tudo o que de comum entre o cinema e a
literatura. Para além dela, as diferenças são irreconciliáveis, e
108
provêm da disparidade essencial entre o mundo e a imagem
reproduzida na tela, pois a diferença básica é que literatura recorre
às palavras para descrever o mundo, ao passo que o filme não
precisa usá-las: ele se manifesta diretamente a nós. (TARKOVSKI,
2002: 69-70)
A partir da definição de Andreaei Tarkovski, tem início a última sequência
deste trabalho, na qual refletiremos sobre a adaptação de romances em filmes, o
argomento più trattado circa il rapporto tra cinema e letteratura”, na opinião de
Giorgio Tinazzi (2007: 70).
Para se adaptar uma outra forma de arte para o cinema, primeiramente, se
deve ter uma espécie de "desrespeito" pelo autor da obra original. Qualquer forma
de arte é sempre única. Teatro, poesia, romance, cinema etc. são formas
diferentes e, assim, um roteiro adaptado no qual se tente manter as mesmas
qualidades de sua obra original esta destinado a torna-se uma obra
cinematograficamente “fraca”. Existe a necessidade de se criar novas cenas,
mudar outras e excluir algumas da obra original, aumentar ou diminuir o período
de tempo no qual passa a narrativa ou parte dela. Talvez a maior dificuldade na
adaptação, exceto no teatro, seja traduzir a voz do narrador.
Num romance, o narrador tem liberdade total para tecer qualquer
comentário, em qualquer momento da narrativa, podendo fazer várias
intervenções. Entretanto, em um roteiro cinematográfico percebemos que isso
não é possível. Se um romance estiver narrado em primeira pessoa, poderemos
adaptar trechos da sua narração com uma “voz em segundo plano”; se o
romance, porém, estiver narrado em terceira pessoa, esse mecanismo torna-se
mais complexo, entretanto, possível.
Deve-se notar que um roteiro é feito para ser "visto" pelo público e não
109
para ser "lido". Se o autor descreve, em um romance, de modo poético, o
sentimento de uma personagem ao perder seu melhor amigo, ao fazer o roteiro,
existe a necessidade de se passar para a “tela” esse sentimento de perda, de
morte, com imagens. Na narrativa, seria necessário apenas descrever com
palavras aquilo que a personagem está sentindo; ao passarmos esta “sensação”
para o cinema, se devem criar imagens capazes de transmitir esse sentimento.
Assim, é importante considerar que cada forma de arte tem suas características,
são diferentes, e que, por mais que apresentem certa interdependência, são
independentes entre si.
A polêmica sobre as adaptações de romances, famosos ou não, para o
cinema, existe desde as primeiras décadas, após a invenção da Sétima Arte, e,
ao longo do tempo, tem provocando divergências e algumas poucas conclusões.
Studiare i rapporti fra cinema e letteratura significa innanzi tutto
chiarire come la settima arte sia una forma di espressione che si
colloca in qualche modo a metà strada fra teatro e letteratura.
Come il teatro il cinema rappresenta, come la letteratura il cinema
narra (ci stiamo ovviamente riferendo al romanzo, o al racconto, e
al cinema di finzione)
101
. (CORTELLAZZO, 2006: 9)
As relações entre cinema e literatura estariam, em princípio, dependentes
das análises dos mecanismos diferentes ou iguais que as duas formas de arte
utilizam, ou seja, os elementos que elas possuem em comum ou não: na
literatura, as palavras escritas; no cinema, as imagens e sons.
Teorias acerca do processo de adaptação foram e continuam sendo
criadas por inúmeros críticos de cinema e/ou literatura. Podemos identificar
101
Estudar as relações entre cinema e literatura significa antes de tudo esclarecer como a sétima arte é uma
forma de expressão que se coloca de alguma forma na metade da estrada entre teatro e literatura. Como o
teatro, o cinema representa; como a literatura, o cinema narra (estamos obviamente nos referindo ao
romance, ou ao conto, e ao cinema de ficção). (Tradução nossa)
110
aqueles que defendem a idéia de que se deve seguir o mais próximo possível o
texto literário do qual se origina o roteiro; outros defendem o não respeito à obra
escrita e até mesmo a total ‘traição’ à base de inspiração. Podemos citar, como
exemplo, o caso de Giovanni Verga, que não concordou com a adaptação de seu
conto “Caccia al lupo”:
Scrivendo a Marco Praga, nel 1917, reagiva di fronte alla
“sintese” cui era stato sottoposto il suo racconto “Caccia al lupo”:
<io non posso firmare ne autorizzare col mio nome la
pubblicazione di questa sintesi e descrizione che hanno nulla da
vedere col mio lavoro quale esso sia, e lo trasformano anche in
parte! La cinematografia avrà anche le sue esigenze, come tu
dici, ma io ho pure quelle della mia coscienza artistica; [...]
102
(TINAZZI, 2007:14)
Enfim, cada autor pode, e deve agir da forma que melhor achar ao adaptar
um texto literário para um roteiro cinematográfico. Inúmeros elementos dificultam
esse tipo de transposição, pois o cinema se aproxima da literatura nas categorias
de: espaço, tempo, personagem etc. Entretanto, difere muito na forma de se
expressar, utilizando imagens e sons.
os que defendem a idéia de que um cineasta é, por vezes, um traidor
ao modificar ou, até menos, criar uma nova história a partir de uma inspiração
literária. Dessa forma, aquele que produz um filme que não represente fielmente o
enredo do livro seria logo chamado de “traidor” e seu filme não representaria
propriamente uma adaptação. Poderíamos até imaginar que alguns cineastas
fariam uso de romances famosos para, de certa forma, promoverem seus filmes.
É certo que um espectador que, de antemão, tenha lido um romance e vá ao
102
Escrevendo a Marco Praga, em 1917, reagia de frente à “síntese” a qual tinha sido submetida o seu conto
“Caça ao lobo”. <eu não posso assinar e nem autorizar com meu nome a publicação desta síntese e
descrição que não têm nada a ver com meu trabalho, qualquer que esse seja, e o transformam também em
parte! A cinematografia terá as suas exigências, como você diz, mas eu tenho também as exigências da
minha consciência artística; [...] (Tradução nossa)
111
cinema assistir a um filme baseado nesse eventual livro, buscará, certamente,
elementos que lhe permitam reconhecer aquela história na tela. E, na maioria das
vezes, esse espectador sairá decepcionado.
Na realidade, o cineasta jamais poderá ser chamado de “traidor”, porque
ele sempre é fiel a si mesmo, ou seja, ao adaptar um texto fará uma série de
escolhas de supressões, adições etc. E isso resultará em uma nova arte, em um
novo elemento de criação.
Outra questão, que se faz necessário esclarecer, é a diferença entre as
autorias. Ou melhor, sabemos que, na maior parte das vezes, o autor do livro que
inspirará um filme não será seu roteirista ou diretor e, consequentemente, ao
haver essa duplicidade de autores, nos defrontaremos com duas obras diversas,
apesar de terem semelhanças entre si.
São poucos os casos nos quais poderemos ver um “respeito” ao autor e às
características da obra literária; será natural encontrarmos especificidades que
distanciam uma obra escrita de uma obra fílmica. E, assim, por serem indivíduos
diferentes, o escritor e o roteirista, encontraremos sempre as escolhas pessoais
de cada um deles, em cada uma de suas respectivas criações.
O que poderíamos, então, dizer a respeito de Pasolini, que teve em
Ragazzi di vita e Una vita violenta, seus dois romances escritos em Roma, a fonte
de inspiração para escrever o roteiro e realizar seu primeiro filme, transformando-
o em uma obra distinta das anteriores?
Pasolini representa um dos raros casos em que o próprio autor literário se
aventura no campo cinematográfico. Dessa forma, o escritor-diretor teve a total
consciência de que narrar uma história num livro é totalmente diferente de se
112
narrar no cinema. Assim, pôde fazer uso de uma liberdade de criação que
surpreende todos aqueles que esperam do cinema uma espécie de recriação da
literatura. Sua obra nos permite afirmar que cinema é uma forma de arte distinta,
na qual se devem respeitar regras diferentes daquelas da literatura. Por exemplo,
quando Pasolini apresenta a personagem Riccetto, em Ragazzi di vita, ele faz uso
de uma série de descrições: os cabelos encaracolados, a pele queimada pelo sol,
as suas roupas ora limpas ora sujas, enfim, recorre a diversos adjetivos na
composição da personagem. E, sempre, cada leitor do romance de Pasolini
reconstrói um protagonista diferente. Assim, teríamos vários semelhantes Riccetti,
de acordo com a imaginação de cada um. No filme, o diretor pode cristalizar uma
única imagem; no caso de Accattone, para todos os espectadores, o que se
perpetua como rosto de Vittorio, o protagonista, é a imagem de Franco Citti, o ator
que o interpretou de forma brilhante.
Existem diferenças consideráveis entre narrar num livro e narrar num filme.
Uma que nos interessa, no caso de Pasolini, é aquela ligada ao tempo. Esse
artista, enquanto escritor de romances introduziu em Ragazzi di vita, apresentado
neste trabalho no item 1.2.1, uma espécie de “narrativa cinematográfica”, quando
fez uso, diversas vezes, das elipses; ou seja, os cortes na narrativa escrita
aparecem com objetivo de imprimir um ritmo, diríamos, “frenético” no romance.
em Accattone, filme a que nos dedicamos no item 1.2.2, Pasolini utiliza-se pouco
desse recurso, criando uma narrativa linear da breve história de Vittorio.
No cinema, a percepção do tempo é mais facilmente manipulada pela mão
criadora de seus autores, como lemos abaixo nas afirmativas de Martin (1990:
148-149):
113
De fato, o espectador não pode perceber as relações de duração
dos planos entre si, porque sua apreensão do tempo - como na
vida, de um modo geral - é puramente intuitiva, dado que não
nenhum sistema de referência científica à sua disposição durante
a projeção. Mas o problema da duração respectiva dos planos tem
uma extrema importância no momento da montagem, operação de
que depende a impressão final do espectador.
Assim, através do mecanismo da montagem de cenas, o diretor tem esse
poder de tentar mudar a percepção de cada espectador em relação ao tempo.
Dessa forma, uma série de quadros montados de maneira que cada um suceda o
outro em um intervalo de tempo menor irá causar uma sensação de “rapidez”. Ao
contrário, um intervalo de tempo maior entre os quadros terá a capacidade de
criar uma sensação de “lentidão”, técnica utilizada por Pasolini em Accattone.
Como Martin esclarece, a técnica da montagem sempre estará sujeita à
percepção individual do público (1990: 213):
“A experiência nos ensina”, escreveu Jean Epstein, “a distinguir
três tipos de dimensões, perpendiculares entre si, para que nos
orientemos comodamente no espaço, mas nos revela apenas, a
grosso modo, uma única dimensão de tempo. Isso faz com que
atribuamos ao tempo, ainda em termos genéricos, um sentido
rigorosamente único, como um fluxo entre o passado e o futuro...”.
De fato, o tempo é uma força irresistível e irreversível, pelo menos
o tempo objetivo e cientifico. Mas [...] o mesmo não acontece
quando o homem interroga sua percepção interior, cujas
informações confusas, diferentes e contraditórias permanecem
irredutíveis a uma medida exata comum. Muitas vezes, parece
inclusive não haver duração alguma para um espírito que se acha
absorvido pelo presente... A inconstância, a incerteza do tempo
vivido advêm do fato de que a duração do eu é percebido por um
sentido interior complexo, obtuso, impreciso: a cenestesia.
A percepção do tempo está nesse fluxo entre o passado e o futuro, como
visto acima. É algo irreversível” do ponto de vista da realidade concreta da vida.
Todavia, se pensarmos no lado subjetivo de nossa mente, o tempo pode variar e
tornar-se subjetivo. Dessa forma, valorizando-se essa característica psicológica
114
da percepção humana do tempo, temos as diversas técnicas de narrativa literária
ou fílmica nas quais somos levados a compreender a dimensão temporal criada
pelo autor. Assim como na narrativa de Accattone na qual vemos o sofrimento do
protagonista ou de Maddalena, por exemplo, aumentado, dilatado na nossa
percepção de tempo; um tempo “imóvel” dentro do universo seco da borgata:
Por sua vez, o ritmo nasce da sucessão de planos conforme suas
relações de duração (que, para o espectador, é a impressão de
duração determinada tanto pela duração real do plano quanto pelo
seu conteúdo dramático, mais ou menos envolvente) e de
tamanho (que se traduz por um choque psicológico tanto maior
quanto mais próximo for o plano). em 1925, Léon Moussinac
caracterizava muito bem o ritmo e seu papel: “as combinações
rítmicas resultantes da escolha e da ordem das imagens irão
provocar no espectador uma emoção complementar daquela
determinada pelo assunto filme... É do ritmo que a obra
cinematográfica obtém a ordem e proporção, sem o que não teria
as características de uma obra de arte” (Naissance du cinema, pp.
76-77). (MARTIN, 1990: 144)
Para Martin, a sucessão de planos feita no momento da montagem, como
já dito anteriormente, seria denominada ritmo, o elemento que exerce também um
papel importante para a apreensão do tempo num determinado filme. Então, além
da impressão de duração causada pela montagem dos planos, teríamos um outro
fator determinante para essa percepção temporal, o conteúdo dramático da cena
e o tamanho do plano, entendendo-se por este último nos diz Martin a
distância entre a câmera e o objeto e a duração focal da cena utilizada. A partir
disso, poderíamos afirmar que o conteúdo dramático também auxiliaria a
apreensão da duração do tempo e, ainda, o impacto psicológico causado pelo
enquadramento mais fechado. E, mais uma vez, podemos reconhecer nessa
descrição uma das técnicas utilizadas por Pasolini ao filmar Accattone, onde
detectamos essa valorização do conteúdo dramático e enquadramentos fechados:
115
na cena inicial, na qual vemos um aumento da tensão causada pela escolha de
Pasolini de criar o citado “choque psicológico”, com a tentativa de suicídio de
Vittorio, e a utilização de um foco fechado no rosto do protagonista. Técnica
repetida outras vezes ao longo do filme, como na cena derradeira, da morte de
Accattone.
Afirma Tinazzi ( 2007: 70):
È questo l’argomento più trattato circa il rapporto tra cinema e
letteratura. È l’aspetto più rilevante, non credo sia il più importante,
il rischio (o la tentazione) è comunque quello di ridurre a
quest’asse la complessità della reazione che, come si è cercato e
si cercherà di indicare, ha articolazioni e derivazioni complesse e
variegate. Qualcosa di analogo succede per altri linguaggi
espressivi: il rapporto tra cinema e pittura, per esempio, non può
ridursi alle influenze figurative nella messa in scena di un regista,
e meno ancora al gioco di citazioni o rimandi espliciti. [...]
Parimenti, il rapporto tra cinema e teatro non può limitarsi a
prendere in considerazione l’utilizzazione di un testo, e ancor
meno concludersi con una indagine su presenze o assenze di sue
parti, o - anche in questo caso - di <adattamenti>.
103
Podemos assimilar, nessas linhas, que a preocupação, de maneira geral,
restringe-se praticamente a pensar sobre as adaptações, reduzindo-se apenas e
somente a isso, sem tomar em consideração outros aspectos pertinentes às
relações existentes entre essas duas formas de arte, cinema e literatura:
Adattamento, per venire al termine più usato, pare privilegiare
l’adeguamento a un apparato consolidato, pressupone quindi
un’idea di cinema come sistema, con regole se non direttive
sintattiche. C’è poi chi ha parlato di appropriazione (Vanoye), di
103
É este o argumento mais tratado na relação entre cinema e literatura. É o aspecto mais relevante, não
acredito que seja o mais importante, o risco (ou a tentação) é de qualquer modo aquele de reduzir a este eixo
a complexidade das reações que, como se é procurado e se procurará indicar, tem articulações e derivações
complexas e variegadas. Algo de análogo acontece para as outras linguagens expressivas: a relação entre
cinema e pintura, por exemplo, não pode ser reduzida às influências figurativas na colocação em cena de um
diretor, e menos ainda ao jogo de citações ou notas explícitas. [...] Igualmente, a relação entre cinema e
teatro não pode limitar-se a levar em consideração a utilização de um texto, e ainda menos concluir-se com
uma pesquisa sobre presença a ausência de suas partes, ou - também neste caso - de <adaptação>.
(Tradução nossa)
116
trasformazione, di metamorfosi, di incrocio, altri addirittura di
distruzione necessaria, oppure - più arditamente - di plagio esibito
o autorizzato.
104
(TINAZZI, 2007: 71)
Tinazzi, como se acima, afirma que a adaptação privilegiaria adequação
a algo consolidado, e, nessa perspectiva, o cinema seria um sistema de regras
fixas. E, ainda, enumera alguns termos sobre essa questão como o de
metamorfose, destruição e plágio. Enfim, diante de várias acepções sobre esse
tema estamos novamente nos deparando com a falta de consenso entre diversos
estudiosos.
Di fronte al ventaglio di problematiche e di posizioni ci si rende
conto senza difficoltà che alcune vecchie questioni hanno perso di
consistenza, a partire da quella della fedeltà, che riduce
l’interferenza tra testi, con tutto ciò che significa sotto il profilo
teorico e analitico, a un confronto, che si muove tra la mera
comparazione (quel che resta, quel che è tolto, quel che è stato
modificato) e il riferimento a principi dai confini così ampi da
essere estremamente labili. Né sembra più produttiva la variante di
fedeltà allo <spirito> o all’<idea>, per non essere troppo tediosi ci
si può rifare all’ironia di Hitchcock, che nella nota intervista a
Truffaut ha detto: <Lei conosce sicuramente la storia delle due
capre che stanno mangiando le bobine di un film tratto da un Best-
seller e una capra dice all’altra “personalmente preferisco il
libro”>.
105
(TINAZZI, 2007: 73)
Para o estudioso, a questão da fidelidade ao romance, que é adaptado
como um filme, perdeu a sua consistência; ou melhor, é algo pouco produtivo
104
Adaptação, para chegar ao termo mais usado, parece privilegiar a adequação a um aparato consolidado,
pressupõe uma idéia de cinema como sistema, com regras se não diretivas sintáticas. Existe, também, quem
tenha falado de apropriação (Vanoye), de transformação, de metamorfose, de interseção; outros,
exatamente, de destruição necessária, ou - mais ousadamente - de plágio exibido ou autorizado. (Tradução
nossa)
105
Diante do leque de problemáticas e de posições, percebemos sem dificuldade que algumas velhas
questões perderam consistência, a partir daquela da fidelidade, que reduz a interferência entre textos, com
tudo aquilo que significa sob o perfil teórico e analítico, a um confronto, que se move entre a mera
comparação (aquilo que sobra, aquilo que é excluído, aquilo que foi modificado) e a referência aos princípios
dos limites tão amplos para serem extremamente fracos. Nem parece mais produtiva a variante da fidelidade
ao <espírito> ou à <idéia>, para não sermos muito entediantes podemos refazer a ironia de Hitchcock, que na
sua notável entrevista a Truffaut disse: <O senhor conhece certamente a história das duas cabras que estão
comendo uma bobina de um filme baseado num Best-seller e uma cabra diz para a outra: pessoalmente
prefiro o livro”>. (Tradução nossa)
117
para ser considerado diante de outras questões problemáticas. A fidelidade se
restringiria à possibilidade de se analisar o que consta no livro e não está no filme,
ou vice-versa. Assim, teríamos uma discussão meramente formal. Então,
podemos considerar que a opinião das pessoas que esperam sempre a
correspondência íntima entre a adaptação e o romance é inadequada e, assim,
estaríamos diante de algo pouco produtivo; como na ironia da frase de Hitchcock,
trata-se, apenas, de uma questão de escolha pessoal.
Pasolini, ao entrar para o mundo cinematográfico, queria encontrar uma
nova forma de expressão. Para ele a literatura já não bastava, não era suficiente:
Il <passaggio> al cinema è stato avvertito come sperimentazione
di una nuova tecnica non antitetica a quella della parola:
<l’esperienza cinematografica - ha detto in una intervista del 1962
- e quella letteraria non sono antitetiche. Direi, anzi, che esse
sono forme analoghe. Il desiderio di esprimermi atravesso il
cinema rientra nel mio bisogno di adottare una tecnica nuova, una
tecnica che rinnovi. Significa anche il desiderio di uscire
dall’ossessivo>. In realtà le <ossessioni> - cioè, più propriamente,
le costanti, un fondo resistente - non vengono abbandonate ma
riproposte nella nuova forma, in una osmosi del tutto personale.
106
(TINAZZI, 2007: 119)
A passagem para o cinema não foi uma tentativa de experimentar uma
nova técnica contraditória à literatura, como afirma Pasolini, e sim uma técnica na
qual ele encontrasse uma renovação, porque considerava as duas formas de arte
análogas. No cinema, o escritor parte para uma renovada forma de exprimir suas
idéias, levando para a tela o mundo que já havia retratado através de seus
romances.
106
A <passagem> para o cinema foi advertida como experimentação de uma nova técnica não contrária
àquela da palavra: <A experiência cinematográfica - disse numa entrevista de 1962 - e aquela literária não
são opostas. Diria, ao invés, que essas são formas análogas. O desejo de me exprimir através do cinema
entra na minha necessidade de adotar uma nova técnica, uma técnica que renove. Significa também o desejo
de sair do obsessivo>. Na realidade <obsessão> - isto é, propriamente, as constantes, um fundo resistente -
não vêm abandonadas, mas re-propostas na nova forma, numa osmose totalmente pessoal. (Tradução
nossa)
118
La sceneggiatura di Accattone (1961) viene pubblicata prima
ancora della presentazione del film, così come succede con il
seguente Mamma Roma (1962); in fondo è un modo di riaffermare
l’autonomia del testo scritto rispetto alla sua realizzazione. Questa
convinzione data da prima; in una lettera del 1959 scrive infatti,
riferendosi al lavoro fatto per Bolognini: <darò prima o poi a
Garzanti un racconto che si intitolerà La notte brava, e che sarà la
riduzione narrativa della sceneggiatura. Vero e proprio monstrum
delle nuove lettere>. Lo pubblicherà, sotto forma di sceneggiatura
senza le notazioni strettamente tecniche, nel 1965 in Alì dagli occhi
azzurri, assieme ad Accattone, Mamma Roma, e La ricotta.
107
(TINAZZI, 2007: 120)
Nesse trecho manifesta-se a vontade de Pasolini de querer distanciar o
texto escrito da realização fílmica. Ao publicar o roteiro de Accattone, antes
mesmo do seu lançamento, ele ratifica essa independência, de certa forma
desmitificando a idéia de interdependência entre roteiro e filme. Ou seja, talvez
quisesse mostrar que, ao concretizar um texto escrito em cenas, ou melhor, ao
transformar palavras em imagens, o diretor terá de fazer escolhas extremamente
pessoais, de corte, adaptações; além, é claro, das limitações do mundo real em
confronto ao mundo do imaginário do autor, entendendo isto como aquilo que não
pode ser perfeitamente representado em imagens.
Ainda pensando nessa questão, a da impossibilidade de concretização
exata do roteiro em imagens, podemos considerar a questão do tempo no cinema
em confronto com a literatura.
Lo stesso discurso vale per il tempo: in una frazione di secondo
possono trascorrere alcuni minuti o miglioni di anni - è la magia
dell’ellissi - così come dal presente è concesso saltare
provvisoriamente nel futuro (il flashforward) o tornare nel passato
107
O roteiro de Accattone (1961) foi publicado antes da apresentação do filme, assim como acontece com o
seguinte Mamma Roma (1962); no fundo é uma forma de reafirmar a autonomia do texto escrito em relação à
sua realização. Esta convicção data de antes; de fato, em uma carta de 1959, escreve, referindo-se ao
trabalho feito para Bolognini: <darei mais cedo ou mais tarde à Garzanti um conto que se intitulará A noite
brava, e que será a redução narrativa do roteiro. Verdadeiro mostrum das novas cartas>. Será publicado, sob
a forma de roteiro, sem as notações estritamente técnicas, em 1965, em Ali dos olhos azuis, juntamente com
Accattone, Mamma Roma, e A ricota. (Tradução nossa)
119
(il flashback). Questa sciolteza narrativa con cui il cinema tratta lo
spazio e il tempo è rintracciabile anche sul piano del rapporto fra
reale e immaginario: il montaggio è proprio uno degli strumenti con
cui il cinema può passare da un ordine di realtà a un altro, dal
realismo oggettivo delle cose così come sono, a quello soggettivo
del ricordo, del sogno, della fantasticheria, dell’allucinazione.
108
(CORTELLAZZO, 2006: 8)
No cinema, temos a possibilidade de fazer diversas passagens de tempo
de forma instantânea, como escreve Cortelazzo, uma fração de segundo pode
corresponder a minutos ou milhões de anos. Assim, utilizando desse recurso da
elipse de tempo, o autor cinematográfico pode movimentar sua narrativa da forma
que considerar melhor. Interessante, neste ponto, é fazer referência ao uso que
Pasolini faz dessa técnica cinematográfica em Ragazzi di vita, dando ao leitor a
sensação de que o tempo no romance corre de forma rápida; de uma página à
outra encontramos uma sucessão de supressões de imagens: figuras de estilo,
frases curtas, uma descrição é intercalada por uma outra e, por sua vez, de uma
outra, e assim por diante. Essa técnica foi praticamente abolida em Accattone,
onde as cenas são lentas, como já foi dito anteriormente.
Anche per il comune spettatore partire dal romanzo o partire dal
film può dare vita a risultati diversi. A volte, spinti ad andare a
vedere un film per aver letto e apprezzato l’opera letteraria da cui
è stato tratto, si rimane delusi dal risultato finale: nella concretezza
dell’espressione cinematografica, i personaggi, gli ambienti e le
situazioni sembrano tradire il modo in cui ce li si era immaginati
durante la lettura del testo. La conclusione è ancora la stessa: <Il
romanzo è un’altra cosa>.
109
(CORTELLAZZO, 2006: 13)
108
O mesmo discurso serve para o tempo: numa fração de segundo podem transcorrer alguns minutos ou
milhões de anos - é a magia da elipse - assim como do presente é permitido saltar repentinamente para o
futuro (o flashforward) ou retornar ao passado (o flashback). Esta mobilidade narrativa com a qual o cinema
trata o espaço e o tempo é retomada também sobre o plano da relação entre real e imaginário: a montagem é
um dos instrumentos com o qual o cinema pode passar de uma ordem de realidade a uma outra, do realismo
objetivo das coisas, assim como são, àquele subjetivo da recordação, do sonho, da fantasia, da alucinação.
(Tradução nossa)
109
Mesmo para o espectador comum, partir do romance ou partir do filme pode dar vida a resultados
diferentes. Às vezes, impelidos a ir ver um filme por terem lido e apreciado a obra literária da qual foi extraído,
ficam desiludidos com o resultado final: na concretude da expressão cinematográfica, os personagens, os
ambientes e as situações parecem trair o modo pelo qual eram imaginados durante a leitura do texto. A
120
No trecho acima, voltamos à discussão inicial, sobre a expectativa do
público ao ir assistir um filme, esperando encontrar nele a representação exata
daquilo que ele, público, havia imaginado ao ler um determinado romance. É
lógico que, com a concretização das imagens vistas no cinema, o espectador
nunca encontrará as figuras criadas em sua imaginação, quando da leitura do
romance. O mesmo não acontece quando se vê um filme e depois se lê o
romance, em relação às imagens, porque o cinema tem esse “poder” de
concretizar e fixar figuras em nossa mente e a tendência sempre será a de manter
um rosto, um cenário na nossa imaginação.
Temos, então, de pensar na adaptação como um mecanismo que busca
encontrar as operações necessárias para esse processo e não apenas como uma
forma de equivalência entre romance e filme.
In questa prospettiva il testo scritto è visto come un insieme di
istruzioni e dati (concernenti un universo diegetico fatto di
ambienti, personaggi, azioni, sentimenti, tematiche, un certo
ordine strutturale, prospettive narrative e così via) che la
realizzazione filmica può più o meno utilizzare a partire da quelli
che da una parte sono i suoi vincoli di linguaggio (in sostanza
quello che un romanzo può fare a un film e un film non può fare e
viceversa) e dall’altra le scelte estetiche, espressive e semantiche
dell’autore, o degli autori, del film (nel caso dell’adattamento il
lavoro dello sceneggiatore gioca infatti un ruolo di primissimo
piano)
110
. (CORTELLAZZO, 2006: 15)
Podemos, também, tecer considerações sobre o que significaria
verdadeiramente a passagem do texto escrito para um filme. Assim, a partir da
conclusão é ainda a mesma: <o romance é uma outra coisa>. (Tradução nossa)
110
Nesta perspectiva o texto escrito é visto como um conjunto de instruções e dados (concernentes a um
universo diegético constituído de ambientes, personagens, ações, sentimentos, temáticas, uma certa ordem
estrutural, perspectivas narrativas, e assim por diante) que a realização fílmica pode mais ou menos utilizar a
partir daquilo que por um lado são os seus vínculos de linguagem (em suma, aquilo que um romance pode
fazer a um filme e um filme não pode fazer e vice-versa) e de outro, os dos autores, do filme (no caso da
adaptação o trabalho do roteirista joga de fato com um papel de primeiríssimo plano). (Tradução nossa)
121
afirmação de Cortellazzo, o texto escrito seria um conjunto de instruções e dados
que guiaria os autores. Contudo, mostrando aquilo que se pode utilizar ou não e,
por fim, aquilo que seria decisivo na questão da adaptação, ou melhor, as
escolhas pessoais de cada roteirista e de cada diretor.
A escolha do que deve ou não ser utilizado feita pelo autor do filme é
bastante importante, pois o principio da subtração ou adição é algo que recria ou
cria uma obra com características próprias, ou seja, mesmo sendo um mecanismo
necessário, na maior parte das vezes, essas escolhas nos colocam diante de uma
nova leitura da obra literária e, consequentemente, diante de uma outra visão da
mesma história.
Il principio della sottrazione è dunque quello che ci invita a
prendere in considerazione cosa c’è nell’opera letteraria e non c’è
nel film (siano essi personaggi, eventi, luoghi, dialoghi, riflessioni e
così via). Sottrarre qualcosa a un romanzo - per quanto questa
possa essere in alcuni casi una scelta obbligata - è già
evidentemente un modo di proporre una lettura di quel romanzo:
eliminare un dato elemento significa infatti considerare altri suoi
elementi più significativi.
111
(CORTELLAZZO, 2006: 22)
Mais adiante, Cortelazzo nos esclarece o mecanismo de adição, que
significaria, mais diretamente, as escolhas do autor ou autores fílmicos; ou
melhor, aquilo que existe no filme e não no romance. A autora nos mostra que no
caso da subtração, mesmo que o autor insira elementos da narrativa literária no
filme, este não será diminuído; uma adaptação nunca é apenas uma redução e,
sim, uma reconstrução com características próprias que difere, na maioria das
111
O princípio da subtração é, portanto, aquele que nos convida a levar em consideração o que tem na obra
literária e não tem no filme (sejam as personagens, eventos, lugares, diálogos, reflexões etc.). Subtrair algo a
um romance mesmo que, em alguns casos, seja uma escolha obrigatória é, evidentemente, um modo de
propor uma leitura daquele romance: eliminar um dado elemento significa, de fato, considerar outros de seus
elementos significativos. (Tradução nossa)
122
vezes, da obra literária. Afirma (Ibidem: 22): Sul versante opposto della
sottrazione, troviamo l’addizione, ovvero ciò che trovo nel film e non nel testo
adattato. Un addatamento non è mai semplicemente una riduzione, anche se c’è
meno, c’è comunque sempre qualcosa di più
112
.
Enfim, podemos afirmar que o mecanismo da adaptação de um romance
para as telas do cinema é algo que denota, inerentemente, as escolhas de cada
roteirista. Dessa forma, a percepção comum de que o filme deve ter todos e os
mesmos elementos contidos no romance que o inspirou é pouco aplicável. Daí, a
idéia de distanciamento passa a ser a mais utilizada pelos autores com o intuito
de criar uma obra que represente as suas características de artistas. Não existe a
adaptação “fiel” de uma obra literária para o cinema. Nem no caso particular de
Pasolini romancista, roteirista e diretor dos próprios filmes encontramos essa
transposição “fiel” da narrativa literária para a fílmica. Ao produzir Accattone,
Pasolini não se traiu e nem, tampouco, construiu uma obra descaracterizada;
encontrou, sim, uma nova forma de expressão na qual pôde representar,
novamente, o mundo da borgata.
2.2 Sobre o tempo e a narrativa
Na forma de que o cinema imprime o tempo? Digamos que na
forma de evento concreto. E um evento concreto pode ser
constituído por um acontecimento, uma pessoa que se move ou
qualquer objeto material; além disso, o objeto pode ser
112
Do lado oposto à subtração, encontramos a adição, ou seja, aquilo que encontro no filme e não no texto
adaptado. Uma adaptação nunca é simplesmente uma redução, mesmo que tenha menos, tem sempre, de
qualquer forma, algo a mais. (Tradução nossa)
123
apresentado como imóvel e estático, contanto que essa imobilidade
exista no curso real do tempo.
É aí que se devem buscar as raízes do caráter específico do
cinema. Na música, sem dúvida, a questão do tempo também é
fundamental, embora sua solução seja bem diferente: a força vital
da música materializa-se no limiar do seu total desaparecimento. A
força do cinema, porém, reside no fato de ele se apropriar do
tempo, junto com aquela realidade material à qual ele está
indissoluvelmente ligado, e que nos cerca dia após dia e hora após
hora. (TARKOVSKI, 2002: 71-72)
A questão do tempo chama a atenção de quem assiste Accattone, pois é o
elemento que marca grande parte da magia do filme. Logo de início, é a sensação
psicológica do lento passar do tempo que nos chama a atenção, nos remetendo
para um mundo particular onde as personagens vivem sem a consciência de que
existia tão perto deles uma forma diferente de se viver, o da burguesia, que trazia
consigo outra possibilidade de encarar a vida, uma maneira veloz de viver, na
qual “tempo é dinheiro”. Entretanto, essas personagens de Accattone não
estavam, ainda, inseridas nessa nova realidade; o tempo delas era outro, o tempo
de uma breve vida, de uma luta cotidiana pela sobrevivência.
O filme inicia-se com diálogos rápidos, a partir de uma discussão entre as
personagens. Esse tipo de recurso, o de falas rápidas, aparecerá poucas vezes
ao longo da narrativa. Os diálogos, na maioria das vezes, sempre serão feitos de
forma lenta ou, ao menos, dando uma sensação de lentidão para quem os ouve.
Na cena seguinte à inicial, vemos um contraste entre a velocidade das falas das
personagens; saindo de uma imagem “agitada” pela força dos diálogos partimos
para uma cena onde o tempo não é tão percebido, ou seja, passa como
coadjuvante para aqueles “sem esperança” da borgata. Logo, é focalizada a cena
de um almoço onde os rapazes conversam e brincam sem nenhuma espécie de
124
compromisso. A conversa calma marca o desafio imposto a Vittorio, de pular nas
águas do rio para comprovar que não se morre de indigestão. O salto se realiza
enquanto ouvimos, ao fundo, o badalar dos sinos, que marcam a aventura
irresponsável de Accattone.
O mundo das borgate é um mundo onde tudo passa lentamente ou,
diríamos, que quase não passa. Essa estagnação temporal é valorizada a todo
tempo pelo cineasta. O lento caminhar das personagens é uma dessas marcas.
Ninguém se interessa por apressar-se; o ritmo do caminhar é o mesmo ritmo de
suas vidas.
Numa das cenas, onde é enquadrado o local de trabalho das prostitutas
um local sujo e mal-iluminado, demonstrando uma degradação das condições de
vida –, se vê, ao fundo, um símbolo da modernidade: o prédio de uma indústria.
Em outra seqüência, carros passam em alta velocidade, contrastando com a
longa espera das mulheres por um eventual cliente. Quando Maddalena encontra
alguns fregueses, é levada para um local mais ermo ainda e, enquanto os
contratantes (os napolitanos amigos de Vittorio) de seus serviços sexuais
esperam a vez de atendimento, vemos suas imagens numa única tomada de
câmera, que vai de um rosto a outro, lentamente, num movimento suave. Ao fim
da cena, Maddalena é surrada, agredida ao som de latidos de cães. Deixada no
chão, sofre uma humilhação ainda maior do que aquela de ter de se fazer
sustentar através da prostituição.
Em outra cena, ao amanhecer, um dos amigos de Vittorio canta um verso
do hino italiano LItalia s’è desta”, numa clara referência irônica ao modo de vida
deles, visto que, de nenhuma forma, eles estariam “acordados” para a própria
125
realidade. Somente as crianças são vivazes, talvez numa representação
metafórica da esperança de mudança, no futuro. Enquanto os adultos estão
estagnados, elas correm no meio da poeira e ao degrado das ruínas, de prédios
sujos, casebres, barracos. Brincam. Com a imagem das crianças, podemos
acreditar que o cineasta tenha querido transmitir a idéia de que haveria um
caminho diferente para a nova geração que ali estava.
Quando Vittorio é levado à delegacia, para a sessão de reconhecimento
dos agressores de Maddalena, ele permanece lentas horas à espera do início de
tal procedimento; o tempo é ocioso, a luz é valorizada num ambiente seco e
quente de uma sala simples, na dura vida de uma delegacia.
Logo após a prisão de Maddalena, Vittorio sem muita opção de
sobrevivência decide vender seu anel para ter alguma forma de manter-se
provisoriamente. Assim, no ato da discussão sobre a venda da jóia, um de seus
colegas diz: “Accattone escute aquilo que te diz o profeta! Hoje vende o anel,
amanhã o cordão... Daqui a sete dias também o relógio e daqui a setenta e sete
dias não te restarão nem mesmo olhos pra chorar!”. -se que a referência ao
destino inevitável de Accattone é clara nessa citação. O sucumbir de Vittorio é
uma questão de tempo.
Entretanto, as esperanças de Vittorio se renovam ao conhecer Stella; logo
se interessa pela bela mulher que trabalha duramente lavando garrafas, num
trabalho mal pago e de certa forma desumano. Pergunta se é um trabalho
cansativo e Stella responde que “tudo é uma questão de hábito”. Logo, indaga: “A
pagam bem?” Ela responde: “o suficiente pra não morrermos de fome!”.
126
A fome é um dos elementos que marcam a vida das personagens. Na
sequência em que Vittorio, depois de conseguir um pouco de macarrão junto à
assistência social da Igreja, e leva-lo para ser preparado na casa de um de seus
amigos, enquanto espera, reflete sobre o significado da fome e pergunta a um
menino: “quem te ensinou a comer?”. Dessa forma, ele tentar encontrar um
“culpado” pelo sofrimento daquelas pessoas, como se verdadeiramente existisse
um responsável pela fome, ignorando as necessidades básicas para a
sobrevivência humana. Percebemos que Vittorio tenta sair da resignação
permanente para um momento de ponderação da sua condição de vida; se existe
um responsável por tê-lo ensinado a magnà conseqüentemente a sua dor é fruto
de um feito de terceiros e, assim, ele poderia, a partir dessa observação simples,
ter uma espécie de consciência da sua condição de miséria.
Accattone, apesar das condições péssimas de sobrevivência, busca manter
viva a sua individualidade e vaidade. Se existem vários Vittori, ele busca alcançar
o respeito e certo status social através de seu apelido que, segundo ele, é único.
O protagonista exibe todo o tempo essa vaidade e orgulho em ser o que é; para
ele, não é indigno ser sustentado através da exploração da prostituição de
mulheres. Porém, é mais indigno dar seu sangue para enriquecer terceiros
através da exploração de seu trabalho. Quando conhece Stella está mais pobre
do que nunca, que sua Maddalena tinha sido presa e ele perdera sua fonte de
sustento. Perde seus cordões, pulseiras de ouro e seu carro e, para ele, isso era
terrível: um homem como ele, que sempre estivera “bem vestido”, não poderia
aceitar uma forma de vida miserável.
127
Stella também não demonstra esperança, porque quem entrasse para o
mundo da prostituição não conseguiria sair de lá nunca mais. Se a vida de miséria
do protagonista aparece como um caminho sem volta, a vida das mulheres
exploradas também não tem retorno: uma vez inseridas nesse meio, elas
estariam condenadas a ali morrer.
Passemos, agora, à fala das personagens. Afirma Martin (1990: 176):
Se já seria arbitrário dublar atores franceses em italiano,
subtraindo a cor nacional específica a um diálogo, nada é mais
catastrófico que a dublagem de filmes italianos, privando-lhes do
ritmo rápido e da tonalidade cantada que fazem o charme da
língua de Dante, sem falar da incompatibilidade entre a mímica
gestual italiana [...]. O respeito à língua nacional é uma questão
de honestidade e, ao mesmo tempo, uma prova de inteligência
dramática; com efeito o fato de os personagens falarem sua
língua materna aumenta consideravelmente a credibilidade da
história e possibilita cenas de impressionante simbolismo [...]
A partir das afirmações de Martin, podemos refletir um pouco sobre a
escolha feita por Pasolini em relação à fala das personagens de Accattone. Ao
escolher atores não profissionais e habitantes do próprio meio social das borgate,
o cineasta buscou valorizar as características próprias daquela cultura. Somente
assim ele poderia aproximar o espectador àquela realidade lingüística; o dialeto
que ouvimos é o mesmo que era falado na periferia de Roma nos anos 1950, nos
dando a impressão de que recebemos uma representação da realidade a mais
honesta possível, aumentando, como citado acima, a credibilidade da história.
Mas se o passado se integra perfeitamente no presente de nossa
consciência, nem sempre o mesmo é possível em relação ao
futuro, já que este em princípio nos é desconhecido. Todavia
alguns cineastas tentaram, e às vezes com êxito, essa
intromissão.
Pode ser o caso, inicialmente, de um futuro real e objetivo
(histórico). [...] Mas tamm pode ser o caso de um futuro
imaginado (temido ou esperado) por um personagem. [...]
Em geral este futuro antecipado é desmentido pelo
128
acontecimento, por razões dramáticas. Mas também pode ser
confirmado pela seqüência da ação, passando do imaginário
projetivo à realidade em ato. (MARTIN, 1990: 233)
Durante todo o filme, vemos apenas um momento no qual Pasolini opta por
fazer um movimento no tempo: quando Vittorio sonha com seu próprio funeral.
Esta cena, descrita anteriormente, antecipa o destino de Vittorio. Como
lemos nas palavras de Martin, esse é o futuro esperado e temido pelo
protagonista. É a sua imaginação que o faz prever aquilo que a vida lhe
reservava; através da imagem onírica ele foi capaz de antecipar seu caminho
inevitável.
“Uma obra-prima só adquire vida quando o artista é inteiramente sincero no
tratamento que ao seu material”. Com esta afirmação de Tarkovski, nos
encaminhamos para as considerações finais, reafirmando a sinceridade de
Pasolini no seu fazer poético. Manteve-se, fiel, sempre, aos valores nos quais
acreditava e os procurou mostrar através de sua arte.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exame da produção poética de Pier Paolo Pasolini especialmente do
romance Ragazzi di vita e do filme Accattone nos possibilitou refletir sobre a
questão da adaptação de obras literárias em fílmicas e focalizar o tema do tempo
na narrativa. Também, e principalmente, nos permitiu percorrer o espaço
geográfico mimetizado em várias obras produzidas por esse multifacetado artista,
o da borgata romana.
Às periferias romanas dos anos 1950 e aos seus habitantes, Pasolini
dedica a sua atenção, procurando representar aqueles ambientes degradados,
abandonados, sujos, “primitivos” como costumava dizer, a “Roma africana”, na
qual as pessoas, desesperançadas, tristes, soturnas, viviam abandonadas à
própria sorte, sem esperança de um futuro melhor.
Descreve, com minúcias, na narrativa literária e também na fílmica, aqueles
lugares da Roma pós-guerra, pobre, corrompida, lugares que conheceu de perto,
de dentro, quando se mudara para a Cidade Eterna e se estabelecera em uma
borgata, por falta de recursos financeiros.
Via na borgata o lugar da “autenticidade”, ou seja, onde as pessoas ainda
conseguiam manifestar verdadeiramente seus instintos, sem a simulação /
dissimulação encontrada no mundo burguês, que era alvo de suas mais
veementes críticas.
Procurava valorizar os dialetos italianos, que desapareciam, naqueles
anos, em conseqüência de uma política equivocada do Estado, que impunha um
130
italiano instrumental, oficial, e aniquilava as diversas línguas locais existentes na
Itália.
Deixou sua digital em várias áreas do saber, construindo uma obra de
muitas vozes, todas clamando pela Poesia.
Grande Maestro, Pasolini soube criar um arranjo harmonioso para sua
vasta obra poética. Sua passagem da Literatura para o Cinema transcorreu de
forma gradual e com harmonia. Seus primeiros romances de sucesso Ragazzi
di vita e Una vita violenta ecoaram em seu primeiro filme, Accattone, e assim
sucessivamente.
Sendo escritor e cineasta, nos facultou refletir sobre a polêmica questão da
transposição / adaptação de uma obra literária para fílmica e afirmar que
Literatura e Cinema são formas distintas de Arte e que não procede a exigência
de fidelidade do cineasta ao romancista, como exemplificamos a partir do
confronto entre Ragazzi di vita e Accattone.
Enfim, na nossa conclusão ou FINE, revelamos nossa pretensão de que
este trabalho possa aportar alguma contribuição aos estudos referentes à obra
poética de Pier Paolo Pasolini e, também, à relação Literatura-Cinema.
131
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBANO, Lucilla (Org.). Il racconto tra cinema e letteratura. Roma: Buzoni,
1997.
ALIGHIERI, Dante. La divina commedia. Trad. Xavier Pinheiro. Rio de Janeiro:
Edições de Ouro, 1963.
_______. Inferno. Lectura Dantis Scaligera. Firenze: Le monnier, 1971.
AMIGONI, Ferdinando. Il modo mimetico-realistico. Bari: Laterza, 2001.
AVERBUCK, Ligia. “A propósito de literatura e outras formas (narrativas) de nosso
tempo”. In: ___. (Org.) Literatura em tempo de cultura de massa. São Paulo:
Nobel, 1984.
BAZIN, André. O cinema. Ensaios. Trad. Eloísa de Araújo Ribeiro. o Paulo:
Brasiliense, 1991.
BARTHES, Roland. “O efeito do real”. In: BERSANI, L. [et Al.]. Literatura e
realidade: (que é realismo?). Trad.: Tereza Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1984.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. ed. São Paulo:
Brasiliense,1993.
BERNARDELLI. Andrea. La narrazione. 4ª ed. Milão: Laterza, 2006.
BURNISTON, S.; WEEDON, C.. “Ideologia, subjetividade e o texto literário”. In:
HALL, Stuart [et Al.] Da ideologia. Trad.: Rita Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.
CANDIDO, Antonio [et Al.]. A personagem de ficção. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1985.
CAROCCI, Giampiero. Storia dell’Italia moderna. Dal 1861 ai nostri giorni. Milão:
Newton Compton, 1995.
CORDAZZO, Isadora. “Accattone” di Pasolini. Dal testo al film. Bolonha:
Edizioni Pedragon, 2008.
CORINTI, Alessandro. La forma mutante. Il corpo e La rivoluzione
antropologica Pasoliniana. Pasian di Prato, UD: Campanotto Editore, 2008.
CORTELLAZZO, S.; TOMASI, D.. Letteratura e cinema. Bari: Laterza, 2006.
COUTINHO, Evaldo. A imagem autônoma. São Paulo: Perspectiva, 1996.
132
D’AVACK, Massimo. Cinema e letteratura. Roma: Canesi, 1964.
DE CAROLIS, Luciano. Pasolini e il cinema. Firenze: Atheneum, 2008.
EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma Introdução. o Paulo: Martins
Fontes, 2001.
Estéticas do cinema / Seleção, apresentação e notas de Eduardo Geada.
Publicações Dom Quixote. Lisboa 1985.
FERRERO, Adelio. Il cinema de Pier Paolo Pasolini. Veneza: Marsilio editori,
2005.
FERRONI, G. Storia della letteratura italiana. Firenze: Einaudi, 2001.
KOVARSKI, Laura Salmon (Org.) Letteratura e cinema. La trasposizione.
Bolonha: Clueb, 1996.
LAHUD, Michel. A vida clara. Linguagens e realidade segundo Pasolini.
Campinas, SP: Ed. da UNICAMP; São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
MANACORDA, Giuliano. Storia della letteratura italiana contemporanea (1940-
1965). Roma: Editori Riuniti, 1967.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
MARTINI, Daisy. L’Accattone di Pier Paolo Pasolini. In: Cinema Nuovo, n. 150,
março-abril, 1961.
PASOLINI, P. P. Accattone. 1961. DVD. Versátil Homevideo.
_____. Empirismo eretico. Milão: Garzanti, 1972.
_____. Os jovens infelizes. Antologia de ensaios corsários. Org.: Michel
Lahud. Trad.: Michel Lahud e Maria B. Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990.
_____. Meninos da vida. Trad.: Rosa A. Petraitis. São Paulo: Brasiliense, 1985.
_____. Poesia in forma di rosa. Milão: Garzanti, 1964.
_____. Ragazzi di vita. Milão: Garzanti, 1976.
_____. Ragazzi di vita. Turim: Einaudi, 1983.
PASOLINI, P.P. Scritti corsari. 2ª ed. Milão: Garzanti, 1991.
133
PASOLINI, P.P. Una vita violenta. Garzanti. 1ª ed. Milano. 1988.
P. P. Pasolini (colloquio con). Una visione del mondo epico-religiosa. In: Bianco e
Nero, n. 6, Junho de 1964.
POUILLON, Jean. O tempo no romance. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São
Paulo: Cultrix; EDUSP, 1974.
REIS, Carlos. Técnicas de análise textual. 3ª ed. Ver. Coimbra: Almedina, 1981.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de narratologia. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2000.
REPETTO, Antonino. Invito al cinema di Pasolini. Milano: Mursia, 1998.
RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Tomo I. Trad. Constança Marcondes César.
Campinas, SP: Papirus, 1994.
RIMBAUD, Jean Nicolas Arthur. Œuvres poétiques d’Arthur Rimbaud.
Cronologie et préface par Michel Décaudin. Garnier-Flammarion. Paris, 1964.
ROSA, Alberto Asor. Sintesi di Storia della Letteratura Italiana. Firenze: La
Nuova Italia, 1981.
_____. Scrittori e popoli. Roma: Samonà e Savelli, 1965.
SAID, Eduard. Reflexões sobre o exílio. Companhia das Letras. São Paulo,
2003.
SALINARI, C. - RICCI, C. Storia della letteratura italiana. Bari: Laterza, 1980.
SANTOS, Maria Lizete. O Evangelho Segundo Mateus lido por Pasolini. In: Anais
do XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, interações,
convergências. São Paulo, USP, julho de 2008.
______. Paixão e perversão: emblemas de uma vida em forma de Poesia. Rio de
Janeiro: F.L./UFRJ, 1993. Dissertação de Mestrado.
_____. Poesia: o lugar do indizível em Pier Paolo Pasolini. Rio de Janeiro:
UFRJ/ F.L., 2001. Tese de Doutorado.
SEGRE, Cesare. Avviamento all'analisi del testo letterario. Torino: Einaldi.
1985.
134
SEGRE, Cesare. Introdução à análise do texto literário. Lisboa: Estampa,
1999.
______. Tempo di bilanci. Turim: Einaudi, 2005.
SILVA, Vitor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 2ª ed. Coimbra: Almedina,
1968.
SINOPOLI, A. C. Di Franca; TATTI, Silvia. I confini della scrittura. Il dispatrio
nei testi letterari. Isernia: Iannone, 2005.
TARKOVSKI, Andreaei Arsensevich. Esculpir o tempo. Trad. Jefferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
TINAZZI, Giorgio. La scrittura e lo sguardo. Cinema e letteratura. Veneza:
Marsilio, 2007.
Dicionários:
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa /
Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado no Instituto de Lexicografia e
Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. - Rio de janeiro: Objetiva, 2001.
IL NUOVO DIZIONARIO ITALIANO GARZANTI. Milão: Garzanti, 1984.
LO ZINGARELLI. Vocabolario della Lingua Italiana. 12ª ed. / Org. Miro Dogliotti e
Luigi Rosiello. Bolonha: Zanichelli, 1999.
135
ANEXO:
Inventário da obra artística de Pier Paolo Pasolini (não registramos as publicações
em revistas, visto que demandaria uma pesquisa in loco):
Narrativa:
1 Ragazzi di vita, 1955
2 Una vita violenta, 1959
3 Atti impuri, Amado mio, 1982
4 Il sogno di una cosa, 1962
5 Alì dagli occhi azzurri, 1965
6 Teorema, 1968
7 La divina Mimesis, 1975
8 Un paese di temporali e di primule, 1993
9 Romàns, 1994
10 Storie della città di Dio. Racconti e cronache romane 1950-1966
11 Petrolio, 1992
Poesia:
1 Poesia a Casarsa, 1942
2 Poesie, 1945
3 I diarii, 1945
4 I pianti, 1946
5 Dov’è la mia patria, 1949
6 Tal còur di un frut, 1953
7 La meglio gioventù, 1954
8 Il canto popolare, 1954
9 Dal diario, 1954
10 Le ceneri di Gramsci, 1957
11 L’usignolo della chiesa cattolica, 1958
12 Roma 1950, 1960
13 Sonetto primaverile, 1960
14 La religione del mio tempo, 1961
15 Poesia in forma di rosa, 1964
16 Poesie dimenticate, 1965
17 Trasumanar e organizzar, 1971
18 La nuova gioventù, 1975
Antologie:
1 Poesie, 1970
2 Le poesie, 1975
136
3 Poesie e pagine ritrovate, 1980
4 Per conoscere Pasolini, 1981
5 Sette poesie e due lettere, 1985
6 Pier Paolo Pasolini, “Una vita futura”, 1985
Filmografia:
1 Accattone, 1961
2 La commare seca, 1962
3 Mamma Roma, 1962
4 La ricotta (episódio de Rogopag) 1963
5 La rabbia, (1
a
parte), 1963-4
6 Il vangelo secondo Matteo, 1964
7 Comizi d’amore, 1965
8 Alì dagli occhi azzurri (La notte brava), 1965
9 Uccellacci e uccellini, 1966
10 Edipo Re, 1967
11 La terra vista dalla luna (episódio de Le streghe), 1967
12 Che cosa sono le nuvole (episódio de Capriccio all’italiana), 1967-8
13 Teorema , 1968
14 Porcile , 1969
15 Medea, 1970
16 Ostia, 1971
17 Il Decameron, 1971
18 I racconti di Canterbury, 1972
19 Il fiore delle mille e una notte, 1974
20 Salò o le 120 giornate di Sodoma , 1975
21 Il padre selvaggio, 1975
22 San Paolo, 1977
23 I promessi sposi, 1986
Ensaios e entrevistas:
1 La poesia dialettale del novecento, 1952
2 Canzoniere italiano. Antologia della poesia popolare. 1955
3 Passione e ideologia, 1960
4 L’odore dell’India, 1962
5 Empirismo eretico, 1972
6 Scritti corsari, 1975
7 Lettere luterane, 1976
8 Volgar’eloquio, 1976
9 Le belle bandiere, 1977
10 Il caos, 1979
11 Descrizioni di descrizioni, 1979
12 Il sogno del centauro, 1983
137
13 Il portico della morte, 1988
Teatro:
Traduções:
1 L’Orestiade, de Ésquilo, 1960
2 Il Vantone, de Plauto, 1963
Obras:
1 Orgia, 1968
2 Caldéron, 1973
3 I Turcs tal Friùl, 1976
4 Affabulazione, Pilade, 1977
5 Porcile, Orgia, Bestia da syile, 1978
Epistolário:
1 Lettere 1940-1954, 1986
2 Lettere 1955-1975, 1988
Obra gráfica:
1 I disegni 1941-1975, 1978
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo