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PAULA IONE DA COSTA QUINTERNO FIOCHI
DE POSIÇÃO EM POSIÇÃO:
os giros de discurso e a questão do saber na Educação em
Saúde a partir de uma experiência junto a equipes da
Estratégia Saúde da Família
ASSIS
2009
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PAULA IONE DA COSTA QUINTERNO FIOCHI
DE POSIÇÃO EM POSIÇÃO:
os giros de discurso e a questão do saber na Educação em
Saúde a partir de uma experiência junto a equipes da
Estratégia Saúde da Família
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis UNESP Universidade Estadual
Paulista, para a obtenção do título de Mestre em
Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e
Sociedade).
Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho
ASSIS
2009
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Fiochi, Paula Ione da Costa Quinterno
F517c De posição em posição: os giros de discurso e a questão do
saber na Educação em Saúde a partir de uma experiência junto
a equipes da Estratégia Saúde da Família / Paula Ione da Costa
Quinterno Fiochi.
Assis : [s.n.], 2009.
128 f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciên
cias e Letras, 2009.
Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho
1. Saúde Pública. 2. Psicanálise lacaniana. 3. AIDS -
Prevenção. 1901-1981. I. Título. II. Autor.
CDD 362.1
Dedico esse trabalho a meu pai
Elieser (in memorian), a minha irmã
Letícia, a meu marido Gustavo e a
todos os amigos do coração.
AGRADECIMENTOS
Ao orientador Prof. Fernando Silva Teixeira Filho, que topou esta empreitada com
tantas modificações e incertezas ao longo do caminho. Obrigada por apostar nesta parceria e
pelos caminhos apontados.
Aos professores que compuseram a banca examinadora desta dissertação tanto na
qualificação como na defesa:
Prof.ª Maria Lívia Tourinho Moretto que soube fazer as perguntas necessárias a este
trabalho. Muito obrigada.
Prof. Abílio Costa-Rosa com quem partilho esse trabalho. Sou enormemente grata
pelo empenho, dedicação e colaboração com a construção desse e de outros trabalhos na
intensão e na extensão. Obrigada pela generosidade, pela formação e incentivo.
Aos Professores da PósGraduação da Unesp de Assis que colaboraram de alguma
forma com esse processo.
Ao prof. Christian Ingo Lenz Dunker que me recebeu atenciosamente em sua
disciplina na USP. Nem imagina o quanto suas aulas foram importantes na construção desse
mestrado. Obrigada por compartilhar conosco, incansavelmente, seu saber e por suas
contribuições ao singelo texto que apresentei à disciplina.
Aos eternos amigos do coração, Jú, Dreza, Julinha, Marina, Dani e Danilo. Gente, não
é por nada, é por tudo! Dreza obrigada pela força durante o processo, do começo ao fim.
À amiga Milena que passou comigo as dificuldades e perrengues desse mestrado.
Alguns dos desdobramentos desse trabalho foram fruto de nossas conversas.
Às “sete psi, companheiras da Clínica nossa de todo dia, que me transmitiam calma e
me incentivavam: Ana Lúcia, Juliana, Is, Márcia, Lívia, Manoela, e Fernanda nossa mais-
um!
Ao Grupo de Estudos sobre a Teoria e Clínica de Lacan, obrigada Abílio, Márcia,
Lívia e Juliana pelas muitas contribuições.
Às Ongs Neps e Circus, onde iniciei minhas aventuras no campo da Saúde e da
Prevenção DST/HIV-Aids. Obrigada pela oportunidade pessoal! Em especial, agradeço a
Késia, Dany, Fernando, Vini, Fernandinho, Pedro, Paula, Manu, Tiago, Go, Turcão, Wender e
Meire.
Ao Nei Vinicius, amigo e parceiro nessa experiência junto às equipes da Estratégia
Saúde da Família. Obrigada por compartilhar esse desafio.
À Ana Maria pelas sábias perguntas.
À Cristiani e Juliana por possibilitarem a realização dessa experiência.
A todas as equipes da Estratégia Saúde da Família obrigada pela oportunidade desse
enlace.
A Cotoca minha fiel companheira na escrita e na leitura. Ao Beethovem pela
segurança.
À D. Neuza que muito colaborou com seus deliciosos almoços e apetitosas guloseimas
no momento final dessa dissertação.
A minha irmã, Letícia, pela força, incentivo, amor.
Ao Gustavo, meu companheiro, pelo amor, compreensão, carinho e incentivo. Dividiu
comigo todo o trajeto, na alegria e na tristeza. Sempre presente em minha vida.
Se há algo que a psicanálise deveria forçar-nos
a sustentar tenazmente, é que o desejo de saber
não tem qualquer relação com o saber a menos,
é claro, que nos contentemos com a mera palavra
lúbrica da transgressão. Distinção radical, que
tem suas conseqüências últimas do ponto de
vista da pedagogia o que conduz ao saber não é
o desejo de saber. O que conduz ao saber é se
me permitirem justificar em um prazo mais ou
menos longo o discurso da histérica”.
(Jacques Lacan)
RESUMO
Este trabalho discute as passagens de discurso produzidas em uma experiência de educação
em saúde e prevenção às DST/HIV-Aids realizada junto a equipes da Estratégia Saúde da
Família (ESF) a partir da teoria dos quatro discursos de Jacques Lacan. Baseado nos
impossíveis freudianos, - a saber: governar, educar, analisar Lacan estabelece os quatro
discursos como laços sociais, uma forma de aparelhar a linguagem ao campo do gozo para
que seja possível a relação do sujeito com o outro. São eles: Discurso do Mestre (governar),
Discurso Universitário (educar), Discurso do Analista (analisar) e Discurso da Histérica (fazer
desejar). Para tanto, dividimos este trabalho em três eixos de discussão. Realizamos uma
revisão bibliográfica sobre o contexto das práticas educativas em Saúde e sua relação com a
produção de saber e de sujeitos. Para leitura de nossa experiência utilizamos os operadores da
psicanálise lacaniana. A partir de nosso material pessoal, elegemos uma equipe da ESF e
apresentamos alguns fragmentos para ilustrar as passagens de discurso. Dialogamos com as
práticas educativas em saúde e sua implicação com a questão do saber e da produção de
sujeitos. Pode-se verificar que é pelo deslocamento (ou suspensão) do lugar de mestria, e do
saber ocupado pelo educador, que os sujeitos a quem se dirigem podem vir a ocupar o lugar
de agente do Discurso da Histérica, que é o único, segundo Lacan, capaz de produzir um saber
do próprio sujeito, que se diferencia do saber enciclopédico do Discurso Universitário e de
sua relação com o sujeito tomado como objeto. Não se trata de produzir um saber de
conteúdo, mas sim um novo saber sobre o gozo. Para isso é preciso saber escutar a dimensão
enunciativa do discurso. É preciso histerizar o discurso, provocar a implicação do sujeito com
sua questão. É preciso saber que o saber de que se trata é Outro, o qual guarda pouca (ou
nenhuma) relação com o que se conhece.
Palavras-chave: Prevenção às DST/HIV-Aids, Educação em Saúde, Psicanálise lacaniana,
Teoria dos Quatro Discursos de Jacques Lacan.
ABSTRACT
Based on Jacques Lacan’s fundamental concepts on discourse, this dissertation discusses the
discourse shifts occurred on an experience in health education and STD/HIV- Aids prevention
with a Family Health Strategy (FHS) group. Lacan, based on Freud’s impossible professions
(governing, educating and analyzing), establishes four discourses as a social bond as a way of
putting together language and enjoyment (jouissance) to enable the relation between the
subject and the other. The discourses are called Master (governing), University (educating),
Analyst (analyzing) and Hysteric (desiring). This study is structured in three sections. First,
we propose a review of the literature concerning practices and discourses in health education
contexts and their relation to the production of knowledge (savoir) and subjects. Second, we
establish the conceptual foundations of the interpretation of our experience. At last, based on
our personal notes of the experience (reports, diaries), we selected one group of FHS and
presented it to illustrate some discourses shifts. We try to dialogue with some practices in
health education and their implication to knowledge (savoir) and to the production of subject.
We verified that is by the displacement/suspension of the master position and, by the
knowledge placed by the educator, that the subjects to whom the speech is concerned can
occupy the place of the agent in the Hysterical Discourse. According to Lacan, this is the only
place by which it is possible to produce a subject’s own knowledge that is different from the
University Discourse and its relation to the subject taken as an object. It does not mean to
produce knowledge of content but rather a new knowledge concerning enjoyment
(jouissance). It is necessary to know how to listen to the enunciative dimension of the
discourse and to hystericize it and to provoke the implication of the subject with his/her own
questions. It is also necessary to know that the knowledge is another knowledge which has
little (or no) relation to what is known.
Key words: STD/HIV- Aids prevention, Health Education, Lacanian psychoanalysis, Lacan’s
theory of the four discourses.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................01
CAPÍTULO I A PRODUÇÃO DE SABER E DE SUJEITOS NA EDUCAÇÃO EM
SAÚDE.....................................................................................................................................08
I.I. De Programa para Estratégia Saúde da Família..................................................................09
I.II. Novas Políticas de Saúde: A Educação Permanente em Saúde (EPS)..............................28
I.III. Prevenção às DST/Aids no contexto da Estratégia Saúde da Família..............................34
CAPÍTULO II DA EXPERIÊNCIA À PESQUISA..........................................................48
I. MÉTODO.............................................................................................................................49
I.I A pesquisa em Psicanálise: da intensão à extensão..............................................................49
I.II. A transmissão do campo da intensão.................................................................................58
I.III O contexto da intensão ......................................................................................................60
Caracterização dos profissionais e das equipes..................................................................61
Sobre os dados...................................................................................................................63
II. NOTAS SOBRE OS OPERADORES CONCEITUAIS.................................................63
II.I. A demanda ........................................................................................................................64
II.II. A escuta psicanalítica.......................................................................................................66
II.III. A Transferência ..............................................................................................................67
III. A TEORIA DOS QUATRO DISCURSOS DE JACQUES LACAN...........................76
Os quatro discursos de Lacan: Discurso do Mestre, Discurso Universitário, Discurso da
Histérica e Discurso do Analista...............................................................................................76
CAPÍTULO III OS GIROS DE DISCURSO: DE QUE SABER SE TRATA? .............92
Fragmento 1: do que se trata no começo?.................................................................................94
O que ficou do encontro?..........................................................................................................98
Fragmento 2: à um giro do Discurso da Histérica..................................................................100
Fragmento 3: a equipe no lugar de agente no Discurso da Histérica......................................105
Reflexões sobre o processo: de que saber se trata?.................................................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................116
REFERÊNCIAS BIBILOGRÁFICAS................................................................................121
INTRODUÇÃO
2
INTRODUÇÃO
A possibilidade desta pesquisa de mestrado surge a partir de nossa experiência no
campo da Educação em Saúde e da Prevenção às DST/Aids junto às equipes da Estratégia
Saúde da Família. Quando adentramos neste programa de s-Graduação tínhamos enquanto
projeto de pesquisa algo totalmente diferente dos rumos que este trabalho tomou. O que temos
hoje nesse texto foi por vezes refeito e rediscutido.
Durante a reconstrução desse trabalho fomos guiados por algumas questões: o que
teríamos a transmitir numa dissertação de mestrado sobre a experiência vivida? Como
faríamos essa transmissão? E a partir de que operadores conceituais embasaríamos nosso
trabalho? Então, vamos lá.
Nossa experiência teve duração de três anos. Narraremos, para localização do leitor,
uma sequência cronológica desses anos de trabalho. Ressaltamos que não se trata de fases
com seqüências lógicas e estanques. Os giros discursivos, como veremos, não são estáveis ou
sequenciais. A chamamos de experiência, pois era a primeira vez que realizávamos um
trabalho como este, bem como o era também para as equipes com as quais trabalhamos.
Nosso projeto de intervenção tinha um caráter experimental.
A possibilidade desse trabalho surgiu a partir de uma parceria entre a Ong
(Organização Não-Governamental) da qual fazíamos parte e a Secretaria de Saúde do
município, mais especificamente a Estratégia Saúde da Família (ESF).
Esta experiência foi realizada em parceria com um colega que em muitos momentos
retificava posteriormente meus apontamentos e impressões sobre o processo, o que muito
contribuiu para as mudanças de posição no discurso tanto de nossa parte como dos sujeitos
das equipes. Ao final dos encontros ele nos perguntava o que havíamos “achado” daquele dia,
e durante um bom tempo, principalmente no início das reuniões nas unidades, dávamos
sempre a mesma resposta: “Acho que deveríamos escutar mais”. A escuta foi um dos
elementos que se mostrou fundamental para o andamento desse trabalho.
A Ong da qual fazíamos parte tinha um reconhecimento no município na área de
trabalhos em sexualidade na interface com a saúde, com políticas públicas, prevenção
DST/Aids, Direitos Humanos entre outros. Anterior a este trabalho as Unidades Saúde da
Família já haviam passado por uma capacitação oferecida por outros membros da Ong, onde
se tratou de questões relacionadas à prostituição. Então, para eles estávamos numa posição de
quem detinha um saber sobre estes assuntos. A partir desse momento, algumas unidades
3
passaram a nos procurar para realização de algumas atividades de Prevenção às DST/Aids. A
partir dessa primeira aproximação com algumas Unidades começou-se uma negociação para o
estabelecimento de uma parceria que pudesse ofertar esse trabalho a todas as Unidades da
ESF.
Que trabalho demandaram? Segundo a coordenação da ESF e de duas unidades com as
quais tínhamos realizado atividades, as unidades faziam trabalhos de prevenção ainda
incipientes e tinham dificuldades no vínculo e acolhimento de homossexuais, travestis e
mulheres profissionais do sexo. Então o projeto foi organizado com esse foco.
Organizou-se a primeira fase do projeto segundo os moldes tradicionais de
capacitação, ou seja, trabalhamos durante quatro meses com as onze equipes da ESF,
distribuídas em quatro grupos de 25 pessoas em média, com encontros semanais, de modo que
com cada grupo nos encontramos uma vez por mês. Os temas e as oficinas foram definidos
previamente por nós, bem como a distribuição das equipes em cada grupo. Essa capacitação
discutiu temas como desigualdade de gênero, diversidades de orientação sexual e identidades
de gênero, exclusão e homofobia, abordagem e acolhimento, sendo estes por sua vez,
atrelados à prevenção. O que mobilizou esse momento?
Deparamo-nos durante esses encontros com resistências, estranhamentos,
desassossegos e indignações por parte dos profissionais com relação aos temas abordados. As
oficinas se tornaram o “assunto do mês” nas Unidades, pois geravam polêmicas. Tal fato
mobilizou questões diferentes em cada equipe. De modo geral, para umas esse novo
“conhecimento” foi um alerta que apontou para um trabalho que estavam negligenciando;
para outras, essa foi mais uma entre as muitas capacitações as quais são submetidos; e ainda
tiveram aqueles que não conseguiam vir nem ouvir sobre o assunto do qual se falava. Como
estavam divididos em grandes grupos de 25 pessoas cada, e em duas oficinas foram divididos
segundo função que ocupavam, não pudemos dizer algo sobre as particularidades das equipes
ou de seus membros. Para nós, naquele momento, tratava-se do grupo 1, 2, 3, 4, ou o grupo
dos médicos e enfermeiros, grupo dos agentes comunitários de saúde, grupo dos auxiliares de
enfermagem. Estavam classificados segundo suas categorias profissionais.
Após o momento da capacitação, e do mal estar resultante dela (o qual trataremos
adiante), buscávamos conhecer melhor o trabalho das Unidades. Realizamos encontros com
todas as equipes com o objetivo de proceder a um diagnóstico. Interessava-nos saber quais
vulnerabilidades identificavam; como era o trabalho de prevenção às DST/Aids; como se
organizavam enquanto equipe, quem e como era a população atendida na área de abrangência.
4
Salvo duas unidades, as outras não mantinham um programa de ações de prevenção às
DST/Aids. A maioria das equipes não considerava relevante este trabalho e se restringiam a
algumas atividades como entrega de preservativos sem orientação tanto na Unidade como nas
casas, condicionada ao pedido do usuário; à orientação na coleta de papanicolau, sendo que,
tal iniciativa era decorrente também do interesse do usuário e a algumas atividades em grupo,
aproveitando os já existentes e rotineiros, como de hipertensão e diabetes onde rapidamente o
tema das DST/HIV-Aids era abordado. A iniciativa de intervenção se dava apenas com o
pedido e demanda do usuário, o serviço pouco era ofertado pela equipe, e as ações eram
isoladas e restritas.
Essa realidade encontrada nos fez modificar a proposta de intervenção inicial. Se não
havia um trabalho sistemático e organizado de prevenção, nem a crença de sua relevância,
como poderíamos colaborar no processo de implementação de ações de prevenção para
homossexuais, travestis, e mulheres profissionais do sexo? As práticas de prevenção em
DST/Aids não constavam na programação das unidades, eram esporádicas e em datas
comemorativas como, por exemplo, o dia mundial de luta contra a Aids. A partir dessa
constatação, nosso papel ali foi o de criar uma implicação desses profissionais com o campo
da prevenção.
Para isso passamos a nos reunir mensalmente com cada equipe, primeiro para
aproximarmo-nos de seu cotidiano e segundo para que estabelecêssemos uma transferência de
trabalho. Nossa trajetória foi se delineando conforme o laço social e a maneira como nós e os
sujeitos se implicavam.
Começamos essa experiência com o foco na prevenção às DST/HIV-Aids e
sexualidades e em algumas equipes esse tema foi apenas o ponto de partida para outros
desdobramentos, tais como, reuniões de equipe, gestão dos serviços de saúde, organização dos
serviços, relações entre profissionais e população, entre outros. A demanda localizada passou
ao geral das equipes.
A partir desse posicionamento nossa tarefa era acompanhar as unidades na construção
de projetos de prevenção às DST/Aids para cada Unidade, contemplando, assim, as
características de cada território, suas vulnerabilidades e a disponibilidade de cada equipe.
Ao final daquele ano, depois de quatro meses de reuniões com todas as Unidades, cada
qual tinha seu projeto. Cada equipe teve seu tempo, suas dificuldades e facilidades e sua
implicação. Fatores que consequentemente refletiram em seus projetos.
5
Em transferência passamos a escutar mais, responder menos. A propor caminhos que
pudessem abrir portas e não fechá-las; oferecemos um silêncio, um ouvido pronto para escutar
para além do enunciado, ao invés de compreender e um tempo lógico, onde pudemos esperar
que as coisas se incomodassem para depois se acomodarem. Tempo este que foi possível de
ser manejado, pois nossa experiência durou três anos consecutivos. Ressaltamos esse
diferencial, pois sabemos o quanto o tempo nas instituições de saúde é definido pelas
urgências e emergências bem como o tempo para os encontros e/ou reuniões com os colegas
de trabalho acabam se tornando o último item das prioridades.
No ano seguinte nosso compromisso com as Unidades e com a gestão seria
acompanhar a implementação desses projetos, ou seja, as onze equipes “teriam” que colocar
em prática aquilo que elaboraram e planejaram e nós “monitoraríamos” esse processo.
Formalmente era essa nossa função: monitorar as atividades de prevenção das
unidades. Para nós esse significante “monitor” ganhou outras roupagens, à medida que os
giros de discurso forem ocorrendo. Surge então, o significante facilitador, pelo qual passamos
a ser referendados, pois naquele momento tínhamos encerrado um curso de Formação de
Facilitadores de Educação Permanente em Saúde. Facilitar processos essa era nossa função
para as equipes.
A mudança de nome pelo qual nos identificávamos por si só não mudou nada. A
mudança de uma nomeação não implica uma mudança em ato. Para isso foi preciso mais. O
significante que nos representa só nos representa na relação com outros significantes.
O terceiro e último ano de trabalho foi um desdobramento desse segundo, no qual
algumas equipes passaram por mudanças que tiveram impacto nos serviços de modo geral.
Algumas unidades desistiram, desanimaram, outras que se implicaram com suas questões
puderam produzir mais que conhecimento, produziram saber.
Daí parte esta dissertação. Retornemos a questão: o que queremos transmitir? Este
trabalho é um exercício de transmissão desse saber produzido na experiência. Tem-se a
possibilidade de transmitir o saber da práxis. Não se trata de transmitir um conhecimento
sobre prevenção, sobre sexualidade ou sobre saúde, da maneira como poderiam ser tomados
pelo Discurso Universitário. Quando adentramos a esse programa de pós-graduação era dessa
transmissão, agora reformulada, que se tratava o projeto inicial. Apesar de esses
conhecimentos estarem iminentes à experiência, eles serão explorados em nível de
contextualização e de diálogo com o saber produzido em questão.
6
Então, temos como objetivo discutir as passagens de discurso produzidas nessa
experiência junto às equipes da ESF. O referencial escolhido para essa transmissão é a
psicanálise de Jacques Lacan. Com base na teoria dos quatro discursos do autor, a saber,
Discurso do Mestre, Discurso Universitário, Discurso da Histérica e Discurso do Analista,
analisaremos fragmentos dos três anos de trabalho junto a uma das equipes da ESF com as
quais trabalhamos. Nestes fragmentos interessa-nos aquilo que deixamos claro em nosso
título: as passagens ou giros de discurso e aquilo que é da ordem do saber.
Esses referenciais teóricos nos permitiram reler a experiência em questão. Oferecer
uma possível leitura e tentarmos proceder à transmissão de seus efeitos. Uma tentativa de
dizer daquilo que vivenciamos, que só pode ser dito no retorno à experiencia e a partir dela.
O que nos interessa no que diz respeito ao saber na experiência em questão?
Nossa práxis se dá no campo da Educação em Saúde, que predominantemente é um
campo que se interessa pela produção de conhecimento e de indivíduos vinculados ao ensino.
Criam-se espaços, cursos, políticas onde a educação e o ensino na área da saúde possam se
efetivar. As pessoas nesse campo são tomadas enquanto indivíduos na sua relação com os
diversos contextos como os culturais, econômicos, territoriais, sociais etc. Trata-se de
apreender o campo da realidade e poder construir um conhecimento a partir dele.
Mesmo inseridos em trabalhos de Educação, levamos para nossa prática aquilo por
onde apostamos ser possível o contato com outro saber. Cabe ressaltar que é com o referencial
psicanalítico de Jacques Lacan que temos pautado nossa prática clínica, e que, portanto,
enxergamos com essas lentes. Não apenas a clínica do setting tradicional, mas toda a sua
possibilidade de ampliação, de extensão.
De que saber falamos? De um saber que não é ensinável. Como aponta Lacan (2003),
em 1970, no texto de encerramento do Congresso da Escola Freudiana de Paris, sob o título
de “Alocução sobre o ensino”, “(...) pode ser que o ensino seja feito para estabelecer uma
barreira ao saber” (p. 362). Como transpor a barreira do ensino, do Discurso Universitário na
Educação em Saúde? Segundo a teoria dos quatro discursos de Lacan o único discurso que
produz saber é o Discurso da Histérica. Um saber que se apresenta enquanto uma rede de
significantes que determinam a partir de uma estrutura de repetição a relação do sujeito com o
real. Uma repetição de gozo que implica o reencontro com a falta de gozo. É o saber como
meio de gozo. Quinet (2006) mostra como o Discurso da Histérica é o avesso do Discurso
Universitário, pois o primeiro seria responsável pela utilização do saber como uma forma de
tratamento do mal estar, no caso, o mal estar na educação em saúde.
7
E o que essa discussão poderia contribuir com as propostas de Educação em Saúde, de
Prevenção às DST/HIV-Aids e na Estratégia Saúde da Família?
Pretendemos com essa dissertação proporcionar uma reflexão sobre os saberes e a
implicação dos sujeitos nessas práticas de saúde. Também, apresentar como proposta um
outro posicionamento e uma reflexão a partir de outro campo, o da psicanálise. Como definiu
Lacan (1992), o discurso como laço social, um discurso sem palavras, que trata da relação do
sujeito com o outro, e do mal estar em jogo, devido à perda de gozo que toda relação que não
toma o outro como objeto, implica. Trata-se do mal estar na educação, o sintoma do
impossível freudiano de educar. Cabe a nós, educadores, nos colocarmos no lugar de
analisantes da Educação em Saúde para tocarmos nisso que esse discurso, em nome do
conhecimento, tenta recalcar, sua incompletude.
Com base nessas considerações dividimos o texto de nossa dissertação em três
capítulos. No primeiro capítulo apresentamos uma revisão bibliográfica e consequente
discussão sobre a produção de conhecimento e de sujeitos nas práticas de educação em saúde,
especificamente as relacionadas à Estratégia Saúde da Família, Prevenção às DST/Aids e
Educação Permanente em Saúde. Cada qual tratada em um tópico. Nessas políticas de saúde,
interessam-nos seus mecanismos de constituição, seu contexto histórico e suas relações com o
ensino e a produção de sujeitos a partir desses discursos.
Por sua vez, no segundo capítulo trataremos do método e dos operadores conceituais
da psicanálise de Jacques Lacan que utilizamos nesse momento para análise da experiência.
Os operadores conceituais se apresentam enquanto um corpo teórico mínimo, pois são
imprescindíveis na operacionalização da pesquisa em psicanálise. Daremos enfoque aos
conceitos de transferência, escuta e demanda atrelados à teoria dos quatro discursos propostos
pelo autor.
Finalmente, no terceiro capítulo analisaremos três fragmentos dos encontros realizados
com uma das equipes da Estratégia Saúde da Família. Por meio destes, demonstraremos como
operam as passagens de discurso a partir dos quatro discursos de Lacan, com enfoque ao
Discurso Universitário e Discurso da Histérica. Destacaremos as passagens que enfatizam a
relação dos sujeitos com o saber.
Dessa maneira, nosso objetivo é proceder a uma releitura de nossa experiência com
foco nos giros de discurso que possa proporcionar novos olhares aos campos da Educação em
Saúde, da Prevenção DST/Aids, da Estratégia Saúde da Família e da própria psicanálise.
CAPÍTULO I
A PRODUÇÃO DE SABER E DE SUJEITOS NA
EDUCAÇÃO EM SAÚDE
9
I.I DE PROGRAMA PARA ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA
Neste tópico tratamos do percurso da priorização da família nas políticas públicas,
para chegarmos até a Estragia Saúde da Família. Traçamos um caminho anterior, onde,
sinteticamente, mostramos a construção desse processo até a atualidade. Pretendemos situar o
leitor dentro do campo e do contexto no qual nossa experiência se desenvolveu.
Donzelot (1986), na clássica obra “A Polícia das Famílias”, no capítulo que trata do
governo através da família, faz um percurso e uma discussão sobre a relação família e Estado.
Mostra que no Antigo Regime a família era tanto sujeito de governo, tendo na figura do chefe
de família todos os poderes sobre a mulher, os filhos e empregados, num regime de
patriarcado
1
, quanto objeto de governo, pois mantinha relações de dependência ao Estado. A
família se constituía como um emaranhado de relações de dependências privadas e públicas.
O chefe de família respondia pelos seus membros e os representava perante a ordem pública.
Com a mesma devoção e obediências às leis morais, ele cobrava, designava e decidia por sua
família. No caso de desobediências e descumprimentos das leis familiares o chefe recorria à
ordem pública para as possíveis punições. Tratava-se sempre do mesmo mecanismo:
(...) a fim de assegurar a ordem pública, o Estado se apoia diretamente na família
jogando indissociavelmente com seu medo do descrédito público e com suas
ambições privadas. Isto tudo se passa segundo um esquema de colaboração muito
simples, o Estado diz às famílias: mantende vossa gente nas regras da obediência às
nossas exigências, com o que, podereis fazer deles o uso que vos convier e, se eles
transgredirem vossas injunções, nós vos forneceremos o apoio necessário para
chamá-los à ordem. (idem, p. 51)
Tal situação será revista no decorrer do século XVIII, pois, de um lado a família não
consegue mais conter os seus membros transgressores e por outro esses membros “vítimas”
das punições do Estado e da família começam a questioná-las. O autor aponta que a
construção dos Hospitais Gerais, era uma resposta, entre outras coisas, à exigência das
famílias pobres de conter seus membros indisciplinados.
O Estado passa a ser interpelado a agir e se encarregar desses cidadãos e o chefe de
família vai perdendo seu poder na relação com o Estado e com seus membros. Pede-se a
providência do Estado quanto ao bem estar dos cidadãos, sua saúde, alimentação, trabalho e
1
O conceito de patriarcado foi definido por Christine Delphy, em 1970, vem da antropologia e diz respeito ao
poder dos pais, os “patriarcas” sobre as mulheres e as crianças. Este conceito passa a ser alvo de criticas nos anos
80 e 90 pelo foco na figura do pai, não dando valor às mudanças nas relações sociais de gênero e de poder.
Alguns autores preferem o termo “viriarcado” que se define pelo poder dos homens, sejam pais ou não.
(WELZER-LANG, 2001).
10
educação, entre outros, mas ao mesmo tempo teme-se o autoritarismo do mesmo. Dessa
forma, a família entra no debate político que procurava definir o que seria o Estado. De um
lado os socialistas, que negavam a família, acusados de totalitarismo, e do outro os liberais
que defendiam a organização social em torno da propriedade privada e da família, e eram
acusados de conservadorismo.
Os hospitais, nesse momento, não visavam a cura, por não serem instituições médicas,
e eram de fato instituições de assistência aos pobres, ainda, de exclusão e separação. Não
estavam destinados a curar, mas a salvar os doentes, visto que eram administrados por pessoas
religiosas e caridosas. Nessa época a medicina não tinha uma prática hospitalar, e ainda era
uma individualista, não havia uma medicina social estabelecida. A experiência hospitalar não
fazia parte da formação médica (FOUCAULT, 1979).
Os hospitais não se dedicavam a uma ação sobre o doente ou a doença que ali estavam
e sim sobre o próprio hospital no sentido de purificá-lo dos efeitos da desordem que nele
ocorria, que poderiam contaminar as pessoas ali internadas e consequentemente também as
cidades e a população em geral. Como, por exemplo, os hospitais militares e marítimos que
não visavam a cura, mas sim impedir que as doenças se alastrassem. Não estava em questão o
tratamento apenas o controle da disseminação das doenças.
Com algumas mudanças no exército surge a necessidade de uma reorganização
administrativa e política, um novo esquadrinhamento do poder no espaço do hospital militar.
E não foi a partir de uma técnica médica que isso se deu, mas a partir do que Foucault (1979)
chamou de disciplina
2
. Foi a introdução desses mecanismos disciplinares no hospital que
possibilitou sua medicalização.
No final do Antigo Regime, tem-se a separação da classe popular e burguesa. A
primeira defendia uma conjunção entre a reorganização do Estado e o desenvolvimento dos
equipamentos coletivos e a segunda queria essa dissolução, ou seja, a separação entre público
e privado. Nesse impasse, surge a filantropia que, segundo o autor, estava longe de ser uma
intervenção privada apolítica diante dos problemas sociais da época, pois se caracterizava
mais como uma estratégia de despolitização dos coletivos.
Com o tempo essas instituições que abrigavam pobres, mendigos, desvalidos etc., vão
assumindo outro caráter: surge a tecnologia médica. Por volta de 1780, o aparecimento da
noção de cura modifica as práticas nos hospitais. O hospital deixa de ser apenas uma estrutura
arquitetônica para fazer parte de um fato médico-hospitalar que deveria ser estudado. Dessa
2
A disciplina é uma técnica de poder que implica vigilância constante dos indivíduos, registro contínuo de todas
as informações, onde os sistemas de poder vão ter por alvo os indivíduos em sua singularidade.
11
forma, passam a ser estudados: o funcionamento em seu interior, o manejo das roupas, a
disposição espacial dos doentes, os transportes e deslocamentos dentro do hospital. Todo esse
trabalho é realizado não mais por arquitetos, mas por médicos.
Portanto, no século XVIII, essa medicina tem, a princípio, o indivíduo como objeto de
saber e prática médica. Ele será observado, curado, diagnosticado, acompanhado, etc. Porém
ao mesmo tempo, por serem em grande quantidade nos hospitais e objetos de estudos e
registros em diferentes locais, conclui-se que os problemas que apresentam não dizem
respeito somente a eles e sim a população em geral. Daí, a afirmação de Foucault (1979) de
que a medicina desse século foi tanto individual quanto coletiva.
O autor refuta a ideia de que a medicina moderna, nascida no final do século XVIII,
por ter trazido a anatomia patológica e estar ligada às relações de mercado, portanto, à
economia capitalista, desse modo seria uma medicina individualista, que privilegiaria apenas
a relação médico-doente, ignorando a dimensão coletiva. A medicina moderna, ao contrário,
seria uma medicina social, pois teria como fim certa tecnologia do corpo social e somente em
um de seus aspectos seria individualista e valorizaria a relação médico-doente.
A hipótese foucaultiana é de que a medicina social surge com o capitalismo. Este
socializou o corpo enquanto força de trabalho e de produção, no sentido de que o controle da
sociedade começaria justamente aí; no corpo e com o corpo. Foi nele que primeiramente a
sociedade capitalista investiu. Assim, o corpo seria uma realidade bio-política e a medicina
uma estratégia biopolítica
3
(ibid).
Surge neste século o desenvolvimento de um mercado médico, da grande medicina do
século XIX, associado à organização de uma política de saúde, que considerava as doenças
como problema político e econômico, e que diziam respeito a toda população. Este momento
foi chamado de nosopolítica e antecede o da medicina social. A saúde e a doença como fato
de grupo passam a ser problematizadas não somente pelas instâncias do Estado, como
também por associações filantrópicas, grupos religiosos, sociedades cientificas etc. Tem-se,
portanto, a emergência da saúde e da doença em pontos múltiplos do corpo social enquanto
problemas que exigem um envolvimento coletivo.
A nosopolítica desse século desloca os problemas de saúde das técnicas assistenciais.
Com esse deslocamento será oferecida aos pobres a “oportunidade” de trabalho.
3
O conceito de biopolítica diz respeito a uma das formas desenvolvidas no século XVIII de exercer o poder
sobre a vida, de se investir na vida e não na morte. Esse mecanismo tem como objeto o “corpo-espécie”, o corpo
suporte dos processos biológicos, o corpo por onde se vive. Interessa a ele: nascimentos, mortalidades, nível de
saúde, duração da vida, longevidade, proliferação e tudo o que pode fazer variar esses fatores (FOUCAULT,
1988, p. 131)
12
Transformam-se em mão de obra útil, barata e lucrativa. Nesse sentido, surge um outro
processo: a busca da saúde e do bem estar físico da população como objetivo do poder
político. Deve-se então ajudar a população em geral a ter saúde, inclusive os pobres. Emerge a
polícia médica ou a polícia geral da saúde.
Um dos focos de investimento da nosopolítica do século XVIII é a infância e a família.
A primeira passa a ser encarada enquanto um período do desenvolvimento merecedor de
cuidados, não somente para que sobrevivam como também para que esse período se torne útil
e possa ser gerido. Novas regras são impostas às famílias, principalmente às relacionas à
saúde das crianças. Surgem os cuidados com a amamentação, vacinação, preocupações com
vestuário, alimentação, a moral, a distribuição da família na casa (separação dos cômodos
para as crianças e para os pais) etc. Nessa época a família se torna o agente mais constante da
norma médica.
Como parte da nosopolítica há também a criação de programas e projetos de saúde
levados até a população; os inquéritos sobre as condições de saúde da população; o
movimento de desospitalização; o surgimento dos hospitais especializados, entre outros.
A preocupação das famílias em relação a seus membros e sua constituição diziam
respeito à honra familiar, a reputação e a posição social, já para o Estado interessava a
capacidade produtiva dos indivíduos, se seriam úteis, boa mão-de-obra, seres em que ele
pudesse investir e controlar, por isso o interesse grande em relação a sua saúde e aos cuidados
com as crianças. Daí, a hipótese foucaultiana de que a medicina social nasce com o
capitalismo, no sentido de que essas ações sanitárias têm em vista a reprodução das relações
sociais capitalistas de produção (MERHY, 1987).
Na articulação entre saber médico e o hospital surge nesse momento o cuidado médico
em domicílio. Os médicos, sejam da cidade ou do campo, deveriam, com suas visitas aos
pacientes, aliviar os hospitais, evitando o acúmulo de pessoas. E o hospital só poderia aceitar
pacientes que tivessem um parecer e requerimento do médico. O hospital passa a ter uma
função mais terapêutica e a servir de apoio ao enquadramento permanente da população pelas
equipes médicas. Talvez pudéssemos localizar neste momento histórico os princípios do que
na atualidade foi se desenvolvendo em termos de políticas públicas como a Medicina
Comunitária, o Médico da Família, o Programa ou Estratégia de Saúde da Família, no caso do
Brasil.
No início do séc. XIX continuam surgindo tratados médicos com o tema da criação,
educação e medicação das crianças. É o nascimento de uma medicina doméstica burguesa.
13
Com a transformação da vida familiar devido a sua união com a medicina, observa-se a
família como responsável pela higiene e educação das crianças e dos empregados; o
fortalecimento da figura da mãe (aliança médico-mãe e enfraquecimento da figura paterna); a
criação de um espaço específico para as crianças com vigilância constante; preocupação e
proteção quanto ao seu bom desenvolvimento (DONZELOT, 1986).
No Brasil, após o advento da República, final do século XIX, as cidades passam por
intensas transformações. O fluxo migratório do campo para cidade e de cidade para cidade, as
mudanças demográficas e sociais, o surgimento de novas cidades, o povoamento do espaço
urbano, a construção de habitações de maneira desordenada, as epidemias etc., criam a
necessidade de modernização, leia-se organização e controle demográfico-político-social,
dessas cidades. Precisava-se organizar o espaço público e o privado. Assim, seguindo o
modelo parisiense de gestão do espaço público, onde se separava os pobres e miseráveis da
elite burguesa, o Brasil, crente neste modelo, coloca-o em prática em nossas cidades, tendo o
Rio de Janeiro como local dessa primeira experiência. O objetivo do Estado nesse momento
era
(...) estabelecer a caracterização dos espaços de abrangência pública, reservada à
circulação e lazer controlado, e daqueles privados, reservados à pratica da
intimidade institucionalizada pelos códigos de comportamentos específicos e
rígidos a serem mantidos e promovidos preferencialmente pela família nuclear. A
uma ordem estipulada pelos gestores do Estado para as ruas públicas devia
corresponder outra destinada às casas privadas. (MARINS, 1998, p.136).
As epidemias e endemias de cólera, febre amarela, malaria, varíola, tuberculose, a
peste bubônica, decorrentes das péssimas condições de saúde das populações e dos espaços
habitados aumentavam o controle médico sanitário. Destruíam-se as casas das populações
pobres, consideradas como foco das doenças, com o intuito de excluir do espaço urbano essa
população que ameaçava a ordem social. O que não se mostra uma estratégia eficaz, pois
começa a construção das favelas. Como resposta da população excluída, temos em 1904, a
Revolta da Vacina diante da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. Invade-se as casas
das famílias na busca de doentes, na profilaxia dos espaços públicos e privados. (ibid)
A medicina social brasileira, por meio das políticas higienistas, invadiu a família,
criando um estado de dependência e impondo regras e normas não só relativas à higiene mas
também à moral, ao físico, ao sexual e ao intelectual, com o objetivo de que as famílias
“cultivassem o gosto pela saúde, exterminando assim, a desordem higiênica, dos velhos
hábitos coloniais” (COSTA, 1979, p. 12). Ela se impôs como técnica de regulação do contato
entre indivíduos e família com a cidade e o Estado.
14
Foram os médicos, que em primeiro lugar, antes de arquitetos, urbanistas, demógrafos,
pedagogos, psicólogos, assistentes sociais etc., impuseram à casa e à família um modelo de
organização social. O Estado, segundo os médicos, era como um corpo orgânico, um todo,
uma Unidade, no qual a família seria parte, como se fosse um apêndice ou um útero, portanto,
ao fazer parte do mesmo corpo deveriam estar sempre em harmonia (Ibid, p. 148).
Assim, a medicina social insistia em mostrar que “a saúde do Estado estava para a
família assim como a saúde de um filho estava para a sua mãe” (Ibid). E as famílias, imbuídas
pelo espírito de nacionalismo e de amor ao Estado, passam a se considerar responsáveis pela
ordem e o desenvolvimento do mesmo.
No Brasil, tivemos três modelos de assistência à saúde: o primeiro é o modelo de
saúde pública, que surgiu no início do século XX em duas vertentes: Campanhista e Vertical
permanente. A primeira estava articulada aos interesses econômicos de agroexportadores e
visava o combate de epidemias e endemias via campanhas sanitárias. A segunda baseava-se
na proposta de Centros de Saúde e tinha como objetivo o controle das doenças endêmicas, das
vacinações, puericultura, pré-natal e outras atividades preventivas. Essas duas vertentes se
destacaram na década de 1940 e 1950.
O segundo é o modelo de assistência médica previdenciário que teve começou na
década de 1920, com a influencia da Medicina Liberal e estava ligado às necessidades de
assistência aos trabalhadores das cidades e das indústrias. Construiu-se uma rede de hospitais
ligados aos Institutos de Assistência e Previdência. Ambos os modelos constituíram o modo
neoliberal ou liberal-privativista de organização dos serviços de saúde no Brasil (SILVA
JÚNIOR, 2006). Esta lógica irá marcar tanto as instituições públicas quanto as privadas de
saúde. Neste modelo,
(...) o usuário individual e/ou coletivo deve se tornar um mero objeto
depositário de problemas de saúde que só poderão ser reconhecidos pelos saberes
que o modelo legitimar, sejam eles vindos da clínica ou da epidemiologia e, o
chamado universo das necessidades de saúde torna-se uma propriedade exclusiva
de alguns trabalhadores de saúde, de acordo com a concepção médico hegemônico
(MERHY, 1997, p. 118).
O terceiro modelo surge a partir da década de 1960, é a Medicina Comunitária e passa
a se difundir nas Universidades. Esta se transforma em espaço de politização da saúde. As
universidades abrigam intelectuais que se organizam e discutem o modelo de saúde bem como
desenvolvem projetos-piloto em algumas cidades. Dessas discussões e novas propostas surge
um movimento exigindo as mudanças na política nacional de saúde, em meio à
15
redemocratização política, pós golpe militar, que viria a culminar na Reforma Sanitária
(idem).
Portanto, resumidamente temos na história brasileira esses três modelos de atenção à
Saúde: o modelo sanitarista, presente na primeira metade do século XX, e tinha como objetivo
organizar campanhas, controlar epidemias, vigiar e higienizar os espaços; o modelo médico-
assistencialista e privatista, com foco no curativo, ou seja, na doença e não nos usuários e na
saúde integral, na figura do médico e atendendo aos interesses neoliberais; e o terceiro
modelo, chamado de modelo alternativo, surge a partir da década de 80, com a intensão de
colocar em prática os princípios da Constituição Brasileira, a saber, acesso universal,
hierarquização, descentralização, e participação popular. Consideram alternativos os modelos
que tem como paradigma a produção social da saúde, a noção de território, o foco na
comunidade e no usuário, na prevenção e promoção de saúde, entre outros já referidos em
outros momentos neste capítulo (AERTS et al, 2004).
Dentro do modelo neoliberal e de interferência do Estado na ordem privada, no caso a
família, Carvalho (2003) afirma que o exercício vital das famílias é semelhante às funções das
políticas públicas, ou seja, ambas visam à reprodução e proteção social dos grupos que estão
sob sua tutela. Desempenham papéis semelhantes de vigilância e policiamento como regular,
normatizar, impor direitos de propriedade, poder e deveres de proteção e assistência. Para a
autora, alguns acontecimentos foram distanciando o Estado dessa família e privilegiando o
indivíduo. Na década de 1970, as políticas sociais recaíram sobre a mulher, devido à carência
de mão de obra, a emergência do movimento feminista e de liberação sexual e o planejamento
familiar. Já na década de 1990, as políticas se voltam para as crianças com o Estatuto da
Criança e do Adolescente trazendo um olhar para a mesma dentro do contexto da família.
Com isso, surge o descrédito em relação às instituições de proteção social, como internatos,
orfanatos, manicômios.
O discurso vigente desde então coloca a família em primeiro plano, como extensão do
Estado, como lugar da proteção e do bem estar dos indivíduos. Tanto nas políticas de saúde
como de assistência social o que se observa é o retorno à família e à comunidade. Segundo a
autora (idem), a família seria imprescindível na implementação das políticas públicas no
Brasil, pois os vínculos familiares garantiriam aos indivíduos a noção de pertencimento
social, e tal fato os levaria a expandirem esses laços pelas comunidades, participando assim da
esfera pública.
16
Então, nessa lógica, o investimento e a aposta do Estado na família teriam que ser algo
valorizado, pois disso dependeria o bom funcionamento do mesmo. O que está em jogo para
ele é a sociedade como um todo, e a melhor de nela intervir seria via a família.
Contudo, para que essa família atendesse aos objetivos do Estado, ela teria que ser um
lugar onde sempre se exercitasse a cidadania, a participação social, os vínculos, e que por
meio deles ocorreria uma inserção na esfera pública. Exercita-se no privado com o objetivo de
atender as demandas do público. Constata-se que dentro da família essas noções não ocorrem
de maneira tão democrática e consensual. Enquanto espaço de hierarquia e relações de poder,
esta possui contradições, desejos diferentes por parte de seus membros, desacordos, debates
etc. Como coloca Vasconcelos (2006), com base em Chauí (1986), em sua definição de
família que leva em consideração a relação dicotômica existentes nas relações familiares que:
(...) mescla de conformismo e de resistência às relações de dominação presentes na
sociedade. Mantém a subordinação feminina e dos filhos, mas protege mulheres,
crianças e velhos contra a violência urbana; cria condições para a dominação
masculina, mas garante aos homens um espaço de liberdade contra sua
subordinação no trabalho; conserva tradições, mas é o espaço de elaboração de
projetos para o futuro; e não só núcleo de tensões e de conflitos mas também o
lugar onde se obtém prazer (p. 163).
Como pudemos notar pelo contexto dessas políticas de saúde, o investimento na
família se intensifica, pois por ser um espaço complexo, há que se aumentar o alcance e
controle do Estado sobre ela, que também se desdobrará em aumento de sua capacidade
produtiva. Este não quer indivíduos e/ou família doentes, incapazes, inúteis, mas sim,
saudáveis, felizes e úteis.
Vasconcelos (ibid, p.165) aponta que as atenções dedicadas às famílias são
conservadoras e com pouca eficiência, pois se embasam no modelo tutelar das classes
populares. Acredita-se que a família pobre não tem capacidade suficiente de ser autônoma.
Tal pensamento resulta ao Estado: 1) aumento dos custos dos programas e da burocracia
gestora, ocasionando perda de qualidade; 2) resistências a programas de complementação
familiar, dando preferência à distribuição de cestas básicas, enxovais, medidas que dificultam
o uso indevido do dinheiro; 3) crianças são abrigadas em orfanatos e casas-abrigo ao invés de
serem colocadas em famílias substitutas, pois se desconfia da capacidade cuidadora das
famílias e da possibilidade de desvio do subsídio entre a mesma.
No que diz respeito ao item 2, atualmente temos o programa governamental “Bolsa
Família”, que distribui uma quantia em dinheiro a famílias que recebem mensalmente até
17
cento e vinte reais por pessoa (BRASIL, 2004). Trata-se de uma proposta de complementação
da renda familiar, que proporciona uma ajuda em dinheiro à família que ela mesma
administra. Segundo Vasconcelos (2006) programas como este:
(...) ajuda a superar a pedagogia da subalternidade e tutela dessas ações
assistenciais, uma vez que se assenta na noção de um direito social conquistado a
partir do reconhecimento, pelo conjunto da sociedade, da impossibilidade de todos
os cidadãos terem acesso a uma vida digna nas atuais condições em que a economia
está organizada (p. 166).
Dentro da proposta de priorização e investimento na família e na comunidade é que
nasce o Programa Saúde da Família que há alguns anos se tornou estratégia de modificação do
modelo vigente de assistência à saúde.
O surgimento do Programa se dá num momento histórico, conforme relatado acima,
onde as políticas públicas e intervenções do Estado já se caracterizavam pela priorização da
família, pelo investimento no “comunitário”. As obras de Vasconcelos (2006) e Bettiol (2006)
bem como os documentos governamentais apresentam tal contexto.
Em 1963, a OMS (Organização Mundial de Saúde) publica um documento sobre a
formação do médico da família, pois já identificava problemas como a superespecialização da
medicina, seus altos custos, o que ocasionava um enfraquecimento da relação médico-
paciente. Logo após, em 1969, a medicina familiar passa a ser reconhecida como
especialidade médica. O que na verdade a faz cair na mesma crítica anterior em relação à
especialização: foi preciso que o profissional médico se especializasse em “família” ou
“comunidade” para que ele pudesse fazer esse trabalho, já que sua formação não se dedicava a
essa “especialidade”. A partir de 1970, a medicina com enfoque na família se espalha
mundialmente, na contramão do modelo hospitalocêntrico.
No Brasil, em 1974, assume a presidência do país o general Ernesto Geisel, que inicia
no seu governo a chamada “abertura política”, definida por historiadores como uma abertura
lenta, gradual e insegura. Surgem movimentos sociais como a Pastoral da Terra, o Sindicato
dos Trabalhadores, o movimento operário e sindical, adotando formas independentes do
Estado. (FAUSTO, 2008). Seu governo irá até 1979 e será marcado por uma população
insatisfeita devido ao aumento da desigualdade social. A oposição denuncia o aumento dos
indicadores de saúde como, por exemplo, a mortalidade infantil, durante o período de
crescimento econômico. Em resposta a essas denúncias o governo faz parcerias com hospitais
privados para atendimento da população. Momento em que esses movimentos sociais,
inclusive a classe de profissionais da saúde, manifestam suas ideias nos veículos de massa.
18
Em nível internacional se discutia a questão da valorização da atenção primária à
saúde como estratégia de reorganização dos serviços. No ano de 1978, realizou-se em Alma-
Ata, antiga União Soviética (URSS), a Conferência da Unicef e da OMS sobre Atenção
Primária à Saúde, que foi considerada um marco político da Medicina Comunitária. Marco
que teve reflexos no Brasil e colaborou para a modificação da gica do sistema de saúde.
Enfraquece-se o eixo assistencial centrado nos hospitais e intensificam-se as ações
preventivas e comunitárias bem como a discussão sobre a hierarquização e territorialização da
assistência à saúde.
A priorização da Atenção Básica no SUS (Sistema Único de Saúde) está diretamente
relacionada às reformas do Estado. Estas são estratégias desenvolvidas nos âmbitos estaduais
e locais e visam a modernização do Estado. Em relação à política de saúde, as reformas
caminham das políticas universalistas para as mais focalizadas, destinadas a segmentos
considerados mais vulneráveis. A Atenção Básica em Saúde passa a ser prioridade no
governo, enquanto que os outros níveis de atenção são reduzidos no âmbito público e
transferidos aos setores privados. Esse processo de “mercadorização” dos serviços de saúde
ao período posterior a 1974 e manteve-se durante a formulação do SUS. (ROCHA &
FERREIRA, 2005).
As autoras (ibid) apontam que o que está em jogo na reforma, principalmente com a
criação de OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público) e OSC
(Organização Sociedade Civil) é a efetivação de um modelo de Estado mínimo, onde este
transfere para o setor privado sua responsabilidade e função como executor de políticas
públicas. Criticam também os programas governamentais focalizados, pois esses ferem a
política distributiva e universal. “Não se pode assegurar um direito o direito à saúde
infringindo algum outro. E outro que, diretamente, influencia a prestação do primeiro. A
reforma viola os direitos dos/das trabalhadores/as da saúde. Não se pode ter um serviço de
qualidade em condições precarizadas de trabalho” (p. 69).
Bettiol (2006) afirma que o enfoque na Atenção Básica reforça a ideia de vigilância
constante à saúde, tirando o foco da doença, pois saúde será entendida como um elemento
importante na promoção da qualidade de vida da população.
A partir da 3ª Conferência Nacional da Saúde, em 1963, o Movimento brasileiro pela
Reforma Sanitária se dedicou à luta por um sistema de saúde público e hierarquizado, que se
concretiza na Constituição de 1988 com a criação do Sistema Único de Saúde, juntamente
com as leis 8.080 e 8.142. Inicia-se o processo de construção do SUS (CUNHA, 2007).
19
Com o surgimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e a NOB 01/96 (Norma
Operacional Básica) abre-se espaço para programas de prevenção na Atenção Primária. A
partir daí discutiu-se três modelos, dos quais o terceiro foi o mais aceito na categoria dos
profissionais de saúde da época. O primeiro apresentava a proposta do médico de família,
onde os serviços ficariam centralizados na figura do médico; no segundo, o foco eram as
experiências comunitárias, que se baseavam em trabalhos em equipe e de educação junto à
população; e o terceiro, vencedor, priorizava as reformas das instâncias administrativas nas
instituições de saúde. (BETTIOL, 2006)
Vasconcelos (2006) aponta que os grupos de profissionais de saúde defensores desse
terceiro modelo não viveram experiências comunitárias ou participativas, portanto, não
consideravam necessária a mudança da medicina tradicional, mas sim a mudança na gestão
administrativa do sistema de saúde. Defendia-se então um padrão especializado e tecnicista da
medicina. Tal modelo de saúde focado em procedimentos, normas, equipamentos, burocracias
e administração dos serviços foi o que Merhy (1997; 1998) chamou de tecnologias duras,
utilizadas em detrimento às tecnologias leves que seriam o cuidado em saúde, a relação
usuário-profissional de saúde, a importância do saber do usuário de saúde, os afetos e desejos
que perpassam todos os atores envolvidos.
Em 1981, no bojo das tendências mundiais da área da saúde, o Conselho Nacional de
Residência Médica do Ministério da Educação, aprovou a criação do curso de especialização
de Medicina Geral Comunitária que se tornou um pólo de concentração de profissionais
vindos de experiências de saúde comunitárias e alternativas que nesse momento se
desenvolviam pelo Brasil.
Bettiol (2006) apresenta algumas informações sobre o I Seminário de Experiências
Internacionais em Saúde da Família realizado em Brasília, no ano de 1998, onde estiveram
presentes contando suas experiências os seguintes países: Cuba, Estados Unidos, Canadá,
Colômbia e Equador.
Os representantes de Quebec, no Canadá, relataram a existência de uma Secretaria da
Família e um grande investimento na figura do médico de família. Os médicos generalistas
canadenses deveriam passar por um programa de residência em medicina familiar durante
dois anos. Promover oficinas e encontros onde esses pudessem discutir suas experiências da
medicina familiar e comunitária. Teriam que possuir uma formação pedagógica na
universidade englobando os vários saberes (como psicologia, antropologia, saúde publica,
assistência social etc.).no Brasil tais exigências em nível de formação acadêmica e de pós-
20
graduação não existem. Como a atuação no Programa Saúde da Família (PSF) é de um
médico generalista não se faz exigência de que tenha qualquer especialidade em medicina
familiar ou comunitária, o que acaba levando profissionais sem qualquer perfil a ocuparem
esses cargos, já que na formação básica poucos são os currículos de graduação onde esse
campo da saúde é contemplado. Segundo pesquisa realizada pela Fiocruz (Fundação Oswaldo
Cruz), em 1995, sobre o perfil dos médicos no Brasil, constatou-se que 2,6% são
especializados em medicina geral e comunitária enquanto que em pediatria e gineco-
obstetrícia esse número sobre para 13,4% e 11,8% respectivamente (FRANCO & MERHY,
1999).
Franco e Merhy (idem) acrescentam ainda que existe uma falsa polêmica em relação
ao generalista versus o especialista, pois se este médico generalista também se isolar no seu
campo de conhecimento, ele próprio se tornaria um “especialista da generalidade” (idem, p.
5). E que, o importante a se discutir, não somente com os médicos, mas, com todos os
profissionais é o fato de reaprenderem a trabalhar levando em consideração dinâmicas
relacionais que promovam a interação dos saberes, a troca de conhecimentos tanto com outros
membros da equipe quanto e principalmente com os usuários.
No final da década de oitenta, Cuba apresenta a reformulação do seu modelo de
atenção primária à saúde baseada no médico da família e na comunidade. O modelo anterior
era constituído por policlínicas com serviços especializados. Cria-se então o Programa do
Médico da Família, que associado a esses serviços, garantiam as atividades de promoção e
prevenção à saúde. O foco na formação do profissional médico também é considerado
decisivo no sucesso da medicina familiar. Os médicos são obrigatoriamente submetidos à
capacitação permanente para que estejam qualificados a lidarem com as novas demandas de
saúde e ao trabalho nessa lógica. No Brasil, as capacitações não são obrigatórias, os
profissionais optam se querem ou não participar.
O PSF brasileiro teve como principal modelo de inspiração o cubano. Tanto a
experiência canadense quanto a cubana investiu na figura do médico para modificação do
modelo de saúde. A aposta desses programas era que por essa via modificariam o modelo
médico centrado, hospitalocêntrico. Diferentemente da proposta brasileira onde se começa
com a criação de um programa de agentes comunitários, depois com a criação de uma equipe,
com poucas exigências de mudança à figura do médico, o que em nosso contexto, onde ele se
encontra supervalorizado, não facilita a transformação do modelo que justamente se
questiona. O que não significa que também o foco, a centralização nesse profissional
21
resolveriam os problemas. Não focar somente nesse profissional e em sua prática não
significa eximi-lo dos processos de mudança, o que parece um pouco confuso em nossa
realidade. Há um investimento em termos de valorização das equipes, que deveria contemplar
e envolver a todos os membros, o que não ocorre com frequência, pois o médico brasileiro na
maioria dos serviços encontra-se como um ator à parte de todo o processo.
Em 1991, cria-se o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), onde esses
profissionais visitavam as casas e avaliavam as questões de saúde relacionadas à higiene, às
vacinas, à limpeza de quintais e também faziam encaminhamentos. Este programa foi
considerado transitório para o PSF.
E em 1994, o Programa Saúde da Família foi criado com o objetivo de reorientar os
serviços de saúde, modificar o modelo hospitalocêntrico e curativo, apostando no modelo
preventivo e comunitário, descentralizando os processos da figura do médico, na tentativa de
envolvimento de toda a equipe nas questões de saúde. Esse mesmo ano foi escolhido pela
ONU (Organização das Nações Unidas) como o Ano Internacional da Família. Alguns
municípios são escolhidos como campo de teste e aprimoramento do Programa,
principalmente em regiões nordestinas. O município onde nossa experiência se desenvolveu
também foi um dos pioneiros na implantação do Programa.
Em 2006, a Portaria n° 648 do Ministério da Saúde aprovou a Política Nacional da
Atenção Básica onde foram feitas as revisões das diretrizes e normas que a organizavam com
intuito de reorganização do modelo vigente para o PSF e o PACS.
Os princípios que regem a Política passam a ser: universalidade; acessibilidade e
coordenação do cuidado, do vínculo e da continuidade; integralidade; responsabilização;
humanização; equidade e participação social. Segundo a portaria, “a Atenção Básica tem a
Saúde da Família como estratégia prioritária para sua organização de acordo com os preceitos
do Sistema Único de Saúde” (BRASIL, 2006, p. 3).
As áreas estratégicas da Atenção Básica são: eliminação da hanseníase, controle da
tuberculose, controle da hipertensão e diabetes mellitus, eliminação da desnutrição infantil,
saúde da criança, saúde da mulher, saúde do idoso, saúde bucal e promoção da saúde. Outras
áreas serão definidas regionalmente de acordo com prioridades e pactuações definidas nas
CIBs - Comissão Intergestora Bipartite (ibid).
Segundo O Ministério da Saúde (2004), em documento sobre as diretrizes da Atenção
Básica e a Saúde da Família, afirma que esta última surge enquanto um modelo de
reorganização da Atenção Básica. Sua concepção tenta superar a vigente até então, que tinha
22
como foco a doença e não a saúde. Para isso, desenvolve sua atuação “por meio de práticas
gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob a forma de trabalho em equipes,
dirigidas às populações de territórios delimitados, pelos quais assumem responsabilidade”.
A Saúde da Família é entendida como uma estratégia daí a nomenclatura posterior,
de programa para estratégia, enquanto nome adotado pela política governamental de
reorientação do modelo assistencial em benefício da promoção de saúde, da prevenção,
recuperação e reabilitação de doenças e manutenção da saúde da comunidade. As equipes que
atuam na estratégia Saúde da Família são consideradas como elemento chave na comunicação
e articulação com o saber popular, principalmente o Agente Comunitário de Saúde (ACS).
Fazem parte da equipe: um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e seis agentes
comunitários de saúde. Pode conter também, um dentista, um auxiliar de consultório dentário
e um técnico em higiene dental. Cada equipe atende cerca de 3000 a 4500 pessoas ou cerca de
1000 famílias de uma determinada área. Cada ACS é responsável por uma microárea, que
seria em média correspondente a 150 famílias ou 750 pessoas. Os profissionais devem residir
no município e cumprir jornada de trabalho de 40 horas. A gestão do Programa é de
responsabilidade do município, mas com apoio do estadual e federal. Sua atuação pode se dar
nas unidades básicas de saúde, nas residências e na mobilização da comunidade. Cabe às
equipes: intervir sobre os fatores de risco aos quais a comunidade do território abrangido se
expõe; prestar assistência integral, permanente e de qualidade; realizar atividade de educação
e promoção à saúde; estabelecer vínculos de compromisso e de co-responsabilidade com a
população; estimular o controle social; utilizar sistemas de informação para o monitoramento
das ações; estabelecer parcerias com diversos segmentos sociais e institucionais.
Os agentes comunitários de saúde podem se inserir na rede de atenção básica de duas
maneiras: ligados a uma unidade básica de saúde que ainda não funcione na lógica da Saúde
da Família e/ou ligados a uma unidade saúde da família como membro da equipe.
Além desses princípios a Estratégia de Saúde da Família também é regida pelos
seguintes: 1) ter caráter substitutivo em relação à rede de Atenção Básica tradicional nos
territórios em que a as equipes da estratégia atuam; 2) atuar no território, realizando
cadastramento domiciliar, diagnóstico situacional, ações pactuadas com a comunidade
buscando melhor cuidado dos indivíduos e das famílias; 3) desenvolver atividades planejadas
e programadas com base no diagnóstico situacional com foco na família e na comunidade; 4)
buscar integração com instituições e organizações sociais das áreas de abrangência das
equipes visando parcerias; 5) por fim, ser um espaço de construção de cidadania.
23
Os profissionais das equipes Saúde da Família possuem algumas atribuições em
comum: participar do processo de territorialização e mapeamento da área de atuação da
equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos a riscos bem como a atualização
contínua dessas informações; realizar cuidado em saúde, tanto no âmbito da unidade de saúde,
em domicílio nas visitas domiciliares ou em espaços comunitários; realizar ações de atenção
integral conforme a necessidade de saúde da população local que visem a promoção de saúde,
a prevenção de agravos e o curativo, garantindo o atendimento à demanda espontânea;
realizar busca ativa e notificar agravos; promover escuta qualificada das necessidades dos
usuários, proporcionando atendimento humanizado e viabilizando o vínculo; participar do
planejamento e avaliação das ações da equipe; promover a participação da comunidade e o
controle social; identificar parcerias na comunidade que possam potencializar as ações
realizadas pela unidade; garantir a qualidade dos registros das atividades nos sistemas de
informação da Atenção Básica; participar de atividades de educação permanente e realizar
ações e atividades definidas em âmbito local. As atribuições específicas dizem respeito às
especificidades de cada categoria profissional.
Muito se tem produzido no meio acadêmico sobre o Programa Saúde da Família, atual
Estratégia Saúde da Família.
4
As pesquisas apresentam diversos olhares e questionamentos
em relação ao programa. Encontram-se discussões relacionadas a gênero, aos profissionais, ao
cotidiano de trabalho, aos discursos vigentes, a lógica do programa, as relações entre equipe e
usuários, entre outros.
Scott (2005) nos mostra que esse novo modelo de saúde que prioriza a universalidade,
a descentralização, a integralidade e a participação social, e traz para discussão a questão do
território. O Programa de Agentes Comunitários de Saúde de 1991, que antecede o PSF,
incorpora justamente essa questão da territorialização. Os cuidados, a partir de então, visam
um território e a comunidade que nele vive. O que, segundo ele, não está livre das hierarquias
já naturalizadas nos espaços onde se vive. Dessa forma, “(...) a arena para a discussão de
necessidades de segmentos específicos é subsumida a uma lógica espacial” (p. 76).
A questão da territorialização é fundamental no trabalho do PSF. A noção de território
utilizada no SUS, pelo menos conforme consta preconizado nas várias leis e diretrizes, vai
muito além de uma organização geográfica ou espacial. A lei 8080, que institui o sistema
único de saúde já se pautava na noção de território, pois esta respaldada nos princípios de
hierarquização, integralidade e descentralização. Nesse sentido, o território apresenta um
4
Alguns destes trabalhos foram utilizados neste capítulo.
24
conjunto de perfis (demográfico, epidemiológico, administrativo, político, social e cultural)
que faz com ele esteja em permanente construção (PEREIRA & BARCELLOS, 2006).
Os documentos e diretrizes governamentais mostram o PSF com uma concepção de
território numa perspectiva multiterritorial. O que significa que acredita num território
integrado, relacionado a todas as dimensões sociais, fruto de processos complexos entre essas
dimensões, a população e o espaço físico. Mas na prática, na operacionalização do Programa,
observam-se tendências reducionistas, visões divergentes desde a gestão até dentro das
equipes quanto à noção de território. Apresentam dificuldades em incorporar essa perspectiva
multiterritorial nos processos de trabalho, como cuidado em saúde, mapeamento,
vulnerabilidades, bem como nos sistemas de informação que organizam os dados (SIAB,
DATASUS, etc.) prejudicando a intersetorialidade das ações (ibid).
Franco e Merhy (1999) apontam outra perspectiva quanto a utilização da
territorialização no PSF mostrando que esta daria pouco valor à pratica clínica, à abordagem
individual, à atenção singular, pois
(...) ao não se dispor a atuar também na direção da clínica, dando-lhe real valor com
propostas ousadas como a da ‘clinica ampliada’, age como linha auxiliar do Modelo
Médico Hegemônico. É como se o PSF estivesse delimitando os terrenos de
competência entre ele e a corporação médica: ‘da saúde coletiva, cuidamos nós o
PSF; da saúde individual cuidam vocês, a corporação médica’. E, nada é melhor
para o projeto neoliberal privatista, do que isso, pois deixa-se um dos cenários de
luta vitais para a conformação dos modelos de atenção sem disputa anti-
hegemônica (p. 2).
Mesmo com enfoque multiterritorial, levando em consideração todo o contexto que
compõe um território e a população que nele habita, ainda assim, a olhar singular para cada
sujeito fica um tanto à margem das discussões do Programa. A “saúde individual” não é só de
responsabilidade da clínica médica, mas sim de toda equipe. Assim como a saúde coletiva não
é somente da equipe ou dos agentes comunitários mas também dos médicos. Aliás, esse tipo
de entendimento é provocado pela concepção vigente de que as duas dimensões, coletivo e
individual seriam áreas ou setores separados, não relacionados entre si. Temos aí, uma das
racionalidades a ser modificada pelos novos modos de operar em Saúde.
Vasconcelos (2006, p. 174) aponta que um dos aspectos positivos do PSF foi colocar
no centro das discussões a questão do modelo de atuação dos profissionais dos serviços de
saúde, na tentativa de superar o foco no planejamento e administração como colocado
anteriormente. Contudo, nas visitas do autor a equipes de PSF de alguns municípios constatou
que: 1) não existe uma discussão aprofundada do modelo de relação entre profissionais e
25
população; 2) em alguns lugares o PSF significa mais uma nova divisão do trabalho dos
profissionais do que maior aproximação do cotidiano das famílias; 3) utilização de práticas
tradicionais e abordagem individual mesmo se tratando de grupos ou famílias; 4) atenção à
família restrita a prioridades como hipertensão, vacina, amamentação, o que impede o olhar
para outras manifestações e problemas; 5) a integração com os outros serviços da rede é
pequena; 6) dificuldade de compreensão tanto por parte dos profissionais quanto da população
de que o PSF não é mais um serviço especializado e sim um desdobramento da atenção
primária; 7) por fim, o foco nas famílias consideradas mais vulneráveis prejudicando a
atenção integral a toda população. Todos esses pontos em sua visão são questões a serem
superadas pelo Programa.
Segundo Bettiol (2006) a questão da interdisciplinaridade nas equipes do PSF ainda é
algo a ser trabalhado, pois o programa pede profissionais que tenham um perfil de trabalho
coletivo e de equipe, possibilitando diálogos e troca de saberes.
O fato de se configurar enquanto uma equipe multiprofissional não garante por si só o
rompimento com o modelo médico-centrado. Tal modelo é encarnado não apenas pelo
médico, mas também por outros profissionais que também supervalorizam o lugar desse
profissional na equipe, pois se trata da valorização de um saber médico, uma hegemonia de
um saber construído nas praticas de saúde. O PSF aposta numa mudança estrutural, de
reorganização de um modelo no interior das equipes, do cotidiano de trabalho. Então, não
basta que tenhamos uma equipe de profissionais de diferentes áreas se esses saberes não se
relacionam; com intenções e objetivos diferentes para com o Programa; presos no modelo
tradicional de se fazer saúde.
A pesquisa de Silva (2005) mostra esses interesses variados por parte dos
profissionais, produzindo vínculos diferenciados dos profissionais ao Programa. Para o
médico, o PSF representa uma passagem, transição da rede pública para a privada, não se
configura enquanto um projeto profissional. São tidos como distantes do restante da equipe.
Há enfermeiras que se consideram figuras centrais na equipe, abrindo pouco espaço para
outros profissionais. Já para os auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde o
projeto também é indefinido, pois são precárias as relações de trabalho.
As enfermeiras possuem forte identificação com o Programa, enquanto “missão
profissional”. Mas mantém uma atuação disciplinadora sanitária aliada a de conselheira
pessoal. Nesse sentido, as informações assumem tanto um caráter médico-sanitário como de
julgamento pessoal. As auxiliares de enfermagem não se destacam e parecem ocupar o lugar
26
mais indefinido, inclusive para a equipe, pois sua atividade ainda é identificada com o
trabalho tradicional de assistência. Os agentes comunitários de saúde (ACS) são os mais
presentes na comunidade. Vêem-se como elo entre essa e a Unidade e operam nela como
prolongamento de suas ações na comunidade. Ainda que, as relações hierárquicas e vínculos
variados da equipe com o Programa geram dificuldades de comunicação interna da equipe.
Sem contar que a grande maioria dos profissionais contratados para o PSF se dá por
meio de contratos temporários de trabalho, o que reflete na qualidade da atenção bem como
na saúde dos próprios profissionais.
Segundo Rocha e Ferreira (2005), o foco na família dentro do Programa Saúde da
Família é um aspecto contraditório. Argumenta que da maneira como o programa se
desenvolveu na década de noventa no Brasil produziu-se uma transferência dos cuidados de
saúde para os núcleos familiares. O que, em se tratando de questões de gênero, teve seu
impacto sobre as mulheres, reafirmando o lugar historicamente construído daquelas que são
responsáveis pelo cuidado com a saúde da família. Dessa forma, esse modelo não superaria a
divisão sexual do trabalho, pelo contrário, o Programa Saúde da Família favoreceria a
reprodução das relações desiguais de poder entre homens e mulheres.
Atualmente, a operacionalização da ESF se apresenta no meio de muitas contradições
e dicotomias. Ao mesmo tempo em que teoricamente tenta romper com o modelo hegemônico
curativo, assistencialista e hospitalocêntrico de saúde, no dia a dia, constatamos que não basta
a aprovação da política no município, nem a contratação dos profissionais e nem a definição
da área de atuação pra que este se concretize. Estamos falando de mudanças cotidianas, da
formação, da cultura de saúde, da relação entre o saber-fazer, de relações de poder, enfim, um
pacote volumoso de questões que só podem e só produzem efeitos de sentido no próprio
cotidiano de trabalho e na relação serviço-profissional-usuário. Ou seja, no cotidiano das
tecnologias leves, do aparecimento do sujeito, e não nos procedimentos duros.
Quando falamos em sujeito, nos referendamos ao sujeito da psicanálise. Sujeito será
sempre aquele tomado na sua dimensão significante, ou seja, aquilo que representa um
significante para outro significante, a partir da extração de uma parte de gozo. Esse sujeito
diferente do individuo será tomado em sua dimensão consciente e inconsciente.
A psicanálise enquanto filha da ciência só poderia encontrar o sujeito da ciência, o
sujeito do “penso, logo existo”, pois ela se interessará por aquilo pelo qual o sujeito resiste à
ciência, pelo seu particular, por aquilo que se refere à dimensão real e de gozo (SAURET,
2003).
27
O que vemos na trajetória dessas políticas, ora foi a valorização do individuo ora foi
este inserido no contexto familiar ou comunitário. No século XVII, a tecnologia médica toma
o indivíduo como objeto do saber e da pratica médica. Mais tarde a medicina social passa a se
preocupar com a saúde da população como estratégia de dominação da mesma. Esta medicina
nasce com o capitalismo e suas ações sanitárias reproduzem o modo capitalista de produção.
Essas ações invadem a família ensinando regras, bons costume, normas, relativas à higiene,
moral, intelecto etc.
Voltolini (2007) abordando essa questão da lógica capitalista nos diz que esta prevê a
primazia do objeto de gozo sobre o sujeito e a possibilidade de uma relação direta entre
ambos. Acredita-se dessa forma que o acesso direto ao objeto compensaria e seria menos
complexo do que o laço com o outro, o que implica em um desinvestimento no laço social.
No inicio do século XX, temos três modelos de assistência à saúde, tanto o de saúde
publica como o de assistência previdenciária toma o indivíduo como objeto depositário dos
problemas de saúde definidos segundo a concepção médico-hegemônica.
Com a valorização da Medicina Comunitária no final da década de 1970, o eixo
centrado nos hospitais se enfraquece, intensificando as ações preventivas e comunitárias. Do
foco no indivíduo, as políticas passam ao foco da família e da comunidade.
Diferentemente dos programas voltados à medicina da família, saúde da família de
outros locais como Canadá e Cuba, aqui no Brasil não se tratou de “mexer” com o modelo
médico-centrado. Tanto que a primeira iniciativa que antecede o Programa Saúde da Família,
foi a criação do Programa de Agentes Comunitário de Saúde. Criam um novo cargo para a
função de levar a saúde até a população.
O Programa Saúde da Família, atual ESF, tem como foco a família e a comunidade.
Prevê atendimento humanizado, escuta qualificada, participação da comunidade, consideração
do território, com todas as questões culturais, espaciais, econômicas etc.
Humanizar, escutar, participar, considerar, todas são missões que se dificultam numa
realidade onde tende a perdurar a insistência do discurso da ciência, representado pelo modelo
médico-hegemônico ainda centrado e enraizado na sociedade e nas políticas públicas de
saúde, o que reduz qualquer possibilidade de sujeito à indivíduo. Como nos dirigirmos ao
outro de um lugar que possa considerá-lo como sujeito e não como escravo da tecnologia e do
saber que sustentamos?
28
I.II NOVAS POLÍTICAS DE SAÚDE: A EDUCAÇÃO PERMANENTE EM SAÚDE
(EPS)
As modificações das políticas de educação em saúde passaram por muitas
transformações conceituais e paradigmáticas. Desde o conceito de saúde e educação até os
paradigmas de cuidado e atenção em saúde. Vários autores, pesquisadores, profissionais e
acadêmicos contribuíram com suas obras e experiências para tal mudança, tanto que
participaram e estão presentes na construção conceitual/prática de tais políticas.
Historicamente, o que chamamos hoje de educação em saúde foi um conceito-prática
que se modificou ao longo do tempo. No final do século XIX e início do XX, as ações de
educação em saúde se referiam às intervenções do Estado junto às camadas pobres visando o
combate as epidemias de varíola, peste e febre amarela. Sua característica fundamental era a
imposição de normas e medidas de saneamento, a política higienista da qual falamos no
tópico anterior. A população era considerada ignorante e deveria obedecer as ordens do
Estado. O povo deixa de ser visto como culpado por essas epidemias - reflexo da ideia de que
essas doenças surgiram das camadas populares passando a incapaz de iniciativas e decisões
acerca de sua saúde (VASCONCELOS, 2006).
As práticas sanitárias hegemônicas do século XX fundaram-se na objetividade,
neutralidade e universalidade do saber científico, bem como nos modelos de explicação do
processo saúde-doença que desconsideram o contexto sócio-cultural, econômico, político e
subjetivos dos sujeitos. A “falta de saúde” seria um problema possível de ser solucionado
desde que se tivessem informações técnicas adequadas, vontade individual e política diante
dos problemas de saúde (MEYER et al, 2006).
Somente a partir da década de 1970 é que profissionais da saúde e das Universidades
passam a fazer a interlocução com o saber popular. Surgem os primeiros movimentos
populares que passam a reivindicar melhor qualidade nos serviços de saúde e possibilidade de
participação em sua organização. Dessa relação, iniciam-se trabalhos de educação em saúde e
educação popular em saúde.
Uma das modificações mais importantes no novo modelo de educação em saúde é
justamente a valorização do saber do outro, seja esse outro os usuários, a comunidade, os
membros da equipe, quem quer que seja. Sair do invólucro do saber específico e sentar para
conversar com os outros saberes é uma das propostas inovadoras da educação permanente em
saúde.
29
Essa perspectiva tenta superar a educação em saúde que tem como foco um modelo
educativo onde existe aquele que aprende e aquele que educa. Pautada numa hierarquia de
saber que marca desigualdades, é este educador de saúde quem detém a gestão do que se deve
ou não aprender; qual comportamento se deve mudar; que padrão de saúde deve-se seguir;
quais os mais adequados à população vinculada, entre outros.
Vasconcelos (2001) define educação em saúde como “o campo de prática e
conhecimento do setor de saúde que se tem ocupado mais diretamente com a criação de
vínculos entre a ação médica e o pensar e fazer cotidiano da população” (p.25).
Campos (2003) é mais incisivo quanto a essa questão do saber do outro. O autor criou
um método bem conhecido e incorporado há algum tempo nas práticas de saúde e de
educação em saúde, presente inclusive na própria educação permanente em saúde. Trata-se do
método Paideia ou método da Roda. Proposta onde o sujeito está sempre presente no trabalho
em saúde. Educação em Saúde para o autor seria um meio de “(...) fazer circular a informação
e de modificar hábitos, valores ou a subjetividade de agrupamentos” (idem, p. 35). Segundo o
método Paideia, a educação em saúde construiria de maneira compartilhada as tarefas, sua
análise posterior e sua implementação na prática. Então, seu objetivo seria “ampliar a
capacidade de análise e de intervenção das pessoas tanto sobre o próprio contexto quanto
sobre seu modo de vida e sobre sua subjetividade” (idem).
Na perspectiva dessas críticas e do novo olhar para os processos de educação em saúde
é que em 2003, como mais um recurso de combate ao modelo hegemônico posto até então, o
Conselho Nacional de Saúde aprovou a Política de Educação e Desenvolvimento para o SUS:
caminhos para a Educação Permanente em Saúde (Portaria 198/GM/MS de 2004),
apresentada pelo Ministério da Saúde por meio do Departamento de Gestão da Educação na
Saúde, trazendo para a Saúde o desafio de implantar a Educação Permanente como uma
estratégia de reestruturação das práticas. A partir de então, o investimento em recursos
humanos do SUS seria pautado na EPS. Todos os processos educativos envolvendo os
trabalhadores da saúde se baseariam na mesma.
Em 2005, o mesmo Conselho aprova um documento que preconiza a educação
permanente no controle social, ele se chama “Diretrizes Nacionais para o processo de
Educação Permanente no Controle Social do SUS”, e como consta no próprio título está
voltado para a participação social nos processos que dizem respeito à EPS. No mesmo ano, o
Ministério da Saúde em parceria com a Fiocruz/ENSP realizou o Curso de Formação em
30
Facilitadores em Educação Permanente em Saúde (EPS.), do qual fizemos parte e que,
portanto, seu referencial também esteve presente na experiência realizada.
Para que fosse efetivada, foram criados os Pólos de Educação Permanente em Saúde
(Pólos-EP). Caberia a eles atividades baseadas nas seguintes áreas norteadoras: a EPS e a
estruturação dos pólos, atenção básica e PSF, gestão, curso de facilitadores em EPS e controle
social. Muitos centros acadêmicos e de pesquisas bem como Universidades pleiteavam
projetos direcionados para os recursos humanos do SUS. Institucionalmente os Pólos eram
organizados da seguinte forma: Colegiado de Gestão, instância que elaborava propostas,
metodologias e estratégia de atuação na perspectiva da participação e pactuação junto a todos
os atores, se organizando pelo método da Roda; o Conselho Gestor que organizava as
reuniões do Colegiado; a Secretaria Executiva, composta por docentes, estudantes, gestores e
conselho de saúde e tinham a função de dar encaminhamento as decisões do Colegiado e os
Comitês Técnicos que eram responsáveis pela análise e deliberação das áreas de formação. A
principal função do Pólo ou Rodas de EPS era articular, negociar, pactuar ações envolvendo
todos os atores, identificar necessidades, debater e tomar decisões, sempre respeitando os
princípios e diretrizes do SUS (FARIA, 2008).
Todas as dificuldades enfrentadas pelos Pólos, como mostra pesquisa de Faria (idem),
fizeram com que em 2007, a Portaria 1996/07 do Ministério da Saúde modificasse as
diretrizes e estratégias da implementação da Política Nacional de Educação Permanente em
Saúde relacionando-as ao Pacto pela Vida. Algumas das mudanças são: deixam de existir os
Pólos e passam a existir Colegiados de Gestão Regional (CGR) e Comissões de Integração
Ensino-Serviço (CIES), esta última composta por gestores municipais, estaduais e federais; o
repasse financeiro passa a ser direto fundo a fundo; cada Colegiado deverá construir um Plano
de Ação Regional de EPS, entre outros. O enfoque metodológico e referencial da EP continua
o mesmo. Em nosso Colegiado, a construção do plano ocorreu no final de 2008 e para 2009 a
intenção é que cada município construísse o seu plano de acordo com suas especificidades.
Quanto ao referencial teórico que compõem a EPS, apresentaremos os mais
importantes. O material foi construído coletivamente por muitos estudiosos, em sua maioria,
acadêmicos das Universidades. Temos referencias da área da saúde pública, da psicologia, das
ciências sociais, da educação e da filosofia. Para citar alguns: Gastão Campos, Paulo Freire,
Michel Foucault, Merhy, Minayo, Guattari, Debord, Ceccim e Dejours.
A começar pela aposta no conceito ampliado de saúde, a EPS encara a saúde como
uma experiência subjetiva, pois não é algo que vem do exterior, mas sim um assunto ligado às
31
próprias pessoas. Seria algo que se ganha, enfrenta-se e depende-se, na qual o papel de cada
pessoa é fundamental. Para um conceito mais amplo e integral de saúde, tem-se que refutar a
ideia de que o corpo humano é uma máquina, pois quando se fala de saúde faz-se referência à
sensações de dor ou de prazer e essas sensações não podem ser contabilizadas ou medidas,
pois variam de pessoa para pessoa, de acordo com a experiência subjetiva de cada um. O
conceito ampliado de saúde traz a dimensão do indivíduo para a reflexão dos processos saúde-
doença. Cada pessoa possui condições próprias para administrar, de forma singular, as tensões
do meio com os quais se convive. Diferentemente do conceito utilizado pela Organização
Mundial da Saúde, que define saúde enquanto um estado de completo bem estar físico, mental
e social, compreende-se que o conceito de saúde inclui, também, a experiência da doença,
uma vez que, compartilhamos com o conceito utilizado pelo Ministério da Saúde, ou seja, não
existe uma saúde perfeita. (BRASIL, 2005).
Compreende-se o processo saúde-doença como um processo histórico, portanto, não se
trata de processos definitivos ou opostos, pois caminham juntos, coexistem, e vão se
modificando de acordo com os contextos culturais, sociais, econômicos, políticos, físicos,
ambientais atuantes no momento (idem). Conforme descrito na Lei Orgânica da Saúde (1990),
que traz as diretrizes do SUS, “a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,
entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a
renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (BRASIL,
1990).
Nesse sentido, considerando que a experiência de estar vivo inclui a doença, o
conceito ampliado de saúde traz a ideia de “abertura ao risco”, ou seja, a compreensão de que
“os riscos fazem parte da saúde e que o mais importante é identificarmos aqueles que podem e
devem ser evitados e aqueles que são próprios da experiência da vida humana” (BRASIL,
2005, p.43). Dessa forma, as políticas de promoção à saúde teriam como objetivo minimizar
a exposição aos riscos desnecessários e “maximizar a capacidade que cada indivíduo possui
para tolerar, enfrentar e corrigir os riscos que estão presentes na nossa historia de vida”
(BRASIL, 2005, p. 43).
Resumidamente, podemos dizer que a EPS tem como desafio primordial recompor as
práticas de formação, atenção, gestão, formulação de políticas e controle social no setor de
saúde a partir desses pressupostos. A reflexão crítica sobre as práticas possibilitaria a
construção de novos sentidos em relação às experiências de cada lugar.
32
Um outro conceito importante é o de aprendizagem significativa, ou seja, a
aprendizagem motivada pelo desejo ativo dos participantes em relação à apropriação de novos
saberes e práticas, para isso traz como condição fundamental para que possa se efetivar, a
participação da população. A EPS pretende não se reduzir a uma proposta pedagógica
somente, mas também uma política, pois visa mobilizar coletivos de trabalho a ações
educativas e estas seriam ações políticas pois desencadeariam reflexões, transformações e
mudanças nos ambientes onde ocorrem. Nesse sentido, preconiza que a referência das ações
da gestão de saúde do SUS caminhe de encontro com as necessidades da população e de seus
respectivos territórios.
A Política de Educação Permanente em Saúde envolveria mudanças “nas relações, nos
processos, nos atos de saúde, e principalmente nas pessoas” (BRASIL, 2005, p. 30). Portanto,
prescindiria do envolvimento das várias instâncias do SUS; a co-gestão dos serviços, ou seja,
suas ações poderiam ocorrer de dentro ou de fora das instituições, o importante é que
estivessem articuladas e que mobilizassem toda a rede envolvida.
O curso de formação de facilitadores em EPS foi uma estratégia de intervenção nesses
processos na interface da educação e da saúde. O facilitador exerceria um papel de catalisador
e articulador da reflexão coletiva sobre as práticas de trabalho em saúde. Sua estratégia
pedagógica é a problematização das práticas e sua ação parte do pressuposto de que os
processos educativos ocorrem no mundo do trabalho, na realidade, de modo que os saberes
são sempre contextualizados. Temos então, a escuta, como uma das características mais
preeminentes nesse trabalho. É por meio desta que pudemos balizar as discussões, promover o
debate das situações entre os vários atores envolvidos e facilitar a reflexão sobre os processos
de trabalho no SUS. Segundo o material de formação (Brasil, 2005) há que se investir na “(...)
capacidade de escuta às demandas, no processamento de problemas e na gestão compartilhada
dos projetos de intervenção parecem oferecer maior capacidade de viabilizar gestões
participativas” (p. 89). Ainda, construir novos modelos de gestão e de organização dos
serviços de saúde que tenham como referência a escuta dos usuários, que possam criar esses
dispositivos de escuta, decodificação e trabalho. Concluindo, nessa política todos são
convocados a “potencializar ou desenvolver suas capacidades de reinventar, de descobrir e de
ativar processos de mudança” (BRASIL, 2005, p. 36).
A EPS não é só uma metodologia de trabalho, mas principalmente uma política que,
como a Estratégia Saúde da Família, tenta reorientar o modelo de atenção, cuidado e
assistência em saúde. Não é um método de capacitação de recursos humanos como faz a
33
Educação Continuada e sim uma forma de organização de todos os processos de trabalho no
SUS, aposta em uma nova lógica de ver e ser em Saúde.
Como podemos ver passamos de uma lógica onde o indivíduo estava tomado como
objeto, depositário das praticas de saúde para uma na qual este é chamado a ocupar o lugar
onde seu saber será valorizado, e mais, pautará as práticas de saúde e as decisões sobre a
organização dos serviços. De fato, frente às práticas de coerção, imposição, tutela dos
indivíduos, a Educação Permanente em Saúde surge como um modelo inovador. Cabe
ressaltar que por mais valorizado que sejam, ainda se tratam de indivíduos e não de sujeitos.
Tenta romper com a questão da saúde como ausência de doença, propondo um
conceito ampliado de saúde onde esta inclui a experiência da doença. Se a possibilidade de
adoecer já faz parte da vida, então sugere o material do curso de formação, nosso trabalho
seria o de identificar os riscos que devem ser evitados e aqueles que são próprios da
experiência humana. Então, perguntamos o que não seria próprio da experiência humana?
Como podemos discernir os riscos e depois diferenciá-los em aqueles que temos de evitar e
aqueles que fazem parte de nossa existência? Seria acreditar numa essência do indivíduo?
Em relação à proposta pedagógica dessa política três elementos nos chamaram a
atenção. Um se refere à capacidade, outro ao desejo ativo e à escuta. Seria missão da
Educação Permanente em Saúde aumentar a capacidade de cada indivíduo de tolerar, superar,
suportar os riscos da vida. O material não nos traz como isso seria possível. Como
poderíamos aumentar a capacidade das pessoas diante dos riscos à saúde? O risco que temos
de nos envolver em x ou y situação estaria relacionado a uma capacidade? A algo relacionado
a nossa consciência, que poderíamos mediante um trabalho com ela, aumentar a possibilidade
de tolerar ou de superar situações da vida?
Quanto ao conceito de aprendizagem significativa que relaciona o desejo ativo por
novos saberes à participação da população, nos perguntamos como podemos desenvolver um
desejo ativo nas pessoas? Como se instala esse desejo? Basta ter garantida a participação
popular para que este se instaure o desejo pelo novo?
A EPS traz a importância da escuta, como estratégia pedagógica, para que se possa
problematizar as práticas a partir do cotidiano de trabalho das pessoas, ou seja, da realidade da
qual fazem parte. O que se escuta então? A resposta já está dada, a realidade. Se escuta a
dimensão imaginária. Se crermos que não se trata de indivíduo mas de sujeitos, não
poderíamos conceber que se escute apenas a realidade. Isso seria afirmar que o sujeito é
formado apenas pela dimensão imaginaria, consciente. Já vimos que disso não se trata. É
34
possível que essa política se sustente sem considerar a possibilidade de produção de sujeitos?
Que outra escuta é possível? Para a psicanálise, não se escuta apenas a realidade, mas se
escuta o não-dito, o não-sabido dos sujeitos. A problematização pode avançar também na
dimensão simbólica e real destes.
I.III PREVENÇÃO ÁS DST/AIDS NO CONTEXTO DA ESTRATÉGIA SAÚDE DA
FAMÍLIA
Agora adentremos a outro campo também relacionado à nossa experiência e as
práticas educativas em saúde, com foco no modelo preventivo.
Conforme ressaltado nos Cadernos da Atenção Básica HIV, hepatites, e outras DST,
organizado pelo Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Atenção Básica, muitos
são os esforços que se tem feito para a incorporação das ações de prevenção DST/Aids na
atenção básica à saúde, “... uma vez que possui uma rede de serviços capilarizada em todo
território nacional e suas equipes trabalham com enfoque na promoção da saúde, tendo uma
grande inserção na comunidade” (BRASIL, 2006, p. 19). Sabemos que essa não é a realidade
de todos os locais, mas é o que se almeja enquanto diretrizes de um conjunto de ações.
As ações de prevenção para a Atenção Básica devem ser norteadas por: respeito à
diversidade de orientação sexual e estilos de vida; diálogo objetivo sobre sexualidade e uso de
drogas; concepção sobre redução de danos na abordagem/atendimento aos usuários de drogas;
consideração à singularidade de cada usuário; articulação com a sociedade civil organizada;
acolhimento e estimulo à testagem para o HIV; atitudes de solidariedade e
antidiscriminatórias e garantia dos direitos individuais e sociais das pessoas vivendo com
HIV/Aids. Ainda, nas orientações sobre o aconselhamento tanto individual como de grupo,
enfatiza-se a importância das discussões sobre os “temas associados” que seriam no caso,
sexualidades, gênero, cidadania, vulnerabilidade, diagnostico precoce, redução de danos etc.
(BRASIL,2006).
Os documentos e cartilhas Governo Estadual (São Paulo) e Federal
5
, apontam a
Estratégia de Saúde da Família enquanto um dos melhores modelos em saúde para se
trabalhar as questões de Prevenção às DST/Aids, devido, sobretudo, às suas características,
isto é, o vínculo estabelecido com a população do território de abrangência da Unidade, a
lógica de cuidado menos técnica e mais relacional, a tentativa de romper com o modelo
5
Ver em Secretaria de Estado da Saúde, 2003; Brasil, 2006; Brasil, 2005.
35
centrado no médico, a co-responsabilidade com o processo saúde-doença dos profissionais e
da população, a valorização dos saberes e da cultura da população local, entre outros. Tais
características são fundamentais para um bom atendimento, acolhimento, abordagem e
assistência aos usuários e para os trabalhos de prevenção às DST/Aids, pois criam um campo
favorável para se falar sobre práticas sexuais, sentimentos, emoções, sexualidades, prazer,
necessidades, e tantas outras coisas que fazem parte da vida das pessoas.
Segundo as diretrizes da Política de Prevenção do Programa Nacional de DST/Aids do
Ministério da Saúde, para que o trabalho de prevenção de fato cumpra seu papel é necessário
que se integrem às suas ações de prevenção os temas como direitos humanos, gênero,
exclusão social, sexualidade, orientação sexual, raça, geração e uso de drogas, de forma a dar
visibilidade às diferentes vulnerabilidades (individuais, sociais e programáticas). Portanto, é
importante abordar o contexto das práticas sexuais, parcerias, dos relacionamentos afetivos,
do prazer, preconceito e da discriminação. Pois, todos esses são fatores que interferem na
relação que o sujeito estabelece com o seu corpo, seu desejo e sua prática sexual,
possibilitando ou não práticas de cuidado, de negociação do preservativo, de redução de risco
e de exposição às DST/Aids (BRASIL, 2006).
Como podemos constatar nas diretrizes governamentais em relação as DST/Aids, o
trabalho de prevenção se ampliou. O discurso da prevenção vigente contempla múltiplas
questões. Diferentemente do inicio da epidemia de Aids, onde as campanhas governamentais
se concentravam num discurso proibitivo, moralista e estigmatizador, pois tinha como foco os
homossexuais enquanto “grupo de risco” à infecção pelo HIV. Isso teve por efeito reforçar o
tabu e a repressão sobre os comportamentos sexuais ditos “anormais” recrudescendo,
portanto, o estigma e desigualdade já acentuadas em relação esses segmentos populacionais.
Outra consequência direta dessa lógica segregativa foi a produção de uma falsa ilusão de que
quem não participasse desse “grupo de risco” estaria à salvo do risco de infecção. Assim
como as práticas sanitárias já citadas, os métodos educativos eram coercitivos e
amedrontadores. Era pela via do medo e de um pânico instalado que os trabalhos de
prevenção se orientavam.
Com o avanço de pesquisas e do entendimento acerca da pluralidade da sexualidade
humana, levando em consideração a sua construção social e a influência de aspectos culturais,
históricos, relacionais e simbólicos mais do que os biológicos, os epidemiologistas
reformulam o entendimento a cerca da Aids e criam outra categoria para o estudo desse
fenômeno, a saber: “comportamento de risco”. Contudo, essa mudança paradigmática, ainda
36
que tenha sido de grande avanço para o combate à aids, manteve a idéia de risco a qual não é
suficiente para a produção de políticas públicas de prevenção e controle da epidemia, de
combate ao estigma social que recai sobre pessoas vivendo com HIV/Aids e segmentos
sociais específicos tais como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros
(LGBT), profissionais do sexo (masculinos e femininos) e mulheres.
Sendo assim, um outro conceito veio modificar e reorientar a prevenção às DST/Aids,
o de vulnerabilidade. Esse veio como contraponto à ideia de “grupo de risco” e
“comportamento de risco”, o que existe são situações de maior ou menor risco a algum
agravo. O risco não está na essência de alguém, bem como não pertence a algum grupo
específico.
O conceito “risco” traz uma definição baseada num paradigma individual, ou seja, está
nas mãos unicamente do indivíduo sua capacidade lógica de escolher o que é bom pra ele. A
ideia de que nossas escolhas são sempre racionais. Essa noção embasou muitas pesquisas e
campanhas sobre comportamentos de risco (DESLANDES, 2002). Como também as políticas
de educação em saúde como vimos no tópico anterior.
A influencia na área da saúde se deu devido ao sucesso do conceito na realização de
três tarefas: a primeira seria a ideia de que o corpo está em risco sempre, ou seja, a mercê de
algum fator ambiental que o colocaria nessa situação antes mesmo que este tivesse sua ação
no próprio corpo; a segunda se refere às determinações, probabilidades, proporcionalidades
calculadas diante das situações de risco, exigindo um controle intenso sobre os fatores de
risco; e por fim, a terceira que coincide o sucesso prático de alguma intervenção ao rigor de
controle técnico, portanto, se os resultados são negativos, então é porque o controle e a
intervenção não foram suficientes (AYRES, 2001). A epidemia de Aids trouxe para essa
noção de risco seus alcances, limites e contradições de forma que seu domínio já não dava
conta da complexidade de questões.
O conceito vulnerabilidade foi criado por Jonathan M. Mann, o primeiro coordenador
da Coalização Global de Políticas contra a Aids, em 1993, com forte influência dos direitos
humanos e trazido para o Brasil pelo médico sanitarista José Ricardo Ayres por volta de 1996.
A noção de vulnerabilidade, segundo Ayres (1996, p. 18), “visa não à distinção daqueles que
têm alguma chance de se expor à Aids, mas sim ao fornecimento de elementos para avaliar
objetivamente as diferentes chances que todo e qualquer indivíduo tem de se contaminar,
dado o conjunto formado por certas características individuais e sociais do seu cotidiano,
julgadas relevantes para a maior exposição ou menor chance de proteção diante do problema”.
37
Vem na tentativa de ampliar os horizontes normativos e reguladores para o foco no respeito e
na promoção dos direitos humanos. Assinala uma proposta de mudança dentro dos trabalhos
de prevenção as DST/Aids minimizando os discursos sanitários para os discursos que
considerem os sujeitos.
Ayres (1996) distingue três tipos de vulnerabilidade: a social, individual e
programática. Esses tipos remeteriam a três questões: Vulnerabilidade de quem?
Vulnerabilidade a quê? Vulnerabilidade em que circunstâncias ou condições? A
vulnerabilidade social diz respeito ao contexto social onde o indivíduo está inserido, levando-
se em consideração fatores como acesso à informação, ao tratamento e aos serviços de saúde,
índice de mortalidade infantil, aspectos sócio-políticos e culturais, grau de liberdade de
pensamento e expressão, condições de bem estar social como moradia, escolarização, acesso a
bens de consumo, entre outros. A vulnerabilidade individual está relacionada aos
comportamentos que criam a oportunidade de infectar-se, bem como, o grau de consciência
que os indivíduos têm dos possíveis danos decorrentes de tais comportamentos e, também, o
poder de transformação de cada um em relação a comportamentos a partir dessa consciência.
Por fim, a vulnerabilidade programática ou institucional diz respeito ao compromisso
das autoridades locais para o enfrentamento do problema, parcerias entre setores
governamentais e não-governamentais, planejamento e gerenciamento de ações, a capacidade
de resposta das instituições envolvidas, o financiamento adequado e estável dos programas
propostos bem como sua continuidade e sustentabilidade.
Nota-se que o conceito vulnerabilidade se firmou ao desmontar a ideia de grupo e de
comportamento de risco, preservando o risco, porém dentro do campo da vulnerabilidade.
Contudo, no que diz respeito à vulnerabilidade individual ainda se encontram alguns
problemas. Como por exemplo, a crença de que nossos atos são movidos somente pelo “grau
de consciência” que temos das coisas, que podemos decidir e escolher o que é melhor para
nós, que basta termos as informações para que possamos nos prevenir, calcular as
possibilidades do inesperado em nossas vidas. Este sujeito é aquele que chamamos acima
como o sujeito da ciência, aquele que acredita que existe porque pensa.
Nesse sentido, fazem-se necessárias outras contribuições que possam considerar o
sujeito como aquele que possui desejos que ele não domina, que não tem controle por mais
que tente; que estes são constituídos, indiscutivelmente segundo o olhar da Psicanálise, por
processos inconscientes. Inconsciente relacional, estruturado como linguagem. Portanto, a
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vulnerabilidade de um sujeito também estaria relacionada a esses processos, onde se apresenta
a dimensão singular de sua história.
Na perspectiva de um trabalho ampliado de prevenção também teve-se que rever,
discutir e analisar as questões sobre a sexualidade. Tema antes discutido na perspectiva do
controle e da orientação normativa dos comportamentos adequados a uma sexualidade
“normal”, acaba por retornar no pós-epidemia de Aids, na década de 1980, onde tem a
oportunidade de se reconstruir. Para criar estratégias de prevenção tinha-se que compreender a
cultura sexual dos diferentes povos. Suas tradições, rituais, concepções, comportamentos
diante das diferentes situações de vulnerabilidade, enfim, uma teia complexa de pontos que se
cruzam e se relacionam.
Fazendo um breve percurso pelos usos da sexualidade, desde a ciência sexual até os
dias atuais, podemos clarificar o modo como esta foi se configurando ao longo dos tempos e
compondo as políticas públicas de prevenção às DST/Aids. A descoberta da Aids traz tanto
para a vivência da sexualidade como para seu controle novos questionamentos, por parte de
toda sociedade.
A coleção de artigos organizados por Porter e Teich (1998), trata, dentre outros
contextos, das principais formulações da sexologia nos períodos compreendidos entre a
década de 1870 e a Primeira Guerra Mundial e, também, reflete como os sexólogos
desenvolveram estudos e pesquisas sobre as atividades sexuais consideradas patológicas,
desviantes e “não-normais”. Conforme os abrtigos, o foco dos representantes da sexologia da
virada do século, como Havelock Ellis, Richard von Krafft-Ebing e Magnus Hirschfeld, foi
investigar aquilo que era considerado desviante da ordem social vigente em relação aos papéis
sexuais, ou seja, invertidos, psicopatas, pervertidos, homossexuais, pedófilos, travestis,
fetichistas, prostitutas, degenerados, libertinos etc. Juntamente com a criação de categorias de
classificação, a sexologia da época também produziu um corpo de instrumentos, como a
perícia em classificação e os diagnósticos que eram requeridos para administrar os hospícios,
hospitais, reformatórios e prisões.
Os fundadores da sexologia moderna, segundo Porter e Teich (1998, p.31) “basearam
sua autoridade intelectual na convicção de que algumas pessoas teriam predisposição a
envolver-se em atividade sexual anormal”. Não se negava o fato de que essas práticas
consideradas “não naturais”, como a sodomia, fustigação e masturbação, sempre existiram,
contudo assumem um caráter diferente desde então. Por exemplo, em relação a
homossexualidade não foi bem assim. Até o século XIX as pessoas de mesmo sexo biológico
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se relacionavam homoeroticamente, mas não eram chamadas homossexuais e, portanto, não
se sentiam enquanto tais. Assim, as práticas homoeróticas existiam, mas não existia a
homossexualidade. A palavra homossexual foi usada pela primeira vez na Alemanha em
1869, pelo escritor austro-húngaro, Karl Maria Kertbeny. Ele publicou manuscritos
clandestinos, dirigidos ao governo alemão, visando combater o Código penal 143 prussiano
que criminalizava esta prática sexual, argumentando que não se podia criminalizar uma
condição “inata” e “natural” compartilhada por muitos homens de bem ao longo da história.
Entretanto, essa publicação só é feita em 1969 na Alemanha. Em 1880, Gustav Jaeger
(zoólogo) convida Kertbeny para realizar o prefácio de seu livro. Richard von Kraft-Ebing
(sexólogo), amigo de Gustav, “emprestou” o termo utilizado pelo amigo para lhes dar outra
conotação. No livro de Gustav, o homossexual estava referendado e colocado como uma
condição natural e inata, na tentativa de descriminalizar a pratica homoerótica. Já Kraft-
Ebing, traz para sua obra sobre as patologias sexuais o homossexual na perspectiva
patológica. Pela primeira vez, em 1887, na segunda edição de seu livro Psychopathia sexualis,
o homossexual e sua prática estão diagnosticados enquanto doença. Assim, o termo nasce da
militância contra a criminalização do homoerotismo e se torna signo de doença. Por isso, a
afirmação de que a homossexualidade foi inventada historicamente como uma categoria
específica e oposta a uma norma que se define em grande parte por aquilo que ela exclui.
(TEIXEIRA FILHO, mimeo, 2007, p. 4).
Porter (1998), em seu artigo sobre a literatura do aconselhamento sexual até 1800,
demonstra o que significava o sexo para esses manuais de aconselhamento sexual da época. O
“sexo correto” seria aquele que tivesse como fim a procriação. Sem exceções, era permitido o
coito entre homens e mulheres unidos pelo matrimônio e que gerasse filhos. Dessa maneira,
tanto a masturbação como as práticas homoeróticas eram condenadas.
Weeks (1999) descreve sobre as concepções do que seria o sexo tanto para Richard
von Krafft-Ebing quanto para Havelock Ellis, ambos representantes da sexologia do final do
século XIX. Krafft-Ebing classificava o sexo como um “instinto natural”, como uma força
avassaladora que exige satisfação, aos moldes da sexualidade animal. Já para Havelock Ellis,
o sexo era mais que uma força avassaladora, pois era um elemento que faz parte da natureza
do eu, que o constitui.
Até o final do século XIX, no Ocidente, foi essa lógica que regeu os significados da
sexualidade humana. Respaldada por um paradigma de ciência, a sexologia se pautava na
definição, identificação e tratamento dos aspectos patológicos da sexualidade, considerada
40
como algo pertencente à essência do sujeito, ou seja, como sua verdade interior. O
investimento nessa ciência da sexualidade se dá num momento histórico, como relatado no
tópico anterior, onde a medicina se dedica a criar normas de conduta para tudo o que
considera desviante. Com o foco na infância e na família, que eram as instituições a serem
resguardadas e protegidas das possibilidades de desvios de comportamentos.
No início do século XX, Freud é o responsável por romper com essa dimensão
patologizante da sexualidade, trazendo a ideia do sexual enquanto um conjunto de atividades
e de relações sem ligação com os órgãos genitais. O sexual não deverá ser confundido com o
genital e a sexualidade seria um dos aspectos e das manifestações da vida sexual.
Na principal obra de Freud (1905/1973) a respeito da sexualidade, intitulada Três
Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, o autor desenvolve em três capítulos suas descobertas
acerca da sexualidade. Seu principal questionamento foi em relação à noção de “instinto”
utilizada até então. No lugar de instinto, o autor traz o conceito de pulsão
6
, contrapondo a
concepção geral de que esses “instintos sexuais” estariam ausentes na infância, se
manifestando somente na puberdade, bem como, teriam como objetivo único a união sexual
dos dois sexos e estariam ligados unicamente a objetos externos. As pesquisas de Freud
mostram que a pulsão sexual está presente desde a infância e que desde muito cedo obtemos
prazer, pois possuímos em nosso corpo regiões que se transformam em zonas erógenas e
tornam-se sedes de novas sensações, novos objetos e objetivos sexuais, trazendo prazer e
satisfação sexual.
Sobre a natureza das pulsões Freud argumenta que “... em si, um instinto
7
não tem
qualidade, e no que concerne à vida psíquica deve ser considerado apenas como uma medida
de exigência de trabalho feito à mente. O que distingue os instintos um do outro e os dota de
qualidades específicas é sua relação com suas fontes somáticas e com seus objetivos”
(FREUD, 1905/1973, p. 61). Com essa compreensão e nos estudos posteriores, Freud (ibid)
contrapõe à natureza biológica, hereditária, inata e congênita de pulsão sexual a ideia de que
de fato não nascemos com uma pulsão ligada a um determinado objeto sexual. A relação da
pulsão com seu objeto é acidental, pois o objeto encontra-se colado à pulsão em razão de sua
6
“Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz tender
o organismo para um alvo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal (estado de
tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a
pulsão pode atingir seu alvo. (LAPLANCHE & PONTALIS, 1977, p. 506)
7
“As primeiras versões dos textos freudianos, tanto em francês como em inglês, favoreceram esse mal
entendido, ao proporem de uma forma quase sistemática, que se traduzisse por instinto o termo alemão Trieb
(CHEMAMA &VANDERMERSCH, 2007, p. 321). Na tradução para o português também permaneceu o termo
instinto, pois esta foi traduzida da versão inglesa. Então, onde está instinto, se lê pulsão, no original, trieb.
41
história e não de uma inscrição biológica. Daí, a disposição perverso-polimorfa da
sexualidade infantil, onde a criança não está submetida a roteiros fixos com predomínio da
genitalidade.
Quanto à perversão, Freud (ibid) questiona o entendimento da época de que as
atividades sexuais que não envolvessem a zona genital (pênis/vagina) e que não tivessem
como fim a procriação seriam consideradas formas de perversão dos sujeitos. O autor mostra
com seus estudos que existiam atividades sexuais consideradas pervertidas que também
estavam presentes nos atos sexuais considerados normais, como, por exemplo, a excitação de
outras partes do corpo que não a genital e a presença de atos diferentes do contato entre
genitais (pênis/vagina). Freud conclui que se tornava difícil qualquer distinção entre normal e
patológico, já que, para cada indivíduo, essas pulsões assumiriam um caráter particular e
singular.
No contexto da História e da Sociologia da sexualidade, a sexualidade tem sido
discutida não mais como uma essência, mas como um dispositivo de saber/poder e que,
portanto, vai sendo construído na cultura. Segundo Weeks (1999) várias correntes teóricas
sustentam essa abordagem como a Antropologia Social, a Psicanálise de Freud (da qual já
expusemos acima), a nova História Social e a nova Política a cerca da sexualidade
(feminismo, movimento LGBTT - lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e
transgêneros, entre outros). A antropologia argumenta que a sexualidade está sujeita a
modelagem sócio-cultural, contrariando a crença de que a sexualidade nos diria a verdade
definitiva sobre nós mesmos e sobre nossos corpos, ao invés disso, ela nos diz algo mais sobre
a verdade de nossa cultura. A nova História Social explorou áreas até então não exploradas
como a história do gênero e do corpo, dando novas configurações à homossexualidade, à
infância, à prostituição, às identidades sexuais dos indivíduos etc. Por fim, os movimentos de
mulheres, LGBTT, e outros têm questionado as tradições sexuais, possibilitando novas
compreensões sobre formas de poder e de dominação presentes em nossa sociedade.
Ainda, dentro dessa lógica, destacam-se as idéias de Michel Foucault sobre a
sexualidade, ao afirmar que o sexo foi colocado em discurso e a partir daí “[...] temos vivido
mergulhados em múltiplos discursos sobre a sexualidade, pronunciados pela igreja, pela
psiquiatria, pela sexologia, pelo direito [...]” (LOURO, 2004, p. 41). Para Lacan, o sexo é
efeito de discurso.
42
Foucault (1988), no capítulo IV de História da Sexualidade, vol. I, expõe sobre o
dispositivo da sexualidade e a sua concepção de poder, enquanto difuso no social e presente
em todos os pontos, e faz a relação desse com o discurso e a sexualidade.
Para Foucault (1979, p. 244) seu sentido e função metodológica seria que: por meio
dele tentou-se demarcar, primeiramente, um conjunto heterogêneo que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. O dito e
o não dito são os elementos do dispositivo, e este é a rede entre esses elementos. Esses podem
aparecer como programa de uma instituição, como elemento que permite justificar e mascarar
uma prática, como reinterpretante desta prática. Entre eles pode haver mudanças de posição,
modificações de funções. O dispositivo seria um tipo de formação que em um determinado
momento histórico teve como função principal responder a uma urgência, portanto, tem uma
função estratégica dominante.
O dispositivo funciona segundo dois momentos: no primeiro existe a predominância
de um objeto estratégico e no segundo, o dispositivo se constitui como tal e continua sendo
dispositivo na medida em que engloba um duplo processo. O de sobredeterminação funcional,
onde cada efeito, positivo ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição
com os outros e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que
surgem dispersamente; outro processo seria o de preenchimento estratégico (idem, p. 245).
Com o exemplo citado a compreensão se torna mais fácil: no processo de aprisionamento
tem-se que os efeitos produzidos não estavam previstos, pois na tentativa de acabar com a
criminalidade por meio das prisões cria-se um lugar (a prisão) de produção de delinquência. A
partir de 1830 assiste-se uma nova estratégia sendo criada sobre este efeito: o meio
delinquente passou a ser reutilizado com finalidades políticas e econômicas, isso é o que
Foucault chamou de preenchimento estratégico do dispositivo. Este está sempre inscrito num
jogo de poder e ligado a configurações de saber que dele nascem, mas que também o
condicionam.
Segundo Foucault (1988, p.100), a sexualidade “[...] é o nome que se pode dar a um
dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à
grande rede de superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a
incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das
resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de
poder”.
43
Contra o argumento da repressão em relação ao sexo, Foucault (1988), demonstra nos
trabalhos sobre a hipótese repressiva, que, ao contrário do que se imaginou em relação às
descobertas da sexologia e de Freud, as pessoas não passaram a falar menos de sexo, pelo
contrário passou-se a falar dele de outra maneira, por meio de outras vozes, a partir de outros
pontos de vista e com o objetivo de obter outros efeitos.
Foucault (1988), em sua obra História da Sexualidade - A vontade de saber, discute os
dois grandes procedimentos para se produzir a verdade sobre o sexo. De um lado, as
sociedades que adotavam a ars erotica, como China, Japão, Índia, Roma, nações árabes
muçulmanas. Na arte erótica a verdade seria extraída do próprio prazer, não obedecendo a
uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a uma utilidade e sua referência seria o
próprio prazer. Seria como um saber que recaísse sobre sua própria prática sexual e que
deveria permanecer secreto, para que não perdesse sua eficácia e sua virtude quando
divulgado. Nesse sentido, a relação com o mestre detentor dos segredos sobre a arte erótica
seria fundamental, somente esse poderia transmitir esse saber. De outro lado estaria a
civilização ocidental com a scientia sexualis. Segundo o autor (idem), nossa civilização não
possui uma ars erotica, e é a única a praticar uma scientia sexualis. Somente a nossa
sociedade desenvolveu ao longo dos séculos “procedimentos que se ordenam, quanto ao
essencial, e função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e
ao segredo magistral, que é a confissão” (idem, p. 58). A confissão passou a ser para essa
sociedade uma das técnicas mais valorizadas para produzir a verdade. Foram desenvolvidas
técnicas de confissão, métodos interrogatórios e de inquérito na justiça criminal e nas igrejas.
A confissão teve um papel central nos poderes civis e religiosos. Considera importante
pontuar que a instância de dominação não está do lado de quem fala e/ou confessa, ou seja, de
quem está sendo pressionado, mas, está do lado de quem escuta e cala.
Aí estaria uma das críticas foucaultianas à Psicanálise. Não nos cabe nesse momento
aprofundar-mo-nos. Mas, rapidamente, apresentamos um debate de Foucault (1979, p. 243-
273) onde essa discussão aparece. Trata-se do capítulo XVI de Microfísica do Poder, onde o
autor discute com psicanalistas sobre esse ponto. Afirma que as técnicas de confissão são
mecanismos que incitam o sujeito a produzir um discurso de verdade sobre sua sexualidade e
que é capaz de ter efeitos sobre ele. Jacques Alain Miller, um dos psicanalistas presentes, o
questiona sobre a relação das técnicas de confissão com a psicanálise e a verdade. Interroga o
autor sobre se não haveria uma diferença essencial no fato de que nesse mecanismo de
confissão situado por ele o sujeito conheceria sua verdade; ao passo que na psicanálise a
44
premissa é a de que o sujeito não a conhece. E que esse não-conhecer tem o estatuto
inconsciente e, portanto, se diferenciaria do não-conhecer na direção da consciência cristã.
No capitulo XV, “Não ao sexo rei”, do mesmo livro, Foucault (ibid) mostra como
nossa sociedade durante tantos séculos ligou o sexo à verdade. Ainda questiona: o que explica
que em nossa sociedade o sexo não seja apenas para a reprodução da espécie? Como a
sexualidade se tornou algo que diz da verdade do sujeito, parafraseando a frase bíblica, no
sentido de “digas como vive sua sexualidade, que te direis quem és!”, todas as tecnologias
utilizadas (confissão, exame da consciência etc.) não foram apenas para proibir o sexo, mas
também uma forma de colocar a sexualidade no centro da existência. O sexo foi aquilo que
nas sociedades cristãs era preciso examinar, vigiar, confessar, ou seja, transformar em
discurso.
Daí decorre a tese foucaultiana de que essas sociedades não pararam de falar da
sexualidade e de fazê-la falar, mas desde que esse falar fosse para proibi-la. Foucault ressalva
neste momento que essa sexualidade não se fez apenas nos discursos
8
, mas também nas
práticas e nas instituições; que as proibições existem ao lado das incitações, valorizações; e
que não se trata de uma bipolarização das coisas (exemplo: a loucura e o enclausuramento, a
delinqüência e a prisão etc.), mas que sua questão sempre foi a “verdade”, o discurso
verdadeiro sobre as coisas. Nesse sentido sua questão com a sexualidade seria: como o poder
que se exerce sobre o sexo produziu o discurso verdadeiro da sexualidade?
Como exemplo disso cita a miséria sexual da infância, onde no período de coerção da
masturbação infantil, inicia-se uma série de “cuidados” com a infância. Vê-se uma
reorganização das relações dentre crianças e adultos, intensificação das relações familiares,
escolares, a criança se torna a semente das gerações futuras. O sexo das crianças torna-se alvo
e instrumento do poder. Constitui-se assim uma sexualidade infantil que deveria ser
controlada, vigiada. O objetivo desta miséria não era proibir somente, mas constituir uma rede
de poder sobre a infância.
Aí está uma critica importante de Foucault sobre a miséria sexual: a idéia de que essa
miséria viria da repressão e que para ser feliz, para não vivermos sexualmente miseráveis,
seria preciso liberar as sexualidades. Essa ideia não passaria de um instrumento de controle e
de poder, pois investe em que acreditemos que seria suficiente para sermos felizes eliminar
8
Aqui discurso quer dizer um conjunto de enunciados que podem pertencer a diferentes campos mas que
obedecem a regras de funcionamento em comum (REVEL, 2002).
45
algumas proibições que nos afetam. De fato é possível a passagem de um discurso proibitivo
para um libertador?
Nesse sentido, os movimentos de liberação sexual deveriam ser movimentos de
afirmação a partir da sexualidade, ou seja, que partem da sexualidade, do dispositivo da
sexualidade no interior do qual estavam presos para fazer com que ele funcione até seu limite,
e que posteriormente se desloquem em relação a ele, ultrapassando-o. Como no caso das
relações homoafetivas, quando por volta de 1870, os psiquiatras começam a constituí-la
enquanto objeto de analise médica, criando explicações, intervenções e controles novos, e
forjando uma identidade clinica: o homossexual. Os homossexuais passam a ser percebidos
como perversos, doentes, loucos. Em resposta a isso, uma nova literatura, diferente das
narrativas libertinas presentes até então, surge no final do século XIX, o que para Foucault é a
“inversão estratégica de uma mesma vontade de verdade” (FOUCAULT, 1979, p. 234).
Então os movimentos de afirmação de maneira geral deveriam utilizar essa estratégia:
partiriam da sexualidade que se procura dominar, controlar, esquadrinhar, para atravessá-la,
caminhando em direção a outras possibilidades.
Interessante notar que as questões relacionadas à sexualidade aparecem com maior
visibilidade na área da prevenção às DST/Aids. Como se “de sexualidade quem entende é o
povo da Prevenção”. Entendemos que o contexto da epidemia trouxe mais enfaticamente
essas discussões, foi necessário que isso ocorresse. Mas, passado tanto tempo, poderíamos
questionar o que tem produzido no social e nos sujeitos essa relação
sexualidade/infecção/doença.
Na pesquisa realizada por Silva (2005, p. 54), os profissionais pesquisados apontam
que as questões da sexualidade surgem quando o usuário “homem” vai em busca do serviço.
Temos aí a confusão de sexualidade com gênero. Uma agente comunitária relata o medo da
visita a homens, sua preocupação com o que vão falar, as fofocas e a vergonha. Por ser a
unidade de saúde um espaço considerado feminino, o surgimento do sexo oposto traz a
dimensão da sexualidade, como se o homem fosse um intruso. Ainda, segundo Scott (2005),
os homens incomodam muito mais as equipes porque não são percebidos como homens de
família. Para lidar com essas situações que envolvem sexualidade os profissionais utilizam-se
de conhecimentos não técnicos, de natureza pessoal e de ordem moral. Assim, “(...) homens e
adolescentes estão ausentes das estratégias assistenciais e homossexuais e profissionais do
sexo são alvo de preconceito por parte das equipes” (idem, p.55).
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As mulheres são o alvo principal das intervenções relacionadas à sexualidade. Então,
podemos responder quem é o sujeito/indivíduo do PSF? Em primeiro lugar esse sujeito
profissional e usuário é a mulher. Silva (2005) analisa que a saúde parece ser um assunto
feminino, o que afasta os homens dos serviços, quando estes aparecem acredita-se que é por
um “bom motivo”, com problemas já mais agravados e urgentes.
Pesquisa realizada por Scott (2005) relata o enfoque materno dado as mulheres dentro
do PSF. As mães são vistas como aliadas dos profissionais de saúde, pois por meio delas se
alcançam as metas do programa. Com isso, a equipe privilegia a mãe de família e se esquece
da mulher, da esposa. Assim, o papel da mulher continua sendo o de reprodutora, de forma
que todas as ações das equipes visam essa mulher-mãe, mais mãe que mulher. Os homens vão
ficando à margem das ações, afinal “(...) se quem tem conhecimento sobre a saúde são as
mulheres, o que é que os homens têm para fazer nas Unidades de Saúde?” (p. 91).
Quanto ao modelo do PSF e as relações de gênero, Portella (2005) afirma que “(...) ao
mesmo tempo em que permite a ampliação do serviço e a melhoria dos indicadores de saúde,
favorece a reprodução de valores e relações sociais conservadoras, que no que toca às
mulheres, contribuem para o agravo de suas condições de saúde, como no caso das DST e da
Violência” (p. 165).
Diferentemente do que pode parecer a priorização da mulher nos serviços de saúde não
é bom para ela. Na medida em que, por alguns dos motivos elencados acima, não se consegue
trazer o homem para o serviço, não se consegue implicá-lo nas questões de saúde, como por
exemplo, em relação às DST/AIDS, onde o acesso aos parceiros sexuais é fundamental para o
tratamento. E, portanto, não basta tratar somente essa mulher que chega à Unidade. Além do
que o serviço de saúde continua colaborando para deixar essa mulher nesses lugares
naturalizados, como o de mãe e esposa.
Temos então a ESF enquanto um espaço onde as relações de poder produzem o
machismo e as desigualdades de gênero, afetando tanto os homens como as mulheres no que
diz respeito ao acesso e ao cuidado em saúde.
A falta da problematização das relações de gênero nos espaços de Saúde dificulta a
mudança do paradigma biologista, focado na doença e não no sujeito e na sua saúde. Em uma
das primeiras oficinas que realizamos com os grupos da ESF, durante a capacitação, onde
trabalhamos os papéis de homens e mulheres em nossa sociedade, pedimos aos participantes
que construíssem uma receita de homem e de mulher, que colocassem ali tudo o que
consideravam necessário para se fazer homem e se fazer mulher. Entre tantas receitas com
47
certa semelhança, uma se destacou. Para um dos médicos presentes a receita ficou assim:
“HOMEM=XY / MULHER= XX”. E ponto final, o homem e a mulher se definem por sua
combinação cromossômica.
Em nossa experiência junto às equipes e sujeitos da Estratégia Saúde da Família em
questão, o foco deixa de ser a prevenção às DST/Aids e passamos a escutar outras questões
que veremos mais a frente. O que não quer dizer que não tratamos desses assuntos, das
sexualidades, de gênero, apenas, não estávamos fechados somente nisso, pois outras
demandas acabaram por se desdobrar a partir desses temas. Como que na contramão da
política do Estado, que prioriza neste momento os programas específicos, discutidos em
espaços específicos, decidimos discuti-los em outros campos, que seria o campo da saúde
integral, no sentido de poder olhar para os sujeitos também de maneira integral e não
fragmentada.
Trata-se de sujeitos produzidos de acordo com os laços sociais vigentes na relação
com o outro, estruturados na linguagem. Sendo assim, olhar para o sujeito nessa perspectiva é
poder olhar e escutar o seu sintoma. E em se tratando de saúde, em linhas gerais, do ponto de
vista psicanalítico, saúde seria saber fazer algo com o sintoma.
CAPÍTULO II
DA EXPERIÊNCIA À PESQUISA
49
I - MÉTODO
I.I A pesquisa em psicanálise: da intensão à extensão
Queremos deixar claro que é na medida dos impasses
experimentados para captar sua ação em sua autenticidade
que os pesquisadores, assim como os grupos, acabam por
forçá-la no sentido do exercício de um poder. No sentido de
uma relação com o ser em que se dá a ação, os da fala,
como a um dado do real, quando o discurso que ali impera
rejeita qualquer interrogação desse lugar (LACAN, 1998, p.
618).
Em Freud encontra-se a primeira formalização do que se chamou de pesquisa
psicanalítica. A psicanálise se transmitiu via os cinco casos clínicos trabalhos por ele. A partir
de sua experiência singular foi construído um corpo conceitual universal. O que não significa
que ele deva valer a todos os casos, para todas as pessoas ou todo o social homogeneamente.
Segundo Birman (1992), desde Freud, o campo psicanalítico é definido pela experiência
psicanalítica, no caso a experiência da transferência. É o campo da experiência transferencial
que delineia a pesquisa psicanalítica. Então, não se poderia falar em metapsicologia sem essa
experiência, pois se correria o risco de distorcer os conceitos psicanalíticos. Seria possível a
construção de conceitos como efeitos teóricos da psicanálise, como por exemplo, na
articulação com a filosofia, antropologia, linguística etc. Porém, a construção dos conceitos
psicanalíticos deveria remeter sempre ao campo da transferência.
Nota-se que a discussão sobre a questão do método psicanalítico nunca foi
homogênea. Desde quando se iniciou no Brasil, na Universidade, foi tendo desdobramentos
diferentes a depender da maneira como a psicanálise era apreendida pelos pesquisadores e
como a relacionavam com a produção de conhecimento acadêmico. A validação da
psicanálise na pesquisa acadêmica não foi tranquila, pois gerou contradições entre os
psicanalistas. A questão era se a psicanálise na Universidade poderia se distanciar de seus
princípios fundadores, freudianos, e se modificar de maneira a não ser mais psicanálise.
(MONTE, 2002). No meio acadêmico, as dúvidas giravam em torno, principalmente, do
método, ou seja, da transmissão em psicanálise. Como fazer essa transmissão no meio
acadêmico? A seguir, apresentamos a discussão de alguns autores e suas contribuições para a
o entendimento dessas questões e da construção do método psicanalítico de pesquisa.
Para Freud tem-se o atendimento, a experiência analítica como indispensável. Como
aponta artigo de Lustosa (2003), o autor se manteve cético em relação à possibilidade de
50
transmissão da psicanálise na Universidade. Na análise da autora do texto Freudiano sobre as
“Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise”, Freud deixa claro que as técnicas e
instruções discutidas nesse texto servem apenas à pratica do psicanalista. A pesquisa e o
tratamento se uniriam apenas quando do interesse de se estudar algum caso clínico. E reforça
a questão de não se trabalhar cientificamente num caso enquanto este estiver em andamento,
isso deveria ser feito apenas após seu encerramento.
Lustosa (idem) apresenta sinteticamente a diferença entre a pesquisa sobre a
psicanálise e a pesquisa em psicanálise. A primeira poderia ser realizada por alguém que não
passou pela experiência pessoal da análise nem ofertou um trabalho psicanalítico. Por
exemplo, as pesquisas teóricas, que utilizam os textos psicanalíticos para análise. Já a
pesquisa em psicanálise implicaria a produção de algo novo a partir da práxis psicanalítica, ou
seja, o campo da relação analista-analisando. Mas essa noção não é consenso no meio
acadêmico.
Silva (1993) destaca que a possibilidade da psicanálise enquanto pesquisa, teria de
sofrer alguns ajustes. O método psicanalítico transporia algumas condições de investigação do
setting tradicional para o campo de pesquisa desde que este passasse por esses ajustes
preservando certas características, que possibilitassem a emergência dos processos
inconscientes e de sua interpretação. De um lado a associação livre, onde por meio do
discurso dos sujeitos os materiais são oferecidos de forma a serem isentos de críticas ou
qualquer intencionalidade e, de outro lado, a atenção flutuante, onde a captação e tentativa de
compreender como é formada a rede de significantes, quais seus agenciamentos, como se
organizam a partir da dimensão inconsciente, é isenta também de críticas, intenções e
julgamentos pré-determinados.
Herrmann (1993, p.138), em relação ao pesquisador ressalta:
(...) quando o objeto nos fala e nos debruçamos sobre ele pensando de forma
psicanalítica, indo ao encontro do objeto sem teoria ou qualquer rótulo que possa
ter surgido em função do desejo anterior do pesquisador, está se criando um campo
transferencial, ou seja, dá-se condições para que algo surja e se represente nesse
contexto.
O autor (2004) irá nos falar sobre três modelos de pesquisa em psicanálise encontrados
nos meios acadêmicos e suas implicações, a saber: pesquisa teórica, pesquisa empírica e
pesquisa clínica. O autor problematiza que os trabalhos acadêmicos teóricos por vezes acabam
por versar sobre a Psicanálise e não ser Psicanálise, como se parecessem “espiar a psicanálise
de fora”. Às vezes, segundo o autor “parece faltar Freud para tanta tese”. Muitos temas que se
51
repetem e outros que parecem “microscopia da poeira estelar, esmiuçando conceitos que mal
existem, ou discutindo tênues parentescos conceituais...” (Ibid, p.48). Ainda, analisa que
discutir os conceitos da Psicanálise em seu estado teórico, o que seria o oposto do
proporcionado no estado nascente da clínica ou da análise da cultura, poderia levar a qualquer
conclusão. Já que, dessa maneira, não estão em movimento. E, desde Freud, os conceitos
psicanalíticos só adquirem pleno sentido se forem em movimento, como “interpretantes” de
uma psicanálise. Este é o método interpretativo em ação, não uma teoria. E isto só é possível,
pois, antes de tudo, está a transfencia. Trata-se do campo da intensão, como veremos mais a
frente.
A crítica maior do autor em relação à pesquisa teórica se concentra em torno da
questão de que só se pode pensar a psicanálise e um método a partir de uma experiência, já
que esta não separa teoria e prática. Nogueira (2004) coloca que tomar um conceito e
construir um trabalho sobre ele, significaria, no mínimo, estar implicado nele, saber como ele
funciona na prática, por exemplo, em sua análise pessoal, estar vinculado a ele de alguma
forma. A experiência clínica só poderia ser pensada numa relação analítica. Sendo assim, a
pesquisa seria a construção do caso clínico.
O outro tipo, a pesquisa empírica, conhecida como pesquisa controlada, quantitativa,
lança mão do modelo positivista para uma verificação objetiva e controlada dos resultados.
Pergunta-se o autor: como quantificar a psique humana? Como confirmar a existência ou não
da transferência por meio de questionários, por exemplo? No texto, várias são as críticas feitas
pelo autor aos pesquisadores e analistas que realizam esse tipo de pesquisa. Para Herrmann
(2004) eles utilizam recursos que quase nada esclarecem em relação à psique humana, como
se quisessem “tirar leite de pedra”, no máximo, esse modelo de pesquisa seria aceitável como
recurso auxiliar a outras pesquisas.
E por fim, Herrmann (ibid) discute a pesquisa clínica que, diferentemente do que
possam pensar pesquisadores empíricos ou teóricos, esta se define com rigor, com uma prática
e com teoria. Clinica e pesquisa estariam separadas pelas técnicas, mas unidas pelo método, o
método psicanalítico de investigação, ou seja, a interpretação psicanalítica. Tanto como
resultado do setting clássico como em outros contextos nos quais o método encontra formas
de expressão, como por exemplo, na cultura, na arte, nos grupos, nas organizações e
sociedades, faz-se assim um estudo clínico da “psique cultural”. Este último amplia a pesquisa
numa extensão de possibilidades e é chamada por ele de clínica extensa. Em síntese, o autor
52
defende a ideia de que, ao se basearem no método psicanalítico de pesquisa, os analistas
conseguiriam realizar o caminho da clinica à pesquisa com novos arranjos teóricos.
Birman (1992), em um encontro sobre pesquisa acadêmica em psicanálise, realizado
na PUC, em um momento de intenso debate sobre o tema, questiona se existiria a
possibilidade de se pensar a pesquisa psicanalítica, sem ter como pressuposto a clínica ou a
experiência psicanalítica já que o seu fundamento é a transferência e esse seria o critério para
a validação de uma pesquisa psicanalítica. Acredita que é possível realizar a experiência em
diferentes espaços clínicos, encontrar pontos de conexão com outros campos do saber, o que
seria mais próximo do campo da extensão. Alertando que isso seria bem diferente do que se
faz em algumas pesquisas onde se transpõe a técnica de base psicanalítica para alguma
prática, já que a transferência não é uma técnica. Ao que nos parece ser esse o sentido do
método apresentado por Silva (1993), onde segundo a autora, a psicanálise passaria por alguns
ajustes para adentrar ao campo da pesquisa.
A possibilidade da pesquisa psicanalítica em interface com a cultura e as questões
contemporâneas sociais também é discutida em Mezan (2002) que utiliza o conceito de
Psicanálise Aplicada ou utilizando o termo criado por Laplanche, Psicanálise Extramuros.
O termo “psicanálise aplicada” foi utilizado pela primeira vez por Freud, num texto de
1919, sobre o ensino da psicanálise na Universidade. Esta deveria ser ensinada a outros
campos do saber como as ciências humanas, a literatura, a arte, de maneira genérica, para que
os estudantes pudessem ter uma noção psicanalítica da alma humana. Levar a psicanálise para
outros campos na tentativa de que ela não ficasse apenas restrita ao saber médico,
considerando que os psicanalistas da época tinham sua formação acadêmica como médicos.
(MEZAN, 1992).
Na década de cinqüenta, parte dos psicanalistas americanos, a maioria da psicologia do
ego, tentando comprovar a cientificidade da psicanálise, a colocam no contexto social, nas
instituições, com o intuito de provarem positivamente seus pressupostos, conduzindo-a a um
estatuto de ciência (BIRMAN, 1992). Então, devido a isso, para alguns, o termo “psicanálise
aplicada” ainda estaria relacionado a esse cenário americano, onde se tratava de aplicar a
psicanálise em outros campos para fins de demonstrações. O sentido em que ela vem sendo
trabalhada pelos grupos ou instituições está mais próximo da definição freudiana e lacaniana.
A Psicanálise Aplicada, segundo Mezan (1998) diz respeito a como se estruturam
certos modos de agir, sentir e pensar, sem que se rotule este de obsessivo, aquele de psicopata,
53
mas sim, o que interessa é “(...) percorrer os dados disponíveis e dele inferir o jogo de forças
que, plausivelmente, origina um comportamento ou uma obra” (idem, p. 10). Nesta,
(...) a elucidação do problema escolhido não visa diretamente a uma intervenção
terapêutica. Variam os métodos de colher os dados entrevistas, pesquisa em
textos, descrição de um fato social ou cultural , mas a partir de um certo ponto a
tarefa do autor é idêntica em todos os casos: construir, com base em uma análise do
material que ainda não é psicanalítica, mas formal, uma questão psicanalítica
(Mezan, 2002 p. 428).
A partir daí, tem-se que buscar os conceitos que definam a questão, que as elucidem,
que possibilitem explorá-las, montá-las e desmontá-las.
Nota-se que apesar das ressalvas de Mezan (1994), vemos que sua argumentação sobre
a operacionalidade da psicanálise aplicada recai sobre o método de pesquisa científico,
tradicional, utilizado em pesquisas acadêmicas. Então nos perguntamos se a coleta de dados
em um campo de extensão faria parte da pesquisa em psicanálise? Como concebermos uma
análise psicanalítica de um material produzido para fins de pesquisa? Parece-nos que nessa
lógica a pesquisa não deixa de atender os critérios cientificistas de produção de conhecimento.
Brousse (2007) nos traz uma outra possibilidade de entendimento do que seria a
psicanálise aplicada. Na medida em que o sujeito se constitui na relação com o outro e com o
Outro, a psicanálise pode se afirmar como sendo social. A autora coloca que a Psicanálise
Aplicada é questão de sujeito e não de indivíduos e de categorias, e em sendo o sujeito
representado por significantes no exercício da linguagem, quando se atua em instituições
consideramos esse sujeito dividido entre “efeito de significantes e objetos do gozo desse
Outro do significante” (idem, p. 25).
Na chamada prática entre vários, termo criado por Miller, para designar uma das
modalidades da psicanálise aplicada, o psicanalista não está referido enquanto tal, o que
importa é provocar, produzir, por em marcha o dispositivo analítico. Tal experiência deve
levar em conta e se orientar segundo as exigências dos sujeitos e não dos especialistas, e
também, em sua relação com o campo da fala e da linguagem (Stevens, 2007). Nesse sentido,
poder-se-ia considerar dentro do âmbito da pesquisa em psicanálise, um trabalho onde o
psicanalista em prática ampliada não tivesse ali referenciado enquanto tal, desde que
colocasse em movimento o dispositivo analítico, ou na teoria dos discursos de Lacan, o
discurso do analista?
Para Sauret (2003), o método psicanalítico dá a palavra ao sujeito, leva em conta o
efeito de falta introduzido pela linguagem e permite que essa falta fundamentalmente
inconsciente seja mantida. Dessa forma, o método mantém a ética da psicanálise enquanto ela
54
preservar essa falta como causa do desejo e enquanto ela der a prova de sua articulação ao
discurso analítico.
Guerra (2001) traz nesse artigo a demonstração da aplicabilidade do método
psicanalítico e seu objeto (o inconsciente) na pesquisa psicanalítica, na tentativa de verificar a
sua viabilidade no campo científico. As questões tratadas giram em torno da
operacionalização do método psicanalítico na universidade, como produzir saber na
universidade levando em consideração a ética psicanalítica. A forma de produção de
conhecimento em psicanálise seria assim regida também pelo inconsciente. Utiliza em sua
pesquisa três operações elencadas por Miller (1998) sobre o processo de análise: repetição,
convergência e evitação. Na repetição teríamos a estrutura pela qual os acontecimentos se
repetem e se organizam para o sujeito; na convergência, seria a conversão dos enunciados
para o enunciado essencial, e que na verdade trata-se do significante mestre, um S1 como
produção, o que só poderia ser possível no Discurso do Analista que é o único que produz S1.
Na evitação, estaria em jogo a dimensão real, o objeto a como causa do desejo.
A autora sugere que poderíamos aplicar esse lógica à metodologia de trabalho de
pesquisa em psicanálise sobre textos teóricos, entrevistas etc. Essa aplicabilidade consistiria
em mapear os pontos nodais do discurso, que seriam como os traços unários inscritos no
inconsciente, como os significantes-mestre, considerando que nessas amarrações teriam furos,
surgiriam outras possibilidades diferentes, principalmente com relação aos pontos que são
evitados, aqueles que escapam a um determinado campo teórico, ao saber já sabido. Mas, na
pesquisa relatada a autora não possui um a priori de experiência, que é um dos pontos
fundamentais para o método psicanalítico. Ela vai a campo coletar seus dados, que no caso
são entrevistas com oficineiros da área da saúde mental onde ela investiga a funcionalidade
dessas oficinas.
Stringueta e Costa-Rosa (2007), ao comentarem obras sobre o método psicanalítico de
pesquisa, apontam uma distinção necessária que se deve fazer quanto à operacionalização do
método: a diferença entre a dimensão do método como práxis junto aos sujeitos das
demandas, e do método como práxis de produção de conhecimento e elaboração teórico-
conceitual, por exemplo, aquilo que faz o pesquisador ao operar na sua relação com o campo
psicanalítico. Embora ressalvem os autores que as duas dimensões se relacionem. Assim,
propõem que o ponto de partida do método psicanalítico de pesquisa seria a consideração
dessa distinção para que ele não seja confundido com o método da psicanálise. Apreendem-se
dois momentos diferentes: um referente à experiência analítica em si, à transferência, aos
55
processos inconscientes em questão e outro, posterior, onde se escreverá ou se produzirá algo
sobre essa experiência.
A palavra práxis é de origem grega e significa ação. Fundada com base nos conceitos
marxistas de trabalho e produção. Segundo essa concepção práxis é o campo demarcado pela
ação, a partir do qual o homem ao transformar a natureza com seu trabalho, transforma a si
mesmo. A noção lacaniana de práxis seria uma ação realizada pelo homem, qualquer que seja,
que o coloca em condição de tratar o real pelo simbólico. O eixo que articula a práxis que se
autoriza do nome psicanálise se define pelos fundamentos da psicanálise. Ao mesmo tempo
em que o campo dos fundamentos da psicanálise esclarece sobre a práxis, esta funda também
os fundamentos da própria psicanálise (HULLER, 2005).
Há que se fazer uma distinção entre o saber produzido na/da práxis e o conhecimento
produzido a partir do reencontro com a experiência e com o saber do campo da intensão. De
um lado, então, temos a operacionalização do método em pesquisa onde se vai a campo
enquanto pesquisador coletar os dados, assim como na definição de Silva, a qual tratamos
acima. De outro, temos um método psicanalítico que parte de uma experiência produzida a
priori, na práxis da intensão, que serve de base à práxis da extensão. Nossa dissertação está
relacionada a esse último.
Os conceitos de psicanálise em intensão e extensão nos ajudam a delimitar as
diferenças entres esses dois modos de ação. Nessa dissertação trataremos de produzir um
saber do operador, não um saber para a práxis. O que podemos dizer sobre nosso campo da
intensão?
Os campos da intensão e da extensão são discutidos por Lacan nos textos sobre a
fundação da Escola de Psicanálise Francesa, na Proposição feita a ela e em alguns textos
apresentados em congressos relacionados ao assunto.
Lacan (2003), no Ato de fundação da escola, de 1964, estabelece algumas diretrizes
diante da fundação da Escola Francesa de Psicanálise. Quanto ao ensino da psicanálise ele nos
aponta que esse “(...) só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma
transferência de trabalho. Os Seminários, inclusive nosso curso da École d’Études
Superieures, não fundarão nada, se não remeterem a essa transferência” (p. 242). A
transferência a que o autor se refere diz respeito a uma posição na qual o sujeito possa vir a
ocupar o lugar de trabalho, trata-se de instaurar o sujeito no discurso (COSTA-ROSA, 2009).
Na Proposição de 9 de outubro de 1967, o autor (idem) se dedica às funções do
psicanalista na Escola. Faz uma diferenciação importante entre o que chamou de psicanálise
56
em extensão e psicanálise em intensão. A primeira seria tudo aquilo que resume a função da
Escola como presentificadora da psicanálise no mundo. A segunda seria a didática, que
prepararia os operadores para a extensão. Nesse sentido a função da Escola em relação à
didática seria a passagem do psicanalisante a psicanalista.
Julien (2002) discute esses dois campos, a partir da pergunta sobre o que ocorre ao
analista e à psicanálise fora da relação analista-analisando. O que aconteceria na dimensão
pública da psicanálise? “Se a psicanálise em intensão se situa evidentemente no discurso do
analista, o que acontece então com a psicanálise em extensão”? (p. 192) Esta se situará em
relação aos outros discursos para poder criar laço social.
Se a intensão se dá apenas no Discurso do Analista, como ficam os trabalhos como o
nosso onde não se trata da relação analista-analisante? Como podemos localizar essa
experiência no campo da extensão, sendo que este prevê o da intensão e não se tratava do
discurso do analista?
Se comparecemos na experiência com a perspectiva do Discurso do Analista, o único
que se dirige ao outro como sujeito, mas não estávamos em uma relação analista-analisante, o
que poderia nos autorizar metodologicamente enquanto psicanálise em extensão sem ter
produzido uma intensão stricto-sensu?
Na tentativa de responder a essa recorrente problemática que já há um bom tempo
ocupa a quem se dedica a produzir saber sobre ela nos encontramos com o método
intercessor. Podemos nomear de intercessor essa figura em questão que não é um analista,
mas que nem por isso está distante do laço social do Discurso do Analista, pois este se
encontra no horizonte. Um recurso para se operar com os discursos na intensão sem que se
trate de uma relação analista-analisante, outrossim, trata-se de uma relação.
O método intercessor foi desenvolvido por Costa-Rosa (2007) como um recurso
metodológico que parte da Psicanálise e da Análise Institucional (Lourau, Deleuze), e se
orienta para essas situações de trabalhos com grupos, instituições, coletivos. Neste, o
intercessor funciona como um mais-um do grupo com o qual se está trabalhando, numa
posição de quem não irá prover o grupo, não devendo encarnar o papel de mestria, na
intenção de que os sujeitos se confrontem com o não-sabido e se conectem com outras
possibilidades e lógicas sobre sua práxis. O intercessor, nome dado a quem pratica uma
intercessão, deverá, no lugar simbólico de sujeito-suposto-saber, permitir que aos poucos os
sujeitos reconheçam seus posicionamentos, limites e possibilidades naquilo em que estão
implicados.
57
Stringueta (2007) nos apresenta em sua dissertação de mestrado a operacionalização
do método intercessor. Em sua experiência relata a importância da formulação de um projeto
próprio de um grupo na intercessão. Esta desempenha um papel de intermediário nesta
construção do grupo de trabalho.
O intercessor deverá aos poucos, transferir responsabilidades ao grupo, de modo que
não centralize as tomadas de decisões. Posição de quem não vai prover o grupo. E ele
escaparia desse lugar operando com um saber de psicanalista, ou seja, da ignorância douta.
Lacan (1998, p.360) aponta, citando Freud que este já enfatizava que a psicanálise é
uma prática subordinada ao que há de mais particular no sujeito, portanto, a psicanálise
deverá ser colocada em questão na análise a cada novo caso. Isso, por si só, mostraria ao
analisado a via de sua formação.
O analista só poderia se enveredar pela psicanálise quando pudesse “reconhecer em
seu saber o sintoma de sua ignorância” (ibid), no sentido de que, sendo o sintoma o retorno do
recalcado da história do sujeito, e como recalcado seria a censura da verdade, então, o saber
seria a bandeira que levantamos simplesmente para nos proteger da nossa verdadeira
ignorância, ignorantes que somos de nada sabermos previamente. Ignorância não seria
ausência de saber, e sim, como o amor e o ódio, uma paixão do ser, pois ela pode ser uma via
em que o ser se forma. É ai que reside a paixão que deve dar sentido a toda a formação
analítica, pois esta estrutura toda essa situação. Portanto, a ignorância é o não saber, que não é
uma negação do saber, e sim uma forma mais elaborada do saber. Um saber que conhece seus
limites e que não pode saber pelo Outro.
O intercessor também não deve encarnar o papel de mestria, detentor do saber. O
sujeito-suposto-saber entra em questão, simbolicamente, ao não ser assumido
imaginariamente pelo intercessor, permitindo que aos poucos, cada sujeito vá reconhecendo
seu valor, seus limites, suas possibilidades. A intenção é que ele se confronte com o “não
sabido” e se conecte com outras lógicas sobre sua práxis (STRINGUETA & COSTA-ROSA,
2007).
Temos então um método que faz operar a transferência e os três elementos que o
aproximam do Discurso do Analista, a saber, os três S, o sujeito-suposto-saber. O sujeito-
suposto-saber é para Lacan (2003, p. 253) “(...) o eixo a partir do qual se articula tudo o que
acontece com a transferência”. A psicanálise só poderia se desenvolver a partir desse
significante introduzido no discurso. E ao psicanalista, desse saber suposto ele nada sabe. O
que não o autorizaria a se dar por satisfeito com isso, pois “o que se trata é do que ele tem de
58
saber” (idem, p. 254). Ele tem de saber que esse saber não significa nada em particular, mas
que se articula em cadeias de letras, que sob a condição de não faltar nenhuma delas, o não-
sabido se ordena como o quadro do saber. Dirá Lacan então que o saber a ser obtido é textual,
“(...) um texto feito de letras, das letras da linguagem, e que tenha eficácia de ordem e de
acesso ao real, que permita tratar o sentido assim como o poema ou o chiste” (BROUSSE,
2007, p.25).
Na intercessão trata-se de fazer surgir esse não-sabido, os significantes-mestre
produzidos pelo coletivo, pelo grupo de sujeitos. Esses significantes serão confrontados pelo
intercessor no campo da intensão. Agora, no lugar de produtor de conhecimento do campo da
intercessão podemos dizer que ocupamos o lugar de analisante na psicanálise em extensão,
como no Discurso da Histérica.
A intensão funda a extensão. Ao contrário do poder do mestre ou saber universitário
que pretenderiam fundar a práxis, para a psicanálise somente a prática funda a instituição
psicanalítica e a teoria. Os efeitos de transmissão da psicanálise são possíveis quando
podemos questionar a completude do Discurso do Mestre, da ciência e por a trabalhar os
sujeitos no sentido de poderem inventar novos saberes, na medida em que esse trabalho se dá
na relação com o não sabido, e portanto se encontra movido por algo do real.
Em paralelo com a teoria dos discursos de Lacan
9
, Julien (2002, p. 194) mostra que na
psicanálise em intensão o psicanalista se encontra no lugar de agente no Discurso do Analista,
que seria o a, como objeto causa do desejo. Quando este vai para psicanálise em extensão, ele
passa a ocupar o lugar de agente no Discurso da Histérica, ou seja, o $, o sujeito dividido, o
sujeito que contesta um saber. Assim o analista vai à posição de analisando, não na relação
com um outro analista, mas, na relação com o público “(...) ali onde a psicanálise toma lugar
na história humana como ciência nova”.
Portanto, quanto ao método temos uma pesquisa em psicanálise, onde tratamos de
produzir conhecimento agora na extensão sobre o campo da intensão, da práxis que colocou
em movimento o dispositivo analítico e os quatro discursos de Lacan. Um conhecimento que
sirva a outros intercessores e intercessões, sobre o campo da educação em saúde; no contexto
da prevenção às DST/HIV-Aids; na perspectiva da relação do educador/intercessor com os
sujeitos a quem se dirige, futuros intercessores em outros campos.
I.II. A transmissão do campo da intensão
9
A qual será desenvolvida no terceiro tópico do capítulo.
59
Como transmitir o saber produzido no campo da intensão, ou seja, na intercessão?
Esta foi uma das dificuldades que enfrentamos. Relíamos os relatos e anotações que
tínhamos, uma quantidade razoável de material sobre a intensão e questionávamo-nos como
iríamos transmiti-lo. Vivenciamos o que seria transmitir algo do qual fazemos parte, e que
estivemos implicados durante todo o tempo de trabalho. Passamos a tentar elaborar essa
inquietação e o estranhamento que por vezes fomos tomados durante o relato da equipe que
escolhemos. Parece-nos que essa experiência toca em algo do real da escrita, que por vezes foi
difícil colocar em palavras. Nós que já vivenciamos pesquisas dentro do rigor científico da
Universidade, pudemos constatar que são díspares. Uma coisa é irmos a campo, coletar
nossos dados e trazê-los para seu texto de pesquisa. Outra coisa é produzirmos um texto sobre
algo vivenciado, nossa dimensão $ está presente e nos chama a todo tempo. Letrar uma
experiencia vivida em que se fez parte do laço e do discurso o tempo todo marca uma
diferença, real no caso. Como vimos, na psicanálise em extensão, o analista vira analisante. É
a dimensão letra de um texto. Que dimensão letra é essa? “(...) Ela decorre do significante; ela
chove linguagem para fazer ravinamento, borda, fronteira. Com efeito, o literal faz litoral,
margem entre o mar e a terra. Litura: rasura, marca que cerca um vazio. É isto o real: o
impossível de saber, o “sem porquê” do desejo do Outro. Eis aonde leva a psicanálise”.
(JULIEN, 2002, p. 201).
Para podermos transmitir o campo da intensão, fizemos algumas escolhas. Para o
aprofundamento necessário do percurso da experiência optamos por trabalhar com uma
equipe. Dentre as onze com as quais trabalhamos escolhemos a equipe da Unidade das Flores
devido à transferência e à implicação junto ao trabalho de intercessão. Ademais, do ponto de
vista acadêmico acreditamos ter sido na elaboração de nossas transcrições em relação a essa
equipe que encontramos com maior destaque os giros de discurso que nos importam para essa
discussão. Lembramos ainda que para Lacan, transmitir a psicanálise pelos matemas do
discurso seria a forma que ele encontrou de transmitir o real da estrutura, a dimensão real do
gozo e a dimensão real do sujeito, “não há o universo no discurso, quer dizer, que as palavras
não podem dizer tudo. É um modo de nomear a castração do ser falante” (WAINSZTEIN,
2001, p.19).
Ainda que tudo não possa ser dito, na elaboração realizada junto a essa equipe
mostraremos, por meio de fragmentos dos relatos de três anos de trabalho, as passagens de
discurso que se desenrolaram durante o período. Escolhemos os relatos onde o leitor pudesse
localizar ao lê-lo aquilo que estamos sustentando enquanto giros de discurso.
60
A pesquisa se organizou por meio de material da própria pesquisadora. Esse recurso
foi utilizado por se aproximar e manter coerência com o método da pesquisa em psicanálise.
Não se trata de produzir novos dados, uma nova situação de pesquisa. Mas sim, retornar, a
posteriori, àquilo que já fora produzido em outro momento. Não vamos construir um novo
conhecimento na relação educador/intercessor com as equipes. A tentativa é de uma produção
de conhecimento que se dará agora na relação do pesquisador com os registros da experiência.
I.III. O contexto da intensão
A presente intercessão foi realizada num município do interior do Estado de São
Paulo. Por motivos de confidencialidade apresentaremos apenas algumas características. O
município tem aproximadamente 93.000 habitantes. Possui uma economia diversificada, nas
áreas da agricultura, comércio, prestação de serviços bem como um centro educacional e
tecnológico considerável, com escolas técnicas e Universidades. Destaca-se também pelo
investimento na área agro-industrial.
Na rede pública de saúde o município apresenta a seguinte estrutura:
x Atenção Básica: 11 Unidades Saúde da Família (USF) e 7 Unidades Básicas de
Saúde (UBS);
x Média Complexidade: 1 Centro de Especialidades (com serviços como
dermatologia, Oftalmologia, Hematologia, Otorrinolaringologia, Urologia,
Neurologia, entre outros; 1 CAPS- Centro de Atenção Psicossocial, atende
preferencialmente psicóticos, neuróticos graves e demais quadros que
justifiquem o cuidado intensivo, por meio de intervenções terapêuticas, de
reabilitação e de ressocialização; 1 Pronto Socorro que atende as urgências e
emergências, inclusive as emergências de demandas da região; 1 SAE
Serviço de Atendimento Especializado, e 1 CTA Centro de Testagem e
Aconselhamento na área de DST/HIV-Aids; 2 Unidades Referenciais que
funcionam como pronto atendimento;
x Alta Complexidade: 1 Hospital Regional e 1 Hospital Maternidade.
Ainda possui programas específicos destinados à DST/HIV-Aids, à saúde da criança,
do idoso, da mulher, nutrição, saúde bucal. Conta também com a Vigilância Epidemiológica e
Sanitária. Possui um Conselho Municipal de Saúde atuante.
61
O Programa Saúde da Família (PSF) foi oficializado pelo Ministério da Saúde em
1994 e no ano seguinte, 1995, foi implantado na cidade. Em 1996, uma equipe de médicos
cubanos permaneceu durante seis meses orientando os profissionais do Programa. Começou
com seis Unidades Saúde da Família e atualmente conta com onze, sendo uma móvel, com
atuação na área rural. A Unidade Rural possui um ônibus com estrutura de consultório
odontológico e médico e vão mensalmente a cada bairro rural pertencente ao município.
Até a finalização da experiência as equipes estavam instaladas em Unidades próprias,
onde funciona somente o PSF. Oficialmente cada equipe é responsável pela cobertura de
oitocentas famílias, mas na pratica esse número varia. Em 2005, uma Lei municipal definiu a
quantidade de profissionais que deveriam existir em cada equipe, a saber: 1 médico, 1
dentista, 1 enfermeiro, 2 auxiliares de enfermagem, 1 atendente de consultório dentário
(ACD) e 4 agentes comunitários de saúde (ACS). Sendo que cada dentista e cada ACD
ficariam responsáveis por duas equipes Saúde da Família. Os profissionais são contratados em
regime de dedicação exclusiva, com carga horária de 40h, como prevêem as diretrizes
federais. Mas na prática essa dedicação exclusiva não é tão exclusiva assim, principalmente
em relação ao cumprimento da carga horária por parte dos médicos.
A escolha municipal das áreas de abrangência das Unidades privilegiou o critério da
dificuldade do acesso aos serviços de saúde e as áreas mais empobrecidas socialmente. Então,
as Unidades foram construídas em regiões mais periféricas da cidade, onde a Unidade Básica
de Saúde (UBS) não acessava. Ou em regiões em que a área de abrangência da UBS era
considerada vasta, complexa do ponto de vista das vulnerabilidades e muito diversificada. As
regiões consideradas mais vulneráveis possuem os dois serviços: UBS e USF (Unidade Saúde
da Família).
Caracterização dos Profissionais e das Equipes
Na época em que realizamos o trabalho as 11 equipes da ESF contavam com um total
de 96 profissionais trabalhando diretamente na Estratégia. Desses 96, 93 participaram em
algum momento da intercessão.
A experiência totalizou três anos de duração. Na primeira fase do trabalho, em seu
primeiro ano, os 93 profissionais participaram. Tanto nas oficinas temáticas como no
momento seguinte do diagnóstico, quando fomos até as Unidades, todos esses profissionais
62
estiveram envolvidos. A partir do segundo ano, trabalhamos com uma media de 50
representantes das equipes. Com algumas nos reunimos com todos os membros.
Quanto à participação por categoria profissional tivemos vinculados ao trabalho:
x 41 Agentes Comunitários de Saúde (32 mulheres 9 homens);
x 22 Auxiliares de Enfermagem (20 mulheres 2 homens);
x 10 Enfermeiras (os) (9 mulheres 1 homem);
x 10 médicos (as) (6 homens 4 mulheres);
x 5 dentistas (4 mulheres 1 homem);
x 5 atendentes de consultório dentário (4 mulheres 1 homem).
Como já havíamos apontado no capitulo I, o espaço dos serviços da saúde é
predominantemente composto de mulheres. Interessante notar que a única categoria onde a
prevalência é do homem é a de médico. Desse fato, caberia uma problematização envolvendo
as questões de gênero bem como sua relação com essa profissão tão valorizada socialmente.
Mas nesse momento como não faz parte de nosso objeto de estudo não nos dedicaremos a ela.
Quanto à freqüência de nossos encontros, no primeiro ano de trabalho, nas oficinas
nos encontrávamos mensalmente. Na segunda fase desse primeiro momento, realizamos
reuniões mensais com as 11 equipes da ESF, durante seis meses. No segundo ano, essa
freqüência mensal se manteve. E no terceiro ano de trabalho, durantes os 12 meses, as
Unidades com características e objetivos próximos foram agrupadas, de forma a constituir 4
grupos que se reuniam bimestralmente.
Cabe salientar que esse trabalho foi realizado em conjunto com um colega. Com
exceção do segundo ano, onde nos dividimos nos encontros com as Unidades. De nossa parte,
demos seqüência ao trabalho com cinco equipes. A equipe escolhida para o trabalho nessa
dissertação é uma destas.
Mantivemos a idéia de equipe, pois mesmo tendo tentado montar grupos, com seu
processo de grupalização, isso não foi possível. Quando tentamos implicar os profissionais
das equipes em uma dimensão grupal, se manifestaram contra. Ou seja, estavam reunidos com
outras pessoas de outras unidades e não quiseram formar um grupo, preferiram manter as
discussões na equipe, consideravam que já tinham muitos problemas e que precisariam
resolver suas questões internas e se fortalecer primeiramente. Em alguns momentos até
tivemos tentativas com essa visada, mas não se mantiveram.
Nas tentativas de grupalização, os representantes não se envolveram em uma tarefa
coletiva, que visasse um bem comum. Isso ocorreu, mas dentro das Unidades e com as
63
equipes separadamente. Em termos de projeto coletivo da ESF desse município, poderíamos
considerar que a construção de uma peça de teatro e de um grupo de teatro que representava
os profissionais da ESF foi uma produção comum de um coletivo que se juntou com o
objetivo primeiro de constituir um grupo e depois uma peça, o produto desse processo de
grupalização.
Sobre os dados...
Quanto aos “dados”, nos vimos questionados sobre para que coletaríamos novos dados
se já tínhamos os relatos, toda a história desse trabalho produzida pela própria intercessora na
época de sua experiência. Para que retornar às equipes, para perguntar algo do qual já haviam
falado e que, portanto, apenas reproduziriam isso para fins de exigências acadêmicas de
pesquisa? Tendo conosco, os relatórios, relatos, diários de campo de todo o tempo de trabalho
porque não utilizá-los para o retorno à experiencia? Retorno este que implicaria nos
colocarmos em posição de questionador dessa práxis na tentativa de produzir um saber sobre
o campo da intensão, ou seja, sobre os efeitos da intercessão.
Como dissemos, não produziremos mais dados. Esses já os tínhamos. Será sobre eles
que elaboraremos a análise que objetivamos. Portanto, a experiência se iniciou quando não
havia a finalidade de transformá-la em pesquisa de mestrado.
Os relatórios foram feitos em formato descritivo. Eles apresentam uma síntese dos
assuntos discutidos nos grupos, por meio das reuniões, oficinas e encontros realizados durante
os três anos de trabalho. Os relatos pessoais possuem falas e são mais detalhados que os
relatórios. No terceiro ano de trabalho, como parte do caminhar da intercessão, passamos
também a nos dedicar às anotações pessoais. Modificamos os nomes dos sujeitos bem como
das Unidades em questão, em seu lugar colocamos nomes fictícios. Poucas são as falas na
íntegra, predominam o teor geral do discurso.
Com relação aos registros da equipe da Unidade das Flores eles são trazidos por meio
de fragmentos e através deles iremos tentar elaborar as tensões entre os giros de discursos.
II. NOTAS SOBRE OS OPERADORES CONCEITUAIS
Neste tópico apresentaremos os principais conceitos para a análise dos fragmentos.
Nós nos dedicamos a trabalhar os conceitos úteis a elaboração da teoria dos quatro discursos
de Lacan. Para fins de mestrado, tratamos de elaborar um corpo conceitual mínimo para
64
aproximação à teoria dos laços sociais. Tentamos, dentro de nossas possibilidades de
apropriação da teoria, transmitir de maneira não estanque os conceitos lacanianos. Mas
admitimos que isso ainda é tarefa complexa para essa iniciante no campo da psicanálise de
Lacan. Então, o que temos é um exercício de transmissão. Lembremos que para fins didáticos
tentamos separar os conceitos, mas que estes estão sempre relacionados na práxis
psicanalítica.
II. I. DEMANDA
Como reconhecer uma demanda? Em análise, segundo Lacan (1998) a demanda do
analisante é sempre intransitiva, ou seja, não implica objeto. Esta é manifestada no campo do
implícito e é por esta que ele ali se encontra. Mas essa demanda espera, pois além de não ser
reconhecida como dele, não é a que ele apresenta no início. Considera-se também o fato de
que foi o próprio analista quem fez a oferta para que o possível analisante falasse. Oferta que
gera a demanda de transferência, uma oferta de possibilidades transferenciais. Assim, diz o
autor sobre o que considera uma conquista: (...) consegui, em suma, aquilo que se gostaria,
no campo do comércio comum, de poder realizar com a mesma facilidade: com a oferta criei a
demanda” (idem, p. 623).
Neste sentido não se trata de compreender; o melhor é se calar, pois dessa forma se
frustra o “falante”, que por sua vez demanda uma resposta diante daquilo que fala. Mas que
segundo o autor, “... ele sabe muito bem que isso seriam apenas palavras. Tais como a recebe
de quem quiser” (idem).
O que o analista oferece então diante dessa demanda? “Sua presença”, disse Lacan
(idem, p. 624). Assim, o analista é aquele que sustenta essa demanda, o para frustrar o
sujeito, mas para fazer reaparecer os significantes onde sua frustração está retida.
Em análise, o analista lida com todas as articulações possíveis da demanda do sujeito,
mas só deve responder aí a partir da posição da transferência. É transferencialmente que se
pode identificar o lugar do desejo, pois este é orientado em relação aos efeitos da demanda. O
desejo, então, seria aquilo que se “(...) manifesta no intervalo cavado pela demanda aquém
dela mesma, na medida em que o sujeito, articulando a cadeia significante, traz à luz a falta-a-
ser com o apelo de receber seu complemento do Outro, se o Outro, lugar da fala, é também
lugar dessa falta” (idem, p. 634).
65
Então, o desejo está no sujeito pela condição dele ser um ser de fala, um ser de
linguagem, o Outro é o lugar de manifestação da fala, portanto, afirma-se que o desejo do
homem é o desejo do Outro.
Nesse sentido, o que é dado ao Outro preencher, é aquilo que ele, o sujeito, não tem e
que nele falta, isto é, o que se chamou de amor, agregado as outras paixões como ódio e
ignorância. É isso o que toda demanda evoca para além da necessidade que nela se articula, e
é disso que o sujeito fica privado quanto mais se satisfaz essa necessidade. Trata-se então de
uma demanda de amor, que não é demanda de necessidade.
Temos um exemplo de uma situação vivenciada na intercessão onde o grupo de
profissionais com o qual trabalhávamos nos relata uma necessidade, que na época foi
encarada como demanda. Diante da possibilidade de realização de atividades voltadas para a
prevenção às DST/Aids o grupo nos relatou a dificuldade de realização dessas atividades sem
as próteses penianas por onde é possível a demonstração do uso de preservativos masculinos.
Então, após o relato, nós encaminhamos um pedido à Secretaria Municipal de Saúde para que
providenciasse as próteses para todas as Unidades de Saúde da Família que estavam
realizando esse trabalho. Atendemos a necessidade que nos foi colocada, acreditando ter
atendido uma demanda. Após um ano de trabalho, realizamos uma reunião onde nos relataram
que tinham um outro problema decorrente da chegada das próteses penianas. A maioria deles
tinham imensa “vergonha” em utilizá-las nas atividades de grupos com a comunidade.
Vergonha essa relacionada aos valores morais, a relação sexo-pecado, a proibição religiosa
entre outras. Na impossibilidade de escutar para além do enunciado; na impossibilidade de
oferecer nossa presença sem resoluções ou interpretações rápidas e supridoras; na
impossibilidade de, ao frustrar o sujeito, possibilitar que os significantes dessa frustração
aparecessem; e na impossibilidade de esperar que outros significantes pudessem ter
visibilidade, acabamos por reduzir a demanda a uma necessidade.
Nesta situação, na posição de capacitadores, no início de nossa experiência, escutamos
os profissionais na tentativa de compreender suas necessidades. Transpondo a perspectiva da
política, da estratégia e da tática na direção de um tratamento para a situação citada, ou seja, a
direção de um grupo, o que ela nos aponta é o exercício de um poder, pois o capacitador nesse
caso parece estar situado mais no seu Ser, do que em sua falta-a-ser. O que implica no nível
da estratégia e da tática problemas com a transferência e a interpretação.
Podemos constatar que para escutar se faz necessária uma escuta que vá para além do
discurso e de qualquer compreensão. E isso não basta, pois é preciso resistir a escutar os
66
significantes onipotentes da demanda ao invés de escutarmos os significantes e objetos da
demanda de amor, que são os que nos interessam.
Essa relação direta entre sujeito e objeto, seria como equivaler o homem ao animal, a
tentativa de estabelecer essa relação é fadada ao fracasso, na medida em que não se trata
disso, o desejo não pode ser reduzido a uma necessidade.
Uma demanda nunca deveria ser aceita em seu estado bruto, mas sim, interrogada,
para que dessa interrogação decorra uma possível implicação do sujeito em relação a seu
sintoma ou daquilo que ele se queixa de modo que ele se reposicione com aquilo que lhe
ocorre.
A demanda aparece como um ponto de articulação entre o sintoma e a transferência.
Deve-se realizar um dupla transformação da mesma. Ela pode desdobrar em dois caminhos:
ou da retificação subjetiva ou da histerização do discurso. A primeira refere-se a isso que
apontamos acima, ou seja, a parte do sujeito naquilo que ele se queixa daquilo que ele sofre.
A segunda, trata de possibilitar ao sujeito o questionamento sobre a causa de seu sofrimento,
numa busca da verdade. “(...) A vontade de saber deve ser invertida em vontade de curar-se”
(RECALCATI, 2004, p. 5). O discurso do sujeito seria atraído por uma exigência de
decifração e de outro saber.
II.II. ESCUTA PSICANALÍTICA
O que escuta o analista? O analista escuta o sujeito do inconsciente. Num trabalho
como nosso trata-se de superar a escuta do sujeito que pensa pra poder escutar onde ele não
pensa. Escuta-se o não sabido, a dimensão significante.
Como perguntou Bastos (2003), em sua dissertação de mestrado sobre uma
experiência junto a um grupo de professores, o que nos autorizaria a chamar de escuta
psicanalítica a nossa experiência junto às equipes da ESF?
Recaímos nas discussões que tratamos no tópico do método com relação as
modalidades de pesquisas psicanalíticas. Estamos defendendo que esse trabalho, assim como
o de Bastos (idem), poderia se referendar pela psicanálise em extensão e pela psicanálise
aplicada.
Se dirigimos nossa intercessão na direção do horizonte psicanalítico, isso por si só não
o autoriza como tal. O que nos autoriza são os efeitos de nossa intercessão. É no a posteriori
que verificamos se nossa prática teve algo a ver com psicanálise ou não.
De que lugar escuta o analista? Aí podemos passar à transferência.
67
II.III. TRANSFERÊNCIA
“No começo da psicanálise está a transferência”
(LACAN, 1998, p. 252).
Segundo o dicionário de psicanálise de Chemama e Vandermersch (2007), na
transferência trata-se de saber o que da demanda o sujeito dirige ao Outro, ao passo que pela
condição de ser falante será confrontado com a falta de significante no Outro. Nesse vinculo
entre analista e sujeito esses significantes se atualizam, comandados pelo objeto a.
Afirma Lacan (1998) em sua proposição que a transferência por si só cria uma objeção
à intersubjetividade. Inacessibilidade ao outro, o inacessível, objeto, questão do desejo,
pessoas se encontram naquilo que não podem saber sobre si laço social. A transferência
testemunha que há laço social, e não se trata de laço entre dois, dual ou intersubjetivo, como
nos aponta Voltolini (2007, p. 135), esta “captura dois num mesmo discurso”.
O aforisma lacaniano marca a impossibilidade de qualquer relação direta, imediata
com o objeto de nossa satisfação, do ponto de vista simbólico, já que a partir deste, o objeto
está inacessível, faltoso e justamente por isso é que é possível desejar, transferir ao outro uma
suposição de saber em relação à falta desse objeto. Para Lacan, a transferência de uma
suposição de saber é condição para a direção do tratamento, para a transmissão da psicanálise,
porém, em si mesma não é suficiente. Trata-se, todavia de empreender uma transferência ao
Outro, superando a transferência dirigida ao analista, tomado aqui enquanto o outro pólo
dessa relação imaginária. Isto porque se analista e analisante se deixam mergulhar nessa
relação imaginaria corre-se o risco da psicanálise não avançar para além da sugestão,
perdendo com isso a chance de fazer laço social que dirija a ambos a um saber Outro, isto é ao
Discurso do Analista.
O sujeito-suposto-saber é o eixo a partir do qual se articula a transferência. Um sujeito
não supõe nada ele é suposto pelo significante que o representa para outro significante.
Segundo o matema lacaniano (1998, p. 253):
S
Sq (significante qualquer)
s (S1,S2...Sn)
68
A análise só poderia se desenvolver a partir do significante sujeito-suposto-saber. O
psicanalista responde a partir desse lugar que não envolve sua pessoa, ao mesmo tempo em
que não é o psicanalisante que faz essa imposição ao analista. O que importa é a relação do
psicanalista com o saber do sujeito suposto. Desse saber suposto ele nada sabe.
Daí pode-se desdobrar a afirmação de Lacan (1998, p. 351) “O que um psicanalista
deve saber: ignorar o que ele sabe”. O título acima faz parte de um subtítulo do texto
Variantes do tratamento-padrão”, de J. Lacan (1998), escrito em 1953, conforme
encomenda de um grupo de psicanalistas que tinham acabado de escrever um documento com
este título sobre os critérios, o padrão de cura, de análise que deveriam seguir. O tema central
do texto diz respeito ao SER do analista, sua autenticidade e o questionamento do que seria
uma cura-padrão.
O autor apresenta dois pontos que exemplificam o entendimento dos analistas da
época quanto à questão da formação do analista, são: o contraste entre os objetos propostos ao
analista por sua experiência e a disciplina necessária à sua formação.
Em 1952, Dr. Knight (ibid, p. 358) faz declarações sobre os fatores que tendem a
alterar o papel da formação analítica, que segundo ele, seriam o aumento do número de
candidatos em formação e as formas mais estruturadas de ensino, opondo-se à formação por
um mestre. Mostra nessa declaração a tendência dos institutos de formação daquela época e
dos próprios analistas em relação àquilo que buscavam em sua formação analítica: analistas
não mais introspectivos lêem somente aquilo que consta na bibliografia, desejam acabar o
mais depressa possível o processo, se voltam somente à clínica, não mais para pesquisa e
teoria; a motivação para serem analisados é somente pelo fato de cumprirem uma etapa de sua
formação.
Lacan aponta que tal problema vinha sendo pouco ou mal compreendido. Segundo ele
o que é preciso compreender antes de tudo é que independentemente do tanto de saber
transmitido, ele não tem para o analista nenhum valor formativo, pois este saber acumulado
em sua experiência nos Institutos com vistas a sua formação enquanto psicanalista concerne
ao imaginário e não ao simbólico. Esses efeitos de captura do desejo seriam difíceis de serem
objetivados a partir de enunciados que digam de uma verdade sobre o sujeito e seriam um
“(...) recurso enganador na ação do analista, pois considera apenas o que foi depositado e não
o que lhes serve de mola”. (Ibid., p. 359).
O sujeito não pode reconhecer no que o analista diz a verdade de sua fala particular.
Mas a resposta que o analista dá ao sujeito tem de ser sua fala verdadeira, isto vale para os
69
dois, mesmo que o sujeito não possa reconhecer a verdade nessa fala, ele tem de reconhecer
que se trata de uma fala verdadeira, o que significa que a fala do analista teria de ser idêntica a
seu ser, não é o analista repetindo outro saber, é ele mesmo. É isso que Lacan quer dizer com
a autenticidade do analista. O analista age autenticamente quando é emergência do próprio
inconsciente, que não é individual. Se a fala do analista, assim como para todos, remete a um
sujeito do inconsciente, então, aquilo que fala remete a ele mesmo, diz de si mesmo: “... O
inconsciente se fecha, com efeito, na medida em que o analista ‘deixa de ser portador da fala’,
por já saber ou acreditar saber o que ela tem a dizer” (Ibid, p. 361)
Concluindo, para Lacan, na verdade tudo já foi dito em Freud sobre o tratamento-
padrão e suas possíveis variantes. Se não existe um padrão para o tratamento psicanalítico,
não existem variantes. Para concordar com possíveis variantes teríamos que creditar que
exista um padrão e que a partir deste surgiriam variações. Neste trecho, de “Recomendações
aos médicos que exercem a psicanálise” Freud já havia respondido a esta questão:
Mas, devo dizer expressamente que essa técnica foi obtida apenas como sendo a
única apropriada à minha personalidade; eu não me atreveria a contestar que uma
personalidade médica constituída de um modo totalmente diferente pudesse ser
levada a preferir outras disposições no tocante aos doentes e ao problema por
resolver. (Ibid, p. 364)
E nesse trecho não se trata de uma modéstia freudiana, mas sim do reconhecimento da
verdade de que (...) a análise só pode encontrar sua medida nas vias de uma douta
ignorância” (ibid). Com isso, Lacan nos diz que se trata de um saber que conhece seus limites.
E o seu limite principal é não poder saber pelo outro, mas sim saber a partir do Outro.
Segundo Lacan (ibid) o analista, mesmo sem falar, ele porta a palavra, pois pode
relançar a enunciação significante. É o que o analista faz pela fala do sujeito: ao acolhê-la
com seu silêncio, pois o silêncio comporta a fala, o analista se cala ao invés de responder.
Mas o que é a fala?
Nela todos os termos têm peso. Nenhum conceito possui o sentido da fala, ela não é o
sentido do sentido. Mas ela apóia o sentido no símbolo que designa o falar, o ato de falar.
Trata-se de um ato que supõe um sujeito, no qual, num primeiro momento, o sujeito se funda
aí como sendo o outro (semelhante, imaginário, por isso, com “o” minúsculo), na tentativa de
que este se torne idêntico a si mesmo. Então, “a fala se manifesta como uma comunicação em
que não apenas o sujeito vai proferí-la sob uma forma invertida, mas em que essa mensagem o
transforma, ao anunciar que ele é o mesmo” (Lacan, 1998, p. 353). Por exemplo, como
aparece na declaração “você é meu marido”, que significa “sou tua esposa”.
70
Assim, a fala será tão mais verdadeira quanto menos sua verdade se fundamentar na
adequação às coisas de uma dada realidade, ou seja, a fala verdadeira opõe-se ao discurso
verdadeiro
10
, leia-se ao enunciado. No que diz respeito à verdade presente nos dois
fundamentos, tem-se que, na primeira, a verdade se constitui no reconhecimento de seus seres
pelos sujeitos, naquilo que nela os interessam, e o segundo, constitui-se pelo conhecimento
daquilo que é da ordem da realidade, tal como aquilo que o sujeito visa na sua relação com as
coisas.
Existe ainda entre a fala verdadeira que seria a enunciação, e o discurso verdadeiro, o
enunciado, um discurso intermediário, que seria a própria fala, onde um sujeito, que considera
o que sabe de seu ser como algo dado, dirige a palavra a outro, na tentativa de ser
reconhecido.
É na subordinação do seu ser à lei do reconhecimento do outro, atravessado pelas
falas, que é possível ao sujeito se abrir para sugestões. Mas, o sujeito se perde no discurso da
convicção em razão das miragens narcísicas que dominam a relação com o outro do seu Eu.
Portanto, ao analista impõe-se a condição de que estas imagens narcísicas tenham se tornado
transparentes para que este possa ser permeável à fala autêntica do outro, ou seja, à fala
verdadeira. Trata-se aí do Esquema L de Lacan, o analista posicionado neste lugar permite
que a fala verdadeira atravesse o muro da linguagem, colocando-o na posição de Grande
Outro (A)
11
.
O discurso intermediário, mesmo como um discurso do engano e do erro, não deixaria
de testemunhar a existência da fala em que se funda a verdade, pois este trabalha no sentido
de fazê-la não se reconhecer. Entretanto, essa fala, fala pelos cotovelos, por toda parte onde
pode ser lida, denunciando o inconsciente. Ainda assim, essa fala é acessível, pois nenhuma
fala verdadeira é apenas fala do sujeito e ela opera fundamentando-se na mediação com outro
sujeito: “... É na medida em que o analista faz silenciar em si o discurso intermediário, para se
abrir para a cadeia das falas verdadeiras, que ele pode instaurar sua interpretação reveladora”
(ibid, p. 355).
O que podemos dizer sobre condução da transferência? Qual seu lugar?
10
Discurso aqui não é aquele que está relacionado ao laço social. Lacan ainda não estava neste momento da sua
obra. Discurso está relacionado a enunciado.
11
Outro é definido como o lugar da fala, lugar evocado desde que haja fala, existe na relação com o objeto a,
desde que haja articulação significante (LACAN, 1992, p. 172)
71
Sobre a direção do tratamento, o primeiro apontamento feito por Lacan (1998) nesse
texto é que o psicanalista dirige o tratamento, jamais dirige o paciente. O analista deve saber
para onde está indo, essa é sua política.
Segundo Dunker (2003), em sua referência a Lacan, a política do tratamento se dá a
partir do lugar do Outro e da posição do sujeito no fantasma. Uma análise deve permitir ao
sujeito verificar sua posição no fantasma e o lugar do Outro. Lugar e posição, bem como a
noção de espaço, são considerados categorias de análise do discurso e operadores clínicos.
Então, “(...) o espaço discursivo como concebemos em uma análise condiciona o lugar que o
analista nele ocupa; o que por sua vez pode ou não condicionar a posição encontrada pelo
analisante” (idem, p. 4). A tarefa da análise seria desfazer a alienação que impede o sujeito de
não reconhecer o valor desse lugar denominado Outro. O desejo, portanto, seria reconhecido
como sobredeterminado pelo Outro, o que levaria a direção da cura a se orientar produzindo
um desejo puro que se funda a partir da experiência do Outro como falta, seja pela via do
Nome-do-pai, seja pela via fálica. Dessa forma, tem-se que o desejo puro está subordinado à
dialética do reconhecimento. O autor aponta um problema nessa relação, pois existe nela uma
assimetria na relação com o Outro, a soberania do Outro.
Propõe como alternativa:
(...) encontrar um ato que faça parecer não apenas a posição ética, nem o lugar
ético, mas o que constitui o espaço mesmo da ética. Isso tem várias vertentes: a
erótica, a estética, a política, ou seja, todas essas intersecções que constituem este
espaço, externa e internamente, como espaço de uma liberdade impossível (Dunker,
2003, p. 9).
No texto lacaniano encontramos o trecho sobre essa liberdade: “O analista é ainda
menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria
melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser” (Lacan, 1998, p. 596).
Dunker (2003) propõe que no lugar do que Lacan chamou de política estaria o campo
da ética, pois ambas pressupõe a liberdade. E é neste ponto que o analista teria menos
liberdade, transgredir em sua política ou em sua ética é não fazer psicanálise. Essa ética
definir-se-ia num ponto de corte do real, uma ética do real. Esta subverteria o registro da ética,
pois traz uma dupla implicação clinica: “(...) de um lado o reconhecimento do impossível que
concerne ao Outro, de outro lado, o destino do impossível na travessia do fantasma. O
reconhecimento do impossível, não prescreve seu destino. De certa forma este é o limite da
ética freudiana” (p. 11).
72
Nesse sentido há que se fazer um trabalho na clínica de “autodesconstrução reflexiva”,
de modo que do lugar do Outro surja um efeito de continuidade, pois independente das
posições que este lugar permite, elas não apenas satisfazem o fantasma, pois há algo no Outro
que não se inscreve, de modo que a ética do Outro tem continuidade na ética fantasmática. O
que se tem então é “(...) a atualização do fantasma como continuidade ao espaço do Outro”
(idem, p. 12). Dunker demonstra então que o espaço clínico, após Lacan, é formado e
deformado pelo campo da ética.
Até se dedicar à importância das entrevistas preliminares, Lacan utilizava termos
como consulta preliminar, exame inicial e entrevista prévia para situar esse momento inicial
do encontro entre analista e possível analisante. Encontro que possui um limiar, que no caso é
a transferência. Mas o que nos garante a entrada em transferência ou não? Não seria nos
sintomas, nem nos conteúdos das demandas de cura, o que importa “é ficar o sintoma preso na
transferência” (WASCSBERGER, 1989, p. 27), o que é possível com o sujeito-suposto-saber.
Diante das situações em que algo não faz mais sentido, ou está fora do lugar, onde há
um desarranjo, o sujeito se dirige a um outro, atribuindo-lhe um suposto saber, um chamado
ao saber do Outro, de onde viriam as respostas que busca. É essa atribuição de saberes a um
sujeito-suposto-saber que produz uma transferência, como já dissemos.
Entra em jogo o significante da transferência, “a suposição de saber vem da
implicação, por esse significante, de um outro significante representativo desse saber no
Outro” (p. 28, idem). Esse significante justifica os efeitos de surpresa, os espantos, que são os
efeitos desse significante na divisão do sujeito. Significante que se manifesta de diversas
maneiras. Como aponta o autor, pode advir, por exemplo, do espanto de uma criança diante de
sua produção artística, ou de uma fala que de repente soa ao sujeito de modo inesperado, sem
sentido, trazendo a tona esse significante do sujeito no lugar do Outro, enquanto agente da
instauração transferência e o primeiro advento do sujeito. O analista inscreve na análise a
manifestação sintomática centrada no significante. O que chama de “brecha do Outro” e que o
analista tentará mantê-la aberta, o que implica o desejo do analista como operador decisivo
para o processo analítico.
As Entrevistas Preliminares pretendem garantir a transferência. Só dá para pensar a
clínica em transferência, na transferência. Trata-se de fazer surgir o significante da
transferência.
Para Lacan não há entrada em análise sem as entrevistas preliminares. Quinet (1991)
comenta que estas correspondem ao que Freud chamou de tratamento de ensaio, o qual seria
73
um momento anterior à entrada em análise, onde o paciente se ligaria ao seu tratamento e à
pessoa do analista, marcando uma diferença relacionada à transferência que distingue a
chegada do paciente ao consultório de sua entrada em análise.
Nesse momento a tarefa do analista é relançar o discurso do analisante. Momento este
que já faz parte da análise, não está à parte, e ao mesmo tempo, se difere da própria análise.
Por isso Freud o chamou de “tratamento de ensaio”, um tempo que antecede a análise e que
posiciona paciente e analista no discurso analítico.
As Entrevistas Preliminares possuem três funções: função sintomal (sinto-mal), função
diagnóstica e função transferencial. A função sintomal consiste em transformar o sintoma do
qual se queixa o sujeito em sintoma analítico. Precisa-se que a queixa se transforme em
demanda direcionada ao analista. E ainda que esse sintoma do qual reclama o sujeito passe do
estatuto de resposta para o de questão. Para o analista trata-se de questionar esse sintoma,
deixando-o enquanto um enigma para o sujeito, não lhe oferecendo respostas, de modo a
sustentar a função sujeito-suposto-saber. Deixar que o sujeito associe e produza seus enigmas.
Essa transformação quanto ao sintoma denuncia para o sujeito sua divisão, chamando-o à
dimensão inconsciente. Quinet (idem, p. 23) chama esse momento de “histerização do
sujeito”.
Trata-se mesmo do Discurso da Histérica. Na leitura dos discursos temos a função
sintomal da transferência neste discurso. O sujeito dividido pelo seu sintoma ($) se dirige ao
outro-analista (S1) como aquele que pode produzir o saber de seu sintoma (S2), que diz
respeito à verdade de seu gozo (a), recalcada para o $. Portanto, a função sintomal é a
instalação do próprio Discurso da Histérica.
A função diagnóstica é o momento de ler um diagnóstico diferencial, que só te
sentido se tiver função na direção da análise. Para isso deverá ser buscado no registro
simbólico. Em análise, será a partir dele que se investigarão as questões fundamentais para o
sujeito, por meio dos três modos de negação do Édipo, ou melhor, negação da castração do
Outro. Dessa forma, têm-se as três estruturas clínicas como possibilidade conforme a forma
de negação, o registro do retorno e o fenômeno manifesto: neurose, perversão e psicose. Na
neurose, a forma de negação é o recalque, o retorno se dá no simbólico, via sintoma. Na
perversão, a negação se dá pela renegação e o fenômeno expresso no fetiche. Na psicose,
temos a forclusão do Nome-do-Pai, que se manifesta via a alucinação ou delírio com retorno
no real. A importância do diagnóstico está na condução de que referenciais o analista irá
utilizar transferencialmente junto ao sujeito.
74
A função transferencial diz respeito ao estabelecimento da transferência, momento em
que surge o sujeito agora sob transferência, o que implica uma questão com o saber, desde o
início. É porque tem a hipótese de que há um saber que o sujeito não possui, mas que existe e
que o analista pode ter. Citando Lacan, Quinet (idem) postula que a transferência não é função
do analista, mas função do analisante, ao analista cabe saber utilizá-la.
Miller (1989, p.44) também discute a existência de três tipos de transferência. A
transferência anônima é um tipo de transferência que não tem nada de analítica. Assemelha-se
àquela que ocorre em relações duais, como a relação médico-paciente ou professor e aluno.
Nessa transferência, o sujeito não espera o analista para apresentar seu sintoma como também
não apresenta a ele. O sujeito chega mergulhado em seu sintoma, vivendo-o em seu estado
bruto. Apresenta suas elaborações imaginárias sobre seu sintoma. Segundo Miller, a demanda
de análise possui um mal entendido: a confusão entre sujeito suposto saber e o sujeito que
sabe. Nesta transferência interessa um saber objetivo, diferentemente do saber inconsciente de
uma transferência analítica. Para que esta passagem se dê a relação analítica passará por esse
primeiro tempo. A colocação do sujeito-suposto-saber mudará a relação com o saber, onde
para o sujeito tratar-se-á de um “saber em espera” e não mais um “sintoma em espera” (p. 47).
No início de nossa experiência, quando começamos os encontros com a Unidade das
Flores podemos dizer que foi esse tipo de transferência que se deu. Os sujeitos traziam suas
queixas e as elaborações a partir delas e esperavam que algo mágico ocorresse e que tivessem
uma resposta objetiva para seus sintomas.
No segundo tempo ocorrerá a passagem de um saber a outro. Miller a nomeou de
transferência de significação, neste entra em questão o sujeito suposto saber. E como se dá
essa passagem? A suposição de saber supõe um saber tomado em sua significação. Isso ocorre
quando a questão do saber do sintoma e da cura sai do laço social do Discurso Universitário
ou do Mestre para passar à saber suposto no discurso analítico. Com o sujeito suposto saber a
demanda é dirigida tanto ao saber inconsciente do sujeito quanto ao saber do Outro.
Reconhecemos essa colocação pelos efeitos de significação no analisando diante de uma
revelação. Trata-se da tentativa de construção de um saber sobre o sintoma. Para isso é
preciso que o sujeito suposto saber coloque esse saber no patamar de um enigma para o
sujeito, transformando o sujeito da demanda em sujeito suposto saber. O que implica a
abertura ao inconsciente, repetição, rememoração e entra em cena o saber inconsciente do
Outro. Esse momento é breve, rápido, uma frase às vezes, um “flash”. É um tempo das
perguntas.
75
O terceiro tempo da passagem à analise a autora chamou de transferência analítica.
Nesse momento temos a relação com o saber mais incerta e a transferência mais operante,
sendo o oposto do primeiro momento onde o saber em jogo na demanda de analise era seguro.
Trata-se agora da revelação de um outro saber, como nos diz Miller (1989) “(...) não é o
retorno do recalcado, um saber que se iria colher na história; é um saber que se constrói com
toques delicados, e desenha o contorno da relação do sujeito ao objeto” (p. 50). Essa
transferência vem apontar a relação do sujeito com o objeto e, portanto, com o gozo. O saber
está mais próximo do objeto do que do significante, como nos mostra o matema do Discurso
do Analista, onde o analista faz semblante de objeto para o analisando, para que este produza
seus significantes-mestre.
Se o fundamental da transferência é a questão do objeto, então a depender do lugar que
é atribuído ao analista e a resposta que ele dá a isso, podemos nos enlaçar de maneira
diferente na relação analítica.
Lacan (1998) problematiza alguns exemplos de casos de outros psicanalistas e de suas
práticas, principalmente, os ligado a IPA e os da psicologia do eu. Levanta a questão dos
limites entre a análise e a reeducação e do que ele chamou de “deslizamento da técnica” entre
os analistas da época. Como por exemplo, o fato de atribuírem à questão das resistências e do
manejo da análise às conseqüências da relação dual, fazendo dela o ideal de sua ação, ainda,
confundindo a necessidade física da presença do paciente na hora marcada com a relação
analítica. Nesse sentido, a transferência tornar-se-ia a segurança do analista e seria na relação
com o real onde se definiria as coisas, a interpretação ficaria assim adiada até a consolidação
da transferência e desde então subordinada à redução desta.
Lacan, discutindo a questão que abre o texto citado acima (“Quem analisa hoje?”)
questiona os tipos de analistas existentes em sua época segundo a forma como manejavam a
transferência: o analista seria “(...) aquele que interpreta tirando proveito da transferência?
Aquele que a analisa como resistência? Ou aquele que impõe sua idéia de realidade?” (idem,
p. 598).
Quanto à transferência, se não é do ser que se trata, então do que é? Segundo Lacan, o
analista é menos seguro de sua ação quanto mais está interessado em seu ser. E menos livre
em sua estratégia do que em sua tática. Utilizando a metáfora do jogo, Lacan afirma que os
sentimentos do analista possuem apenas um lugar possível no jogo, o do morto. Este seria
convocado pelo analista para fazer surgir um quarto jogador, que será parceiro do analisado.
Ao ressuscitar o morto, o jogo prossegue sem que se saiba quem o conduz, o que contraria a
76
função do analista na direção do tratamento. Daí, Lacan justifica porque o analista é menos
livre na sua estratégia do que em sua tática.
Portanto, trata-se de se situar em sua falta-a-ser, pois o analista não é senhor da
transferência. Ele está no lugar onde o sujeito lhe coloca e por isso ele nunca está em seu
lugar, o que libertaria o poder da interpretação (Laurent, 1995).
III. A TEORIA DOS QUATRO DISCURSOS DE JACQUES LACAN
Os quatro discursos de Lacan: Discurso do Mestre, Discurso Universitário, Discurso da
Histérica e Discurso do Analista
Quando se fala em sujeito em psicanálise apreende-se uma noção de sujeito sempre
relacionada à de inconsciente. O $ é o sujeito na sua dimensão consciente e inconsciente.
O sujeito aparece representado no discurso, é o que um significante S1 representa para
outro significante S2, a partir da extração de uma parte de gozo do objeto a, objeto causa do
desejo. Assim:
S1 - $ - S2
a
Este é próprio matema da entrada do sujeito na linguagem, no simbólico, portanto.
Para Lacan, a instauração do simbólico é correlata à emergência da fantasia inconsciente
fundamental. Esta faz a função de mediar o encontro do sujeito com o real via a instância
simbólica, ou seja, o campo da linguagem. A fantasia participa tanto do imaginário quanto do
real: $ ◊ a. Expressa a relação desejante do sujeito e o objeto, causa de desejo, radicalmente
faltoso. Situa-se no intervalo metonímico entre dois significantes
12
. Daí deduz-se que o sujeito
é o que um significante representa para outro significante.
A fantasia se apresenta como aquilo que suporta o desejo, relação entre o campo do
sujeito e o campo do Outro. “A fantasia associa àquilo que falta ao sujeito àquilo que falta ao
Outro” (JORGE, 1988, p. 168). Ela se instala no sujeito justamente porque algo falta no
12
Significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante. Para Lacan, não há significante sem
sujeito.
77
Outro. Falta no Outro e falta no sujeito. O sujeito não encontra o que lhe falta no Outro,
unindo uma falta a outra falta, de maneira a mantê-lo enquanto desejante.
Adentrar ao mundo humano, mundo da linguagem é produzir esse efeito-sujeito. Vê-se
então uma concepção de sujeito como efeito de sentido de sua própria constituição, o sujeito
como sentido, como efeito-sujeito (COSTA-ROSA, 2009, p. 15).
Nessa perspectiva aponta o autor, o sujeito aparece em duas concepções. Na primeira
concepção, tem-se o sujeito dividido, $, na sua dimensão de indivíduo e inconsciente, a partir
de sua entrada no simbólico. Na outra concepção, trata-se do sujeito como efeito de sentido
dos processos de enunciação, como aquilo que é “representado por um significante no Outro,
S1 como significante-mestre” (idem). Temos então o sujeito advindo do ato de enunciação. O
inconsciente aparece nesse sentido como produção de sentido e não apenas como retorno do
recalcado da história. Sentido que aparece sobre a forma de S1 significantes-mestre que
podem mudar o estatuto do saber inconsciente S2.
O sujeito, $, chamado de sujeito dividido ou barrado, pois na lógica significante
nenhum, nem S1 nem S2, poderá representá-lo totalmente (S1 - $ - S2). S1, significante-
mestre, representa o sujeito em sua particularidade e se situa em referência a S2, o saber
articulado do Outro, pois isolado não possui sentido.
Os dois únicos discursos que inscrevem o matema da fantasia, ou seja, a relação do
sujeito com o objeto a, causa do desejo, são o do Mestre e do Analista. Há uma falta no
campo do sujeito e no campo do Outro. O Discurso do Mestre é aquele que instaura a fantasia,
tem-se: $ // a. E no Discurso do Analista escreve-se a $, como veremos mais adiante.
Na situação analítica a fantasia se manifesta na formulação da demanda e no modo
como o analisante nela nos implica. A resposta que damos a essa abertura conduzirá uma
sequência de trabalho. Podemos tanto responder a ela, entrando no jogo imaginário do
analisante e estabelecendo assim uma relação dual, na qual o desejo de ser analista
predomina, quanto não responder desse lugar imaginário, abrindo possibilidade para
instauração da transferência, a partir do desejo do analista, o qual aparece vinculado ao
Discurso do Analista. (GOLDER, 2000).
A obra de Lacan possui dois momentos distintos: o primeiro corresponde aos anos
1950 com o enfoque no campo da linguagem e o outro a partir dos anos 1970 com o campo
do gozo. A teoria dos discursos faz parte desse segundo momento, o que não significa que o
primeiro esteja descartado, ela agrega o campo da linguagem ao campo do gozo. Após alguns
esclarecimentos quanto à definição de sujeito para o autor e sua relação com a fantasia
78
podemos explanar sobre a teoria em si. Frisamos que o apanhado teórico que se segue será
discorrido de maneira estática para fins de primeira apresentação. No capítulo III estará
conectado à experiência.
A teoria dos discursos corresponde a um momento no qual ele está preocupado com a
questão do gozo. Do aforismo “o inconsciente está estruturado como uma linguagem”, Vegh
(2001) nos mostra as teses lacanianas que explicam tal afirmação. Em primeiro lugar, pode-se
deduzir que o inconsciente é “um saber, um conjunto de significantes articulados” (p. 11);
mais tarde Lacan afirmará que o inconsciente é uma linguagem que produz seu próprio
escrito, como por exemplo, o sonho, e sendo assim é um produto do inconsciente, é o retorno
do recalcado. Para essas duas teses Lacan utilizou duas letras para nomeá-las: S2
representando o inconsciente como saber e S1 como retorno do recalcado. Mais adiante
acrescenta que o inconsciente além de estar estruturado como uma linguagem seria na análise
que ele se ordenaria em discurso. “Falar de discurso implica não somente o inconsciente
estruturado como uma linguagem, mas também o inconsciente em relação ao real. A que real?
Ao real do sujeito e ao real de gozo” (idem, p. 11).
Quando discurso passa à categoria de conceito, passa a ser considerado como um laço
social. Isso se dá a partir de maio de 1968, conjuntura histórica de revoluções na
intelectualidade francesa, momento em que Lacan profere o seminário O Avesso da
Psicanálise. Nessa época, tínhamos Michel Foucault com sua teoria sobre a discursividade e
em 1969 ocorre a conferência que dará nome a um de seus livros mais importantes “O que é
um autor?”. Em 1970, ele dará uma aula inaugural no Collège de France, intitulada “A ordem
do discurso”. Em 1967, Lacan propõe o dispositivo do passe
13
.
Segundo Vegh (idem, p.12) até então o conceito de desejo apresentava-se como
desprendido dos “mandamentos do gozo do Outro”, o que implicaria uma impossibilidade
absoluta do encontro com o outro. A teoria dos discursos vem tratar justamente desse
encontro. Falar de desejo implicaria uma forma de gozo que leva o sujeito a encontrar-se com
o outro, o que significa aceitar uma perda de gozo. O autor explica (idem) que se a língua com
a qual falamos chega até nós a partir do Outro, falar, entrar na linguagem, no mundo dos
falantes, implicaria uma perda de gozo. “Avançar no laço social demanda uma perda de gozo”
(idem, p. 13). Como uma maneira de remediar a noção de desejo colocada até então em seu
ensino, ele traz a noção de discurso. A partir de então “situar-se na perspectiva do desejo
13
Dispositivo do Passe: procedimento instaurado por Lacan, em sua Escola, para propor a questão do fim da
psicanálise, e, a partir disso, renovar as questões da análise didática e da nomeação dos analistas (CHEMAMA &
VANDERMERSCH, 2007).
79
significa também situar-se na perspectiva do laço com o outro”. O desejo como possibilidade
desse encontro e não impossibilidade.
O que é um discurso para Lacan? Um discurso é aquilo que funda e define cada
realidade. Para o falante não há realidade pré-discursiva. Indica-se um lugar simbólico que
deverá ser ocupado pelo falante, que se inscreverá numa realidade discursiva a partir do
significante do Outro. Discurso como um liame social, ambos os conceitos no latim
significam ligação e companheiro, dando um sentido de algo que se liga ou se associa a outra
coisa. Essa noção de discurso para Lacan pode ser considerada como uma decorrência lógica
e posterior de seu postulado fundamental, a saber, o inconsciente é estruturado como uma
linguagem.
Lacan (1992) faz a distinção entre discurso, palavra e linguagem. O discurso não
comportaria a palavra, define discurso como uma estrutura necessária que ultrapassa a palavra
e é sempre mais ou menos ocasional, “um discurso sem palavras” (p. 11). A palavra seria
sempre eventual, regida pela estrutura da linguagem e se estabelece no lugar definido por esta
(WAINSZTEIN, p. 17, 2001).
Segundo Rosa (2006) essa dimensão discursiva proposta pelo autor pode nos ajudar a
superar a relação entre clínica e teoria da psicanálise. Quando ele destaca essa dimensão
presente nos laços sociais é na tentativa de dizer que os modos de relações de linguagem entre
as pessoas definem as diferentes maneiras de distribuição do gozo. O discurso é sem palavras,
mas não sem linguagem, por isso ele daria conta dos laços sociais que
(...) se constituem a partir da circulação de certos elementos que, ao
transitarem por diferentes lugares, produzem laços sociais, específicos e
promovem diferentes efeitos ou sintomas. A dimensão política do gozo
toma relevância na medida em que é um fenômeno que abrange o sujeito
em um determinado laço social. (ibid, p. 4)
Para entender a teoria é preciso compreender a lógica do significante, pois as letras
que aparecem no discurso partem dessa lógica (S1, S2, a, $). As letras compõem o que se
chama de álgebra lacaniana. Da combinação dessas letras surgem os matemas. A utilização
dos matemas visa a aproximar o máximo possível a teoria do real.
O matema é uma combinação de letras, um pólo de convergência dos elementos da
experiência, sozinho não diz nada, mas exige que se diga. Os matemas ocupam lugar de
intercessão entre o real e imaginário na teoria, lugar de onde vem a enunciação e de onde
falam os sintomas, uma dimensão simbólica. A formalização matemática é a escrita que só
80
subsiste se empregada na língua que se usa. O matema lacaniano visa possibilitar a
transmissão da psicanálise, daquilo que se mostra na experiencia analítica (JORGE, 1988).
Os discursos se referem às profissões impossíveis descritas por Freud: governar
(Discurso do Mestre), educar (Discurso Universitário), analisar (Discurso do Analista). Lacan
agrega o fazer desejar correspondente ao Discurso da Histérica e desenvolve um que é o
desdobramento do Discurso do Mestre, que ele chama de discurso do mestre moderno, a
saber, o Discurso do Capitalista.
A estrutura de todo discurso é composta de 4 elementos ou 4 letras:
S1: significante-mestre
S2 : saber
a : objeto mais-de-gozar (Mehrlust)
$ : sujeito dividido
Discorremos a seguir considerações sobre estes elementos, porém nesse momento,
para fins didáticos eles serão abordados de maneira estática. Cabe ressaltar que eles não o são
e que a depender dos lugares em que se encontram no discurso eles podem se apresentar de
maneiras diferentes, como veremos no capítulo III onde serão lidos segundo a experiência em
questão.
O significante-mestre, S1, é um traço, traço unário
14
, significante em sua forma
elementar, significante de gozo, que representa o sujeito para outro significante (S2) e surge a
partir do campo do Outro, campo do sentido. Não há sujeito que produza a si mesmo, somos
produzidos a partir e no campo do Outro.
O S1 também aparece como enxame, que em francês se escreve essaim e se pronuncia
homofonicamente como S1. Este não é um significante qualquer, é uma referência singular
para o sujeito, de onde todo o restante da cadeia significante se organiza. Esse S1 tem um
efeito de corte para o sujeito, e pode dessa forma representar o sujeito.
O S2 são as palavras produzidas a partir do campo do Outro, por meio do qual o efeito de
afânise
15
, de apagamento, faz desaparecer o sujeito representado pelo seu S1, o significante-
mestre, passando a se representar pelo S2, que são os significantes do Outro. Em análise,
trata-se de fazer com que apareça o S1, verdadeiro representante do sujeito. O sujeito
14
Traço Unário: conceito introduzido por Lacan, a partir de Freud, para designar o significante em sua forma
elementar e para explicar a identificação simbólica do sujeito. Um significante que realiza um traço, uma marca.
O sujeito é um Um, incluído no conjunto daqueles que passaram pela castração, ao mesmo tempo em que afirma
sua singularidade por um traço único ((CHEMAMA & VANDERMERSCH, 2007, p. 374)
15
Afânise: abolição permanente da capacidade de gozar, desaparecimento do próprio sujeito em sua relação com
os significantes (CHEMAMA & VANDERMERSCH, 2007, p.24).
81
representado por S1 é um sujeito efeito do significante (WAINSZTEIN, 2001). Quando
falamos o fazemos a partir das palavras do Outro e não das próprias palavras. Ou melhor,
falamos a partir dos significantes S2 do Outro.
O saber representado por S2, “(...) o saber do Outro, S2, é o que tem para Lacan poder
de alienação do sujeito. S2 é o que apaga, ou empregando o termo introduzido por E. Jones e
retomado por Lacan, afaniza o sujeito” (JORGE, 1988, p.27). A experiência de análise teria
como efeito a desafanização do sujeito no saber do Outro, passando a poder referenciar-se aos
significantes primordiais da sua própria historia.
O sujeito, $, é o sujeito do inconsciente, se encontra dividido pela própria lógica do
significante, separa-se o saber do gozo, faz parte da cadeia significante, mas encontra-se no
entre, conforme discorrido acima.
A letra a está ligada ao campo do gozo, mas mantém relação com a lógica do
significante. Lacan chama o objeto a de “mais-gozar” e o relaciona com dinâmica da repetição
freudiana. Como aquilo que se repete, do qual o sujeito não quer perder nada, nada de gozo,
sendo então um a mais, um “plus”, um excesso de gozo. O sujeito resiste em perder algo
desse gozo. O real impossível não pode ser recoberto nem pela palavra nem pela imagem.
O objeto a é simultaneamente real, simbólico e imaginário, se localiza num lugar
insituável da nodulação dos três registros, no nó borromeano. (idem). O Objeto a imaginário
tem uma configuração consistente, que se dá no nível do fantasma, é um objeto presença-
presente, objeto enquanto necessário. O objeto a simbólico é passível de ser substituído, é
contingencial, momento do Fort-da onde o objeto mãe pode ser substituído pelo objeto
carretel, o significante pode presentificar o objeto ausente e ausentificar o objeto presente.
Refere-se a uma presença imaginária e uma ausência real. O objeto a é real, enquanto
impossível de ser apreendido, objeto causa da estrutura, como falta real no imaginário do
falante que vem a ser preenchida pelo simbólico. Em análise, diz que o despertar em si é
impossível, pois seria deparar-se com a falta do objeto. A análise pode oferecer momentos de
despertar, refazendo por meio do simbólico a fantasia, partindo do real, no sentido do
imaginário, passando pelo simbólico. Simbolização que parte da ausência-presente do objeto
em direção a sua presença-ausência. Assim o sujeito sairia do estado de dessubjetivação e
melancolia que a análise o levou.
Para a psicanálise o objeto a está para sempre perdido, é o objeto impossível, na
medida em que foi originalmente substituído. Porque todo objeto é metonímico de a, que a
enquanto objeto perdido é a causa do desejo. O que seria a própria fórmula da fantasia e a
82
função subjetivante da psicanálise: $ ◊ a. Relação do sujeito com o objeto causa do seu
desejo.
O objeto a na teoria dos discursos aparece como mais-gozar, conceito onde Lacan faz
alusão à mais-valia de Marx, ao definir a lógica fundamental do modo de produção
capitalista, faz uma análise crítica do capital e da economia política. Magno (2007) diz que há
no capitalismo um jogo de “esconde-esconde” entre o valor de uso de um produto e de seu
valor de troca:
Exatamente o valor não pago que aparece no fruto do trabalho daquele que
trabalha, que costumamos chamar de trabalhador, que aparece no valor de
uso do fruto desse trabalho o verdadeiro preço do fruto desse trabalho. O
que Marx demonstra é que, do ponto de vista da lógica capitalista, a coisa foi
paga (justamente), no entanto sobra um resto, um lucro (p. 37)
Esse resto, esse lucro que Marx chamou de mais-valia, colocando-a como responsável
pelo funcionamento do modo de produção capitalista. Para Lacan a mais-valia de Marx é uma
forma de mais-gozar.
Lacan fala de quatro modos de formular a demanda, que se ordenam segundo quatro
referências que permanecem fixas. O agente, aquele que produz o discurso; aquele que nele
está implicado, o Outro; o que se espera disso, a produção; e o que este discurso revela, isto é,
a verdade.
Esses elementos podem ocupar quatro lugares:
agente
outro
verdade // produção
Os lugares são escritos por dois binômios interligados por uma seta. E são fixos, pois
todo e qualquer discurso sempre apresenta uma verdade que o move, por meio da qual fala um
agente, que se dirige a um outro, com objetivo de obter uma produção. Da posição das letras
nos respectivos lugares que são gerados os discursos responsáveis pelos laços sociais, que são
em síntese uma formalização do encontro do sujeito com o outro.
Esses lugares dizem respeito a duas questões presentes em toda articulação discursiva,
como mostra Jorge (1998):
1) Em nome de que ele fala, o que o organiza: qual o papel do agente? Qual é a sua
verdade?
83
2) Em vista de que ele fala: qual é o outro a que esse discurso se dirige? Qual é o produto
que ele comporta?
Os discursos sempre implicam uma referencia ao Outro, é pelo discurso que o sujeito
se referencia ao Outro. Jorge (1988, p. 159) complementando a disposição dos lugares das
letras dos discursos acrescenta que do lado do primeiro binômio está o campo do sujeito,
mesmo que nem sempre o lugar do agente seja ocupado por ele, e do outro lado está o campo
do Outro. Ainda coloca uma linha mediana entre os binômios para indicar que a ligação não
existe apenas entre os numeradores do discurso, mas também entre os denominadores. Assim
como a disjunção, grafada pelas barras paralelas nos denominadores (//), que mostram a
descontinuidade entre a verdade e o produto de um discurso, não significa que a mesma não
possa ocorrer também no campo entre agente e outro. “...Um impossível radical vigora entre
sujeito e Outro, impossível que funda todo e qualquer discurso que visa produzir aí algum
grau de possibilitação” (idem, p. 160). A barra // nos discursos diz de uma impossibilidade, o
discurso como impossível, como verdade não toda.
Ao mesmo tempo em que tenta estabelecer uma ligação, o discurso implica uma
disjunção um impossível nessa relação. A seguir:
SUJEITO ¦ OUTRO
agente
outro
verdade ¦ produção
Ocorre uma rotação dos quatro elementos nos quatro lugares configurando a estrutura
de cada discurso. A barra que divide numerador e denominador na álgebra lacaniana indica a
operação do recalque, o que significa que a operação entre sujeito e outro não é uma relação
consciência-consciência, pois o sujeito $ em jogo só pode ser o sujeito do inconsciente
(WAINSZTEIN, 2001, p. 19). Daí decorre a afirmação lacaniana de que não existe relação
intersubjetiva, entre sujeitos, pois todo discurso permite apenas um único sujeito.
A partir de um discurso podem ser obtidos os outros três devido à função
16
de um
quarto de volta ou mudança de posição, que aplicada a um discurso permite a produção do
discurso seguinte. Podemos dizer que o discurso faz laço social, pois nesse movimento de
mudança de posição ou quarto de volta forma-se um grupo, e essa operação-função se dá
16
Função de um quarto de volta: diz respeito às operações de composição da teoria da estrutura do grupo de
Klein, que trata da concepção dos conjuntos, da lei de composição interna. (Wainsztein, 2001, p. 21 a 23).
84
entre eles, de modo que cada dois movimentos, grupos ou discurso combinados geram outro
(idem, p.23).
Os discursos se definem pelo lugar do agente, também chamado de dominante. No
Discurso do Mestre (DM), que é o discurso do inconsciente, a dominante é o S1, significante-
mestre; no Discurso da Histérica (DH) é o próprio sujeito dividido; no Discurso Universitário
(DU) é o saber, S2 e no Discurso do Analista (DA) é o objeto a, do qual o analista prescinde
para, enquanto semblante de objeto, colocar em jogo o próprio DA.
Os quatro discursos são como um pólo de atração para onde convergem todos os
discursos existentes. Contudo, nenhum discurso existente pode ser identificado estritamente a
um dos quatro discursos. Os quatro discursos correspondem também a quatro tempos na
direção da cura. Por meio dos discursos se poderia pensar os tempos da cura e os tempos da
estrutura: tempos do sujeito, tempos do objeto, tempos do
Outro. ( IDEM, 2001, p. 45).
Para Vegh (2001, p.150) nenhum discurso é bom ou ruim, o ruim é quando se persiste
em um deles. Sugere uma nomeação diferente para os discursos, pois assim evitaríamos
alguns preconceitos com relação aos nomes utilizados por Lacan, então seriam dados pelo
significante que está como agente do discurso: DH como discurso do sujeito; DM como
discurso do significante mestre; DU como discurso do saber e DA como discurso do objeto.
O Discurso Universitário e o Discurso do Mestre revelam a mestria pelo saber, são
discursos de poder-saber, já o Discurso da Histérica e do Analista dizem respeito à relação
com a questão do desejo. Temos então os quatro discursos de Lacan:
Discurso do Mestre
S
1 oS 2__
$ a
Discurso Universitário
S 2__ o a__
S
1 $
Discurso da Histérica
$
o S1__
a S
2
85
Discurso do Analista
a
o $ __
S
2 S1
Discurso do Mestre (DM)
A depender do lugar em que os indivíduos se encontram no Discurso, nos dirigimos a
eles como sujeitos ou não. No Discurso do Mestre, o educador-capacitador se dirige não a um
sujeito e sim a um saber, o sujeito não está em questão, o que temos no lugar do outro é um
saber e consciente.
O Discurso do Mestre é a forma discursiva mais comum. Traz a questão fundamental
da relação do sujeito com o Outro. Nesse discurso aguarda-se que o outro traga aquele saber
que nos escapa. Coloca-se o saber para trabalhar a fim de que de produza mais saber. A
relação $ // a está recalcada. A barra indica que não existe relação entre o sujeito e a sua
verdade. A análise também é introduzida pelo DM (GOLDER, 2000).
A demanda de ajuda tem na maior parte das vezes a estrutura do Discurso do Mestre,
no sentido de que quem demanda, demanda um saber maior, um conselho. Podemos observar
que o DM é o avesso do DA, são simetricamente opostos.
O Discurso do Mestre é o discurso do inconsciente. O S1 é o significante-mestre, que
representa o sujeito $, para outro significante, no caso S2. O $ está sob a barra que indica o
recalque, aparece representado (S1 - $ - S2), o que se configura o próprio sujeito do
inconsciente.
Tal discurso apresenta a própria constituição do sujeito do inconsciente, pode-se
chamá-lo também de matema da linguagem. S1 no lugar de agente significa que a entrada do
sujeito no simbólico depende de por em ação um significante-mestre. O S2 no lugar do Outro
implica que o saber em jogo está do lado do Outro, que no caso é o lugar do significante
(JORGE, 1988, p. 161). Trata-se do saber do gozo do Outro. O $ no lugar da verdade implica
que não exista uma única verdade, esta será sempre barrada, semi-dita. O objeto a no lugar da
produção é a indicação de uma falta objetal no campo do Outro, a partir da articulação entre
S1 e S2, o que é produzido dessa relação é essa falta, um resto.
É o discurso da relação do senhor-escravo, que Lacan desdobra de Hegel. O escravo
era quem possuía os meios de gozo. No lugar do Outro, no caso o S2, o outro é o escravo, da
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época da cultura grega onde era ele que trabalhava e, portanto, ele quem detinha o saber sobre
o gozo.
No DM o S1 enquanto dominante tenta dominar a Lei. Em comparação aos outros
discursos, por exemplo, na DH o que se tenta dominar é o sintoma, no DU é o saber, e no DA,
o analista enquanto semblante de objeto tenta a partir desse lugar que o sujeito $ encontre seu
lugar de gozo. “Ao mestre o que interessa é que a coisa funcione, que as coisas andem, que
caminhem. Não lhe interessa saber porque funcionam, diferente da histérica que se interessa
em saber por que funcionam, deixando claro que se trata do discurso do analisante”
(WAINSZTEIN, 2001, p. 30).
Para o mestre não interessa o saber, é o outro no lugar de S2 (escravo) quem detém
esse saber e trabalha para o mestre, no sentido de transferir a este o saber sobre o gozo. O
mestre supõe o saber no Outro. S1 como emergência do inconsciente. O Inconsciente se dirige
a um outro que deteria o saber, o analista, enquanto aquele que detém o saber sobre o gozo do
analisante S2/
a.
O DM é o discurso correlato do momento da entrada do sujeito no simbólico. No
seminário O avesso da Psicanálise, Lacan chama de dominante no discurso a letra que estiver
no lugar de agente do discurso. Como nos diz Jorge (1988, idem), em referência a Lacan, a
dominante no DM é o S1, que representa o falo, ou seja o significante de maior valor na
cadeia significante, o significante primordial. Já no DA a dominante é o objeto a, o furo,
como objeto faltoso e real, fundante da subjetividade do falante.
Discurso Universitário
Em relação aos tempos da cura analítica e da própria analise o DU está anterior ao
DA. Marca um momento fundamental da transferência na direção da cura. É um discurso na
maioria das vezes ligado a transmissão de saber, semelhante à transmissão do ensino
universitário. Diz de uma relação entre saber e educar.
Nanclares (2001) toma o DU pelo avesso fazendo uma discussão diferente do que se
costuma fazer desse discurso. A psicanálise é uma experiência de discurso, diz ela.
Diferentemente da psicologia, não se trata de um saber do conhecimento. A psicanálise
trabalha com outro saber. E com distintos tempos na transferência em relação ao saber e a
verdade. S2 tem a ver com o saber inconsciente, que vem do Outro.
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Freud lê na histeria a revelação de um saber que iria além do saber médico ou do
conhecimento cientifico da época, que foi o que ele nomeou de inconsciente, tratava-se não
do saber relacionado a um conhecimento já dado, mas do saber inconsciente, que era algo
completamente diferente. Lacan, após retorno a Freud, amplia o conceito e dirá que o
inconsciente está estruturado como uma linguagem e só se ordena em discurso na análise.
Portanto, podemos falar em ordenação do inconsciente apenas em análise, no laço
social do DA? Somente em análise, na presença do analista(s) e na posição de a, semblante do
objeto, que podemos nos situar quanto ao inconsciente.
Nanclares (2001) relata a passagem pelo DU na clinica, em análise. É o saber
inconsciente que num determinado momento está no lugar de agente do discurso, S2, separa
de seus S1, que se dirige a um analista tomado como objeto a no lugar do outro. Fala do DU
como anterior ao DA. Abaixo do outro, analista no lugar de objeto a, temos o sujeito no lugar
da produção. Mas esse sujeito produzido deixa separado de si, o objeto que está com o
analista, e o S1 seu traço singular que está recalcado, abaixo do S2, saber que não diz tudo,
não pode dizer toda a verdade. O sujeito fica separado dos objetos causa de seu desejo.
Segundo a autora este seria um tempo de passagem para o DA. Tempo que ela nomeia
de “escrita do objeto na transferência pela presença real do analista” (idem, p. 133). “(...) o
valor que o discurso universitário tem na cura é o de permitir recortar o objeto da demanda do
Outro que o analista vem encarnar” (idem, p. 139).
Em relação a cura analitica, no DU o sujeito apela não para um saber como no DM e
sim para a presença do analista, para a transferência. Seu saber fracassa, pois está dividido do
seu S1. Vegh (2001) chama essa demanda ao analista de uma demanda passional, na medida
em que faz um chamado a transferência, à presença do analista. Analista no lugar de objeto a,
mais-gozar, de onde o analisante poderia tirar as respostas que não dão conta de seu saber.
Mais esse analista, dividido de sua parte-sujeito. É o desejo do analista que sustenta que este
possa ocupar esse lugar até que as posições se modifiquem no discurso.
Discurso da Histérica
O DH é o discurso do analisante. $, sujeito dividido no lugar de agenciador do
discurso, e que para ocupar esse lugar implica uma perda de gozo, uma falta não nomeada que
dá acesso à condição desejante, representada no matema pelo objeto a. Este sujeito se dirige a
um outro, enquanto um mestre, ou seja, o S1 está com o outro e não com o sujeito, na
tentativa de que este produza os saberes, as respostas que tanto almeja. É o próprio discurso
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que representa o analisante quando se enlaça numa análise. Sujeito, agora analisante, que se
dirige a um analista, (S1) enquanto alguém que supõe saber, e que poderá responder a suas
angústias (S2), e este seria o caminho no encontro com sua verdade. Mas nessa posição o
saber não poderá responder sobre a verdade. O sujeito supõe que sim, que há um saber e que é
o analista quem o sabe, momento no qual se instala a transferência.
No DH o sujeito coloca no lugar de S1 o pai, que tem um saber sobre o gozo. Ele
recorre a um mestre para que este lhe de as respostas, produza saber. Nesse sentido Lacan faz
o paralelo desse discurso com o discurso da ciência, espera-se da ciência que ela produza os
saberes que supostamente precisamos.
Esse discurso é produzido e não gerado espontaneamente. Não é porque fala que o
sujeito já se encontra no discurso do analisante, a palavra pode não estar articulada no
discurso analisante. A palavra não pode dizer tudo, dizer toda a verdade. “(...) que haja
linguagem não implica necessariamente que vá haver palavra e que haja palavra não quer
dizer que haja articulação no discurso” (FLESLER, 2001, p. 58).
No DH quando o sujeito dirige-se ao outro, analista no lugar de S1, este não pode se
esquivar desse lugar, o analista ocupa esse lugar como pólo condensador de saber. O saber
que se produz, S2, fica abaixo de S1, pois o analista não conhece as causas que dizem respeito
ao sofrimento e a existência do sujeito. O objeto a, está recalcado sob a barra do $, o objeto de
gozo, causa de sua divisão.
O DH caracteriza-se pela impotência, o saber do sujeito não consegue dar conta do
gozo, o resto mais-de-gozar. “(...) a verdade da histérica é desejar tornar-se o objeto de desejo
do outro: ‘a’”. (GOLDER, p. 157, 2000). Para isso não cansa de querer saber o que lhe
acontece, porque sofre, de onde se origina seu sofrimento. Uma produção incessante de
saberes, a primeira aproximação do sujeito com seu desejo.
A histérica confere ao Outro o lugar de dominante, ela não é escrava, ela faz greve
diante do senhor, está sempre à procura de um mestre, não para se submeter, mas para reinar
sobre ele (LACAN, 1992).
O discurso da histérica revela a relação do discurso do mestre com o gozo, posto que o
saber está no lugar do gozo. O sujeito se aliena do significante-mestre, não se tornando
escravo dele, como no DM. E pra esse sujeito, o mestre no DH é castrado (IDEM, p. 98).
É a partir desse discurso que se desenha o discurso do analista, por isso fala-se no DH
com horizonte de DA. Para essa passagem tem-se que “escutar o que a histérica dizia”
(IDEM, p. 214.)
89
Discurso do Analista
Neste discurso, trata-se do laço social entre analista-analisando (JULIEN, 2002, p.
187). Na dissertação de mestrado de Bastos (2003) esse discurso também está presente na
relação de supervisores e professores que trabalham com crianças com distúrbios globais do
desenvolvimento. A autora faz uma leitura das posições discursivas por onde passam os
sujeitos nos laços sociais dos quatro discursos. Considera-se que os supervisores, após os
giros discursivos (DU-DH-DA) pode-se chegar ao DA, onde a figura do supervisor silencia
para que os professores possam produzir os significantes mestre e construir um novo saber
sobre sua queixa, seu sintoma. Nesse caso, temos uma outra possibilidade de leitura de
realidades sociais a partir dos discursos de Lacan, inclusive o do analista.
Em análise, modifica-se a relação com cada um dos outros discursos, como nos mostra
Julien (idem): com o DM a análise provoca o retorno dos S1 para o lado do sujeito, $; no DU,
o analisando atribui ao analista o lugar de sujeito suposto saber; no DH, $ no lugar de agente
que pede uma análise. O Discurso do Analista transforma o que o analisando recebeu dos três
discursos: no lugar de agente do discurso, está o analista, semblante de objeto a,
diferentemente; o outro sobre o qual se opera é o sujeito da ciência, ou seja, o sujeito da
psicanálise; a produção desse discurso, ou seja, da analise, são os S1 do próprio sujeito; no
lugar da verdade está o saber inconsciente sobre o mais-de-gozar.
No DA o analista não se inscreve enquanto sujeito, apesar de estar no campo do
sujeito. Está enquanto semblante de objeto e a sua verdade é o saber, no lugar da verdade está
o S2. Ocupar o lugar de sujeito suposto saber, designado pelo analisando não é identificar-se
com um lugar de sujeito, o único sujeito que interessa ai é o sujeito do inconsciente. O
psicanalista irá encarnar o lugar de objeto de falta, causa do desejo do analisando. Justamente
porque está de fora, o sujeito do psicanalista é que pode surgir o sujeito do inconsciente no
campo do Outro.
Esse saber, reduzido à articulação significante, é meio de gozo. No lugar da verdade
indica que está só esta acessível por um semi-dizer, que não pode se dizer toda, pois “para
além de sua metade, não há nada a dizer” (LACAN, 1992, p. 53).
Ao acionar o objeto a faltoso enquanto agente o DA aciona a enunciação para que do
campo do Outro o sujeito produza os significantes primordiais da sua história. Daí a
importância na obra de Lacan do que chamou de desejo do analista. Não se trata da
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subjetividade do analista, mas naquilo que faz com que este se despoje dela para que possa
emergir a subjetividade do outro. Implicando o chamado ao outro enquanto sujeito de desejo.
O objeto a é o pivô da análise, “ao aceitar ser depositário desse sujeito suposto saber
enquanto se efetua o trabalho da análise, porém sem a ele aderir, o analista permite que no
lugar da verdade do paciente não apareça a sua” (GOLDER, p. 157, 2000). Diferentemente do
DU, trata-se de um saber aberto à surpresa, ao espanto, ao ignorado e longe do desejo de
compreender o já conhecido. O efeito surpresa produzido por esse discurso é o de perceber
que temos coisas a descobrir.
O DA é mais um posicionamento do que um discurso propriamente dito.
Posicionamento que pode ser tanto do analista quanto do paciente, já que este deriva do
espanto e da surpresa diante do não-sabido, da distancia entre o dito e o dizer, que faz nascer
o desejo de um saber a mais.
Como aponta Golder (2000), “o discurso do analista nada mais é senão um momento
de abertura e de surpresa, mas que permite ao paciente compreender que ele efetivamente tem
um saber, que ele próprio pode ‘falar como um mestre’. E que este saber é um saber da falta,
velada pelo objeto, que só lhe será revelado pelo trabalho na transferência” (IDEM, p. 158).
Em relação ao lugar do analista, o Discurso do Analista “é da ordem do puro silêncio”
(JORGE, 1988, p.200). Lugar que não deverá ser ocupado pelo analista enquanto tal, ou seja,
este está desprovido de sua própria subjetividade, o que Lacan chamou de lugar do morto, na
medida em que esta está morta na situação analítica.
No D.A. estão presentes na relação do agente e do outro do discurso respectivamente,
a e $. Objeto a enquanto objeto perdido, resto da operação significante, Das Ding, coisa, resto
de real. O sujeito $, dividido entre os significantes que o representam, mas que não o indicam
totalmente, apenas parcialmente, pois o sujeito nunca está totalmente representado. Esta
relação indica o matema da fantasia inconsciente ($ a), ou seja, a relação do sujeito com o
objeto causa do seu desejo. Então, a transmissão do D.A. implica aquilo que é articulado
significantemente enquanto uma enunciação e não um enunciado.
No DA, temos a → $, considerando essa relação significante temos que o analista no
lugar do agente do discurso, em seu silêncio, fazendo semblante de objeto causa do desejo
provoca que o outro $, tomado como sujeito, fale. No DU, o analista no lugar de agente,
representado por um saber, depositando-o no outro, $, enquanto objeto.
Diferentemente do DA, onde simbólico e real surgem na relação, no DU se
presentifica um simbólico que tenta adestrar o real. No DA o dizer está do lado do $ e o que
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ele produz é um S1, efeito desse dizer, do próprio sujeito. No DU quem diz é um saber, S2,
produzindo um silêncio no outro.
Segundo Coutinho (idem, p. 94) para Lacan interessava fazer presente o DA, onde o
sujeito pudesse emergir. Isso seria possível em lugares onde há discurso, onde há um sujeito
falante. Criação de lugares onde o sujeito compareça e sua emergência seja requisitada. No
caso das escolas, esses lugares são o seminário, o cartel e o passe. E fora delas, teríamos
outros lugares?
CAPÍTULO III
OS GIROS DE DISCURSO: DE QUE SABER SE
TRATA?
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“O que o psicanalista deve saber: ignorar o que ele sabe”
(LACAN, 1998, p. 351)
O nosso primeiro contato com a equipe da Unidade das Flores, como dissemos na
Introdução, foi por meio da capacitação. Lembrando que os membros da equipe estavam lá,
mas não tomados enquanto equipe, apenas enquanto especialistas de uma determinada área.
Era do lugar de quem toma o outro como depositário de um saber que nos colocávamos. Por
mais democráticas e dialogadas que fossem nossas oficinas elas acabavam com um resumo
daquilo que estávamos querendo transmitir. Principalmente quando tratamos de temas tabus
como homofobia e práticas sexuais, nos deparamos com a impotência dessa posição. O lugar
de quem transmite um saber não escuta a dimensão enunciativa dos sujeitos. Primeiro, porque
nem se trata de sujeitos, mas sim de pessoas tomadas como objetos. No caso, o Discurso
Universitário.
O que nos foi apontado nos encontros da capacitação é que não importa o que se faça
no sentido de transmitir um conhecimento, as chamadas “estratégias didático-pedagógicas”,
que este estará fadado ao fracasso, pois ao final da transmissão o que ele aponta é a sua
incapacidade de tudo transmitir. O impossível freudiano de educar.
Na oficina que para nós foi a mais tensa e complexa, os participantes teriam que
encenar algumas situações propostas que diziam respeito ao acolhimento no serviço.
Tínhamos alguns personagens que deveriam ser abordados e acolhidos: uma senhora
hipertensa, um casal de homossexuais que passariam por consulta médica e uma visita
domiciliar a casa onde moravam algumas travestis. A encenação dos homossexuais e das
travestis provocou polêmicas e foi coberta de estereótipos. Riam, debochavam, se calavam.
Toda essa dimensão de gozo, do não-dito, ficou tamponada pela necessidade de se realizar a
tarefa que era a própria encenação. Apontavam a dificuldade de lidar com o que não
conheciam e que por vezes não queriam conhecer. Instalou-se um mal estar. Ao final da
oficina, nem eles nem nós retornamos a ele. E o sintoma ficou intocável. É a conseqüência do
DU, produzir um sujeito dividido, entre aquilo que sabe e aquilo que desconhece, mostrando
que o saber teórico jamais poderá dar conta de seu sintoma.
Após a capacitação, nossa função, conforme pactuado junto a gestão seria de
monitorar a construção dos projetos quanto sua execução. O que foi dito no último dia da
capacitação quando transmitimos a eles quais seriam nossos próximos passos. Então
chegamos até a unidade representados por esse significante “monitor”, que naquele momento
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nomeava alguém que se dirigia a eles para saber como trabalhavam e como poderiam
trabalhar. O significante que nos representa em seguida é o facilitador, este já se relaciona
mais com a posição do intercessor e é um indicativo de mudanças de nossa relação com as
equipes.
Para o aprofundamento de nossa questão optamos por trabalhar com uma equipe.
Quando nos referimos a equipe, lembremos que esta é composta pelos profissionais que
compõem a equipe básica da ESF. Até a fase de capacitação a equipe foi tomada de maneira
generalizada, como um todo, uma massa, a união de alguns profissionais. Em outros,
principalmente durante as passagens de discurso será tomada na sua dimensão equipe-sujeito,
ou sujeito-equipe, ou seja, a equipe tomada em sua dimensão de sujeito, em seu efeito-sujeito.
Efeito este, que se singulariza em cada membro da equipe. Não estamos desconsiderando isso,
pelo contrário, é por apostar que um desejo e uma implicação existiam nesses sujeitos, mesmo
que diferente para cada um, que essa equipe levou em frente seu propósito, e conseguiu se
manter unida e determinada em suas ações. Singularidades e diferenças que juntas produziram
um projeto em comum.
Fragmento 1:
Do que se trata no começo?
Nosso primeiro contato com a equipe após as oficinas de capacitação foi realizado na
própria unidade. A equipe toda estava presente, com exceção do médico. A unidade em
questão tem como abrangência a área rural. Possui um ônibus móvel que leva os serviços
básicos da unidade até essa área. Ao todo são dezesseis pontos de visitas, distribuídos pelos
bairros rurais. A unidade móvel que visita os bairros possui uma equipe composta de um
médico, uma enfermeira, um auxiliar de enfermagem, um dentista, um auxiliar de consultório
dentário, e agentes comunitários de saúde que se distribuem segundo a área rural que lhes
pertence.
Recebem-nos um pouco espantados, sem saber de fato para que estávamos ali. No
encerramento das oficinas havíamos comunicado quais seriam os próximos encaminhamentos
do projeto, como daríamos prosseguimento a nossa intervenção, quais eram nossos objetivos
nas visitas às unidades. Tais informações comunicadas a eles não foram suficientes para que
entendessem para que estávamos ali. E não poderiam ser, pois esta é uma questão própria da
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condição humana, isto é, da linguagem. A comunicação de algo ao outro já implica um
problema: não se pode comunicar tudo. Um resto incomunicável fica calado, velado, no
denominador da barra do lado do Outro. O discurso de mestria anda em círculos, pois afirma
um saber e fica esperando do outro que as coisas funcionem. Este lugar do objeto sob a barra,
nos diz que a emergência da subjetividade do outro terá que permanecer velada e recalcada.
Olham-nos com receio e se mostram surpresos com nossa primeira pergunta “Como é
o trabalho de vocês aqui?”. Pedimos que nos contem como trabalham, qual a rotina, como é o
funcionamento da equipe. A enfermeira-coordenadora pergunta “Quem começa falando?”.
Um silêncio tímido e ela mesma inicia o relato.
Perguntamos que tipo de demanda a população daquela área apresentava a eles. Nos
devolvem a pergunta: “Como assim?”. Damos alguns exemplos do que poderiam ser
demandas citando outras unidades. A enfermeira responde que em sua opinião o problema
maior da população é o dermatológico devido à exposição ao sol e ao cotidiano do trabalho no
campo. Possuem demanda reprimida junto ao especialista dermatologista, além dos problemas
que são comuns na população em geral como diabetes e hipertensão. Acredita que a
característica que os diferencia seja a dermatológica mesmo. Perguntamos como são as
visitas. A enfermeira continua a responder. Aponta que a população da área já sabe
anteriormente que o ônibus estará lá aquele dia. A cada visita são comunicados do calendário.
Perguntamos se existem grupos com a população. Agora, os agentes comunitários tomam a
palavra. Respondem afirmativamente, dois deles moram na área rural, contam que utilizam as
reuniões da associação rural para passar algum recado, dar alguma informação à população;
não nos dão mais detalhes sobre o que poderia ser um grupo, ficamos com a impressão de que
são esses momentos em que reúnem um grupo de pessoas para passar algumas informações.
Relembramos rapidamente o conceito de vulnerabilidade trabalhado na capacitação e
perguntamos se recordavam. Não respondem, apenas gesticulam que sim com a cabeça.
Perguntamos a eles qual seria a população considerada mais vulnerável na área que
trabalhavam. A enfermeira olha para o grupo e diz “Me ajudem!”. Uma agente diz que não
existia um grupo mais marcante na área. Uma outra complementa que fizeram um
levantamento das áreas, um mapeamento, e a faixa etária que tem maior número de pessoas é
dos 20 aos 39 anos, idade considerada fértil, reforça. Em segundo lugar os maiores de 60
anos. Uma outra agente pergunta a ela, a que riscos considerava que eles estavam expostos.
Responde que nessa idade todos são casados, têm seus parceiros. Já os jovens de 15 a 19 anos
estão na escola integral, o que dificulta o contato. Então, quando visitam as casas conversam
96
apenas com os pais. Perguntamos o que pensavam disso. A mesma agente responde que
quando o assunto é o jovem percebe que os pais estão preocupados, chegam a pedir
preservativos para entregar aos filhos, e considera que esse é um trabalho de prevenção.
Agora com o idoso diz que esse assunto é difícil. Justifica que os idosos da sua área raramente
frequentam a cidade, não participam de movimentos da terceira idade, não têm vida social
ativa, e também não tem parceiros, pois a maior parte são mulheres viúvas. E fecha dizendo
que “esta é a realidade da minha área”. Perguntamos como é a conversa no momento de
entrega dos preservativos aos pais. Dizem que eles mesmos pedem os preservativos para
entregar para os filhos, “filhos homens”, quando se trata de filhas isso não ocorre.
Complementamos que se tratava de um recorte de gênero e desfilamos uma breve explicação.
A agente volta a contar que as mulheres idosas relatavam um alívio com o fato de não
precisarem ter vida sexual ativa, pois tinham dor, não tinham carinho. Outra agente relata
mais alguns detalhes de como se relacionam os homens e mulheres na área rural, que os
momentos de carinho e demonstração de afeto jamais ocorriam em público apenas dentro de
casa, quando ocorria. Nas visitas, primeiramente se apresentava o homem depois as mulheres
e os filhos nessa ordem. Chamam isso de uma “criação antiga”. Perguntamos como levam os
preservativos. Os mesmos ficam dentro do ônibus. sabem de antemão as pessoas que usam,
então levam um número estipulado nas visitas. Uma outra agente comenta que em sua área se
chegar e conversar abertamente sobre sexo não mais a receberão. Isso em se tratando das
mulheres porque com os homens nem cogita essa possibilidade. Perguntamos o que seria falar
de sexo. Acredita que falar de prevenção, das DST ou uso de preservativos seria insinuar que
os maridos estariam “pulando cerca”. Diz que por ser da área, eles não conseguiriam separar a
profissional da moradora da área rural, pois se ela está falando sobre isso com algum morador
seria um sinal de que soubesse algo que não sabem sobre os parceiros. Uma outra agente diz
que na área dela não enfrenta esse problema, a população é nova no bairro, não se conhecem
muito e ela não é moradora. Diz entregar tranquilamente os preservativos aos jovens perto de
seus pais e tem uma senhora de setenta anos que também faz uso.
Relatam que às vezes recebem materiais informativos da Secretaria da Saúde. Sentem
falta de uma quantidade maior, reclamam do fato de não ter a prótese peniana, o flipchart e os
álbuns seriados sobre DST. Manifestam uma primeira falta, mas que não é dirigida a nós e se
configura apenas como uma queixa e de algo material.
Discorremos sobre o cuidado ao utilizar alguns materiais, pois muitos não provocavam
uma identificação por parte das pessoas, ao contrário, as afastavam, pois mostram quadros
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avançados da doença. Continua a explanação sobre a abordagem sindrômica como
possibilidade diferente de diagnóstico de DST e sobre a influência das questões morais nesses
trabalhos.
O dentista, José, nos pergunta se existiria algum modo específico, alguma maneira de
conversar sobre estes assuntos, se deveria usar um tom “mais sério” ou algo como “conversa
de mãe para filha, de filha para mãe”. Respondemos que isso ia depender da relação que
tínhamos com a pessoa e perguntamos a ele como fazia para reconhecer o tipo de relação que
tinha com os usuários. Diz que com o tempo, no dia a dia de seu trabalho, sabia com que
pessoas poderia brincar ou não, até onde poderia ir. Ficava atento a como se apresentavam na
consulta e o que traziam para conversa, com algumas tinha mais liberdade do que com outras.
Complementa que falar de sexualidade é cultura, religião, que não era só falar de sexo.
Colocamos a questão do conceito amplo de sexualidade.
Perguntamos sobre a questão epidemiológica das DST, se existiam muitos casos ou
não. Dizem que praticamente não há. Contam casos de falta de higiene, de fungos de
transmissão de pais para filhos. Algumas profissionais passam a relatar experiências pessoais
de consultas ginecológicas onde não foram bem acolhidas, pois os médicos foram autoritários
e moralistas, não conversavam e inibiam possíveis perguntas.
Sobre a relação da equipe com profissionais do sexo, gays e travestis, uma agente
relata seu contato com uma profissional do sexo, a aproximação com essa realidade, a sua
opinião sobre ela e sua profissão. Quanto aos gays, dizem que na área desconfiam de uma
pessoa que não é assumida. Indagamos sobre a suspeita, aí nos respondem que parece que
uma outra profissional que nem está mais na unidade que relatou o fato em algum momento.
Discorre mais um momento explicativo de nossa parte, agora sobre a heteronormatividade e a
homossexualidade na relação com os serviços de saúde.
Quanto às estratégias para acessar a população, perguntam de que forma poderiam se
aproximar dessas pessoas (gays, travestis e profissionais do sexo) para fazer um trabalho
direcionado a elas. Relatam sobre algumas estratégias que já utilizaram. O dentista nos diz
que enquanto estava fazendo palestras sobre saúde bucal ninguém comparecia, quando
começou a falar sobre câncer bucal, aí todo mundo queria saber, então falar da doença
chamou mais a atenção, nesse caso. As mulheres na faixa etária dos 40 anos relatavam em
campanhas de papanicolau que não possuem lubrificação, portanto, o ato sexual era doloroso.
A enfermeira diz ter se surpreendido, pois eram mulheres “sérias” que se queixavam, não
imaginava que tinham vida sexual ativa e que poderiam tocar nesse assunto. Nos demandam
98
um respaldo técnico para lidar com essas situações e apontam a necessidade de gel
lubrificante para essas mulheres e material educativo sobre o assunto. Encerramos o encontro
comunicando a eles os próximos passos, a saber: 1) continuaríamos nos reunindo, agora por
representação, ou seja, elegeriam três representantes que participariam de um grupo
juntamente com representantes de outras unidades 2) nesses grupos discutiríamos a
elaboração dos projetos de prevenção DST/Aids para cada unidade; os representantes
levariam as discussões e elaborariam o projeto com a equipe a qual pertenciam.
Esse grupo que tentamos formar com representantes das Unidades não passou pelo
processo de grupalização, ou seja, não se constituíram enquanto um grupo. Com algumas
equipes, acabamos por nos reunir com a própria equipe em sua unidade e não no grupo dos
representantes, devido a incompatibilidade de agendas, esquecimentos ou dificuldade de
escrita do projeto. No caso dessa equipe da USF que estamos relatando nos reunimos com a
própria equipe em sua Unidade, visto que por incompatibilidade de agendas devido a atuação
da equipe na área rural, esta não pode se encontrar no horário comum aos outros
representantes.
O que ficou do encontro?
O que podemos dizer desse primeiro encontro? Primeiro no sentido de que é a
primeira vez que nos reunimos somente com essa equipe, visto que na fase de capacitação os
grupos das oficinas eram compostos pela junção de vários profissionais de diferentes
unidades. Esta é a primeira vez que a equipe foi tomada em sua particularidade.
Como dissemos, nosso objetivo nesse primeiro contato era “conhecer” o trabalho
dessa unidade. E para que precisávamos conhecê-los? A equipe se espanta com nossa
pergunta, como se perguntassem o que estávamos fazendo ali? De nossa parte, partimos da
premissa de que se íamos iniciar um trabalho mais próximo junto às equipes precisaríamos
criar um vínculo transferencial de trabalho. A capacitação não propiciou um momento de
escutar as particularidades de cada equipe. Esperava-se então que este seria o momento. Não
podemos esquecer que nosso objetivo final para aquele ano era a construção dos projetos de
intervenção em prevenção DST/Aids para as unidades. Objetivo este que acompanharíamos
do inicio até o fim. Nossa proposta ia ao encontro de que conhecendo o trabalho de cada
equipe poderíamos colaborar nesse processo de construção do que na época seria um
99
conteúdo. Cada um tinha sua tarefa: a unidade construiria seus projetos e nós os
acompanharíamos nessa construção.
Nesse momento nossos interesses estavam voltados a um saber de conteúdo. Na
perspectiva da teoria dos discursos de Lacan, a relação entre o agente do discurso e o que o
organiza e a que outro esse discurso se dirige e em vista do que ele fala, podemos pensá-la no
Discurso Universitário. Dentro dos quatro modos de se formular uma demanda, podemos
dizer que neste primeiro encontro temos o DU, ou, o discurso do saber.
É o saber que impera nessa relação, é ele que ocupa o lugar de agenciador do discurso.
S2 está no lugar de comando, mas não é um saber como no DM que é um saber não todo, que
falta algo, o saber do DU pretende-se a um saber todo-saber. Nesse caso, o saber teórico
interessa mais do que o saber do outro, o que ocorre em muitas situações de pesquisa, onde
somente se escuta aquilo que se quer comprovar ou afirmar teoricamente (GOLDER, 2001).
Jorge (1988, p. 146) nos fala do processo de colonização presente no Discurso
Universitário. Neste o outro está no lugar de objeto, e nessa relação se quer produzir um
sujeito-objeto em conformidade e identificado aos significantes do saber constituído, já dado
previamente. Dessa forma, o outro no lugar de objeto estaria dissociado dos significantes
primordiais de sua própria história. O que ele enuncia a partir disso são reproduções dos
enunciados dos quais ele foi apenas receptor. A possibilidade de criação ou de um estilo
próprio do sujeito fica recusada.
Assim, podemos ler esse momento nos matemas desse discurso:
S2
o a __
S1
$
Saber sobre prevenção
equipeobjeto
Experiência do Capacitador enunciação da equipe
Os discursos, como dissemos, são formas de formular a demanda ao outro ou Outro.
Poderíamos considerar os pedidos de suporte técnico e material dirigido a nós como um
primeiro surgimento do $? Parece-nos que sim. Vejamos. Parece estar em jogo nessas
demandas um sujeito dividido, por isso demandante. Trata-se de profissionais que nesse
momento passam a nos demandar, a partir da constatação de uma falta, expressa por meio da
100
falta de material, falta de suporte técnico, falta de manejo para os trabalhos em grupo, que
supríssemos essas faltas. Mas como nesse discurso ainda está em jogo o saber (S2), a divisão
do sujeito ainda não nos parece suficiente para que a demanda assuma a consistência de um
questionamento. O sujeito aparece, porque demanda, pede, se queixa. Nem tudo está bem,
instaura-se a dimensão não toda do sujeito. Como nos dirigimos a eles, como agentes do
discurso, no lugar do saber, qualquer questionamento, da ordem da enunciação, sobre o saber
de prevenção fica tamponado sob a barra.
Como esse sujeito da enunciação, $, passa do lugar de produto do Discurso
Universitário para o lugar de agente no Discurso da Histérica?
Fragmento 2:
A um giro do Discurso da Histérica
Ao final do primeiro ano de trabalho, após três reuniões com essa equipe, foi definido
o projeto de intervenção em prevenção as DST/Aids dessa Unidade. Este foi organizado
segundo modelo sugerido por nós, que se baseava no formato dos projetos requeridos junto ao
Governo Federal, nessa área de DST/Aids. No inicio da elaboração, a primeira versão do
projeto não continha um nome, ou melhor, continha um nome que o generalizava e que dizia
respeito mais a sua função, tratava-se de um “projeto para prevenção de DST e Aids da
Unidade das Flores”. Na segunda versão do projeto, que se tornou a definitiva para o ano
seguinte ele continha um nome em seu titulo e não um objetivo, um nome que pudesse
identificá-los de maneira singular, marcando uma diferença, visto que cada unidade teria o
seu. Aparentemente esta poderia ser uma questão simples, “dar um nome ao projeto”, mas não
é. O que implica dar um nome a algo? Como é o processo de escolha desse nome? Como esse
nome os identifica? Essa questão nos chamou a atenção, pois se apresentou de maneira
diferente entre as Unidades. Dar um nome próprio no mínimo poderia indicar uma separação
em relação a nossa intercessão. Por exemplo, teve Unidade que até o final do segundo ano
desse trabalho mantinham em seu título, na capa do projeto, primeiramente “Projeto da Ong
Y” e depois abaixo, como se fosse um subtítulo, o nome do projeto. Fazer surgir uma
demanda própria de trabalho e um processo desejante por parte dessa Unidade foi nossa
empreitada durante os dois anos de trabalho com ela. Até que isso ocorresse a demanda de um
projeto era nossa e eles estavam apenas cumprindo uma tarefa.
101
Durante a elaboração do projeto a equipe da Unidade das Flores mostrou sua
disponibilidade e sua implicação. Dispuseram-se a criar, a construírem juntos uma proposta
que os identificassem. A nossa proposta de que construíssem projetos de intervenção passa a
ser deles também. Tomam a iniciativa como parte dos trabalhos da equipe. Quando nos
reunimos com seus representantes para discutirmos o que haviam feito do projeto, não
apresentavam muitas dificuldades em relação a articulação e implicação dos membros com
essa tarefa.
Voltemos à Unidade das Flores. As atividades foram previstas para serem realizadas
durante as visitas do ônibus nas áreas rurais. Ocorreriam por meio de campanhas especificas,
salas de espera, ciclo de cinema, realização de coleta de papanicolau e HIV, disponibilização
de preservativos com fácil acesso da população, grupos e palestras. Teriam momentos
específicos onde tratariam exclusivamente dos assuntos da Prevenção DST/Aids e outros onde
utilizariam o espaço de outra atividade para tratar o assunto.
Na justificativa do projeto, a equipe afirma que as características comportamentais dos
moradores da zona rural são diferentes dos da zona urbana, e que, portanto, a abordagem dos
assuntos relacionados à sexualidade por parte da equipe, disporia de certos cuidados; que
precisariam traçar estratégias para abordar esses assuntos de modo que os usuários aceitassem
o que seria proposto.
Na construção do projeto a equipe não elegeu nenhuma população especifica de
trabalho e sim englobou toda a população das áreas rurais que atendem. Durante esse processo
do projeto as representantes conseguiam se reunir com a equipe e foram discutindo em
conjunto como queriam o projeto. Do primeiro plano para o segundo o que mudou foi a
inclusão de um calendário, uma agenda para as ações. Estas foram distribuídas nos meses do
ano, contendo sua frequência e o tema a ser trabalhado.
A justificativa se manteve e contém uma das primeiras demandas que nos formulam
que se trata de como abordar essa população tão “diferenciada” e que precisam de cuidados
no trato dos assuntos relacionados à prevenção e sexualidade.
Qual o desdobramento dessa questão?
Discutimos com a equipe que cuidado era esse de que falavam, o que consideravam de
diferente nessa população, problematizando a questão. Mas nesse momento, a equipe se
justificava apontando a condição conservadora da população com que trabalhavam e que
nunca haviam falado sobre isso com eles. O “cuidado” foi bem enfatizado, e aparecia como
102
uma cautela extrema que precisariam ter nesse projeto para conseguir executá-lo. Não
implicados com sua própria fala, apontam a falta do outro e no outro.
No segundo ano de nosso trabalho junto à equipe, passamos a nos reunir com a mesma
na própria Unidade. Entretanto, o profissional dico nunca esteve presente. No horário das
reuniões ele não mais se encontrava na Unidade, ou seja, não cumpria a mesma carga horária
de trabalho como dos outros. Passado algum tempo, ainda no início desse ano esse médico
não mais estava no serviço. Este profissional, apesar de não estar presente o tempo todo, o que
para eles era considerado “comum”, algo rotineiro entre os médicos das USF, era muito
querido pela equipe pelo seu carisma e disponibilidade para atividades em grupo, estava
incluído nas campanhas principalmente em relação à saúde do homem, câncer de próstata, que
era sua especialidade.
Apesar dessa ausência, a equipe começou a executar as atividades previstas em seu
projeto. Organizaram palestras, grupos, distribuíram materiais educativos, realizaram até um
teatro de fantoches para as crianças. A equipe se mostra mobilizada e implicada com seu
projeto. Todavia no que se referia aos assuntos da prevenção às DST/HIV-Aids a equipe ainda
avançava timidamente. Dizem terem feito grupos com alguma orientação nessa área, que teve
seu limite. Perguntamos como havia sido. Relatam que fizeram algumas orientações sobre
papanicolau, câncer de mama, cuidados com o corpo, higiene. Não abordaram questões que
implicariam a prática sexual, nem levaram as próteses do pênis e da vagina para
esclarecimentos e dúvidas bem como não abordaram a questão do uso de preservativo. Ao
questionarmos o porquê da ausência dessas temáticas e de se falar sobre elas, respondem que
“esqueceram”. Indagamos como poderiam esquecer estes insumos fundamentais em
orientações direcionadas a DTS/Aids. Dizem que esqueceram mesmo, que estavam iniciando
o assunto, que nas próximas não iriam esquecer. Em seguida complementam que tiveram um
aumento expressivo na coleta de papanicolau depois que as atividades começaram, de três por
mês passou a setenta/mês. Contam que individualmente, com algum membro da equipe, as
mulheres idosas se queixam dos problemas da menopausa, das dificuldades no ato sexual, da
falta de carinho e cuidado nas relações sexuais com os parceiros. Surge a idéia de
organizarem um ciclo de cinema com temática da sexualidade para a terceira idade.
Demonstram preocupação sobre o andamento do projeto, que nos meses seguintes
trabalharia a prevenção com homens e tal trabalho seria realizado pelo médico ausente, que
trabalhava esses assuntos com tranquilidade junto aos usuários homens. Questionamos se na
ausência desse profissional na equipe outro membro não poderia assumir. O dentista, que
103
desde o início participava ativamente do processo, responde afirmativamente, dizendo que
poderia dar continuidade às atividades, já que também estava disponível para esses assuntos.
Mas essa história não se desenvolve dessa forma. A equipe fica um tempo com as
atividades paralisadas e se justificam devido à ausência do médico, e da reorganização das
atividades previstas que estavam sob responsabilidade dele. Nesse tempo ficamos até sem nos
reunir, quando o fizemos a equipe relata uma falta de motivação associada à saída do
profissional. Alegam que este era um profissional muito querido na comunidade e por eles
também, estavam juntos a bastante tempo enquanto equipe. Os meses que paralisaram
estavam sob responsabilidade desse profissional, as atividades seriam realizadas por ele com o
apoio da equipe. Então, o restante da equipe teria que abraçar essas atividades
17
.
Quando voltamos a nos reunir, a equipe já estava “reestruturada” e disposta a retomar
as atividades. Relembramos o ciclo de cinema que surgiu como proposta de atividade junto à
comunidade. Perguntam sobre a atividade que realizamos em outra Unidade junto à população
local, uma oficina voltada para a terceira idade onde tratamos de questões da sexualidade, e
que, pela participação dos usuários, teve repercussões positivas para o serviço. Então, nos
demandam se poderíamos fazer o mesmo em uma das áreas rurais que atendiam.
Questionamos o porquê deles, que estavam tão acostumados a realizar atividades em grupo
com a população nos pediam para que fôssemos lá e fizéssemos por eles. Admitem pela
primeira vez, reconhecendo-se no que falam que ainda tinham medo e receio de trabalhar
esses assuntos com aquela população. Receio de tratar desses assuntos e vergonha de abordar
os temas. Medo da reação das pessoas, da aceitação delas, de perderem o vínculo que tinham
estabelecido por conta de levar a temática a elas. Esbarram em seus limites pessoais, por mais
disponibilidade que tivessem, não queriam arriscar, na tentativa de se preservarem e preservar
a relação que tinham com a população devido à fantasia de que isso poderia prejudicar o
vínculo. Diante disso pedem pra que façamos o primeiro grupo, a primeira tentativa, pra que
vissem que era algo possível.
Esse medo assume um caráter de impossibilidade, um caráter fantasístico ou
fantasmático, na medida em que remete a uma divisão do sujeito, em sua dimensão simbólica,
que tampona a dimensão real do objeto a, causa do desejo, que se apresenta de maneira
disfarçada na dimensão imaginaria da relação eu-outro pelo significante medo.
Nesse momento, avaliou-se que essa impossibilidade, para uma equipe que realizava
outras atividades em grupo, tinha essa dimensão real. Mas que essa impossibilidade não os
17
Não sabemos ao certo o que implicou a saída desse profissional, pois nesse tempo também ficamos sem nos
reunir, não conseguimos agendar reuniões e a equipe dizia que se estava se reestruturando.
104
paralisava, percebíamos que estavam implicados com sua falta e com o desejo de poderem,
por si mesmos, colocarem em prática tal atividade.
Quando isso ocorre, podemos considerar que um giro discursivo se precipita,
marcando uma diferença com relação ao Discurso Universitário. Nesse, o saber, S2, do
trabalhador, do escravo, é capturado pelo DU e se torna um saber teórico. No lugar da verdade
está a sequência dos S1, com os quais se deveria se identificar o sujeito $ (JULIEN, 2002),
mas entre eles existe uma impossibilidade, sinalizada por duas barras //, ou seja, o sujeito
nunca irá se identificar por completo aos S1 do saber em jogo. Por isso educar é uma das
profissões impossíveis, o sujeito nunca estará identificado por completo. O DU tende a
totalidade, a dar conta de um saber todo, o que não é possível.
O Discurso da Histérica revela o impossível da posição de mestre. O mestre, S1, é
castrado, pois dele está excluído o gozo. “(...) esse laço social produz um saber (S2) sobre o
mais-de-gozar em lugar de verdade. Há invenção de um novo saber sobre o gozo, saber que
quer ignorar o mestre e que é outro que aquele do Discurso Universitário” (idem, p. 187). O
saber do DU é um saber que deverá ser imposto ao outro, constituído pelos S1 no lugar da
verdade. O DH seria a contestação desse saber, o $ em lugar de agente, que tentará construir
um saber a partir da dúvida.
A equipe, tomada em sua dimensão enunciativa, pela implicação com sua falta, tenta
precipitar a saída do lugar de produto do Discurso Universitário, onde essa dimensão não
estava em questão. O medo, agora, não estava mais no outro, no caso, na população, mas
neles. A dificuldade de trabalhar com sexualidade junto a população rural também os
implicava. As justificativas até então sempre apontavam o receio do outro, as dificuldades do
outro, quando questionados não a tomavam como uma questão que também poderia ser deles,
davam respostas a nós, de um lugar de quem trabalhava para um saber (S2 → a), o que é
diferente de estar no lugar de quem demanda um saber ($ → S1) e está implicado nessa
tarefa.
Aceitamos a proposta de oferecer a oficina, desde que eles também participassem de
todo o processo. Nós e equipe nos reunimos para organizar a atividade. Definimos o nome, a
área rural na qual seria realizada, a logística da oficina, os materiais necessários etc. A área
escolhida por eles para iniciarem esse trabalho foi a que consideravam mais conversadora e
resistentes à atividades alternativas. Ou seja, era a área mais difícil de trabalhar. O tema da
oficina se referia ao amor e ao cuidado de si.
105
Participaram por volta de 15 pessoas, entre homens e mulheres, na maioria mulheres,
na faixa etária dos 40 aos 70 anos. Toda a equipe estava presente, conduzimos a oficina e na
medida do possível tentávamos implicá-los. Em alguns momentos alguns membros da equipe
participaram em outros apenas observaram. No começo, os participantes estavam um pouco
inibidos; iniciamos com uma atividade descontraída e envolvemos toda a equipe enquanto
participante, assim foi-se criando um clima descontraído e amistoso entre todos.
Diferentemente do que imaginaram, os presentes colocaram suas opiniões, relataram casos e
“causos” de suas vidas. Foi aberto um espaço para que pudessem falar, dizer o que pensavam
sobre o tema da oficina, não explicamos ou palestramos sobre algum saber teórico. Apenas
disponibilizamos um espaço de escuta e de fala de experiências. Dessa oferta surgiram relatos
de vida e posicionamentos relacionados a relação com a família, casamento, sexo, amor,
carinho, auto-estima, preservativo etc. Tal reação dos participantes provocou grande espanto
na equipe, que até então nem considerava a dimensão da sexualidade daquelas pessoas,
falava-se de tudo com elas, com exceção desses assuntos. Ao final da oficina a equipe diz a
eles que estão disponíveis para continuar conversando sobre estes assuntos, que podem
procurá-los na unidade e que farão mais atividades como esta naquele local.
Fragmento 3:
A equipe no lugar de agente do Discurso da Histérica
O efeito de uma interpretação, ou saber se ela foi de fato uma interpretação, se dá
somente a posteriori. Do lugar Outro, que o outro nos coloca, interpretamos. Por vezes a
interpretação precipita algo do qual o sujeito já sabia, mas que ainda não havia colocado no
discurso. É por estar agora no discurso, que esse não-dito assume um valor interpretativo para
o sujeito.
Após a primeira oficina oferecida por nós em conjunto com a equipe, esta organiza a
segunda oficina. Escolhem uma outra área rural, como estava próximo do dia mundial de luta
contra a Aids, definem esse dia para a realização da atividade. Discutimos juntos a
organização desse momento. A equipe realizou uma atividade de aquecimento e depois
adentrou ao tema da oficina. Dialogaram sobre a prevenção de DST e Aids; sobre o
preconceito de quem vive com Aids; da importância de se ter conhecimento da sorologia; do
medo de fazer o exame, entre outros. O grupo foi composto na maioria por mulheres e
106
algumas crianças. Quando relatam a nós como foi a atividade, ressaltam que a população
presente participou ativamente, e que durante a discussão uma mulher relatou que estava com
uma verruga na área vaginal e que ainda não tinha falado sobre isso com o médico pois achou
que fosse uma verruga como outra qualquer, que não imaginava que pudesse ser uma DST. A
enfermeira faz uma orientação a ela e ao grupo em relação aos cuidados da prevenção, as
características de uma DST, e agenda uma consulta com o médico na própria Unidade, visto
que o ônibus que leva a equipe até às áreas rurais demoraria a passar naquele local
novamente.
A equipe relata muita disponibilidade em continuar esses trabalhos com os grupos e
oficinas para o ano seguinte. Se comprometem a continuar com as campanhas temáticas, por
onde incluíram, a questão da prevenção as DST/Aids. Retomam alguns pontos que precisam
melhorar como o agendamento prévio da atividade e maior divulgação nas áreas, de forma a
garantir maior acesso da população às atividades que realizariam.
Então, ao final desse ano o que esta equipe havia apreendido? O que se aprende numa
intercessão como esta? Que saber estava em jogo? Como se dá o giro discursivo?
Consideramos que nesta situação vemos precipitar um giro do Discurso Universitário
para o Discurso da Histérica. Temos a equipe tomando o lugar de agente do discurso. O “fazer
desejar” está em jogo. A equipe, no lugar de $, como agente, divida pela parte de gozo que lhe
escapa, daquilo que não sabe, se dirige a um significante mestre, no caso o intercessor, para
que para que esse produza o saber que lhe falta, as resposta para o não sabido. Por um
momento, ocupamos esse lugar, quando nos oferecemos na realização da oficina.
Manobramos esse lugar estrategicamente, transferencialmente, para depois não ocuparmos
mais o lugar do outro enquanto destinatário que responde a esses pedidos, de forma que
continuem a perguntar. O giro se dá quando não respondemos desse lugar. Temos:
$
o S1 __
a
S2
Equipe - como fazer prevenção? intercessor-mestre
Não-sabido da prevenção e/ou saber sobre não sabido
da sexualidade
107
A passagem do Discurso Universitário ao Discurso da Histérica se dá também no
posicionamento da equipe em outros espaços. Em reunião junto a outras duas equipes
(Unidade Camélia e Rosa), havíamos pactuado anteriormente o que discutiríamos nesse
encontro. Tratava-se do que eles chamaram de “efeito sanduíche”, que se sentiam esmagados,
no meio de um sanduíche, de um lado pela gestão da saúde do município e de outro pela
população. Tal situação muitas vezes causava um impasse: como atender as demandas de um
e de outro sendo que os interesses se confrontavam. Nesses encontros estávamos discutindo
sobre como poderíamos desenrolar essa situação que se configurava como um nó para as
equipes. Todos saem desse encontro com o compromisso de discutirem mais profundamente
esse assunto em suas equipes. No encontro seguinte, perguntamos como foi o processo de
discussão localmente nas equipes e alguns membros das outras duas equipes presentes nos
interrogam sobre que discussão falávamos, ainda dizem que estavam esperando que
trouxéssemos textos para discutir no grupo. Esclarecemos que quanto a isso apenas
combinamos que quando houvesse algum material para ler o faríamos antecipadamente e não
no momento do grupo. Não havíamos combinado nenhum texto para este encontro.
Perguntamos ao grupo quem se lembrava da discussão anterior. Elza (nome fictício), agente
comunitária da Unidade das Flores, diz ter feito anotações sobre o que tratamos
anteriormente. Retoma alguns pontos discutidos, que os presentes aos poucos vão se
lembrando. Essa Unidade justifica que também não havia retomado esse assunto nas reuniões
de equipe, pois não conseguiu se reunir como de costume naquele mês, devido a algumas
urgências ocorridas no período. Indagamos sobre o que trataríamos então, se voltaríamos
àquelas questões ou traríamos outras. Uma agente comunitária da equipe Unidade Camélia
questiona se essa discussão sobre o “efeito-sanduíche” os levaria a algum lugar, se adiantaria
gastar tempo discutindo isso. O médico dessa mesma unidade diz que essa questão parece que
não muda, que é algo que não podem mudar. Decidem então não falar mais sobre isso e
passam a contar sobre os trabalhos de prevenção.
Tanto a Unidade Camélia como a Unidade Rosa estavam com os trabalhos
paralisados, com a justificativa de falta de funcionários, mudança de equipe, desmotivação. A
Unidade das Flores, apesar de estarem passando por algumas dificuldades devido a ausência
da enfermeira, não paralisou as atividades programadas. O dentista encabeçou a organização
das atividades, estava no lugar da enfermeira nesse momento. Relatam o aumento na demanda
de preservativo desde que passaram a oferecê-lo no ônibus que vai até as comunidades rurais,
até então apenas deixavam a caixa de preservativos em algum lugar “discreto” do ônibus e
108
entregavam caso pedissem.
Após o relato da equipe Unidade das Flores, as outras equipes retomam a questão da
relação com a população e com a gestão. Começam a se queixar quanto às demandas da
gestão de chamá-los para reuniões de última hora, desorganizando os serviços já planejados
anteriormente; o “problema” de quando falta algum membro da equipe, da necessidade de se
reorganizar para cobrir tarefas. A unidade Rosa aponta que essa falta faz com que tenham que
assumir tarefas a mais das que já executam, sobrecarregando quem está presente, já que o
serviço não poderia parar. A Unidade Camélia traz o problema da falta sobre outra
perspectiva. Enfrentava a ausência da enfermeira que se deslocou para outra Unidade e
tinham uma equipe muito coesa e unida; essa pessoa era muito querida tanto na equipe quanto
pela população.
O médico que havia ingressado recentemente na Unidade Camélia, e que, portanto,
não participou do inicio desse trabalho, nos faz uma demanda de um lugar de mestre que se
dirige ao escravo para que este trabalhe por ele, sem se interessar muito pelo que será
produzido a partir disso, querendo apenas que as coisas andem, funcionem: “Acho que vocês
teriam que ir lá e conversar com eles (gestão), a gente eles não ouvem, vocês de fora talvez
eles ouviriam”. Questionamos o porquê de pensarem que nós, de fora, seríamos ouvidos, o
que significa ir até a gestão e falar por eles. Elza, da Unidade das Flores questiona a fala do
colega trazendo à tona a implicação do sujeito com sua questão: “ah tá, se eles forem lá
conversar com eles (gestão), eles vão virar e dizer, mas eles nunca falaram isso pra gente?!
porque de fato, esses assuntos a gente nunca se organizou para falar com eles”. A agente
comunitária da Unidade Camélia diz que a verdade é que eles tinham medo. Medo de colocar
esses assuntos e serem prejudicados no trabalho, a gestão aparece como um Outro ameaçador.
Pergunta ao grupo onde querem chegar com essa discussão, se vão ficar falando e não fazer
nada com isso. Uma agente da Unidade Rosa coloca que ali é um é um espaço de trocas, de
aprenderem um com o outro. Um membro da Unidade das Flores diz que aquele grupo
parecia um grupo terapêutico, pergunta se é isso que estavam fazendo ali. Colocamos que não
é um grupo terapêutico, mas que, por vezes, nossas discussões acabam sendo terapêuticas, no
sentido de problematizar as questões e de tocar em questões complexas. O grupo resolve
encerrar nesse ponto e saem sem respostas e com muitas perguntas.
Numa outra situação vemos a equipe das Flores, em posição de $ do Discurso da
Histérica, diante de um questionamento importante de um significante-mestre, operado nessa
relação pela figura do novo médico da equipe.
109
Começamos falando de prevenção às DST/HIV-Aids e sexualidade e em algumas
equipes esse tema foi o ponto de partida para tocarem em outras questões como: reuniões de
equipe, gestão dos serviços de saúde, organização dos serviços, problemas de relacionamento
entre colegas de trabalho, entre outros.
No encontro seguinte ao relatado acima, a equipe nos conta um momento difícil,
“interno”, que passaram nesse ultimo mês. Havia uma situação que já vinha se “protelando”
há tempos e que chegou ao seu limite. A relação com o novo médico da equipe estava
insustentável. Este, segundo a equipe, não atendia ao mínimo de perfil de trabalho na ESF,
não participava das reuniões de equipe, não aderia ao que fora pactuado com a equipe, não
cumpria sua carga horária, não participava das atividades da equipe, apenas realizava suas
consultas de clínico geral, não visitava as casas na área rural, sempre aguardava a população
no ônibus; por vezes ia com seu carro até a área rural fazia os atendimentos que surgiam e
quando acabava ia embora. Enfim, a equipe tentou por várias vezes negociar seu
comprometimento com o serviço, faziam reuniões chamando-o para suas atribuições, em vão,
sua postura em relação ao serviço não mudava. De nossos encontros ele também participou
uma vez, mas não permaneceu o tempo todo. Então, decidiram tomar uma atitude acionando
outras instâncias, já que a conversa com ele de nada adiantava, visto que, para ele a fala da
equipe não estava em jogo. Fizeram um abaixo-assinado com a assinatura de todos da equipe
e um dossiê contando todas as tentativas de resolução do problema; o perfil do médico e todos
os argumentos e justificativas elencados acima, apontando que não gostariam que o mesmo
continuasse naquela Unidade. Diante disso, a gestão de saúde o afastou bem como foi aberta
uma sindicância para apuração dos fatos. Para aquela equipe ele não mais voltou. Apesar de
estarem sem médico naquele momento, relatam o bem-estar de poderem realizar seu trabalho
sem a presença dele. Apontamos em tom perguntativo se não consideravam que tinham
colocado em prática aquilo do qual conversávamos o encontro passado, sobre questionar, se
implicar e colocar em ato suas questões, que haviam enfrentado essa situação ao invés de se
conformar e aceitá-la, saindo de uma posição de queixa. Os membros presentes da equipe se
surpreendem com nossa pergunta-afirmação. Dizem que não haviam feito essa relação, que
parecia que pelo fato de não terem se reunido em equipe para conversar sobre aquilo não
tinham feito nada. Complementamos que mais que discutir vivenciaram uma situação que
tratava exatamente daquilo que discutíamos. A agente comunitária, que nos fez o relato com
uma expressão de satisfação, diz que como estão acostumados a serem cobrados por não
fazerem as coisas, nem reconhecem quando fazem. Denunciando a relação entre
110
gestão/equipe, que parece se aproximar da relação senhor/escravo do Discurso do Mestre,
onde equipe (S2) trabalha para garantir os números da saúde e seu bom funcionamento (a)
para a gestão (S1) que tenta com isso tamponar sua falta, sua fragilidade, aquilo que não
funciona, sua dimensão de $.
Quanto à questão da relação da saúde publica com a figura do médico, ou com o
Discurso Médico, podemos fazer alguns paralelos, baseado nos apontamentos de Jorge
(1988).
O discurso médico seria um discurso próximo ao Discurso do Mestre. O discurso
médico exclui a subjetividade tanto daquele que o enuncia como daquele que o escuta.
Segundo Jorge (1988) Lacan afirma que é a exclusão das posições subjetivas do médico e do
doente o que funda a relação médico-doente, por isso disse que não existe relação médico-
doente.
O médico existe em sua referência ao saber, à instituição, ao corpo médico. Ele se
anula enquanto sujeito perante a objetividade científica. Não se dá encontro entre médico e
doente, o que se dá é o encontro do médico com seu próprio discurso. “Sob a máscara de um
diálogo, é um monólogo que se instaura. Onde se evidencia a função silenciadora do discurso
médico” (idem, p. 45).
No discurso médico o doente é definido como homem + doença. O homem doente em
si não interessa à medicina, o médico não se dirige ao doente, mas ao homem são. O homem
passa a ser o doente–doença. Evidenciando também que “não existe relação médico-doente”,
“só existe a relação instituição médica-doença” (idem, p. 46).
Médico e doente estão destituídos de sua subjetividade, o que prevalece é a instituição
médica. A ordem médica é da alçada da ciência, mas é, sobretudo, uma ordem jurídica. Como
acontece com a prescrição médica, por meio da receita que o médico prescreve ao doente,
com um enunciado dogmático, como não beba, não fume, não coma isso não como aquilo etc.
Nesse sentido a sexualidade também sofre esses efeitos de ordenação, de regulação.
Nesse sentido se estabelece uma distinção radical entre psicanálise e medicina. A
psicanálise colocaria em questão uma função superegóica de uma ordem perante a qual
devemos nos curvar e se adaptar, tanto na relação com os poderes públicos, quanto na cura
individual. O que está em jogo aí é justamente a passagem de discurso, do Discurso do Mestre
ao Discurso do Analista. Passagem da posição de compreensão para a de interpretação.
Passagem do sujeito que sabe, mestre, para a do sujeito suposto saber, o psicanalista.
111
O discurso médico se apropria do discurso do sujeito transformando os significantes
de sua fala em sinais médicos. A língua é cheia de sentidos, tentar reduzi-la é uma manobra de
poder característica do discurso dogmático, médico, jurídico etc. Tal discurso aliena o próprio
sujeito, pois não evidencia o seu desejo e a enunciação que comporta.
No Discurso do Mestre o sujeito está sob a barra, indicando que este não participa do
discurso manifesto, embora esteja presente. A psicanálise restitui o sujeito ao seu lugar, onde
a ciência tenta fazer com que este não se manifeste (discurso da prevenção, discurso médico,
discurso da saúde). Para a ciência, as formações do inconsciente são dejetos, pois não
consegue inscrevê-las em seu discurso. Para a psicanálise estas são justamente a expressão do
sujeito e de seu desejo. A psicanálise não é ciência, pois não visa evitar o erro e o engano e
sim como tomá-los enquanto objeto.
A medicina promove a alienação do sujeito aos significantes de um outro. Clavreaul
diz que a entrada do sujeito no discurso médico é análoga à entrada da criança na língua
materna. O inverso à desalienação que a psicanálise promove. (idem, p. 53).
Reflexões sobre o processo: de que saber se trata?
Ao final desse ano, que foi o último de nossa experiência intercessora, o Programa
Municipal de DST/Aids colocou em prática a campanha federal “Fique sabendo”
18
, que
consiste em promover testagem de HIV, em atividades pontuais, onde seja possível realizar a
coleta em um número grande de pessoas. Nesse dia a equipe do Programa se dirige ao local e
realiza o “aconselhamento”, que consiste numa exposição com alguns esclarecimentos sobre o
teste, a importância de realizá-lo e sobre a prevenção DST/HIV-Aids e de teste. O Programa
estabeleceu a parceria com as unidades básicas de saúde e as unidades da Estratégia Saúde da
Família. Nas USF com as quais trabalhamos essa proposta causou certo tumulto, pois, com
exceção de uma unidade, as outras nunca haviam organizado uma atividade como essa. Uns
pensavam que não teriam adesão, que as pessoas não participariam, que teriam vergonha de se
dirigir a Unidade para realizar a coleta. Cada um se implicou a sua maneira e dentro de seu
contexto.
A equipe da Unidade das Flores, que nesse momento já tinha realizado muitas
atividades com a temática da prevenção nas áreas rurais, fez dessa ocasião um acontecimento.
Decidiram que, por terem um numero grande de áreas rurais, e diante da impossibilidade de
18
Fique Sabendo é uma mobilização de incentivo ao teste de aids e tem como objetivo conscientizar a população
sobre a importância da realização do exame. Fonte: http://www.aids.gov.br/fiquesabendo.
112
que a equipe do Programa realizasse essa testagem em todas as áreas, eles mesmos fariam a
testagem e o aconselhamento. O que isso implicaria? Que toda a equipe teria que tomar a
frente da atividade, se instrumentalizar, enfim organizá-la do início ao fim. A enfermeira e a
auxiliar de enfermagem nunca haviam feito essa coleta de sangue especifica para HIV. Foram
até o serviço especializado aprender junto à equipe especifica como eram os procedimentos.
Uma outra auxiliar de enfermagem, que quase sempre se calava ou era tímida ao falar em
atividades grupais ou em nossas reuniões, decidiu que ficaria responsável pelo
aconselhamento. Diante da novidade, também procurou se preparar e foi até o serviço
conversar com a profissional responsável por essa área. Reuniram materiais educativos para a
distribuição no dia, realizaram a divulgação antecipada nas áreas rurais, fariam cada dia em
uma área. Realizaram reuniões de equipe para programar a atividade. Reviam sua organização
caso encontrassem na prática alguma outra maneira de realização considerada melhor.
Tal iniciativa foi inédita no local tanto para a população quanto para a equipe. Relatam
que nunca haviam feito atividades para um público maior. A auxiliar de enfermagem, que fez
o aconselhamento, foi quem encabeçou esse trabalho, ela nunca havia feito algo do tipo para
um grupo, um número maior de pessoas, apenas individualmente em consultas. Relata-nos
que na primeira área rural ficou nervosa, mas depois com a recepção e aceitação da
comunidade se tranquilizou. Conta que as pessoas participavam ativamente do
aconselhamento, aqueles que não tinham coragem de perguntar em grupo o faziam
individualmente (já que havia sido colocada essa possibilidade). Membros da equipe
relataram que pessoas que nem imaginavam que tivessem relação sexual fizeram perguntas e
até levaram preservativos consigo.
Refletindo sobre esse trabalho intercessor em nossa última reunião, a equipe atribui a
nós, a esses três anos dessa relação, a facilidade de abordarem esses assuntos, de conseguirem
falar sobre sexualidade e prevenção DST/Aids; de terem organizado e executado as
atividades; de conseguirem oferecer o preservativo a população. Aquilo que estava fora do
discurso, a sexualidade e a prevenção de DST/Aids, agora entra na produção discursiva da
relação com outro. Lembram que deixar a caixa de preservativos à disposição no ônibus, algo
que parecia simples, exigiu que eles tivessem que lidar com a possibilidade das pessoas
pedirem e dirigirem a eles novas perguntas. Passaram a dizer para as pessoas que não
precisavam ter vergonha e que podiam pegar à vontade. Contam que depois disso acontece até
de darem uma quantidade “x” e a pessoa dizer que é pouco e pedir mais, como nunca havia
ocorrido. A equipe diz estar contente de agora serem mais convocados a falar desses assuntos;
113
de as pessoas solicitarem; de as mulheres acima de quarenta anos pedirem ao serviço o
insumo gel lubrificante, o que fez com que a equipe se mobilizasse junto ao gestor na
tentativa de conseguir o insumo.
Em um evento, alguns membros da equipe estavam presentes e vieram até nós
mostrando a alegria e satisfação com o sucesso da coleta de testes HIV naquele ano, pois, foi
a unidade de saúde que realizou mais coletas no município. O dentista nos diz: “lembra como
a gente tinha medo de trabalhar com isso!”. Sentindo-se orgulhoso por terem conseguido algo
da ordem do impossível, do não dito, da impossibilidade de dizer e de fazer, que tanto
amedrontava a equipe.
Outro ponto que ressaltam, além do fato de perderem o medo de trabalhar com essas
questões, foi a importância de terem escrito juntos o projeto, no início de nossa intercessão,
reforçando a união da equipe.
Dessa relação o que podemos dizer? O saber de prevenção ainda teve que ser
colocado em discurso, não estava em questão. Colocá-lo em discurso, experimentá-lo, traz o
mais importante que foi a experiência de adentrar a esse campo antes nunca trabalhado. De
que saber estamos falando?
O acesso ao saber de conteúdo, teórico, no caso, o saber sobre prevenção DST/Aids só
esteve acessível a essa equipe quando entrou em jogo o saber levado a estatuto de saber
psicanalítico, ou seja, aquele que toca o real, que fala do Outro. Não se tratou de discutir com
a equipe se o que estavam fazendo em prevenção estava certo ou errado, dentro das diretrizes
do programa ou não. O que interessava para nós era que eles produzissem sua forma de
trabalhar, que colocassem em ato as propostas que vislumbravam. Aos poucos foram
inserindo uma maneira própria de trabalhar, agregando expressões artísticas, utilizando de
recursos de outros campos para esses trabalhos.
O que se tratou de produzir foi outro saber. Saber relacionado a uma diferença.
Quando tomam a iniciativa de organizar uma atividade já definida por outro serviço e a
realizam a sua maneira, conforme sua organização. Tratam do saber de prevenção, mas o
tratam a sua maneira. Vão até os S1, sabendo de seus limites, na busca de um saber, S2, que
depois só poderá ser apreendido pelo sujeito, por eles.
O que Lacan quer dizer quando coloca que o que conduz ao saber é o Discurso da
Histérica? Se é o DH que dá acesso a esse saber, de que saber se trata?
Em abril de 1970, Lacan (2003) faz o encerramento do Congresso da Escola Freudiana
de Paris, onde ministra a palestra “Alocução dobre o ensino”, em referencia a Proposição de 9
114
de outubro de 1967, que tratava das diretrizes e do funcionamento da Escola. A questão-chave
que se coloca é quanto à transmissão da psicanálise. Especificamente no texto de 1970 Lacan
abordará a relação saber-ensino, ou melhor, a não relação.
Segundo o autor, não existe uma relação direta entre o que se ensina e que deste
ensino resulte automaticamente um saber. Pelo contrário, pode ser o ensino uma barreira ao
saber. O ensino seria o saber descaracterizado, devido ao lugar de onde impera. Lugar de
agente no DU. O professor estaria no lugar de produto desse discurso, como $. No lugar do a
estariam os “aluninhos-de-professor”, onde nada fora ensinado a eles, a não ser a tentativa de
acessar o S1, que se encontra no lugar da verdade neste laço social. Já no DH, tem-se um
saber como produção dos próprios significantes-mestre, em posição de ser interrogado pelo
sujeito. No DA o saber chega no lugar da verdade; adquire verdade aquilo que se produz dos
significantes-mestre. A essa produção de saber Lacan (2003, p. 308) se refere como “a mais
louca por não ser ensinável”. Ainda diz que seria um lapso que alguns ao “ensaiar o ensino”
proporiam uma subversão do saber. Pelo contrário, o saber faz a verdade do discurso dos
psicanalistas da Escola e este não se sustentaria se o saber exigisse a intermediação do ensino.
É mesmo de outro saber que se trata. Assim, Lacan (idem, p. 310) irá nos dizer: “(...) ao se
oferecer ao ensino o discurso psicanalítico leva o psicanalista a posição de psicanalisante, isto
é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a titulo de
sintoma”. No caso, podemos pensar essa relação no Discurso da Histérica, onde o analisante
no lugar de $ passa a questionar o S1, no caso a psicanálise.
O estatuto do saber, S2, vai se transformando ao longo das passagens de discurso. O
saber no lugar de agente no DU não é o mesmo que o saber no lugar da produção do DH. O
saber de que se trata é o saber como meio de gozo, remete ao real, coloca um limite em
relação ao gozo, por isso ele não seria da ordem da cognição.
O que precisam saber na educação em saúde? Com certeza não é o saber de mestre,
nem o saber ensinado na relação professor-aluno. É o saber que toca o real. O que nessa
relação intercessora fizemos operar foi esse saber, o que no início era saber universitário se
transforma em saber do Outro. Lugar dos significantes que representam o sujeito, pois este é
efeito da separação estrutural entre S1 e S2, é dividido de seu saber e produto dessa divisão.
Em relação aos giros de discurso chega-se com o mestre no Discurso Universitário;
desloca-se para o Discurso da Histérica, o intercessor vai para o lugar do trabalho, S1 no lugar
do trabalho, para histerizar o sujeito. Fixada essa posição pode-se consolidar o DH em que o $
é agente e trabalhador, na medida em que o S1 está ali não para fazer por ele, mas para fazê-lo
115
histerizar, mirando no horizonte o Discurso do Analista.
Nossa experiência nos revela que o único saber que provoca um fazer, um saber/fazer,
é um saber produzido a partir dos significantes-mestre da própria experiência. A equipe da
Unidade das Flores encontrou um estilo, um jeito próprio de fazer as oficinas, de se posicionar
diante de outras dificuldades. Ao escutar a dimensão enunciativa dos sujeitos das equipes
abre-se a possibilidade da produção de novos sentidos do fazer, o que implica um novo saber.
Até que possa ser dito, que possa entrar na linguagem, esse não dito, ou não-sabido, essa
dimensão do objeto a fica recalcada, adiando a implicação do sujeito com sua questão. Ao
escutarmos e não respondermos possibilitamos que o outro retorne a si a questão.
Nesse deslocamento da posição de educador, o que transmitimos ao outro é o nosso
desejo de que eles saibam, que não parem de querer saber, que continuem desejando,
questionando, produzindo; que se aventurem por novos campos, e que a partir daí possam
criar novos modos de fazer a Educação em Saúde bem como a Prevenção DST/HIV-Aids.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
117
Considerações Finais
Quando ingressamos no mestrado não imaginávamos que nossa caminhada tomasse
rumos tão diferentes do que apresentamos hoje. Os dois anos e meio dessa jornada foram
repletos de descobertas e de contato com o novo. Novo projeto, nova pesquisa, novo contato
com a teoria, novos amigos, nova relação com a Universidade, enfim muitas novidades se
deram. No meio de tantos novos contatos não poderíamos passar ilesos por esse processo.
O percurso exigiu de nós algumas elaborações acadêmicas, mas também pessoais,
como não poderia deixar de ser. Ao reconstruir a experiência operava em nós também uma
reconstrução. Mas que reconstrução? Reconstrução de um lugar, de uma posição.
O retorno à experiência, colocou-nos em contato com nossas memórias e com as redes
de significantes produzidas naquele tempo. Sentidos produzidos a partir dos registros de nossa
experiência na ESF. Passamos a nos perguntar então, o que tínhamos a dizer sobre essa
experiência? O que retornava dela? O que dessa experiência no campo da educação em saúde
e da prevenção DST/Aids poderíamos transmitir?
No primeiro projeto de pesquisa tratava-se de investigar o que os profissionais das
equipes da ESF compreendiam sobre a sexualidade. Esse era o saber que agenciava nosso
discurso. O saber sobre sexualidade. Após o retorno, percebemos que se tinha algo que
gostaríamos de transmitir nesta dissertação, era justamente algo relacionado ao saber e a
transmissão do saber produzido na práxis. Portanto, procuramos elaborar qual saber foi
construído e transmitido em nossa práxis.
O que vimos quanto à produção de sujeitos nas práticas de Educação em Saúde é que
estas tomam o indivíduo como alvo de suas investidas e não o toma como sujeito. A dimensão
do sujeito não está em jogo. Enfatiza-se a escuta, o atendimento humanizado. Mas, por
exemplo, não se discute o que se escuta, aliás, acaba se escutando de tudo um pouco, menos o
sujeito, menos o Outro sujeito. Então, a depender de como o educador se coloca seja na
Educação Permanente em Saúde seja na Prevenção DST/Aids ele terá algumas consequências
na relação com o outro e no laço social.
Na área da Prevenção DST/Aids, que trata de temas tabus, relacionados à sexualidade,
aos estigmas, a valores morais e culturais, os educadores teriam que priorizar ainda mais a
relação do outro como sujeito. Nessa área, exige-se das pessoas a prevenção da infecção pelo
HIV com a utilização de preservativos; o cuidado com o corpo; atenção aos sintomas que
indiquem alguma DST; bem como que falem sobre sua sexualidade, que tenham prazer, entre
118
outros. Um discurso abrangente que vai desde a prescrição de condutas preventivas até a
consideração do desejo e do contexto de vulnerabilidade das pessoas.
O campo da prevenção DST/Aids, em sua ampliação, ou seja, para além do discurso
“use camisinha” e das práticas de incentivo aos métodos de prevenção, convergem questões
relacionadas à afetividade, às vivências e descobertas da sexualidade, transcendendo o
paradigma biologista na abordagem do assunto. Mas para escutar o que é da ordem da relação
do sujeito com o outro, para além da dimensão imaginária, é preciso se deslocar do lugar de
quem é agente do discurso da prevenção. Posicionar-se no sentido de escutar a dimensão real
e simbólica do outro, que implica em não dirigir o outro para uma finalidade, mas em
desvincular o saber a nós suposto para o saber ao Outro. O uso e a suposta adesão ao
preservativo não poderia ser uma finalidade a priori do encontro, mas sim um possível
desdobramento, que pode ou não se desenrolar. O discurso da ciência está aí justamente para
isso, para apagar o sujeito. Qualquer indício onde este possa emergir será tamponado por uma
justificativa ou uma explicação científica.
Então, podemos dizer que enquanto esse campo estiver em consonância com as
estratégias e finalidades do discurso da ciência, não escutará os sujeitos, e sim os indivíduos-
objetos. E não escutar o sujeito, não somente nos trabalhos de prevenção, mas em qualquer
área da saúde ou da educação, significa não dar a ele a possibilidade de implicação com sua
questão, de incluí-lo naquilo que fala e, portanto, naquilo que falta e que ao mesmo tempo
funda a condição humana de ser desejante.
Não queremos dizer com isso que não devemos fazer prevenção às DST/Aids, temos
sem dúvida uma questão epidemiológica importante. Estamos apontando uma outra forma de
fazer prevenção; não se trata de extingui-la, mas de fazer diferença e giro de discurso dentro
dela. Chamar o sujeito para o lugar de agente do discurso é fazer giro de discurso na
prevenção.
O discurso da ciência atravessa todo o corpo social. O contexto social, as políticas
públicas, a cultura, a economia, entre outros, perpassam pelos indivíduos, produzindo visões
de mundo semelhantes, análogas. Mas seria importante também considerar o sujeito mesmo
este estando inserido dentro de grupos específicos e/ou segmentos populacionais, pois esses
discursos também se singularizam nele, portanto, a sua fala, história, também teria de ser
considerada e não homogeneizada.
A política da Estratégia Saúde da Família surge como um modelo de reorganização da
Atenção Básica em Saúde, mas como já destacamos, caminha com dificuldades. Tem sua
119
inserção no território, na comunidade e na família. O olhar para o território ao mesmo tempo
em que amplia e embasa as ações da ESF ao considerar o contexto social, cultural, econômico
de cada área de atuação, também generaliza e iguala toda a população que habita aquele
espaço. Por exemplo, relembremos os significantes que identificavam a população da área de
abrangência da Unidade das Flores com a qual trabalhamos: “conservadora”, “moralista”,
“difíceis”, “não mantinham relações sexuais”, “mulheres sérias”, “diferenciada”. E depois do
contato mais próximo com a população e da implicação da equipe com esses significantes, no
sentido de que estes também diziam respeito a ela, o cenário mudou.
Quando destacamos e enfatizamos essa concepção de escuta e de sujeito, é por
considerarmos que foi por meio destas que nossa experiência tomou os rumos que
apresentamos nesta dissertação.
A partir do que escutamos e da posição que ocupamos na relação com o outro,
pudemos engendrar no discurso, aquilo que se apresenta como sendo da ordem de um saber e
não de um conhecimento. O que tentamos destacar de nossa experiência não foi um
conhecimento, por exemplo, sobre prevenção, sobre sexualidade, sobre técnicas preventivas,
não que estes não estivessem presentes, mas sim algo da ordem de um saber.
De nossa experiência tentamos localizar a diferença entre aquilo que é do registro do
conhecimento, ou melhor, do que se pode conhecer, se é dado a conhecer, e aquilo do qual
não se pode saber, embora sintamos seus efeitos, suas repetições, suas insistências e nada
mais, além disso, nos é dado a conhecer. É importante marcar essa oposição, pois destacamos
ao longo deste trabalho, a diferença entre Educar para se dar a conhecer ou aumentar o
conhecimento com mais erudição, e Educar a partir do ponto onde tudo o que se sabe é que o
sabido não se dá a conhecer. Trata-se de pensar o Educar e sua transmissão não como
reprodução, agregação ou projeção de outros saberes. A diferença que tentamos destacar aqui
é aquela que toma o Educar como lugar de produção de um saber que ao invés de se
preocupar em conhecer/compreender a si mesmo, o outro ou justificar-se, se faz, em ato, um
novo problema e menos uma solução. É o educar, profissão impossível, tomado aqui como o
possível de inúmeras exterioridades e existências impossíveis. É o saber que trabalha mais
sobre o desejo de saber e menos sobre o saber sobre o desejo.
Reconstruímos nossa intensão na tentativa de transmitir esse saber, ou melhor, um não
saber. De nosso trabalho com a Unidade das Flores o que tentamos transmitir da práxis foi
que esse saber não sabido estava com eles e não com o educador/intercessor. Saber sobre o
120
que estava interditado, mas que no Outro já é sabido, porém não explicitado. Esta dissertação
buscou trazer ao campo da extensão esse saber não sabido da práxis.
Nosso percurso suscitou algumas questões, que ainda ficam em aberto nesta
dissertação. Ao longo dessa construção, nos instigou a (im)possibilidade do desdobramento
do Discurso do Analista para outras relações que não o par analista/analisante. Parece-nos
ocorrer uma divisão por parte dos psicanalistas nesta questão. Como apresentamos ao longo
desta dissertação, o trabalho de Bastos (2003), que analisa a possibilidade de giros de discurso
em supervisões com professores de crianças com distúrbios globais do desenvolvimento,
sustenta a posição do supervisor como semblant de objeto a no Discurso do Analista. Quinet
(2006, p. 37) pondera que o setting não define o discurso, tampouco as palavras pronunciadas,
e sim o ato. O próprio método intercessor tem no horizonte uma aproximação a esse discurso.
Parece-nos que essa é uma questão não consensuada no campo da psicanálise e que nos
demanda mais estudos. Então, deixamos em aberto a interrogação sobre essa possibilidade. O
ato analítico pode operar fora do Discurso do Analista? Podemos sustentá-lo fora da relação
analista/analisante? Nosso trabalho parece nos indicar que fazer giro de discurso implica em
termos, ao menos no horizonte, o Discurso do Analista.
Para a Educação em Saúde e Prevenção DST/HIV-Aids esta dissertação espera
oferecer um olhar por meio de outras lentes que não as mesmas inerentes a esses campos. No
caso, elaboramos nossa experiência e dissertação dando maior enfoque à psicanálise de
Jacques Lacan e de seus seguidores e/ou comentadores. Foi a partir desse referente que as
conduzimos. Foi acompanhando o silencioso movimento dos giros de discurso que
empreendemos esse trabalho de intercessão. Almejamos ter atingido nosso objetivo quanto a
isso, isto é, oferecer a esses campos, tanto o da psicanálise como o da educação em saúde
novos olhares.
Vislumbramos que nosso trabalho possa interessar aos sujeitos vinculados aos dois
campos, o da saúde publica e o da psicanálise. Lembremos que se trata de uma experiencia
única, singular, assim como o é a relação do sujeito com o outro, portanto, esperamos que
possa disparar discussões a partir de Outras experiências singulares.
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