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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
MESTRADO EM HISTÓRIA CULTURAL
PROGRAMA DE PÓS
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Cultura e Poder
LINHA DE PESQUISA:
Identidades, Tradições e Territorialidades.
NAS ÁGUAS DO ARAGUAIA:
A NAVEGAÇÃO E A HIBRIDEZ CULTURAL
FRANCISQUINHA LARANJEIRA CARVALHO
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
PROGRAMA DE PÓS
-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: Cultura e Poder
Identidades, Tradições e Territorialidades.
NAS ÁGUAS DO ARAGUAIA:
A NAVEGAÇÃO E A HIBRIDEZ CULTURAL
FRANCISQUINHA LARANJEIRA CARVALHO
GOIÂNIA/GO – 2008
A NAVEGAÇÃO E A HIBRIDEZ CULTURAL
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F R AN C I SQ U I N H A L A R A N J E I R A C A R V A L H O
NAS ÁGUAS DO ARAGUAIA:
A NAVEGAÇÃO E A HIBRIDEZ CULTURAL
Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu, Mestrado em História Cultural:
Cultura e Poder como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em História sob a orientação da Prof ª. Drª.
Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante.
U N I V E R S I D AD E C A T Ó L I C A D E G O I Á S U C G
G O I Â N I A/ G O - 20 0 8
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3
F R A N C I SQ U I N H A L A R A N J E I R A C A R V A L H O
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Católica de Goiás, aprovada em _______ de ______________________ de __________, pela
Banca Examinadora constituída pelos professores:
_____________________________________
Drª. Maria do Espírito Santo Rosa Cavalcante
Orientadora
_____________________________________
Dr. Leandro Mendes Rocha
Universidade Federal de Goiás
____________________________________
Drª. Jocyléia Santana dos Santos
Universidade Federal do Tocantins
4
Ao meu pai, Aniceto Carlos Laranjeira, comerciante, baluarte de dedicação
à missão de salvar vidas nas ribeiras do Araguaia (1915-1982);
Ao poeta, Jo Wilson Pereira Leite, símbolo de paixão pelas belezas do
Araguaia, e de dedicação à cultura regional.
Ao empresário João Duarte de Souza – Dodô referência de
empreendedorismo dos comerciantes e navegantes do Araguaia, no século
XX.
Ao potico e empresário General Couto de Magalhães, o mais determinado
na implantação da Companhia de navegação a vapor – referência de
entusiasmo e coragem dos governantes do culo XIX.
Ao empresário Corrêa de Moraes o mais destemido de todos os
navegantes do século XIXmbolo de coragem dos ribeirinhos do
Araguaia.
In memoriam.
5
A G R A D E C I ME N T O S
Agradeço primeiro à poderosa inteligência suprema, causa primária de todas as coisas
Deus, pois tudo veio d’Ele, nada existia antes d’Ele, tudo o que existe no mundo material e
também no mundo espiritual foi Ele quem criou.
Dedico este livro aos meus pais Aniceto Carlos Laranjeira e Adelita Carvalho Laranjeira (ambos in
memoriam)
. Foram vocês que me deram amor, carinho, orientações moral, mental e espiritual.
Foram exemplos de pais, dedicados para com todos os seus filhos, meus queridos irmãos Adilson,
in memóriam, Aldineide, in memóriam, Maria Aldy, Ivone, Aldinita, Ivete, Ailton e Marília. Foram
vocês que criaram os laços de afeto, carinho e amor entre nós e que a cada dia nos une mais.
Ao Paulo, meu esposo-companheiro, pelo amor a que me dedica, pela compreensão,
pelo carinho e apoio.
Aos meus filhos Paulo Sérgio Carvalho, exemplo de filho, amigo, companheiro,
compreensivo e amoroso e Érika Cristina que se encontra a milhas distante de mim, com seu
esposo Cláudio Voltera, mas que está presente em cada minuto da minha vida, emanando carinho,
apoio e amor. À minha pequena grande neta Vitória que carinhosamente me chama de mãe e me
proporciona motivo de viver. Razão do meu viver.
À professora orientadora desta dissertação, Drª Maria do Espírito Santo Rosa
Cavalcante, que com sapiência me conduziu, me orientou nessa jornada científica. Agradeço pela
confiança, carinho, dedicação e paciência. Agradeço por acreditar em mim mesmo nos momentos
de tribulações. Devo-lhe o apoio e estímulo, o incentivo e a contribuição significativa do meu
crescimento intelectual.
Ao professor Leandro Mendes Rocha, meu co-orientador, pelos seus conselhos
preciosos e significativa contribuição ao desenvolvimento do trabalho.
6
À prof. Jocyléia Santana e a prof. Maria Augusta Sant’Ana de Moraes pela
generosidade intelectual, carinho e amizade. Devo-lhe o estímulo e a contribuição para a realização
deste trabalho.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em História da UCG que de
alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho e para a minha formação acadêmica.
Agradecimento especial àqueles que eu tive o privilégio de tê-los como mestres. Em especial à prof.
Terezinha Marra, profª. Maria do Espírito Santo, ao professor Eduardo Quadros, prof. Eduardo
Reinato, profª. Adriana Mara, profª Eliane Prudente, prof. Heloisa Capel, prof. Maurides Batista, a
professora colaboradora Sandra Pesavento.
A todos os entrevistados que participaram gentilmente deste trabalho. É extensa a lista
de todos os que contribuíram, com extrema fineza e boa vontade, para a realização deste trabalho.
Não mediram esforços para me auxiliar com informações, documentos visuais, fotografias e/ou
observações, meu muito obrigada a todos. Ao João de Melo, morador de Arauanã, que
carinhosamente me dedicou suas obras, ao Sr. Raimundo de Melo que com orgulho relatou suas
idas e vindas pelo Araguaia, a D. Nicanora que carinhosamente auxiliou seu esposo Raimundo
Chofer a lembrar dos velhos tempos de viagens pelo Araguaia. Ao Sr. Vavá, Dona Mundica, Sr.
Paulo Alcântara, que deixaram seus afazeres para contar suas histórias de vida cotidiana nas
barrancas do Araguaia. A Ione, que carinhosamente escreveu um poema para enriquecer este
trabalho. Ao Sr. Édson Maranhão Duarte, conectado comigo quase que diariamente, me mandando
informações preciosas sobre a navegação.
Aos meus queridos amigos, Mara Natércia, Jaqueline Cunha, Carlos Eduardo, João
Cunha e família, pastora Eunice, Sandra, Pedro Paulo e família, Vitória Régia, Rany, Carmem,
Luciana, Meire, Luciene, Maria Assi, Luzirene, Eva, Ione, Benta, Oscar Wildes, João Sobreira,
Edson Duarte, Nicanora, pela forte presença, pelo carinho em cada momento em que atravessei
tempos difíceis. Vocês interagiram na minha vida de tantos modos bons e gratificantes. Agradeço
pelo cuidado que tiveram comigo nos momentos de angústia. Os vínculos de amizade nos
fortalecem, fortificam nossa autoconfiança, nos trazem a esperança e a positividade. Vocês
fortaleceram em mim a vontade para vencer as dificuldades que eu enfrentei; a vontade de vencer
um ncer. Mas o melhor, em tudo isso, foi que a tarefa de vocês nessa viagem não ficou no
falar, mas sim, no fazer. Agradeço pelo apoio, pela compreensão, pela força, pelos momentos de
sofrimento e de diversão, pois nem tudo é tristeza, pelas risadas, nos momentos de descontração.
Todos ao meu redor contribuíram de uma manei
cada minuto de suas presenças na minha vida.
Agradeço aos meus colegas de mestrado que me deram força, pelo carinho, amizade e
pelos momentos de entretenimento em especial a
Cristina.
Agradeço ao apoio que tive nos Institutos de Pesquisas, em especial a D. Carmem,
funcionária do Instituto de Pesquisa Histórico de Goiás; aos funcionários do Museu das Bandeiras;
as funcionárias Fátima Cançado e
carinho e permitiram
a busca nas fontes documentais e ao prof. Antônio
IPHBC - Instituto
de Pesquisa
sofrimento e de diversão, pois nem tudo é tristeza, pelas risadas, nos momentos de descontração.
Todos ao meu redor contribuíram de uma manei
ra ou de outra nessa jornada e por isso agradeço
cada minuto de suas presenças na minha vida.
Agradeço aos meus colegas de mestrado que me deram força, pelo carinho, amizade e
pelos momentos de entretenimento em especial a
o Milton, Débora,
Maria das Graças,
Agradeço ao apoio que tive nos Institutos de Pesquisas, em especial a D. Carmem,
funcionária do Instituto de Pesquisa Histórico de Goiás; aos funcionários do Museu das Bandeiras;
as funcionárias Fátima Cançado e
Dirce da Fundação C. Frei Simão Dorvi qu
e me receberam com
a busca nas fontes documentais e ao prof. Antônio
César Caldas
de Pesquisa
s Históricas Brasil Central.
7
sofrimento e de diversão, pois nem tudo é tristeza, pelas risadas, nos momentos de descontração.
ra ou de outra nessa jornada e por isso agradeço
Agradeço aos meus colegas de mestrado que me deram força, pelo carinho, amizade e
Maria das Graças,
Lazara e Ana
Agradeço ao apoio que tive nos Institutos de Pesquisas, em especial a D. Carmem,
funcionária do Instituto de Pesquisa Histórico de Goiás; aos funcionários do Museu das Bandeiras;
e me receberam com
César Caldas
, Diretor do
8
Todas as culturas estão envolvidas uma na outra;
nenhuma é única e pura, todas são híbridas,
heterogêneas, extraordinariamente diferenciadas e
não monolíticas.
Edward Said.
9
S U M Á R IO
ÍNDICE DA ICONOGRAFIA
10
RESUMO
11
ABSTRACT
12
INTRODUÇÃO
13
I PARTE
1
RIO ARAGUAIA: ESPAÇO DE MUITAS VOZES
19
1.1
1.2
A voz desentoada de uma catástrofe incontrolável e o poder das águas
A formação das cidades ribeirinhas no sertão do Araguaia
3
0
33
1.
2
.
1
O presídio de Santa Leopoldina
atual cidade de Aruanã
(
GO
)
49
1.
2
.2
O presídio de Santa Maria
Atual cidade de Araguacema
(
TO
)
52
1.
3
Nas trilhas da imaginação:
65
1.
3
.1
A Lenda de Aruanã
66
1.
3
.2
A Lenda da Serpente
67
1.
3
.3
A Lenda do Enterro
67
1.
3
.4
A Lenda da igrejinha
6
9
1.
3
.5
A Lenda dos Martírios
7
1
1.
3
.6
O mito da Lagoa Paraupava
8
2
II PARTE
2
A
NAVEGAÇÃO ROMPE FRONTEIRA NAS ÁGUAS DO ARAGUAIA
74
2.1
Hibridez nas embarcações
1
03
2.2
A espera na beira do rio e o apito dos motores
1
14
2.3
As práticas alimentares nos baixios do Araguaia
patrimônio simbólico
1
23
Considerações finais
1
37
Referências
Bibliográficas
1
41
Anexos
1
50
10
Í N D I C E D A I CO N O G R A F I A
Ilustração
1
Vista
parcial do cotidiano dos ribeirinhos do Araguaia
.
20
Ilustração 2
Traçado do Rio Araguaia com
cidades ribeirinhas
.
2
3
Ilustração
3
Pescadores no Araguaia.
2
4
Ilustração 4
Mapa hidrográfico brasileiro/bacia Araguaia
Tocantins
.
2
5
Ilustração
5
Vista panorâmica do Rio Araguaia
.
28
Ilustração
6
Aldeia Indígena Karajá
.
3
4
Ilustração
7
Mapa dos presídios da Província de Goiás
século XIX
4
2
Ilustração
8
Esboço do Presí
dio de Santa Maria
.
5
2
Ilustração
9
Primeira Igreja de Aruanã
-
GO
68
Ilustração
10
Igreja do Presídio de Santa Maria
.
6
9
Ilustração
11
Quadro informativo: rios, estaçõe
s, portos...
85
Ilustração 12
Presídios do Araguaia na rota da na
vegação a vapor
96
Ilustração 13
Portos e entrepostos comerciais na navegação a
vapor
98
Ilustração 14
E
mbarcação a motor
-
séc
.
XX
.
1
03
Ilustração 15
Canoas e ubás no Porto
do Presídio
Santa Leopoldina
séc. XIX
.
1
04
Ilustração 16
F
abricaç
ão de igarités
ou montaria
s
.
1
05
Ilustração 17
Vapor Colombo no Porto do Presídio Santa Leopoldina
1
06
Ilustração 18
.Ruínas da Oficina da Companhia de Navegação a Vapor.
1
07
Ilustração 19
Vapor
Araguaya
.
1
08
Ilustração 20
Batelão
movido a remo e
zinga
séc. XIX
.
1
08
Ilustração
21
Vapores
:
Mineiro, Colombo e Araguaya
.
1
11
Ilustração 22
Carregamento e no Porto
de Araguacema.
1
1
4
Ilustração 23
Utensílios domésticos: balança, copo de medidas, moinho, ferro de passar
roupa, panela de ferro, bule.
121
Ilustração 24
Panela de ferro,
candeeiro
, lamparina, fogão à lenha, abano, pilão e mão de
pilão e peneira.
121
Ilustração 25
Foto retratando o reaproveitamento de um batelão em festa religiosa
.
1
22
Ilustração 26
Colheita de ovos de tartaruga
1
28
Ilustração 27
P
rática híbrida
p
eixe no trisca
1
31
Ilustração 28
Fr
utas típicas regionais:
bacaba, muric
i
, buriti e pequi.
1
34
11
R E S U M O
A presente dissertação trata de um estudo de caso sobre o processo de hibridez nas cidades
ribeirinhas do Araguaia, ocorrido com as políticas de povoamento e navegação a vapor do século
XIX. O objetivo principal foi mostrar como se processou a hibridez cultural e como a identidade foi
sendo construída, com o desenvolvimento das políticas fundiárias, defesa e comercialização
agrícola ao longo do rio e de seus afluentes. Ao longo do trabalho, verificou-se a multiplicidade, a
diversidade e a complexidade que marcaram a evolução temporal do espaço rio, como via de
integração, trabalho e entretenimento, ressaltando o seu poder de provocar a coesão social, além
de fazer papel mediador entre estados. A pesquisa buscou suporte em uma gama de fontes
documentais primárias e secundárias: cartas régias, memórias, ofícios, atos, relatórios oficiais,
fotografias, mapas, entrevistas, livros de renomados escritores, cuja finalidade foi compreender os
mecanismos que geraram a hibridez cultural nos sertões do Araguaia. A primeira parte descreve o
rio como um espaço que provoca, no imaginário humano, o desejo de conhecer seus mistérios.
Mostra a política de povoamento adotada pelos governantes, que teve como propósito, auxiliar o
incremento da navegação. Analisa a forma de implantação dos presídios militares, e sua influencia
sobre a navegação a vapor, como agente indutor de profundas alterações nas estruturas sociais até
então existentes (os aldeamentos). Na segunda parte, foi apresentado o processo de implantação
da navegação a vapor, em meados do século XIX, para o desenvolvimento do comércio e as
práticas culturais do ribeirinho.
Palavras-chaves: Hibridez. Fronteiras. Identidade. Presídios. Navegação
12
A B S T R A C T
The present dissertation refers to a study case about the process of hibridez in the riverside
cities of the Araguaia River, occurred with the politics of settlement and steam-navigation on the 19
th
century. The main objective was showing how the cultural hibridez has prosecuted and how the
identity was built, in the context of with the development, the defense and the agricultural marketing
of the agrarian politics, along the river and his tributaries. Along the work, was observed the
multiplicity, the diversity and the complexity that has marked the temporal evolution of the river
space, like the integration way, work and entertainment, emphasizing his power of stimulating the
social cohesion, besides to act as a mediator among states. The research looked for support in a
scale of primary and secondary documentary sources: royal letters, memories, trades, acts, official
reports, photographies, maps, interviews, books of renowned writers, whose finality understood the
mechanisms that produced the cultural hibridez in the remote interior of the Araguaia. The first part
describes the river like a space that stimulates, in the human imaginary, the wish of knowing his
mysteries. It shows the politics of settlement adopted by the governments, which have had like
purpose, to help the growth of the navigation. It analyses the form of the implantation of the military
prisons, and his influence on the steam-navigation, like inducing agent of deep alterations the social
structures existents up till now. (the aldeamentos). In the second part, was presented the process of
introduction of the steam-navigation, in the middle of the 19
th
century, for the development of the
commerce and the cultural ribeirinho practices.
Key Words: Hibridez. Frontiers. Identity. Prisons. Navigation
13
I NT RO D U Ç ÃO
A viagem empreendida no tempo e no espaço tem como elemento norteador a
ocupação do ambiente rio Araguaia através do desenvolvimento da navegação a vapor, advindo no
final do século XIX. Período em que a manutenção da integridade territorial e o equilíbrio das
relações entre o poder central e o poder local eram de capital importância para a centralização
monárquica. A navegação a vapor dos rios brasileiros tinha como propósito prioritário a viabilização
do comércio de produtos nativos e importados de ponta a ponta na imensidão desse país chamado
Brasil. Em vista disso, o principal objetivo deste trabalho é compreender como ocorreu o processo
de hibridez cultural no sertão do Araguaia, e a afirmação da identidade ou as identidades dos povos
ribeirinhos, numa região de fronteiras.
Para dar conta desse universo, foram utilizados conceitos adquiridos durante o curso de
mestrado. Para tanto, destaquei aqueles de relevância estratégica para a interpretação das idéias
transmitidas tais como hibridez cultural, cultura, identidade e diferença, fronteira, tradição, espaço,
lugar, sertão. Nesse sentido, a pesquisa perpassa por pesquisadores que discorreram a respeito de
conceitos concernentes a questões intrínsecas ao referido diálogo reflexivo. Tais pesquisadores
aprofundaram seus conhecimentos em conceitos como Hibridez cultural (Canclini: 2000), Cultura
(Bhabha: 2003); Identidade e diferença (Silva: 2000), Fronteiras (Martin: 1998; Rocha: 2008),
tradição (Hobsbawm: 1984); Espaço e lugar (Certeau: 1990); Rio, águas (Bachelard:1997).
O livro de Canclini (2000) é um importante estudo sobre a questão da modernização
nos países da América Latina, pois leva em conta a complexidade cultural, a multiplicidade de
lógicas de desenvolvimento num continente heterogêneo. Em Culturas híbridas, o estudioso
argentino Nestor Garcia Canclini propõe ao leitor um interessante caminho de reflexão sobre o
fenômeno que ele denomina hibridez cultural nos países latino-americanos.
A construção lingüística (Bakhtin; Bhabha) e a social (Friedman;
Hall; Papastergiadis) do conceito de hibridação serviu para sair
14
dos discursos biológicos e essencialistas da identidade, da
autenticidade e da pureza cultural. [...] Os poucos fragmentos
escritos de uma história das hibridações puseram em evidência a
produtividade e o poder inovador de muitas misturas interculturais
(Canclini: 2000:xxii)
.
Em busca de um referencial teórico-metodológico adequado a esta pesquisa a partir da
perspectiva dos Estudos Culturais fez-se necessário recorrer às obras de Stuart Hall (2001);
Zygmund Baumam (2005) e do pesquisador Tomaz Tadeu da Silva (2000). Os três ensaios que
compõem o livro de Silva (2000) buscam de diferentes maneiras traçarem os contornos da questão
da problematização da identidade e da diferença. Para Bauman (2005) a questão da identidade não
pode mais ser tratada pelos instrumentos tradicionais de entendimento. Faz-se necessário
desenvolver uma reflexão mais adaptada à dinâmica do transitório, que se impõem sobre o perene.
Para falar do processo de hibridez no Araguaia recorremos às obras de vários
estudiosos regionais, com a pretensão de cruzar informações das fontes documentais sobre a
cultura da gente ribeirinha, manifestada através das tradições, crenças, mitos, lendas e práticas
alimentares. Recorremos aos registros de Rocha (1998); Rosa Cavalcante (1999); Magalhães
(Viagem ao Araguaia; 1957 e o Selvagem; 1975); Alencastre (1863); a pesquisa de Doles (1973);
Oliveira (2008); Gandara (2008) e outros. Embora as referidas obras não tratem dessa temática em
questão são fontes de pesquisas importantes para a análise de processos híbridos.
O livro de Dalísia Doles (1973), As Comunicações Fluviais pelo Tocantins e Araguaia
no século XIX retrata a navegação dos rios Araguaia e Tocantins como meios de comunicação,
desde o século XIX. A pesquisa mostra, numa visão geral, as poucas conquistas e as inúmeras
dificuldades enfrentadas pelos dirigentes políticos com o processo de implantação da Companhia de
Navegação a Vapor, ressaltando a sua importância na marcha da penetração, povoamento e
colonização ocorridos no centro-norte brasileiro. Ao fazê-lo nos revela os esforços despendidos
pelos dirigentes administrativos do séc. XIX para se estabelecer uma ligação entre o interior e o
litoral norte do país.
O Livro de Rocha, O Estado e os índios: Goiás 1850-1889 situa a Província de Goiás
no contexto histórico nacional e faz uma análise do processo de ocupação pelos colonizadores e
pelos índios. Mostra a ideologia e as bases legais sobre as quais se assentou o império para tratar
da questão indígena e dedica um capítulo para falar das questões da navegação fluvial pelos
15
Araguaia e Tocantins, analisada em sua articulação com as frentes de expansão e com a política de
estabelecimento de presídios militares e aldeamentos em Goiás.
Em O Selvagem (1975), e Viagem ao Araguaia (1957) o General Couto de Magalhães
(século XIX), narra com maestria o que ele observou entre costumes e instituições dos índios do
Araguaia e as difíceis questões da lingüística indígena. São obras que serviram como contribuições
reais ao entendimento dos estudos sicos e sociais da hibridez cultural ocorridas nas margens do
Rio Araguaia no século XIX.
Além destas obras utilizou-se várias fontes primárias: relatórios presidenciais, Cartas
Régias, Atos administrativos, correspondências oficiais, mapas, fotografias, jornais e entrevistas
com os moradores ribeirinhos, para melhor compreender as mudanças conjunturais. Através dos
documentos oficiais mapeou-se a área em estudo, proposta que levou em consideração a
paisagem, a apreensão do espaço e demais elementos intangíveis de modo a assegurar a interação
entre os atores e o meio ambiente. Considerando as relações entre: paisagem, práticas culturais,
identidade e diferenças e conflitos socioespaciais, a leitura desse cenário foi feita através da reunião
de informações primárias e secundárias que caracterizaram as especificidades do rio Araguaia, no
século XIX. A investigação foi realizada, a partir do levantamento e da análise das práticas culturais
que existiram de forma separada e combinaram-se pra gerar novas estruturas, objetos e práticas
culturais ocorridas no final do século XIX e início do século XX.
Sustentamos que o objeto do estudo o é a hibridez em si, e sim os processos de
hibridações ocorridos com a navegação a vapor para gerar identidades específicas. É nessa
perspectiva de fusão de culturas distintas que o conceito de hibridismo adquire um lugar de maior
importância neste trabalho. Porém, Canclini (2003: XXIII) alerta sobre esse conceito e afirma que ao
falar de fusão não se deve descuidar do que resiste ou se cinde. Ainda segundo Canclini (2003:
XXIII).
A teoria da hibridação tem que levar em conta os movimentos que
a rejeitam. Não provêm somente dos fundamentalismos que se
opõem ao sincretismo religioso e à mestiçagem intercultural.
Visando entender como se produzem as hibridações, investigou-se as práticas
simbólicas de navegantes e ribeirinhos contidas nas tradições, no folclore, nos saberes, nas línguas
e em outros aspectos e manifestações, transmitidos oral ou gestualmente, recriados coletivamente e
entrecruzados ao longo do tempo. Embasada em Certeau (1990) procurou-se conhecer as
16
dinâmicas da vida social dos ribeirinhos às quais constituem referências de identidade para a
população ribeirinha local. Essas referências são elementos de valores culturais locais.
Foram analisadas as fronteiras simbólicas entre culturas, fazendo distinções entre as
visões de dentro de uma dada cultura e as visões de fora (o índio e o sertanejo). Funções estas
que, segundo Peter Burke (2005:152), nas visões de fora “muitas vezes as fronteiras parecem ser
objetivas e até mesmo mapeáveis e precisam ser suplementadas por outra, de dentro, destacando a
experiência de cruzar as fronteiras...”.
Portanto, foi diante desta lógica, que se fez necessário analisar numa abordagem
sociocultural os processos de hibridez obtidos nos cruzamentos das culturas locais das povoações
de Itacaiú (MT), Santa Leopoldina (Aruanã - GO), Santa Maria (Araguacema - TO), São João do
Araguaia (PA) tendo em vista, esta ser a rota mais regular da época. Foi nesse espaço fronteiriço,
entre moléstias, descasos político-administrativos e fragilidade econômica que a formação histórica
dos povos ribeirinhos foi se construindo e reconstruindo, numa íntima relação identidade/fronteira.
A lentidão de determinados processos de mudanças estruturais
1
ocorridos nos rincões
do Araguaia no século XIX, nos levaram a optar pelo tempo longo. Diz Braudel, “através da longa
duração se pode observar o modo como os movimentos se entralação, a sua interação e ruptura”
(1986: 35).
O trabalho está dividido em duas partes. A primeira, RIO ARAGUAIA: ESPAÇO DE
MUITAS VOZES, subdivide-se em três capítulos: 1.1 A voz desentoada de uma
catástrofe incontrolável e o poder das águas”; 1.2 “A formação das cidades
ribeirinhas os presídios militares de Santa Leopoldina e de Santa Maria”; e
1.3 “Nas trilhas da imaginação”. A primeira parte analisa a multiplicidade, a diversidade e
complexidade que marcam todos os tempos do espaço rio; a importância da água do rio como
elemento necessário à sobrevivência dos seres vivos. O trabalho mostra que o rio tem o poder de
provocar a coesão social e faz papel mediador entre Estados. Como fronteira natural, ele define
culturalmente os referidos espaços territoriais. Ele é um espaço social que tem história.
1
Para Braudel a estrutura, boa ou má, é a que domina os problemas de longa duração. Os
observadores do social entendem por estrutura uma organização, uma coerência, relação
suficientemente fixa entre realidades e massas sociais. Para nós historiadores, uma estrutura é,
indubitavelmente, um agrupamento, uma arquitetura, que o tempo demora imenso a desgastar e a
transportar (BRAUDEL; 1986: 14).
17
O primeiro capítulo retrata um fenômeno natural que inundou e abalizou a história de vida
dos ribeirinhos do Araguaia.
O segundo capítulo A formação das cidades ribeirinhas os presídios militares de
Santa Leopoldina e de Santa Maria - mostra como ocorreram as conquistas de ocupação do
espaço às margens do médio Araguaia, no período imperial. Discorre especificamente sobre a
formação das cidades que foram erigidas a partir da fundação de fortificações militares ou presídios,
também denominados de colônias militares de povoamento, defesa e especialização agrícola. Esta
política de povoamento não foi um acontecimento histórico isolado da conjuntura brasileira. Foi
marcado por fatores históricos internos e externos que aconteciam no Brasil e em outras
metrópoles. Deste modo fez-se necessário uma breve explanação sobre a formação territorial
brasileira e suas dificuldades para o estabelecimento de formas de identidade. A forma dispersa de
povoamento levou o Estado a assumir configurações mais centralizadas, como no Império, ou
descentralizadas, como na Colônia. Destarte, as características destes empreendimentos diferem
das povoações nascidas espontaneamente.
O segundo capítulo narra ainda, os conflitos inter-étnicos, as dificuldades encontradas
pelos colonizadores para a efetivação do processo de povoamento e a resistência dos índios ao
avanço desta política. Mostra bem um cenário de relação conflituosa de poder. Demonstra a grande
obstinação e coragem dos índios guerreiros, que motivados pela vingança, organizam-se num ritual
de combate em defesa daquele território.
O terceiro capítulo - Nas trilhas da imaginação - apresenta o rio como um espaço de
fluidez de idéias culturais para os contadores de causos, mitos e lendas. É um capítulo rico de
históricas culturais que fervilha o imaginário dos ribeirinhos do Araguaia, seja ele índio, negro ou
branco. Apresenta a lenda de Aruanã, a lenda dos martírios, o mito da lagoa Paraupava (rio
Araguaia), a lenda das três pedras colocadas na igrejinha de Araguacema – TO e muitos outros que
enriquecem a cultura dos povos ribeiros. Verdadeiros patrimônios intangíveis.
A segunda parte A NAVEGAÇÃO ROMPE FRONTEIRA NAS ÁGUAS DO ARAGUAIA está
dividido em três capítulos: 2.1 “A hibridez nas embarcações; 2.2 “A espera na beira do rio e o
apito dos motores”; 2.3 “As práticas alimentares nos baixios do Araguaia – patrimônio
18
simbólico”. A segunda parte trata do processo de implantação da navegação a vapor pelo Rio
Araguaia e as dificuldades encontradas para a efetivação da Companhia de Navegação a Vapor. Na
década de 1860 a navegação a vapor foi finalmente efetivada. Fruto desses empreendedorismos, o
sistema de circulação de informações deixou de ser tão precário. O comércio fluvial influenciou
positivamente na vida dos moradores não só de Santa Maria, mas de todos os povoados situados à
margem do vale Araguaiano. Houve desenvolvimento econômico nos presídios de Itacaiú,
Chambioás, Santa Rita, São José dos Martírios (fundados posteriormente), Leopoldina e Santa
Maria. Os sistemas culturais diferentes se inter-relacionaram e interagiram com o desenvolvimento
da navegação. Apresenta as fases em que se desenvolveram a Companhia de Navegação e seu
posterior declínio. A Navegação foi o elemento de comunicação entre as populações ribeirinhas.
Representou, por um longo período, um meio de vida para o sertanejo, sendo fundamental ao
abastecimento de bens necessários à região como, sal, ferramentas, pólvora, utensílios domésticos,
tecidos, couros de gado, meios de sola, peles de animais silvestres, fumo, algodão, cachaça,
tapioca, rapadura, e outros.
O primeiro capítulo - A hibridez nas embarcações - apresenta as embarcações híbridas
que trafegaram pelo Araguaia e os fatores que contribuíram para esse processo dinâmico da cultura
local.
O segundo capítulo - A espera na beira do rio e o apito dos motores - mostra que a
navegação promoveu além da hibridez, a tradição. A tradição dos ribeirinhos de ir à beira do rio
esperar as embarcações com a expectativa de ver o que elas traziam ou levavam. Apresenta
práticas culturais distintas provocadas pela navegação do século XIX e continuada no século XX
com a navegação a motor.
O terceiro capítulo - As práticas alimentares nos baixios do Araguaia patrimônio
simbólico - apresenta as práticas alimentares desta região através da caça e da pesca como
exercício de vivência. Mostra como o homem sertanejo, o negro, o índio e viajante do século XIX e
início do XX praticava esta arte. Relata a troca de conhecimentos nas práticas das caçadas, entre
comunidades distantes num processo de hibridez cultural. Apresenta práticas culturais específicas
dos ribeirinhos que servem de referências culturais e que devem ser preservadas como patrimônio
intangível, nos espaços de fronteiras e de conquistas que fundamentaram as cidades ribeirinhas do
Araguaia.
19
I PA RT E
1 R I O A R A G U A I A : E S P A Ç O D E M U I T A S V O Z E S
Canoa e mais canoa chegando cheia de gente, bregueços,
badulaques de mudaas, trouxas, sacos de mantimentos, jacá,
cabaças, bacias velhas com plantações de cebolinha, hortelã, arruda,
cachorro, gatos, galinhas, papagaios, tudo sendo carregado pelo rio
para o enxuto, vindo de baixo [...] (MELO; 2005: 68).
Ilustração
1
- Vista parcial do cotidiano dos ribeirinhos do Araguaia, 2007.
Fonte: CARVALHO; 2007.
20
As práticas do espaço tecem as condições determinantes da vida social de um lugar
praticado, por isso, falar de um rio é falar de um espaço social bastante complexo. É falar do
símbolo universal da vida – a água. Bachelard (1978) define a água como linguagem fluida. “A água
é o sangue da Terra. A vida da Terra. É a água que vai arrastar toda a paisagem para seu próprio
destino” (BACHELARD, 1978:65).
Entender o rio Araguaia como espaço capaz de produzir ões sociais, onde se acumulam
vestígios culturais, requer o entendimento do conceito de espaço. Como materialização do
processo histórico, Certeau (2000:175) analisa a relação do homem com o espaço, a queso da
identidade e da coletividade. Compreende que o espaço é um cruzamento de veis; é um lugar
praticado.
O rio Araguaia é um capital natural, rico de representações culturais. Com diferentes
significados, suas águas podem representar para visitantes e poetas, símbolo de beleza, prazer,
encantamento, mistério, mensagens, paisagem. Mas ele representa muito mais às populações
ribeirinhas. Ele brota da terra, alimenta e gera vida. Neste universo imaginário Bachelard (1978:7)
define o elemento água “Um ser total: tem corpo, alma, voz, a água como realidade poética
completa”. Inicialmente apresenta-nos a água como espelho Narciso, apelando para a
naturalização da nossa imagem. Uma lenda do humano, do cosmo e das flores (o pancalismo
2
)
revela-nos o mundo como representações e como vontade vontade de contemplar. A água como
olho do mundo, água que vê e sonha.
Bachelard (1997:7) nos convida a compreender as categorias contrastantes das forças
imagiveis da nossa mente – o impulso da novidade e o impulso ao primitivo e eterno. Feminino e mais
uniforme que o fogo, elemento constante que simboliza as forças humanas mais escondidas, simples,
simplificadas. Lembrando desta sorte, certo descaso inconsciente para com o elemento, lembra o
filósofo, a água aparece como elemento transitório, como uma metamorfose ontológica e essencial entre
o fogo e a terra, participando de uma espécie de destino de queda, de morte cotidiana, de sofrimento
infinito. As imagens da água vividas como em uma adesão irracional.
2
Pancalismo – doutrina que admite o belo como valor supremo, do qual dependem todos os outros.
21
Gandara (1991:1789) afirma que os rios são construtores de mundo sociais e acumulam uma
boa quantidade de representações. Diz que é o Lugar onde as pessoas se abrem aos mistérios da
natureza, ao patrimônio simbólico, possibilitando a interpretação, como terreno da criação cultural,
passagem de forças e encontro dos indivíduos. Tentando mostrar que o rio acumula uma boa
quantidade de representações, sentiu a necessidade de abordar o questionamento do escritor alemão
Hermann Hesse, descrito no romance Siddharta (1922), que trata basicamente da busca pela
plenitude espiritual:
O rio tem muitas vozes, um sem número de vozes: não é, meu amigo? Não te parece
que ele tem a voz de um rei e a de um guerreiro, a voz de um touro e a de ave noturna,
a voz de uma parturiente e de um homem que suspira, e inúmeras outras ainda? (Apud
GANDARA, 1991:1789).
Realmente, o rio tem muitas vozes. O rio não tem a voz de um touro como tem a força e
o poder. O poder de se relacionar com outros elementos. Com sua voz de guerreiro, suspirando, o
rio Araguaia pede socorro a todos que o conhecem e o admiram. Ele pede socorro aos dirigentes,
aos usuários para que promovam ações de combate ao tráfego das espécies locais. Solicita que
sejam promovidas ações voltadas para a prática de um manejo sustentável da natureza, visando à
conservação das espécies ameaçadas e para aquelas que têm potencial econômico. Ele pede para
desenvolver e estimular procedimentos voltados à proteção das espécies que dão vida à paisagem
3
.
Para efetuar atividades de monitoramento, para identificar a natureza de melhoramentos
particulares, necessário para reduzir o impacto de forças externas. O rio tem resiliência, tem o poder
de se regenerar diante dos distúrbios ou impactos externos (stress). O rio é um elemento renovável.
Suas águas têm vida, porém, toda vida tem seu tempo, não são eternas. Como diz Kant (2005:80)
“isso porque não é o tempo que muda, apenas muda algo que está no tempo”. Sendo rompida
sua resiliência, o rio pode não se regenerar e, mais rápido, perder sua vida. A falta de água com
qualidade para consumo humano, em várias regiões do Planeta, deve ser o principal problema
ambiental deste novo milênio.
A alma do rio Araguaia sangra e sua voz ecoa em todas as suas margens assoreadas. Sua
degradação põe em risco a sobrevivência das espécies, não aquáticas como também terrestres.
3
CARNEIRO (2002: 143) define “paisagem” como a configuração espacial formada por objetos e atributos físicos, naturais e artificiais, e resultantes do
processo histórico da relação do homem com a natureza, onde atuam outros componentes de ordem social, econômica, psicológica e cultural, sujeitos
às mudanças. É também um processo interativo, no qual atuam todos os sentidos e o observador também é participante. Por estar no campo
multidisciplinar, a paisagem pode assumir conceitos que priorizam determinados aspectos e, na verdade, são complementares. Os elementos naturais
da paisagem são: relevo, água, vegetação, o homem, os animais e os elementos artificiais, como as estruturas espaciais criadas por diferentes tipos de
uso ou construções diversas de caráter pontual, linear ou superficial. (CARNEIRO, Ana Rita de Sá. Gestão do Patrimônio Cultural Integrado / Jukka
Jokilehto... et al.; apresentação e organização Silvio Mendes Zancheti / UFPE / CECI – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002).
22
Os rios são de grande importância para a vida nos mais variados ecossistemas. Com sua voz de
ave noturna, ele pede ajuda ao firmamento ao Sol, à Lua e às estrelas para continuar dando
vida e emanando beleza, alegria, seja ao amanhecer ou ao final da tarde.
O rio Araguaia carrega consigo muitas histórias. Ele foi o principal caminho. História dos
bandeirantes que saíram de São Paulo e de Belém e servindo-se de seu fluxo efetivavam a captura
de índios. Histórias dos missionários que rompiam fronteiras para catequizar os povos indígenas do
Araguaia. História dos viajantes, navegantes e comerciantes que enfrentavam diversas intempéries
para comercializar seus produtos com outras praças.
O Sr. Raimundo de Melo
4
, conhecido pelo Araguaia por Raimundo Chofer, ativamente
trabalhou na navegação do Araguaia em barcos a motor (1950-70). Comerciante do Araguaia, o Sr.
Raimundo conta com presteza que, para comercializar os produtos com outras praças, enfrentava
diversas dificuldades, juntamente com seus parceiros e amigos. Dentre as dificuldades cotidianas
havia também sérios acidentes. Conta que certa vez ocorreu um acidente com o barco do Sr.
Olaviano.
Uma moça de 14 anos agrudou (agarrou) na prancha, desceu três pancadona, foi sair lá no
remanso onde o boto preto e branco. Botão que passa lá. Eles passam naquela
escumona. Ela foi parar lá. Foram pegar ela lá. o barco foi descendo e pegaram ela lá.
Não teve nada. Isso é que é Deus. E o Olaviano passou tão perto da pedra, no fundo,
bateu a ponta do leme e a canoa quebrou, jogou a retilínea, segurou com a mão e
puxou o barco (Raimundo Chofer, 2008).
Histórias dos povos indígenas que no passado habitaram as margens do Araguaia. História do
nascimento de suas cidades. Ele promoveu o nascimento de várias cidades, tais como: Alto Araguaia,
Santa Rita do Araguaia, Baliza, Torixoréu, Barra do Garças, Aragarças, Britânia, Aruanã (antigo
Presídio de Santa Leopoldina), Itacaiú, Cocalinho, Bandeirantes, Luiz Alves, o Félix do Araguaia,
Posto Santa Isabel, Missão Fontoura, Mato Verde, Santa Terezinha, Furo da Pedra, Lago Grande,
Barreira de Santana, Barreira do Campo, Araguacema, Couto de Magalhães, Xambioá, Conceição do
Araguaia, Luciara, Caseara, Pau D’Arco, São Geraldo do Araguaia e Araguatins. E, em cada uma
delas, tem seus narradores que carregam consigo lembranças.
4
MELO, Raimundo Cardoso de. Foi marítimo, motorista de máquina barco motor diesel, chefe de máquina. Dedicou sua vida à navegação do
Araguaia, natural de Belém do Pará, mudou-se para Marabá com dois anos de idade. Começou a profissão de motorista de barco aos 22 anos no
barco Índio do Brasil. Aos 32 anos, comprou o referido barco e passou a trabalhar como autônomo. Foi proprietário de 18 barcos. Pilotou os barcos
Índio do Brasil, Dodozinho, Dodozão, Rolador, Luciara, Espírito Santo, Celso, Rani, Ricardo de Melo, Praieiro, Caiapó, Goiano e, por último, o barco
RX do Araguaia (pequena embarcação). Entrevista realizada em Brasília, em 15 fevereiro de 2008.
23
Histórias das cidades que nasceram com a implantação de presídios militares,
entendendo que este rio era um canal de comunicação por excelência. Histórias das populações
que têm relações íntimas e cotidianas com ele; das mulheres ribeirinhas, das lavadeiras, dos
homens e das mulheres pescadoras que retiram dele o alimento para seus filhos. Histórias de
entendimentos e desentendimentos entre povos de culturas antagônicas.
Ilustração 2
Trabalho de adaptação do tr
açado do rio Araguaia, apresentando cidades
ribeirinhas surgidas ao longo do rio Araguaia: Aruanã (GO), Araguacema (TO), Couto de
Magalhães (TO) e Conceição do Araguaia (PA). Adaptado pela arquiteta Ana Flávia Lucena, 2008,
a partir do traçado original pub
licado pelo Ministério dos Transportes e atualizado em 2008.
1
2
3
4
24
O rio Araguaia tem sua própria história, a história de sua vida, que pode ser falada ou
cantada. Tem a história da origem de seu nome. Os índios Karajás, seus mais tradicionais usuários,
agradecidos pela sua bondade o denominaram de “Berohokã”, que quer dizer ‘rio grande’. Araguaia
significa ‘rio das araras’ ou ‘papagaio manso’.
O rio Araguaia tem orgulho de ser tipicamente brasileiro, nasce na chapada das Emas, na
serra do Caiapó, na confluência dos estados de Goiás, Mato Grosso do Sul e, atravessando terras,
irrigando, dando vida e morte, escorre para a planície para encontrar outro majestoso e soberano
rio: o Tocantins. Formando uma grande rede da região Centro-Oeste ao Norte do País passa por
regiões de clima equatorial quente e úmido, e semiúmido. Possui uma extensão de 2.115km, com
uma extensão navegável de 1.818km e profundidade mínima de 1.0m, 0.9m, 0.8m respectivamente.
Corre quase paralelamente ao rio Tocantins.
No seu percurso, abre seus braços de guerreiro para envolver a maior ilha fluvial do mundo,
a ilha do Bananal. Esta ilha recebeu seu primeiro nome de ilha de Sant’Ana e possui 20 mil
quilômetros quadrados. Os índios Javaés a denominaram de Camonaré. Melo afirma poeticamente
que
O Araguaia não encontrou leito definitivo ainda, no seu curso médio, uma vez que
busca desesperadamente, ano após anos, nas suas margens arenosas sua eterna
morada. Ele procura há milênios essa morada, para seu pouso e sua caminhada
ininterrupta; um trilheiro mais cômodo, onde possa afundar um pouco a estrada, como
rastro de carro de boi, ou a trilha que leva à fonte. Envaidecido investe contra barrancos
de suas margens, ora de um lado, ora de outro, na incansável busca de um caminho
único onde possa o navegante conhecer tintim por tintim, as pedras, tocos, galhadas,
garranchos, jaibaras, estirões, remansos, gorgulhos, barreiras, praias, alcantilados,
furos, corredeiras, travessões e cachoeiras, sem o perigo de mudar uma ponta de toco,
um emburrado que faz alagar as embarcações sem a ordem severa do inconfundível
banzeiro, companheiro dileto das horas de ventania e inseparável nas cachoeiras
(MELO, 2005: 37-38).
Ilustração
3
Ribeirinhos pescadores no Araguaia.
Fonte: DUARTE, 1960 e CARVALHO, 2008.
25
O rio é fonte de vida. O rio Araguaia tem prazer em servir, em oferecer suas riquezas que
guarda no seu corpo. Com sua bondade, oferece aos que o procuram uma rica quantidade e
variados tipos de animais aquáticos. Atrai pescadores do País inteiro e de vários lugares do mundo.
No seu fluxo ele abriga variados tipos de peixes, tais como: o barbado, a corvina, o tucunaré, o
mandi, o pacu, o caril e outros animais que povoam suas águas, alguns em extinção, como o
pintado e o pirarucu. As arraias não são raras no fundo do rio arenoso. “onde jazem imóveis e como
Ilustração
4
– Mapa hidrográfico.
Fonte: Secretaria Executiva do Ministério dos Transportes. www.transportes.gov.br.
Atualizado
em setembro de 2008.
26
que pregadas, até que o movimento da água produzido pelas canoas as assuste, fazendo-as saltar
subitamente, num só impulso automático, retilíneo e silencioso” Henri Coudreau
5
(1980:72).
Em meio à rica variedade de espécies de aves locais e migratórias, bandos de garças,
marrecos, mergulhões, sabiás, azulões, uirapurus sobrevoam o céu imensamente azul. Também é
possível apreciar tartarugas, capivaras, aves exóticas, como o gigantesco tuiuiú. Os macacos,
saltando de galho em galho, vão chamando a atenção de todos que trafegam por seu fluxo. Nessa
dança selvática tentam mostrar que, para viver, necessitam daquelas águas, do clima e das árvores
que lhe dão variados frutos. Passeando por seu leito ainda é possível avistar a rica fauna ribeirinha
formada por aves de rios portes e plumagens, como também, apreciar o belo pôr-do-sol. As
gaivotas sobrevoando este cenário paradisíaco são os verdadeiros complementos dessa paisagem
naturalmente construída pela força divina.
No período chuvoso, de novembro a maio, suas águas vão invadindo as margens
assoreadas para dar vida à vegetação ribeirinha. Nesse processo, o formoso guerreiro se espalha,
regenerando rios, lagos, córregos e, agindo como uma parturiente, vai dando vida aos jacarés,
tartarugas, tracajás e peixes que servem de alimento aos povos ribeirinhos.
Como num passe de mágica, suas águas baixam entre os meses de junho a outubro. Nas
barrancas, as plantas desafogadas, rejuvenescidas e agradecidas, brotam seus vigorosos frutos.
Frutos estes que alimentam tanto os animais aquáticos, quanto os terrestres. Neste período,
revelam-se em suas margens, exuberantes praias largas, extensas e de areias finas e brancas.
Sobre elas abrigam e passeiam dóceis animais, como a tartaruga, os tracajás e outros. A população
nativa e os turistas aproveitam para fazer deste lugar um espaço de passatempo. Suas praias
simbolizam o lazer. Suas águas servem de entretenimento.
O rio Araguaia é fronteira. Serve também como divisor natural entre quatro estados: Mato
Grosso, Goiás, Tocantins e Pará. As fronteiras representam muito mais do que uma mera divisão e
unificação dos pontos diversos. E, como fronteira natural, define culturalmente os referidos espaços
territoriais através das aplicações de leis e de regulamentos específicos e que se aplicam aos seus
5
Henri Coudreau (1980:72), viajante do século XIX, foi designado a promover investigações geográficas dos rios Araguaia e Tocantins no final do
século XIX. A viagem de missão foi decretada pelo governador do Estado do Pará, Sr. Pais de Carvalho, em 17 de julho de 1895. (COUDREAU;
1980:13).
27
habitantes. Ações estas, que tiveram início quando os lusitanos decidiram delimitar fronteiras para
defender e guardar o imenso território brasileiro, por eles descoberto e desbravado.
Nas divisões territoriais foi criada a Capitania de São Paulo. Esta Capitania abrangia a
posterior Capitania de Goiás. Quando a Capitania de Goiás foi desmembrada da de São Paulo, no
ano de 1740, deu-se início aos litígios entre Pará, Mato Grosso, Minas Gerais e Bahia, e assim
permaneceram até meados do século XIX. Ao se tratar de fronteira geográfica, esta era uma
necessidade político-administrativo. Em 16 de junho de 1761, D. Antonio Rollim de Moura
6
escreve
uma Carta a D. João Manoel de Melo na qual propõe a efetivação das fronteiras através dos cursos
do rio Araguaia. Ele afirma que não se pode delimitar fronteiras com segurança e com clareza, nos
sertões, por serem despovoados e incógnitos, destarte acredita que a melhor solução para a
delimitação das fronteiras seja pelos cumes das serras ou pelos leitos dos rios.
O fim para que se costumam e devem estabelecer os limites de quaisquer Províncias,
parece não ser outro, que o de saberem os povos aonde, ou a quem hão de recorrer,
nos casos contenciosos; e os ministros, até onde têm jurisdição, para exercerem: pois
contendo-se cada um no que lhe está determinado, se evitam consideráveis desordens [...].
Propõe que, para que esta divisão seja feita com acerto, é necessário utilizar o Rio Grande
ou Rio Cayapó, como era conhecido, [...] pois correndo, como corre, quase em direitura, de
sul a norte, desde as terras em que habita o gentio Caya, até a cidade do Go Pará, e a
divisa que se quer para as duas Capitanias, que eso diretamente de Leste a Oeste
(Revista do Arquivo Hist. Estadual,1982: 54).
O rio Araguaia tem um papel mediador. Como elemento útil ele promove a coesão de vários
grupos sociais. Ele tem o poder de unir povos de diferentes culturas num processo de socialização e
de criar a solidariedade entre o de dentro e o de fora. O rio Araguaia é elemento de inspiração para
músicos e poetas. Borges afirma poeticamente que o rio Araguaia
vem das paisagens verdejantes, que tem o rio de água caudalosa, onde o pôr-do-sol é
cor-de-rosa e o céu de estrelas cintilantes (Cesário Borges, 2008).
Estes e outros fragmentos de sonetos, carregados de signos fazem viajar poetas e filósofos
que tentam compreender o universo imaginário das águas. Pois, como bem afirma Castoriadis
(1987:447), “desvendar o imaginário significa revelar o substrato simbólico das ações concretas dos
6
Trecho da Memória de D. Antonio Rollim de Moura a D. João Manoel de Melo escrita em – I Villa – Bella, 16 de junho de 1761, contido na Memória
a qual justifica os limites de Goyáz com os estados de Mato-Grosso, Minas Gerais, Pará e Bahia apresentada ao Congresso Brasileiro de
Geographia de Bello Horizonte pelos delegados Vice-Almirante José Carlos de Carvalho, Dr. Olegário Herculano da Silveira Pinto e Henrique Silva
(relator) Rio de Janeiro Typographia Leuzinger – 1920 (Revista do Arquivo Histórico Estadual; 1982: 54).
28
atores sociais, tanto no tempo como no meio ambiente vivido”. Isto é, a mediação essencial entre o
mundo interior e exterior, entre o real e o imaginário, supondo-se a utilização de símbolos, signos e
alegorias.
José Wilson Leite
7
também inspirado pelos seus mistérios, reconhecendo seus benefícios,
acredita na força e no poder do rio. Poeticamente dedicou sua vida para cantar sua história. Leite
(1953) soube revelar com grande sensibilidade poética e traduzir o sentimento de saudades que o
rio deixa no coração daqueles que o conhecem e o admiram. Afirma Rani Melo que “sua paixão por
este patrimônio natural (o Araguaia) era o fundamento primordial das músicas”. A outra grande
paixão de José Wilson era a educação e a cultura. Diz Rani: “Eu considero o Wilson, o maior
educador das plagas araguaianas; era um benemérito professor; tinha didática, era simples e culto”
(Rani Melo, 2008).
7
LEITE, José Wilson Pereira Leite nasceu em Conceição do Araguaia. Faleceu em 1983. Foi escritor, jornalista, poeta, músico, compositor, cantor e
fotógrafo, compôs inclusive o hino do Cinquentenário de Araguacema (1969). Escreveu “Meu Araguaia”, “Araguacema”, “Balada de quem esteve
ausente” arranjo Rani Martins de Melo. Foi diretor do Orfanato Educandário Nossa Senhora do Rosário, posteriormente denominado Educandário
Manuel Ataíde. O referido Educandário, posteriormente carinhosamente ficou sendo chamado de Nova Capi (apelido dado em homenagem à Capital
do Brasil – Brasília). José Wilson foi amigo de Pedro Ludovico, Emival Caiado, Leonino Caiado, Coimbra Bueno. Cantou a música “Meu Araguaia”, na
residência do Sr. Edson Maranhão Duarte (Dodô), para o presidente da República, Juscelino Kubitschek de Oliveira, em sua passagem por
Araguacema, em campanha política, no ano de 1955. Ele contribuiu no desbravamento do município de Araguacema (TO), época pertencia ao
Estado de Goiás) era o maior município do Brasil, perdia pra Altamira. “Meu Araguaia” e “Araguacema”, poema e sica do mesmo autor,
tornaram-se hinos da cidade de Araguacema.
Ilustração
5
- Vista panorâmica do pôr-do-sol do rio Araguaia.
Fonte: CARVALHO; 2008.
29
No poema “Meu Araguaia”, escrito e musicalizado em 23 de abril de 1953, Wilson Leite
traz na sua melodia o encantamento do rio. Leite soube revelar, com grande sensibilidade poética, a
importância do rio para os ribeirinhos; vê as águas como a solução para seus problemas. Pede para
que suas águas levem consigo todo o seu sofrimento, suas mágoas, cantando:
Meu Araguaia oh, quanta beleza,
Nas tuas praias de brancas areias
Nas noites tuas de luar banhadas
Aruanã dos Karajás nas aldeias.
Oh! Rio cheio de encanto,
Que banha a minha terra,
Todo o orgulho de minh’alma
Teu rolar garboso encerra.
Quero que no teu banzeiro
Vai meu sofrer, minha dor!
Meu Araguaia querido
Por ti eu morro de amor.
O canto alegre de tuas gaivotas
Suas manhãs, lindas, sempre lindas
N’alma da gente deixe uma saudade
No coração mil doçuras infindas.
Já não suporto aturar,
Um coração cheio de mágoa
Meu belo Rio Araguaia
Leva as... nas tuas águas.
(Wilson Leite, 1953).
O rio Araguaia foi o caminho. Era visto pelos dirigentes como os meios possíveis de fazer
aumentar e prosperar os negócios da Província de Goiás com a do Pará. Era a solução para os
problemas econômicos e financeiros. Era a estrada líquida, fluida.
Vanessa Brasil (2005), ao questionar o porquê de se escolher um rio para explicar os laços que
unem a sua hisria e o seu espaço, descobre que:
O fluir das águas interpela o humano e compõe com ele paisagens internas cujas
representações se exprimem das mais variadas maneiras: origem, morada, sustento,
caminho, interlocução, marco, regio, inspiração, regenerão, purificação, lazer,
passagem, vida, fim e morte (BRASIL; 2005:23).
O Araguaia é uma verdadeira obra de arte. O amanhecer deslumbra como num passe de
mágica. O entardecer é de rara beleza. O pôr-do-sol sobre suas águas emite mensagens. Seus
misrios provocam no imaginário humano inspirações poéticas. Conhecer seus mistérios é um
30
dos maiores desafios daqueles que se maravilham pelo seu brilho. Sem o rio tudo pode ser
diferente. Falta-se água, acaba-se a história das vidas existentes no planeta Terra.
1.1 A VOZ DESENTOADA DE UMA CATÁSTROFE INCONTROLÁVEL
E O PODER DAS ÁGUAS
As águas do Araguaia deixaram marcas na vida dos beradeiros que jamais serão apagadas
da memória. Foram as enchentes e cheias ocorridas no ano de 1826 e de 1980. Este fenômeno
natural inundou e abalizou a história de vida dos ribeirinhos do Araguaia.
O empresário Tom Lira, ribeiro de Araguacema, guardou na memória lembranças de um
tempo que se foi e que deixou marcas que trouxeram como consequência, a promoção da consciência
da importância da preservação do meio ambiente. Relembra uma das noites do ano de 1980 em que
mergulhou na natureza para apreciar a chuva que continuamente caía e, consequentemente,
contribuiu para provocar a enchente do Araguaia de 1980.
Assim ele conta:
Choveu a noite inteira em Araguacema. Não foi daqueles temporais que deixam a
preocupação de que muitas falias estejam tendo problemas, perdendo casas, veis,
roupas, vidas. Também o foi aquela garoa fina que a gente percebe se estiver fora de
casa ou se olhar pela janela. Foi aquela chuva gostosa, pesada, que faz barulho, que toca a
sica da inncia, dos saudosos, ou mesmo daqueles que, sozinhos, acordam durante a
noite ouvindo um som dos deuses, demonstrando a riqueza natural que possmos nesta
rego do Tocantins, que, mesmo sem análise cienfica, nos faz acreditar que a natureza é
perfeita, dando-nos, nesse momento, a única vontade de virar de lado, na cama, e continuar
dormindo ouvindo aquele som divino que a chuva em Araguacema tem. Parece que a os
sonhos ganham mais vida quando a gente adormece sob esse som! A melodia tocada,
incessantemente, durante toda esta noite, parecia embriagar. Eu estava deitado, aqui no meu
canto, eu a ouvia como se fossem harpas tocadas pelos anjos. Um ritmo cadenciado, água
escorrendo pelas telhas e pelas janelas, o som ecoando no chão de cascalho vermelho,
demonstrando que sua intensidade não era o pequena, mas tamm, o tinha qualquer
exagero. Ao fundo, uma espécie de goteira, pingos caindo repetida e cadenciadamente sobre
algum material de lata ou semelhante, fazendo-me lembrar o toque de uma sica citado em
31
um antigo escrito do meu iro Zuma. Eu espreitava, de vez em quando, atras da janela
do quarto dos fundos da casa de minha e toda senhora de si, majestosa e triunfante,
dominava a noite, escondia as estrelas, fazia brilhar as folhas das plantas do quintal que
daavam moderadamente, o balé por ela proposto. Os es, que frequentemente ladram ou
apenas uivam em algum lugar distante das ruas de Araguacema, silenciaram. Talvez
dormissem ou também apenas apreciavam a dona da noite. Amanheceu e os periquitos não
quebraram o som que se fizera presente por toda a madrugada. Curvaram-se ante a beleza
que emoldurara a noite. Um ou outro arriscou um leve aviso de que já era dia, mas calou-se
rapidamente no alto da mangueira do quintal. Quem dormiu a noite toda, talvez ao acordar,
olhando o dia fora, pensou: “Que dia feio, hoje!” Pom, se como eu, tivesse ficado
apreciando o requinte da noite, sentindo a paz que eu senti enquanto observava,
timidamente, o poder, a magia e o encantamento daquela que brilhou por tantas e tantas
horas naquela madrugada, certamente sentir-se-ia feliz ao acordar e observar ainda a sua
presença, purificando o ar, molhando a terra, o cascalho, lavando as plantas, serenando a
minha alma na beira do rio Araguaia.
Ao evocar o passado (enchente de 1980), o ribeiro Paulo Henrique também lembra que
foram pouco mais de quatro meses que mudaram toda a hisria das nossas vidas. O
bocado que em alguns casos cabia na palma da nossa o foi arrastado pelas águas e
pouco sobrou que o houvesse sido danificado. Ao abandonar as nossas residências,
fomos alojados em abrigos improvisados. Nas madrugadas frias daquele ano ouamos ruir,
uma a uma, as nossas casas. Por muito tempo se ouviu ecoar o som desentoado de uma
castrofe incontrovel. Uma tromba d’água que castigava a região o parava de cair e
deixava a situão ainda mais calamitosa. Nem sequer sabemos se na ocasião foi
declarado estado de calamidade pública e ou estado de emergência, o que na verdade não
faria para s grande diferença. O importante, é que naquele momento, nos tornamos “UM”
na solução de um problema que se tornou exclusivamente nosso. Ao amanhecer,
pevamos as nossas canoas e tal qual aconteceu com o naufrágio do “Titanic”, voltávamos
para ver o que havia acontecido e o fim que havia sido dado às nossas casas e coisas. A
geografia que outrora definia os contornos de nossa cidade aos poucos foi se esvaindo não
resistindo ao furor e à força das águas. A minha casa tamm o resistiu e, da mesma
forma, veio ao chão, assim como a grande maioria por onde as águas passaram.
Edificações hisricas também o resistiram e foram destruídas. Debaixo dos escombros
uma parte de s, a outra parte lamentava tudo o que se via e isso se refletia na alma e no
32
coração de cada um de s. Naquele momento gemíamos pelas dores de parto que nos
transladaria a um novo tempo. A radiografia atual denunciava num rastro de destruição
evidente que o tempo nos convidava a recomar. Mais do que reconstruir, fomos levados a
descobrir novos valores. As edificações por o possuírem uma base segura, ruíram sem
impor nenhuma resistência à foa das águas. O que mais me impressionava naquela
situão é que nada nos pareceu pesado demais. O tempo nos apontou novos caminhos e
nos apresentou um mundo novo. No trabalho de reedificação o tínhamos os mesmos
conceitos e ideais que outrora nortearam as nossas decisões. Ao reconstruirmos as nossas
casas já não nos contenvamos em permanecer no passado, assim, pouco a pouco, foi-se
trocando o velho pelo novo, e a felicidade, que para nós era tão simples e evidente, agora já
tinha nas coisas” um novo padrão. A partir de então “possuir”, passou a ser para nós um
novo verbo a ser conjugado. Quando as águas volveram ao seu leito normal a visão
cadarica das ruínas assustava, e o lamento visível no olhar de cada um incomodava e
aturdia as nossas emoções.Totalmente disforme, era impossível reconhecer aquilo que era
diante da visão atual das coisas.
Paulo Henrique afirma que aquela enchente de 1980
foi a grande responsável para que hoje, cada um des, dos cantos mais longínquos desse
país, construísse a nossa própria hisria e nos tornássemos o que somos hoje. A velha e
amada “Araguacemapor amor, nos expulsou de casa para que pussemos reagir coisas
que uma grande e pode fazer para ver progredirem os seus filhos. E aqui estamos
hoje pra contar cada um as nossas hisrias.
Os dois grandes transbordamentos do volume de águas que saíram do leito normal do rio,
no período de chuvas intensas e contínuas, ocorridos no ano de 1826 e de 1980 deixaram muitas
povoações e cidades ribeirinhas inundadas, construções desabadas, animais ilhados, plantações
destruídas, pessoas desalojadas, afogamentos e tantas outras consequências que provocaram
danos incalculáveis. Elas levaram consigo grande parte dos sonhos edificados pelos beradeiros,
mas deixaram na consciência de muitos, e de maneira profunda, a marca da união à natureza e da
identidade local.
33
1. 2 A FORMAÇÃO DAS CIDADES RIBEIRINHAS DO SERTÃO DO ARAGUAIA
Se quisermos compreender o cenário onde se fundamentou uma cidade, sua natureza
histórica, sua especificidade cultural; se quisermos identificá-la, devemos voltar na trilha do tempo.
Devemos conhecer o espaço e o lugar para melhor apreender a forma como foi edificada.
O rio Araguaia é uma estrada fluida natural e, por si só, constitui uma via de entrada para o
sertão. Na condição de caminho, o rio trouxe os primeiros colonizadores ao vasto sertão do
Araguaia. Suas margens eram bastante habitadas por vários povos que viviam agrupados em
aldeias, cujas habitações, cobertas de palha piaçava, transformavam a paisagem ribeirinha. Eram
os brasileiros das selvas denominados de Xavantes, Caiapós, Karajás, Javaés, Chambioás e
outros, cujo modo de vida ainda se apresenta rico de valores culturais. Povos identificados pelas
tradições, folclore, saberes, línguas, festas e diversos outros aspectos e manifestações. O então
presidente da província de Goyás, Antônio Manoel de Araújo e Mello ao passar a administração da
Província ao seu sucessor JoMartins Pereira de Alencastre, no dia 22 de abril de 1861 registrou
em relatório que
[...] aquelas paragens são habitadas, segundo sou informado, desde a ilha do Bananal até
muito abaixo de Santa Maria, por mais de dez mil índios da numerosa família Karajá, que
se subdivide com as denominações de Carajás, Carajahys, Javahés, Chambioás, e outros
(Trecho do Relatório do Dr. Antonio Manuel de Araújo e Mello, presidente da Província de
Goyás, de 22 de abril de 1861 (Arquivo Histórico do Museu das Bandeiras).
Fatores climáticos explicam a preferência de grupos indígenas pela imensidão do grande
sertão
8
do vale Araguaiano. Diz-se sertão em oposição ao litoral. Quando se pensa em sertão, logo
se imagina uma região deserta, isolada, seca, desprovida de beleza, lugar ermo. Mas, ao contrário,
o sertão do Araguaia é um sertão habitado. É um ambiente caracterizado por riquezas naturais e
culturais, onde muitos costumes antigos tornaram-se tradições. É o sertão ligado. Sertão que,
apesar de distante dos principais centros comerciais pois está situado no interior do Brasil faz
elo com o litoral pelo rio Araguaia. É o sertão de solo fértil, formado por uma verdejante paisagem,
8
Apesar de usualmente o termo sertão aparecer geralmente relacionado ao nordeste brasileiro seu significado refere-se a regiões afastadas do litoral brasileiro. Diferentes
significados que a palavra "sertão" assume no pensamento social brasileiro pode nos ajudar a entender os diversos caminhos na construção da nação. O dicionário
Houaiss define sero “1. região agreste, afastada dos cleos urbanos e das terras cultivadas; 2. terreno coberto de mato, afastado do litoral; 3. a terra e a
povoação do interior; o interior do país; 4. Regionalismo: Brasil. Toda região pouco povoada do interior, em especial, a zona mais seca que a caatinga, ligada ao ciclo do
gado e onde permanecem tradições e costumes antigos”. Ao conceituar o termo “sertão”, Oliveira (2008:33) afirma que “o sertão aceita todos os nomes, não existe apenas
um sertão, uma realidade, os sertões são múltiplos e múltiplas são suas interpretações”. Em Lima (1998: 57), também encontramos uma reflexão sobre o termo sertão.
Afirma que a redescoberta do sertão não pode ser compreendida sem que nos indaguemos sobre a presença do tema em momentos anteriores. “A palavra seria oriunda de
desertão e seu sentido encontra-se, segundo dicionários do século XVIII e XIX, em uma dupla ideia – a espacial de interior e a social de deserto, região despovoada”. Para
Lima a palavra sertão é carregada de valores simbólicos. Sertão enquanto modo de vida. Nísia Trindade Lima (1998:67), afirma que o “sertão, povoamento, civilização,
integração à nacionalidade constituem termos recorrentes em diferentes documentos das três primeiras décadas do século XX”. O seu livro Um Sertão chamado Brasil
contribui para um conhecimento profundo do significado da palavra “sertão”. A construção simbólica da nação apresentou como um dos seus eixos centrais o dualismo
entre litoral e sertão, que esteve presente na reflexão de importantes intelectuais como Euclides da Cunha (1902), Oliveira Vianna (1974), Monteiro Lobato, Emilio Willems,
Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Antonio Cândido, Capistrano de Abreu, Nelson Wernech Sodré, Bernardo Élis e Nísia Trindade Lima (1998).
34
rica de plantas medicinais e de matérias-primas, complementado por belos lagos, que fortalecem o
imperioso rio Araguaia e brejos de buritizeiros, buritiranas e bacabais que enriquecem a exuberante
paisagem. Os caprichos da natureza oferecem alimentação em abundância àqueles que o
procuram.
Esse foi o ambiente físico e humano encontrado pelas bandeiras que saíram de São Paulo e
de Belém desde o século XVI, para descobrir novos eldorados e capturar índios. As bandeiras
representam o primeiro processo de interiorização (passagem) dos colonizadores para o sertão do
vale araguaiano. (TAUNAY, 1975:10).
Ilustração
6
– Aldeia indígena Karajá na margem do Araguaia.
Fonte: Revista Oeste, 1933.
35
Depois chegaram os missionários que expandiram fronteiras culturais com a formação de
aldeamentos indígenas. Essa política de aldeamento adotada em Goiás, a partir da segunda
metade do século XVIII, representou de um lado, núcleos segregacionistas, mas objetivando
transformar os índios em mão-de-obra, uma adaptação dos ideais anteriormente defendidos pelos
jesuítas e colonos. A política de integração do índio com o colono resultou, embora em pequena
escala, em alguns pequenos núcleos de povoamento como, por exemplo, Mossâmedes e Carretão.
Mas, é no século XIX, que o sertão do Araguaia, é marcado pela formação de povoados, vilas e,
posteriormente, cidades.
Para compreendermos os fundamentos de uma cidade, necessitamos partir das mais
complexas estruturas e funções urbanas conhecidas, para os seus componentes originários, por
mais remotos que se apresentem no tempo, no espaço e na cultura. Munford
9
(1998) afirma que, se
quisermos lançar novos alicerces para a vida urbana, cumpre-nos compreender a natureza histórica
da cidade e distinguir, entre suas funções originais, aquelas que dela emergiram e aquelas que
podem ainda ser invocadas. Diz:
Antes da cidade, houve a pequena povoação, o santuário e a aldeia; antes da
aldeia, o acampamento, o esconderijo, a caverna, o montão de pedras; e antes de
tudo isso, houve certa predisposição para a vida social que o homem compartilha,
evidentemente, com diversas outras espécies (MUNFORD, 1998:09).
As práticas de fundações das aldeias que originaram cidades brasileiras carecem dos
caracteres estruturais das europeias, como também das aldeias indígenas do Araguaia. As aldeias
indígenas construídas pelos índios, nas barrancas dos rios ou nas praias, caracterizam-se por casas
comunais, denominadas pelos índios de ocas, construídas em perímetros ovais em torno de uma
praça; e as aldeias, que contribuíram para a formação das cidades brasileiras, são agrupamentos
9
Lewis Munford (1998:09) volta na trilha do tempo para mostrar que na passagem do paleolítico para o neolítico a estrutura embrionária da cidade
nasceu a partir da formação de aldeias. Defende que a cidade deve, tecnicamente, à aldeia: dela surgiram, diretamente ou pela elaboração, o celeiro,
o banco, o arsenal, a biblioteca, o armazém. Destarte, define a “aldeia” dentro dos padrões europeus, com sua administração própria e eletiva, de tipo
democrático. Conceitua a aldeia como um pequeno agrupamento de famílias, variando talvez entre meia dúzia e três vintenas, cada qual com seu
próprio lar, seu próprio deus doméstico, seu próprio oratório, seu próprio cemitério, dentro da casa ou em algum campo comum de sepultamento.
Falando a mesma língua, encontrando-se sob a mesma árvore ou à sombra da mesma pedra empinada, andando ao longo do mesmo caminho batido
pelo seu gado, cada família segue o mesmo modo de vida e participa dos mesmos trabalhos. Se alguma divisão do trabalho existe, é da espécie
rudimentar, determinada mais pela idade e pela força do que pela aptidão vocacional: quem olha o rosto de seu vizinho enxerga a própria imagem. Na
maior parte, o tempo dissolveu a estrutura material da aldeia na paisagem: somente seus cacos e conchas podem ser baseados em preceitos ditados,
histórias de famílias, exemplos heróicos, injunções morais, conservados como tesouros e passados sem deformação dos velhos para os jovens
(MUNFORD, 1998: p. 25).
36
de colonos, formados por casas de adobe, cobertas de palhas. Viana conceitua as aldeias fundadas
no interior do sertão brasileiro diferentemente de Munford (1998).
As aldeias são meras dependências do domínio fazendeiro (como as Colônias de São
Paulo); ou “aglomerações” rudimentares de casas, sem nenhuma organização
administrativa, sem nenhum traço de estruturação política ou conexão econômica,
religiosa ou educativa. Às vezes, em algumas, reponta apenas uma capelinha, gêmula
de uma rudimentar e intermitente organização religiosa (OLIVEIRA VIANA, 1974:121).
De modo geral muitas povoações, posteriores sedes de vilas e cidades brasileiras nasciam
como meros pontos de passagem, de pouso ou de abastecimento de utilidades e de provisões. A
imensidão territorial, bem como as distâncias dos centros urbanos, dos engenhos reais e a
existência das fazendas de criação atraíam o homem para o interior do sertão, prendiam-no dentro
dos seus limites e o fixavam, como se o absorvessem. Este desbravamento e aproveitamento da
terra e da conquista do vasto interior do sertão do Brasil se fizeram sob o signo exclusivo de
habitações isoladas e dispersas. Deste modo, as aldeias, os arraiais, as povoações, as vilas e as
cidades foram surgindo distantes umas das outras e dos principais centros comerciais (VIANA,
1974: 121).
Oliveira Viana (1974:121) relata que no interior dos Brasil fora da orla marítima ou dos
grandes s de circulação comercial do planalto –, a Metrópole incentivava a dispersão, ou melhor,
a penetração de novos horizontes, num centrifugismo ampliador que desvendava paragens mais
vantajosas, propiciando novas posses, instituindo o regime de vastas sesmarias e fomentando a
constituição autárquica dos engenhos reais. A Coroa pretendia realizar e instaurar no Brasil Colônia
um regime municipalista que procurava “reunir os moradores dispersos”, pela política da fundação
de aldeamentos e presídios militares.
Nas margens do rio Araguaia, o processo de formação das cidades começa efetivamente,
no século XIX, com a política de implantação de presídios militares. Esse processo não foi um fato
isolado ou experimental. Fazia parte de uma estratégia de proteção mais abrangente que vinha
acontecendo ao longo de dois séculos e meio. Os luso-brasileiros implantavam fortes militares, com
suas guarnições e dependências, em locais longínquos e desprovidos de quaisquer meios de
subsistência. Várias cidades brasileiras nasceram com a construção dos primeiros baluartes de
nossa integridade territorial arquitetados pela engenharia militar portuguesa. Na orla marítima e nas
margens dos principais rios brasileiros, considerados nós de circulação, nasceram muitas cidades
37
provocadas e estimuladas por uma política oficial de proteção territorial. Fortificavam-se as margens
ribeirinhas para a defesa da navegação e incentivava-se a produtividade de seus subordinados.
Couto de Magalhães afirma, referindo-se ao ano de 1863: “o Araguaia não tem até o presente um
só povoado com exceção dos presídios de Leopoldina, Monte Alegre e Santa Maria” (MAGALHÃES,
1957:140).
Em meados do século XVIII, a Metrópole Portuguesa estabeleceu várias fortificações em
pontos estratégicos do Brasil. O primeiro e fundamental planejamento, nesse sentido, deve-se à
transmigração da Sede do Poder para o Rio de Janeiro, no ano de 1763, antes sediada na Bahia.
Sérgio Buarque de Holanda (1993) afirma que este sistema visou “à ubiquação, consequência da
sede do poder, completada por fortificações tranquilizadoras”. Ainda nas palavras de Sérgio
Buarque, “a transferência da capital para o Rio de Janeiro representa o referendo legal de uma nova
fase da vida política do Estado do Brasil, bem como da América portuguesa”. Ele diz, ainda, que a
política dos limites territoriais traçadas para a América Portuguesa, pelo Ministro Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1750-1777) transformou o plano de caráter local em geral.
Um homem cuja visão de estadista, ao mesmo tempo se mostrava muito fiel ao
conceito de soberania como o real domínio de um espaço soberano bem
demarcado, pois não era outra a noção de território nacional adotada pelo
despotismo esclarecido. (HOLANDA, 1993: 356)
No período pombalino, o planejamento político-administrativo conseguiu firmar-se plenamente
pela presença de um poder autoritário despótico. Através da forte presença desse poder
dominante, fortificava-se o litoral e o interior brasileiro, para a defesa da colônia Lusitânia, e
incentivava a produtividade de seus subordinados. Esses objetivos eram voltados para a segurança
do território ultramarino, pois a Coroa temia -lo invadido e, até mesmo, perdê-lo (HOLANDA,
1993:363).
No período de redefinição do território brasileiro, a populão encontrava-se dispersa e
rarefeita. Era uma colônia onde as fronteiras ainda se encontravam instáveis e efêmeras e cujos
limites, entre Portugal e Espanha, só vieram a ser traçados oficialmente em 1777, com o Tratado de
Santo Idelfonso. Tal Tratado estabeleceu as delimitações e confrontações territoriais entre os dois
citados países, num período em que as frentes de povoamento eram extremamente importantes. A
38
linha de fortificações pombalinas corresponde a grosso modo ao atual limite das terras brasileiras,
formalizado, pela primeira vez, no Tratado de Madri
10
(1.750).
Segundo Sérgio Buarque de Holanda (1993:357), delimitar as fronteiras, na visão de
Pombal, não era só desenhá-las nos documentos oficiais, mas, sobretudo, plantá-las no chão
por via de fortificações e da imprescindível comunicação com o Centro Administrativo para o que se
faz necessário o contato direto e esclarecido com a realidade local.
Durante o período Pombalino, Portugal sentiu a necessidade estratégica de
ocupar efetivamente o Brasil com fortificações. Com esse propósito, o Marquês
de Pombal, vice-reis e governadores não mediram esforços no sentido de adotar
o sistema de fortificações (HOLANDA,1993:357).
A localização dos fortes e presídios revela a enorme importância atribuída aos lugares de
comunicação, usualmente coincidentes com pontos estratégicos de passagem da rede fluvial e de
caminhos. São esses lugares que dão coerência à localização das fortificações pombalinas, todas
situadas nos lugares-ponto por onde confluíam circuitos de contrabando. Embora oficialmente
espanhóis, ingleses, franceses ou holandeses tenham sido nomeados como transgressores dos
‘limites portugueses’, era a pouca confiança da Coroa Portuguesa na lealdade dos ‘nacionais’, em
defesa do imperativo colonial e contra as atividades de contrabando, o motivo maior da
preocupação metropolitana com os lugares de comunicação.
As fortificações
11
tiveram objetivos políticos e militares e visavam à proteção das fronteiras
brasileiras. Afinal, o imperialismo é um gesto de violência geográfica por meio do qual praticamente
todo o espaço do mundo é explorado, mapeado e, por fim, submetido a controle. Said afirma que “o
espaço colonial deve ser transformado a tal ponto que não mais pareça estranho ao olhar imperial”
(SAID; 1995: 285).
10
Não obstante ter sido anulado (1761), o Tratado de Madri constitui uma referência válida para o estudo do processo histórico de legitimação dos
limites das terras brasileiras, tendo em vista as inovações introduzidas por quatro anos de negociações diplomáticas. Entre as inovações destacamos:
a) o reconhecimento da superação da linha de Tordesilhas; b) a primeira tentativa de estabelecer os limites entre as possessões lusas e castelhanas
num sentido continental: c) uma visão ampla da geopolítica mundial, em que se estabelece a separação entre os conflitos que pudessem ocorrer na
Europa (entre as potências signatárias) e os conflitos americanos (Artigo XXI); por fim, do deslocamento, na ordem jurídica, do princípio romano do
Direito Civil, denominado de uti possidetis (consagrado ao direito de propriedade e posse sobre terras) para o campo do Direito Público (Artigo III)
(MACHADO, 1989).
11
Os fortes militares eram reconhecidos e chamados por vários nomes, tais como fortalezas, fortins, presídios, redutos, rebentes, hornaveques, vigias,
baterias, feitorias, portões, trincheiras, tranqueiras e casas fortes. Os mais destacados de algumas regiões brasileiras foram os de Minas Gerais: São
Miguel, de Abre Campo, Peçanha e Cuité; os de Mato Grosso: Fortes do Príncipe da Beira, Coimbra, Miranda, Albuquerque, e o de Dourados; no
extremo norte da bacia Amazônica pode-se citar São José dos Marabitanas e São Joaquim. No Amapá, foi construída a fortaleza de São José de
Macapá. Praticamente toda a Amazônia foi “cercada” por povoações fortificadas (MELO E SOUZA, 1986:77).
39
Essa ação preencheu todo o período pombalino e foi continuada nos governos posteriores,
em todas as regiões brasileiras, até o final do culo XIX. Após a saída de Pombal, houve uma
adaptação na forma de praticá-lo. Através da fixação de praças fortificadas, o Brasil se transformou
em um dos suportes da política econômica do sistema português. Melo e Souza (1986) afirma que o
Estado foi um dos sustentáculos da política econômica do sistema colonial.
Estado absolutista que, como tal, não podia prescindir do poder e da violência
na suas múltiplas facetas: centralismo administrativo, fisco, arbitrariedade de
governantes e de potentados (MELO E SOUZA, 1986: 99).
Situadas nos principais lugares de comunicação, as fortificações constituíram, assim,
verdadeiros marcos de fronteira, tendo ainda a função adicional de potencializar focos de
povoamento em diversas partes do Brasil colonial e imperial. Razão de considerar que o urbanismo
não foi um movimento espontâneo do povo, ele surgiu em consequência da política administrativa
da Coroa, que procurou estabelecer a ordem e a legalidade do território brasileiro. No início do
século XIX, várias são as conjunturas que tornaram indispensável fortalecer a defesa territorial.
Caio Prado Jr. diz:
Tais são, entre outras semelhanças, as circunstâncias que se tornam
indispensável uma nova política de povoamento, capaz de transformar os
aglomerados heterogêneos que se constituíam o Brasil, numa base segura para
o trono português e para sede de uma monarquia européia (PRADO JR.,
1993:185).
Ressalta-se que, em 1807, a Metrópole Portuguesa, por não ter aderido ao Bloqueio
Continental, decretado pelo imperador da França, Napoleão Bonaparte, encontrava-se invadida
pelas tropas francesas comandadas pelo General Junot. Nesse mesmo ano, a França e a Espanha
pretendiam dominar Portugal e suas colônias. Assim sendo, assinaram o Tratado de Fontainebleau
(27 de outubro de 1807) que decidia a ocupação de Portugal e a divisão do país em três reinos.
Motivo que fez, em 1808, D. João transferir a Corte para o Brasil juntamente com grande parte do
funcionalismo. Prado Jr. destaca:
O território metropolitano ocupado pelo inimigo, sérias ameaças pesando sobre os
demais domínios lusitanos, as rotas marítimas vitais para o comércio português
parcialmente interrompido, a própria soberania da nação entregue às boas graças de
um poder estranho como a Grã-Bretanha (PRADO, 1993: 184).
40
Depois da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808, e, devido às agitações
que ocorriam na Europa, romperam-se muitas das conexões coloniais e instituíram nova política
oficial de defesa e povoamento. Caio Prado (1993:184) afirma que, “devido aos acontecimentos da
Europa, desde logo se impõe a necessidade de considerar o Brasil mais que uma simples colônia”.
Na tentativa de superar sérias dificuldades, o governo imperial adotou, em 1809, um conjunto de
medidas. Dentre outras, ordenou a implantação de fortificações lindeiras, ou seja, a construção de
presídios militares nas margens dos rios do interior do Brasil, inclusive do rio Araguaia. Com essas
medidas, a Coroa portuguesa no Brasil tentava embargar as tentativas de entrada do adversário e
teria a posse da terra garantida em detrimento de invasões estrangeiras que, porventura,
penetrassem pelo interior do sertão do Brasil, via região central.
Caio Prado Jr. (1993: 184-185) afirma que, ante essas evidências, era preciso reconstituir as
forças armadas: o território metropolitano estava ocupado pelo inimigo; as rotas marítimas, vitais
para o comércio português, parcialmente interrompido, devido ao bloqueio continental. Sérias
ameaças pesavam sobre os demais domínios lusitanos, a própria soberania da nação estava
entregue à Grã-Bretanha. Assim sendo, foi a ela que D. João recorreu, pedindo proteção, em troca
de vários privilégios comerciais.
Em geral, portugueses e espanhóis desenvolveram uma política de colonização através da
construção de fortes e presídios em todas as suas colônias, tanto na África, quanto na América. No
Brasil, por onde penetravam as ações dos colonizadores portugueses, as fortificações eram
estabelecidas em diferentes partes, inclusive na Província de Goiás. Isso significa que esse não era
um método isolado ou experimental.
A política de expansão de fronteira adotada às margens dos principais rios de todo o território
brasileiro deve-se, a princípio, ao receio que D. João tinha de que forças napoleônicas dominassem o
império português, então sediado no Rio de Janeiro. Até a primeira metade do século XIX, assim
como outros rios brasileiros, o Vale Araguaiano, o grande canal de comunicação que interligava Goiás
à região Norte, estava aberto a qualquer tipo de invasão. Após o grito do Ipiranga, havia também o
receio de que as tropas portuguesas que se mantinham leais à Coroa Lusitana (sobretudo no
Norte do País) pudessem adentrar ao interior do Brasil pelos principais rios e prejudicar a
independência brasileira.
41
Conquistar espaços ocupados pelos índios favorecendo o estabelecimento de pequenos
núcleos de povoamento; defender os colonos
12
, os comerciantes e também os moradores dos
conflitos existentes entre brancos e índios, bem como, da entrada de invasores para o interior do
Brasil foram os principais objetivos dos dirigentes portugueses, na colonização do Vale
Araguaiano, exatamente numa época em que vários países da Europa disputavam essa colossal
gema.
Na segunda metade do século XIX, não havia mais nenhum risco externo à integridade do
Brasil, mas a implantão de presídios continuou em vista da necessidade de defender os colonos
contra as investidas dos índios locais, cujo propósito maior era promover o povoamento e o
desenvolvimento da navegação.
Com o fim de proteger a navegação dos rios Tocantins e Araguaya, e defender a
população do norte das agressões dos selvagens que habitam as margens destes dous
rios e de seus tributários, fundar-se-ão os cinco presídios militares que actualmente
existem, três na linha do Tocantins e dous na do rio Araguaya. Se não posso crer na
utilidade de um outro, pela posição em que se achão collocados, absolutamente
falando, a creação desses núcleos coloniais não pode deixar de ser considerada de
grandes vantagens. Deve-se concluir pela necessidade de outros estabelecimentos
desse gênero no prolongamento das margens dessas grandes artérias, que, por assim
dizer, contêm em si a história do futuro progresso desta bella porção do Império. Desde
que vários pontos da província são ameaçados frequentemente pelos selvagens sem
que dos presídios existentes possão partir socorros e previdências a tempo; desde que
seus habitantes são obrigados a lançar mão de meios próprios, e muitas vezes de
natureza violentos, para expellirem os ataques dos índios, resultando da violência
desses meios o crescer cada vez mais o seu ódio contra nós, está visto que os recursos
de defesa devem ser augmentados, e que os presídios existentes não são uma garantia
bastante (Trecho do Relatório apresentado à Assembléia Legislativa Provincial de
Goyaz na sessão ordinária de 1861 pelo presidente José Martins Pereira de
Alencastre).
Na província de Goiás (atuais estados de Goiás e Tocantins), foram construídos 21 presídios
às margens dos dois principais rios – Araguaia e Tocantins. Esta política foi intensificada, nas margens
do rio Tocantins, a partir da segunda metade do século XVIII e, na margem do rio Araguaia, na
segunda metade do século XIX. Na primeira metade do século XIX, existia tão-somente o presídio de
12
Os colonos, segundo Celso Furtado (FURTADO, 1982:127), eram todos os imigrantes que se dirigiam para os núcleos de povoamento,
destinados a prestar serviços nas atividades agrícolas, por iniciativa do governo imperial.
42
São João do Araguaia, implantado em 1802, apesar das tentativas de implantação do Presídio de
Santa Maria. Na segunda metade do referido século, a política de implantação de presídios foi
intensificada em vista da necessidade de fortalecimento da navegação a vapor.
Ilustração
7
– Mapa dos presídios da Província de Goiás – século XIX.
Fonte: Rocha; 1998.
43
Enquanto o povoamento do Araguaia não se concretizava, o governo provincial buscava
solução para os problemas de comunicação, comércio, defesa e povoamento. Através de picadas,
comunicou Leopoldina à capital. Em 1850, adota-se novo regulamento para as instalações dos
presídios fundados às margens do rio Araguaia. É o Decreto nº 750, de dois de janeiro de 1850,
segundo o qual ficavam definidas suas finalidades: implantação de pontos militares destinados a
proteger e auxiliar a navegação do Araguaia; atrair pessoas para as suas margens e com o auxílio
da catequese, ensinar a cultura dos colonos. Os deveres do comandante constavam no capítulo V:
Auxiliar aos navegantes da carreira do Pará com víveres por troca ou venda,
emprestando-lhes sem prejuízo dos presídios, algumas embarcações, e fornecendo-
lhes uma, até duas praças, que não poderão passar além do Presídio mais próximo,
cujo comandante providenciará sobre o oportuno regresso delas.
Competia, ainda, ao comandante, auxiliar na manutenção da ordem a bordo a fim e garantir
a segurança dos navegantes e impedir o extravio e perda das mercadorias. Nesse sentido, o
comandante tinha o poder de efetuar a prisão dos rebeldes (DOLES, 1973:72).
O supracitado Decreto foi elaborado pelo Ministério e Secretários de Estado e Necios
do Império, aprovado pelo Legislativo e sancionado por D. Pedro II. O artigo 25 explicitou a
estrutura sica do presídio que deveria ser composto de uma cadeia pública, uma capelinha,
um estaleiro para conserto das embarcações, resincias para os religiosos, comandantes e
demais moradores. O cultivo e a criação de animais deveriam ser trabalhos coletivos,
coordenados pelo comandante responsável pelo núcleo (TIBALLI, 1991).
Os presídios foram, em grande parte, mantidos e desenvolvidos à custa do trabalho de
pessoas ociosas, principalmente negros e mestiços. Em muitos deles viviam gentios catequizados e
pacíficos, e era frequente possuírem campos de lavoura cultivados pelos criminosos e
desocupados. “Para o trabalho em obras públicas sempre foi comum o emprego de
desclassificados. Como os desclassificados em geral, esses indivíduos eram, em sua maior parte,
mestiços” (MELO E SOUZA, 1986:77-81).
Várias eram as alternativas para a utilização da mão-de-obra desclassificada:
constituição dos corpos que se aventuravam pelo sertão em entradas; a guarda, defesa
e manutenção dos presídios; o trabalho nas obras públicas e na lavoura de
subsistência; a formação de corpos de guarda e polícia privada; a composição de
44
corpos de milícia e de outros recrutados esporadicamente para fins diversos; a abertura
e povoamento de novas áreas, as fronteiras (MELO E SOUZA, 1986:74).
O termo presídio
13
era entendido, no século passado, como conquista de território e
expansão de fronteira, parte do processo de povoamento, defesa e especialização agrícola. Os
presídios foram construídos oficialmente e sob o controle do governo. Receberam, à época, outras
denominações, tais como: núcleos militares de povoamento; núcleos de colonização militar;
presídios militares de povoamento; colônias militares de povoamento; fortificações lindeiras,
fortificações limítrofes ou apenas fortes. A breve definição feita por Palacin e Morais (1981), diz que
os presídios fundados em Goiás até meados do século XIX, eram colônias militares de defesa,
povoamento e especialização agrícola.
Na lógica dos colonizadores, o estabelecimento desses presídios, além de servirem como
postos de abastecimentos e socorros aos viajantes, serviriam, também, para proteger os
colonizadores residentes às margens dos rios contra as investidas dos grupos indígenas. Estas
medidas governamentais nem sempre resultava feliz. Grande mero destes presídios
fracassava e extinguia-se. Outros só subsistiam enquanto estavam sob o pulso de ferro dos
militares e missionários, bem como da população residente e dos negros sentenciados.
Os presídios que se fortaleceram garantiram as condições necessárias ao desenvolvimento
da vida coletiva das populações ribeirinhas e região, deste modo, ao longo do tempo foram
deixando de atender apenas objetivos políticos e econômicos e adquiram suas funções sociais em
vista de se transformarem em povoados, vilas, distritos e, posteriormente, em cidades. Cada uma
delas carregando consigo suas especificidades culturais: seus costumes, suas práticas cotidianas,
seus mitos, suas lendas, suas crenças, suas representações.
As migrações de colonizadores para os presídios do Araguaia, incentivadas pelos dirigentes
políticos, montam um cenário que se apresenta como constante preenchimento de espaços vazios,
capazes de produzir redes e relações que rompem obstáculos e fronteiras culturais. Os presídios
13
No Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, entendem-se presídios como cárceres privados, onde o detento acusado de ter cometido um delito,
qualquer que seja a modalidade, deverá cumprir pena de prisão, por um determinado tempo. Também são definidos presídios como cadeias públicas
ou penitenciárias. Hauaiss define presídio como 1. o Ato de defender uma praça militar ou uma fortaleza; 2. (1612) p.metf. o que conserva,
salvaguarda, protege; defesa, socorro, auxílio <o p. da Graça Divina> <o p. das palavras amigas; 3. tropa de guarnição encarregada dessa
defesa; 4. praça de guerra defendida pelo presídio; 5. prisão militar; 6. pena de prisão que deve ser cumprida numa fortificação militar; 7. campo
ou estabelecimento fortificado e defendido militarmente, onde cumprem penas condenados civis ou militares; 8. instituição penal onde cumprem penas
indivíduos condenados pela justiça; casa de detenção, penitenciária, prisão ETIM lat. praesidìum,ìi ‘proteção, defesa, socorro; guarda, escolta;
posto, acampamento, presídio’.
45
militares fomentaram o comércio e incentivaram a conquista e a ocupação da região. Aproveitar-se-
ia o espaço demográfico através da fixação definitiva de moradores na região. Esse aproveitamento
representou o deslocamento da fronteira econômica do centro-sul do País para o Norte. Margeando
a via de transporte fluvial, as cidades beiras extraíam recursos naturais que pudessem ser
transportados e vendidos para o estrangeiro.
Destarte, atraíram a atenção de pessoas que para afluíram e concentraram riquezas
culturais no período de desenvolvimento da Navegação a Vapor. A navegação e a grande seca do
Nordeste promoveram ondas migratórias para esses presídios. A grande seca que atingiu o
Nordeste brasileiro em 1877-1880 promoveu o deslocamento de nordestinos para o Norte do Brasil.
Período em que os governantes incentivavam a ida de pessoas para prestarem serviços na
Companhia de navegação a vapor. Nesse processo, tradições e costumes regionais (indumentária,
comidas, arte, música) foram levados e se entrecruzaram. No ano de 1888, existia nas margens
do rio Araguaia alguns povoados cristãos e indígenas servidos pela navegação:
Leopoldina, São José do Araguaia ou de Jamimbu, Santa Maria, São José do Amparo e
São Vicente, ficando este o mais importante e o mais futuroso, a 30 léguas mais ou
menos de São José do Amparo. Leopoldina, antigo presídio do mesmo nome, possui
umas sessenta a oitenta casas de telha, uma igreja ainda em obras, é o porto mais
próximo da capital, de que dista a 32 léguas. São José tem umas 30 casas de telha e
20 de capim, sendo a sua população de cem almas, podendo elevar-se ao triplo se
completarmos a dos arredores; Santa Maria pode ter umas 120 casas, sendo 30 ou 40
de telhas, a sua população eleva-se a 300 almas; possue uma igreja em má estado, um
bom quartel, um cemitério construído pelo povo. Ali se cria bem o gado vaccum; São
José do Amparo começa agora, contendo apenas umas quatro famílias. Quanto aos
aldeamentos não excedem a 10, inclusive os três mais importantes existentes abaixo de
Santa Maria ou entre este ponto e São José do Amparo (Cópia nº 19 de 23 de setembro
de 1889, 1ª seção – Ofício da presidência Dr. Eduardo Augusto Montovane).
Os ribeirinhos do Araguaia construíram suas casas nas proximidades do rio. Não se trata
apenas de um ponto qualquer para se construir uma edificação. Era o lugar escolhido para viver,
trabalhar e constituir família. Pessoas que acompanharam as comitivas que saíam com destino à
implantação do presídio, a fim de se dedicarem à agricultura e usufruírem os benefícios concedidos
pelo governo. O ideal desses migrantes seria a terra virgem e promissora onde, protegidos por um
sistema, pudessem construir com suas próprias mãos o seu lar, a sua segurança. Foram pessoas
que se deslocaram de seus lugares de origem e foram viver no sertão do Araguaia, pleno de
46
sacrifícios e emoções, numa área distante dos principais centros urbanos, cercado por árvores,
igarapés, rios caudalosos e animais ferozes.
Em 1881, o presidente da província de Gos, Dr. Joaquim de Almeida Leite Moraes afirma que,
em Santa Maria encontram-se todos os recursos como pessoal trabalhador, víveres,
madeira de construção para qualquer ponte ou pontilhão que se torne preciso; enfim tudo ali é
cil; feito o orçamento das obras somente é necessário que o governo conceda para a sua
realização o precioso cdito (Trecho do Relatório do então presidente Dr. Joaquim de
Almeida Leite Moraes, de 10 de fevereiro de 1881).
Contudo sugere em relatório que se faz necessário substituir os presídios por colônias agrícolas.
Os presídios do Araguaia não atenderam todas as suas funções político-administrativas,
econômicas e comerciais em conformidade com o Decreto 750, de dois de janeiro de 1850. A
demasiada centralização e a falta de créditos para as despesas tolhem a ação da administração
provincial. A verba destinada para os presídios mal chegava para o pagamento dos empregados; de
sorte que se tornava impossível executar neles certos melhoramentos. Com o fim da navegação e o
advento da República, os presídios do Araguaia não atendiam mais ao fim a que eram propostos.
Assim sendo, aquelas populações ribeirinhas ficaram no esquecimento, abandonadas aos descasos
político-administrativos. Uns foram totalmente extintos e os que conseguiram sobreviver adquiriram
suas condições sociais e passaram à categoria de cidade no século XX.
Com o passar do tempo, a paisagem ribeirinha apresenta na configuração de suas cidades
marcas culturais cheia de valores subjetivos e assim recebe uma identidade própria, específica. As
formas apresentadas pelos presídios do Araguaia refletem os tipos das organizações sociais, as
estruturas políticas e econômicas e ainda o modo de vida de seus habitantes com características
próprias, peculiares e tipológicas.
Os presídios era um misto de estabelecimento penal, colônia agrícola e estabelecimento
militar. Constita um “pequeno mundo”, composto de casas arruadas cobertas de telhas e
instalações diversas e complexas: residência do comandante, enfermaria, casa de
arrecadação, carpintaria, ferraria, quartel de administração, casa de engenho e casa de
escola (ROCHA; 1998: 72).
Alguns presídios desapareceram, outros se transformaram em cidades que sobreviveram
esquecidas, “vegetando” à margem do progresso econômico, e tecnológico. As que sobreviveram
se tornaram cidades com estruturas típicas de povoações do interior do antigo norte goiano no
47
período do Brasil Império até serem redescobertas por turistas como cidades balneárias, verdadeiro
tesouro, uma espécie de “cidade entretenimento”, do Brasil turístico.
Atualmente, a definão de cidade e as relações sociais que nela o travadas ganham novo
contexto analítico. Certeau (2000) nos chama a atenção no sentido de que é preciso considerar que a
cidade o é uma coisa única.
Ela é reconhecida como real e como representacional, como espaço e como tempo,
socialmente vividos e (re) construídos, concebidos e percebidos, tal como assinala
Lefebvre (1981) no entendimento do espaço produzido pelo capitalismo e pelas lutas
sociais. Nesse sentido, a Cidade é um espaço material de relações sociais; a cidade
não pode ser confundida com o urbano; a cidade é o lugar onde a cidadania faz sentido;
a cidade é um misto de representações; a cidade pode ser uma referência de lugar; a
cidade é um dos palcos da política. Na cidade, assim como no campo, estão presentes
os dilemas cotidianos (CERTEAU; 2000:176).
Estão presentes nas cidades as visões de mundo e representações, os sistemas de valores,
os sistemas normativos que constrangem os indivíduos, os modos de vida relacionados aos vários
grupos sociais, as concepções relativas a estes vários grupos sociais, as ideias disseminadas através
de correntes e movimentos de diversos tipos. As lembranças vivas, ou seja, as memórias presentes
na vida das pessoas e dos grupos e que a história num esforço de salvar tais lembranças, tenta
transformá-las em relato escrito, em narrativas.
As cidades do Araguaia, tais como Aruanã (GO), Araguacema (TO), Conceição do Araguaia
(PA), são cidades com rico e vasto conjunto de bens culturais e ambientais que merecem ser
conservados para usufruto das futuras gerações. As riquezas desses patrimônios estão na unidade
de um conjunto extremamente diverso de elementos patrimoniais tangíveis e intangíveis. Contudo,
apesar do desenvolvimento da indústria turística, essas cidades continuam sem uma política de
conservação do seu patrimônio cultural. Não existe uma estrutura de gestão atuante nesses
municípios para a conservação cultural e ambiental. Assim como o patrimônio intangível não é
reconhecido e valorizado, o patrimônio arquitetônico ainda não passou por um processo de
restauração. Os governantes e os moradores ainda não promoveram ações de conservação dos
bens patrimoniais existentes nessas comunidades. Muitas casas estão em processo de
deterioração, entregues às intempéries do tempo e do clima austero da região. Com a aplicação de
uma política de valorização do patrimônio tangível e intangível as cidades ribeirinhas se tornarão
mais atraentes.
48
O presídio de Leopoldina, Santa Maria e São João do Araguaia foram os principais presídios
que serviram de defesa e portos e entrepostos comerciais da navegação a vapor no século XIX. O
presídio de São João do Araguaia pertenceu ao governo do Pará. Seu progresso não pôde ser
indiferente, visto que dele dependeu a navegação do Araguaia.
A morfologia dos presídios militares do Araguaia foi desenhada a partir de necessidades, de
vontades, de decisões políticas e econômicas. É uma morfologia histórica que, com o tempo,
transformou o cenário ribeirinho. Além da Aldeia indígena Chambioás (1865), e as Colônias Militares
de Itacaiú (1868), Colônia Militar de Macedina (1888), Colônia Militar de Ouro Preto (1888), foram
implantados na linha do Araguaia os presídios de São João do Araguaia (1802), Santa Isabel (1850)
fundado a 15 léguas da ilha do Bananal, foi o antigo presídio de São Januário, transferido em
1857 para a margem do rio das Mortes e logo depois foi extinto –, Presídio Santa Leopoldina
(17/10/1856), Presídio Santa Maria (1861), Presídio São José do Araguaia (1862), Presídios São
José dos Martírios (1866) foi logo depois desativado e, em 1872, foi restabelecido para auxiliar
na catequese e na navegação. O presídio de Jurupénsem (1864) foi o antigo presídio de Santa
Cruz, transferido da margem do rio Tocantins para a margem direita do Araguaia (Rocha; 1998:77-
81).
Esses e outros presídios eram os portos de embarque e entrepostos comerciais da
navegação a vapor. Eram os lugares que reuniam os produtos que eram transportados para Belém,
no Pará, e vendidos para o comércio exterior. Os presídios foram os pontos de referências e podem
ser identificados como elementos de transformação da paisagem ribeirinha, que emergiam de uma
política específica de povoamento, defesa e comercialização agrícola. Foram as portas de entrada e
saída da região do vale araguaiano.
Sem a pretensão de fazer nenhum inventário das cidades ribeirinhas, e, como não
poderíamos apreender todas as cidades em sua totalidade, citaremos como referência, fragmentos
dos processos de fundação dos presídios de Leopoldina e de Santa Maria como base para um
entendimento da estrutura tipológica dos presídios do Araguaia que foram implantados para dar
sustentabilidade à navegação a vapor. Dos referidos presídios originaram as cidades de Aruanã
(GO) e Araguacema (TO).
49
1.2.1 O Presídio de Santa Leopoldina – (Aruanã - GO)
O presídio de Santa Leopoldina originou a atual cidade de Aruanã (GO). Foi implantado à
margem direita do rio Araguaia, a um quilômetro mais ou menos abaixo da junção do rio Vermelho
com o rio Grande. Criado em 1850, em cumprimento ao Aviso de 29 de janeiro de 1849, expedido
pelo Ministério do Império, foi transferido, em 1855, para o Lago dos Tigres e, em 19 de outubro de
1856, foi restabelecido em local definitivo. Sua fundação garantiu o desenvolvimento do comércio e
navegação do rio Araguaia (Relatório da presidência, 1º de junho de 1879).
Na margem do rio, surgem as primeiras ruas e a primeira igreja. O presídio de Leopoldina
era caracterizado por possuir uma oficina de construção de barcos, uma de ferreiro, uma de
carpinteiro, uma roda de fazer farinha, um monjolo e uma olaria. Os moradores faziam pequenas
hortas nos quintais das casas particulares. No ano de 1863, o presídio estava composto por duas
ruas paralelas ao rio rumo norte-sul e cinco travessas perpendiculares, trinta casas, dentre as quais
doze de telhas. Havia, ainda, o grande barracão da administração do Ministério da Guerra, todo
construído de madeira aroeira, oferecendo bastante resistência, uma grande casa pertencente à
catequese e um barracão em que se achava a oficina da empresa de navegação.
Além das casas de telha, havia outro tipo de habitação mais simples feita ou coberta de
palha destinada às classes populares, habitadas pelas pessoas de menor poder aquisitivo. No geral,
as casas se caracterizavam por possuir lotes estreitos e profundos, por serem escuras e com portas
e janelas estreitas feitas de madeiras. As primeiras edificações do presídio foram erguidas
aproveitando a topografia local.
O presídio está assentado sobre terrenos onde nunca hão de chegar às águas. A
povoação é limitada: na frente, pelo rio Araguaia; ao norte e ao sul, por igarapés; ao
poente, pelo espigão raso, de terreno firme, que deve ter mais de uma légua,
oferecendo por esse lado todas as proporções para uma grande cidade (MAGALHÃES;
1957: 92).
Como porto de embarque e entreposto comercial da navegação a vapor do Araguaia, o
presídio de Santa Leopoldina foi se desenvolvendo. Utilizando-se da navegação muitas pessoas
vieram morar na região, e em pouco tempo, suas ruas aumentaram e existiam várias casas de
50
comércio, igreja e escola. Posteriormente passou a ser chamada Vila Leopoldina, em homenagem
ao presídio. Couto de Magalhães afirma em relatório que
neste ponto encontrão-se os operários necessários para as construções de igarités,
canoas, etc. construções estas que nestes últimos anos ocupou a maior parte da
guarnição do presídio para poder-se levar a efeito a fundação do de S. Maria do
Araguaya. A criação do gado tem prosperado só essas possuem 420 cabeças de
gadum vacum, o que é devido ao exemplo dado pelo comandante. A cultura tem
prosperado, a ele se dão as famílias ali existentes, do que terão bastante lucro. (Trecho
do Relatório da Presidência do Dr. Couto de Magalhães de 1º. de junho de 1863).
Em Santa Leopoldina, foi fundado o Colégio Izabel destinado a ensinar aos índios a língua
portuguesa, visando a assegurar a comunicação entre culturas distintas e efetuar as políticas de
desenvolvimento do comércio através da navegação a vapor. A catequese traria garantia de mão-
de-obra para os serviços do presídio. Deste modo, os índios estariam sob o controle e poder dos
colonizadores. Serviriam como intérpretes e como mão-de-obra para auxiliar na navegação,
desenvolver trabalhos nas oficinas dos presídios, para proteger as fronteiras
14
e as comunicações
interiores com as duas bacias do Pará e do Amazonas. Os rios seriam protegidos com mais
facilidade. Foi com esse intuito que Couto Magalhães sugeriu
a criação de um corpo de intérpretes destinado a ensinar aos selvagens a nossa língua,
que eles aprendem com grande facilidade, quando se lha ensina na sua, fica evidente
que será meio eficaz para realizarmos a conquista pacífica de duas terças partes do
solo do Império, de um milhão de braços hoje perdidos, de indústrias que em poucos
anos podem decuplicar; de assegurarmos nossas comunicações pelo interior e
evitarmos no futuro graves dificuldades. E onde estão os elementos para criar-se esse
corpo de intérprete? Estão no Exército, na Armada e estão espalhados pela superfície
do Império, que por si representa um 15º da superfície do globo. Reuni-los em um
corpo, dar-lhes organização, ensinar-lhes a ler e a escrever e os ofícios indispensáveis
de carpinteiro e ferreiro é tão fácil que nada nos desculpará de não empreendê-lo
agora, quando para isso temos todos os elementos. Esse corpo, desde que tivesse a
organização e a disciplina militar, seria um auxiliar prestimoso para nossas colônias
militares, para nossas populações das fronteiras, para as expedições que quiséssemos
mandar ao interior, e para proteger as nossas comunicações interiores, com as duas
grandes bacias do Rio Prata e do Amazonas que estão à mercê do selvagem e nos
seriam preciosas, desde que nos fosse trancado o caminho do oceano, ou a foz do Rio
da Prata ou do Amazonas (MAGALHÃES; 1975: 27).
14
De 1864 a 1870 acontecia a Guerra do Paraguai. No ano de 1870, a guerra chega ao seu final com a morte de Francisco Solano Lopes, em Cerro
Cora.
51
O Colégio Santa Izabel
15
foi fundado em janeiro de 1871 por Couto de Magalhães, em
virtude da ordem do governo geral, por quem era subvencionado. Foi uma nova experiência de
catequese. Conforme explicitado no regulamento do colégio, para organização, direção e regime
econômico, este deveria oferecer instrução elementar, religiosa e profissional de artífices à
mocidade indígena das diversas tribos existentes no alto e médio Araguaia. Deveriam ser
contratados dois missionários para as instruções religiosas. No regulamento do cogio estava
previsto, ainda, inserir no programa de ensino, o conhecimento da música. Consta que os alunos do
Colégio Santa Izabel teriam dicos, professores, transportes, sustento, roupa, medicamentos e outros
objetos de uso dos estabelecimentos ou destinados para brindes aos indígenas. A escola estaria
estruturada com uma oficina para as aulas práticas de torneiro, mecânica, ferreiro e carpinteiro com
aplicação especial à construção naval. No ensino das meninas, aprenderiam o trabalho de agulha e tear.
Todo o serviço da catequese do Colégio Santa Izabel foi incumbido ao autor do projeto, o
Dr. Couto de Magalhães. O governo distribuiu um crédito anual especial de 15:000$ para o serviço
da catequese, e 12:000$ para transporte e assentamento das oficinas do colégio. Dentre as
instruções, consta: a educação e instrução que se prestarem terão por fim principal habilitar os
meninos a serem para o futuro, intermediários para com as tribos a que pertençam, atraindo-as aos
hábitos sociais; haverá no estabelecimento oficinas providas dos utensílios necessários, não ao
ensino dos indígenas, como ao preparo de produtos que dêem renda. Será esta arrecadada para ter
a aplicação que o governo designar em benefício do estabelecimento.
Em 1874, o Colégio Santa Izabel já mostrava os reflexos da política de catequese. Compõe-se o
estabelecimento de duas aulas, a saber: a de menica, regida pelo engenheiro Alexander Mac Gregor
Wilhis, que é frequentada por 10 alunos, e a de 1
as
letras, que é por trinta e dois. Nesse mesmo ano
foram oficializados cinco casamentos das índias que estavam sendo educadas neste estabelecimento.
Em 1875, o colégio vai preenchendo o fim a que foi fundado. Havendo necessidade de um inrprete
Kara para a colônia dos Chambioás, o diretor do colégio entregou ao mesmo, um aluno de nome
Uadjurema, que se achava em circunstâncias de prestar-se àquele fim (Relatório do presidente da
província de Goyáz, Antero cero de Assis, 1º de junho de 1875).
O Sr. Dr. Aristides de Souza Spindola
16
(1880), o então presidente da província, em relatório
à Assembléia Provincial de Goyáz, afirma que por Aviso de 10 de março de 1879, o Ministério
extinguiu o presídio de Santa Leopoldina tornando-a Vila de Leopoldina. Cinco anos depois, o
Colégio Izabel foi convertido em externato através do art. do ato 3.856
17
de 18 de janeiro de
1886. Sua direção, bem como a educação dos índios menores, ficou a cargo dos missionários
desse aldeamento. Na nova estrutura administrativa do Colégio ficaram reservados os lugares de:
professora para a educação das índias; mestres das oficinas de ferreiro e de carpinteiro; vaqueiro
para a fazenda de gado (Anexo do Relatório do presidente Guilherme Francisco Cruz, da Província
de Goyáz de 8 de abril de 1886).
15
Jornal da Província de Goyaz, anno II, nº 45, de 11 de novembro de 1870 - Veja anexo nº I.
16
Relatório apresentado pelo Exmo. Sr. Dr. Aristides de Souza Spindola, presidente da província à Assembléia Provincial de Goyaz, no dia 1 de
março de 1880 – Livro de Relatórios da Presidência – Presídios – 1880, conforme anexo nº II.
17
Ato nº 3.856 de 18 de janeiro de 1886 - Veja anexo n º III.
52
Pelo decreto-lei estadual 1.233, de 31 de outubro de 1938, a vila de Santa Leopoldina
passa a ser denominada e passa à condição de distrito da cidade de Goiás, situação em que
permaneceu até 18 de dezembro de 1958, quando, através da lei estadual nº 2.427, foi elevada à
condição de município, o qual foi instalado em de janeiro de 1959, com o nome de Aruanã,
cujo significado está ligado ao ritual de Aruanã
18
da cultura indígena Karajá. A cidade, ao longo do
tempo, foi se transformando em cidade turística e, em sua praça principal, situada à beira do rio,
encontram-se as caldeiras dos vapores Araguaia e Mineiro, pertencentes à Companhia de Navegação a
Vapor do Araguaia. Tornou-se monumento em memória ao General Couto de Magalhães, o homem que
acreditou e investiu na ideia de vapores navegando nas águas do Araguaia de Santa Leopoldina, atual
Arua(GO) a Belém do Pará.
Partindo da constatação, de que é corriqueiro na história das aldeias, vilas e cidades
brasileiras (desde os primórdios da colônia), abandonar ou deixar atrás de si núcleos urbanos
criados, para fundar outros, transferindo as funções do antigo para o novo, explana-se a seguir
sobre o Presídio de Santa Maria que teve sua história iniciada numa região e continuada em outra,
em conjunturas distintas.
1.2.2 O Presídio de Santa Maria (Araguacema TO)
18
A estrutura ritual dos Karajá tem duas grandes expressões culturais como referências: o rito de iniciação masculina, o Hetohoky, e a Festa de
Aruanã, que apresentam ciclos anuais, baseando-se nas subidas e descidas do rio Araguaia.
Ilustração
8
– Presídio de Santa Maria do Araguaia. Esboço de Henri Coudreau, 1987. Fonte:
museu das Bandeiras, Cidade de Goiás – GO.
53
Este presídio começa sua história no ano de 1811. Contém em si uma longa narrativa
de desastres e decepções. Sua primeira construção foi autorizada por ordens régias de 5 de
setembro de 1811. O capitão Fernando Delgado de Castilho, então governador da província de
Goiás, autorizou a liberação de um corpo de milícias para a fundação do presídio.
Em princípios de 1812, partiu de Vila Boa, atual cidade de Goiás, o tenente Francisco
Xavier de Barros, com o capelão padre Luiz da Gama, o cirurgião Manuel Alves, e 80
pessoas entre paisanos e praças de linha, e, embarcados no Rio do Peixe, desceram o
Araguaia, e a 196 léguas do porto da Piedade estabeleceram os seus acampamentos e
começaram uma povoação (ALENCASTRE,1863: 331).
Na primeira metade do século, houve várias tentativas de se implantar colônias militares
às margens do rio Araguaia, mas os índios residentes do Araguaia, principalmente os Caiapós e
Karajás eram avessos à aplicação desta política. Grupos indígenas das tribos dos Karajás,
Caiapós, Xavantes e Xerentes, tentaram impedir, de todas as formas, a entrada do colonizador
naquelas margens.
A resistência dos índios do Araguaia era vista pelos dirigentes políticos como um dos
grandes obstáculos ao povoamento. Diz Alencastre (1863), que a maneira encontrada pelos
governantes para resolver os conflitos culturais entre colonizadores e índios seria aumentar ainda
mais a defesa construindo várias colônias militares de defesa e povoamento nas ribeiras do
Araguaia, ao longo do rio, além da formação de aldeamentos indígenas que deveriam ser dirigidos
por missionários. Em 1863, Alencastre (1863:331) afirma que “todas as povoações que se fundaram
nas margens do Tocantins vingaram e se desenvolveram, mas não assim as que se tentaram
estabelecer nas margens do Araguaia”.
Antes da formação de núcleos de povoamento, nos séculos anteriores (XVI ao XVIII) os
índios do Araguaia faziam contato com os não-índios, sejam eles bandeirantes, navegantes,
comerciantes, principalmente com os missionários nos serviços de aldeamentos. Marivone Chaim
19
(1974) nos mostra no capítulo III, do livro: Os aldeamentos indígenas na Capitania de Goiás: Sua
Importância na Política de Povoamento (1749-1811), que a política dos aldeamentos é o resultado
da conciliação de três tipos de interesses: da Coroa, preocupada com o povoamento e querendo
19
O estudo de Chaim apresenta os aldeamentos indígenas encarados como contribuição para a fixação dos núcleos de povoamento. Abrange um largo período: da
instalação da Capitania de Goiás 1749 à Carta Régia de 5 de setembro de 1811, revelando, não faces do problema, no início da colonização, como o marco das
mutações provenientes da política do Marquês de Pombal, encaradas, especialmente, nos seus reflexos quanto à Capitania de Goiás (CHAIM, Marivone Matos. Os
aldeamentos indígenas na capitania de Goiás: Sua Importância na Política de Povoamento (1749-1811) Goiânia: Edição do Departamento Estadual de Cultura, Editora
Oriente, 1974, 240).
54
transformar os índios em cidadãos ativos nessa tarefa; dos missionários, que desejavam a liberdade
dos índios e a sua conversão religiosa; dos colonos, que desejavam os índios como mão-de-obra.
Pode-se afirmar que em Goiás, o problema era encarado de forma ambivalente: de um
lado, a política oficial que visava proteger o índio da escravização e da morte; de outra
parte, a atitude dos colonizadores, que almejavam escravizá-lo e apossar-se de suas
terras (CHAIM; 1974: 155).
A fala de Chaim (1974:154) traduz o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente
situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens naturais contidos naquele espaço territorial. No
século XIX, os dirigentes políticos com a pretensão de realizar projetos de desenvolvimento do
comércio e da navegação, não mediram esforços para ter privilégio exclusivo do Rio Araguaia,
melhor dizendo, de todo espaço territorial local, bem como fazer prevalecer aos habitantes nativos
elementos da sua cultura, como a língua, a religião e suas práticas culturais. Para tanto, valeu-se de
sua superioridade tecnológica. Com o uso da lvora e dos metais, tentaram impor sua maneira de
viver e de pensar, convictos de ser a “melhor”.
Esses contatos permitiram ao indígena conhecer uma outra cultura que não se identificava
com a sua. A aproximação com “o outro” mostrou que “o de fora” tinha modo de pensar, de se
comunicar e de viver diferente do deles. Perceberam que “o outro”, visto na ótica indígena como “o
de fora”, não respeitava seu modo de viver. Os migrantes viam-nos como povos de culturas
inferiores e, assim, pretendiam impor sua cultura considerada superior, a qualquer custo.
Silva (2000:82) explica que a afirmação da identidade e a existência da diferença implicam
sempre as operões de incluir e de excluir [...]. A identidade está sempre ligada a uma forte separação
entre “nós” e “eles”. Nesse sentido, observa-se que “o outro é diferente do “eu”; que o “eu” não
conhece muito bem o outro”, por isso o eu” não compreende “o outro nem o outrocompreende o
eu”. Quando as pessoas são diferentes e não reconhecem a relevância de tais diferenças podem se
tornar uma ameaça recíproca.
A destruição do Presídio Militar de Santa Maria do Araguaia, pela coligação dos índios
Xerentes, Xavantes e Karajás, no ano de 1813, deixa evidente a insatisfação dos índios com as
estranhas atitudes vindas “de fora”. Na primeira tentativa de construção do Presídio de Santa Maria
do Araguaia (1811), na região onde atualmente está situada a cidade de Couto de Magalhães,
Alencastre (1863:332) afirma que “correu bem o ano, e tudo prometia que o estabelecimento não
seria perturbado, porque os índios se mostravam satisfeitos, sempre que iam de visita ao presídio
55
receber brindes e ferramentas”. Para os moradores do presídio, os índios sempre se mostraram
calmos. Mas, eles aguardavam uma ocasião mais oportuna para destruir de surpresa, aquele
presídio. Depois da destruição do presídio Alencastre emite um pensamento diferente; assegura
que eles “tinham um prazer dissimulado e fingido visto que o presídio era para eles um motivo de
desgosto, uma ameaça constante”.
As comunidades indígenas do Araguaia traçaram políticas de enfrentamento e
contraposição às políticas geradas no Brasil Império e no dia 11 de fevereiro de 1813, às oito horas
da manhã,
O presídio foi surpreendido pelo aparecimento de uma nuvem de índios armados de
lanças, flexas e porretes, vindos do lado dos campos, que se desdobravam pelos
fundos da povoação, muitos guerreiros empunhavam os fachos, com que pretendiam
incendiar as habitações dos brancos. A firmeza da marcha em que vinham, o som das suas
buzinas e instrumentos de guerra, o movimento de seus penachos tudo era imponente, e
capaz de infundir terror. Logo que se aproximaram, os índios, que até então marchavam
silenciosos, prorromperam em estrondosos brados, acordando os ecos das florestas
vizinhas: era o sinal com que costumavam anunciar o ataque (ALENCASTRE, 1863: 332).
A resistência dos índios ao avanço do povoamento é explicitamente retratada nesta cena.
Mostra bem um cenário de relação conflituosa de poder. Demonstra a grande obstinação e coragem
dos índios guerreiros que, motivados pela vingança, organizam-se num ritual de combate: das
sementes do urucum se pintam e das penas das aves nativas se ornamentam, armam-se com os
instrumentos de guerra, buzinas, maracá, arco, flechas, bordunas e ao som das canções de guerra
seguem imponentes para infundir terror ao adversário.
O objetivo maior dos índios era destruir o presídio e, literalmente expulsar “o outro” daquelas
terras. Estavam decididos a guerrear até resolver definitivamente esta questão. Ao se sentirem
afrontados não mediram esforços e, juntos, partiram para a guerra como sinal de desagravo,
vingança.
Alencastre (1863:333) assegura que o comandante, a guarnição e os habitantes de Santa
Maria mal tiveram tempo de conjeturar sobre a terrível posição. Diz que, quando Francisco Xavier
de Barros viu quão grande era o número de inimigos “saiu ao campo, gritou às armas, e num
momento dispôs a sua gente: eram apenas 12 praças, mas estas dispostas a morrer antes do que
abandonar covardemente o seu posto”.
56
A ão travou-se medonha! Sobre os 12 soldados caiu uma chuva de setas
envenenadas, mas nenhuma os ofendeu, ao passo que sobre as compactas colunas
dos silvícolas as balas produziam grandes estragos. À primeira descarga recuaram,
para voltarem com novo ímpeto: quatro vezes tentaram os índios entrar no
acampamento ao som das suas canções de guerra, e na ardente impetuosidade do
ataque, outras tantas foram rechaçadas com denodo: um ribeirão que atravessava o
fundo do presídio era um reduto poderoso, que o defendia em parte da violência dos
selvagens. Formadas a quatro de fundo, podiam as hostes inimigas, se o medo as não
fizesse trepidar, precipitar-se sobre a povoação e reduzi-la a cinzas num momento;
porém, apesar da superioridade do número, não ousaram tal cometimento.
Os carajás tentaram passar o ribeirão a nado, e operar um ataque pela frente:
conhecida esta intenção, quatro soldados voltaram suas armas para esse lado, e nos
primeiros que se arremessaram à corrente quatro balas se foram imprimir. De envolta
com as águas, lutando com a morte, foram levados pela corrente, que lhes serviu de
mortalha, os que a acompanharam nesta atrevida empresa retrocederam
(ALENCASTRE; 1863: 334).
Alencastre (1863) conta que grupos de índios da tribo Karajá, habitantes do Araguaia,
“foram ao Pontal a 80 léguas, que fica situado na ilha do Bananal” aproximadamente 52,80km de
distância do Presídio de Santa Maria convidar os índios Xerente para fazer guerra contra os
moradores da colônia de Santa Maria, justificando que os brancos tinham tomado suas terras e os
queriam cativar. Essa era a causa principal da aliança entre as três tribos coligadas que,
deliberadamente, expulsou os colonos e destruíram o presídio. Na luta pela vida, todos, inclusive
mulheres, crianças e enfermos, se envolveram de um modo ou de outro naquela guerra.
Acabado o cartuchame, eram as armas carregadas a pólvora e chumbo, sendo as
mulheres e as crianças quem preparavam as cargas; os habitantes de Santa Maria
praticaram prodígios de valor; os enfermos se levantaram dos seus leitos de dor, ou
para empunhar as armas, ou para ajudar os combatentes.
Por três vezes ferido o tenente Barros, conservou-se com a arma em punho,
encorajando os seus, e fazendo conter a fúria dos agressores.
De repente ouviu-se um grande alarido, e notou-se que, dentre os índios, um se
destacava, gesticulando com violência, e acionando para o presídio. Nesta
gesticulação, e nesses gritos, havia uma ameaça (ALENCASTRE; 1863:333-334).
Por questão de sobrevivência, o tenente Barros precisava contornar aquela situação de
modo convincente e satisfatório. Segundo Alencastre (1863:334), no presídio havia uma índia
Xacriabá, que fora retirada de seu povo para morar no presídio e que naquele momento de
desespero, o tenente Barros recorreu à índia para que a mesma lhe servisse de intérprete. Sendo
testemunha desta cena, a índia intérprete comunicou ao comandante o que os índios diziam com
aquelas gesticulações e gritos. Em específico, interpretou para o tenente Barros, as ameaças feitas
57
pelo Xavante que dizia: “baldada era a resistência, que, sendo poucos os brancos, em breve seriam
vencidos, que os agressores não largariam as armas sem conseguirem seus fins” (Apud
ALENCASTRE: 1863; 335).
O Tenente Barros pediu à intérprete para convencê-los a deporem as armas e a fazerem a
paz; ordenou que convidassem os seus parentes a virem-lhe falar. Depois desta ordem cessou o fogo.
Segundo Alencastre, a intenção de Barros era desfazer infundados receios por parte dos índios.
Assim sendo, foi um pequeno grupo ao encontro do comandante juntamente com o índio que se
supunha ser um dos caciques. Nesse encontro todos se desarmaram em sinal de paz: “depuseram os
inimigos os seus arcos, e o tenente abraçou a todos, acabando por entregar a sua espada ao que
supunha chefe. Este a recebeu, para restituí-la instantes depois” (Apud ALENCASTRE, 1863; 335).
O diálogo aconteceu graças à intermediação e apoio da índia Xacriabá. Enquanto o
comandante negociava com os índios, lá fora, a certa distância e do outro lado do ribeirão, no grupo
dos povos Xavantes e Karajás, dava-se uma cena, que veio a decidir a sorte do presídio. Conta
Alencastre (1863:335), que um grupo de índios tentou invadir o presídio pelo flanco direito; porém,
alguns dos soldados, que observaram este movimento dispararam contra eles e fizerem-nos
retroceder. Contudo, ao ouvir “o estampido da descarga, os Xerente, que rodeavam o comandante,
tentaram apoderar-se da Xacriabá, que os evitando preveniu Barros das malévolas intenções de
seus parentes”. Sua reação mostra que não pretendia mais voltar para o convívio com seu povo. A
índia havia assimilado aspectos da cultura dos colonos. A paz era impossível. Assim diz
Alencastre (1863:335):
Barros recuou, e seis soldados, que, com as armas carregadas, o guardavam de
qualquer traição, a este aviso, não tiveram mais que descarregar as armas. Os
Xerentes, atropelados em confusão, fugiram a grande distância, deixando quatro dos
seus arcando com as vascas da morte.
Quando o comandante se recolhia à sua tenda, e se preparava para sustentar novo e
inevitável ataque, chegaram os cinco soldados que pela manhã tinham ido à caça. Uma
nuvem de inimigos sobre eles se arremessou, e mal deu-lhes tempo para se
defenderem. E que defesa era possível, se estavam desprevenidos? Um círculo de ferro
os apertou, e no meio da luta a mais firme e desigual expiraram todos a golpes raivosos
das clavas dos carajás. Este espetáculo, presenciado sem remédio pelos soldados do
presídio, os fez desanimar.
As diferenças entre os universos simbólicos, que divergem de sociedade para sociedade e
que dotam os indivíduos de sentimentos de pertencimentos e exclusão se tornaram elementos
58
essenciais de conflitos entre sociedades distintas. Evidencia-se a fenomenal capacidade de luta dos
índios ao contrapor-se com os colonos para a conquista de suas terras. Para Stuart Hall (2001:85),
“o fortalecimento de identidades locais pode ser visto na forte reação daqueles membros dos grupos
étnicos dominantes que se sentem ameaçados pela presença de outras culturas”.
Afirma Alencastre que, pelas duas ou três horas da tarde, os índios suspenderam o assédio
e se retiraram para além dos bosques que rodeavam o presídio, deixando grande número de índios
sentinelas, a observarem do alto das árvores. Registra, ainda, que o tenente Barros ciente de que
a guarnição era pouca para resistir a tantos adversários, e que essa mesma se achava extenuada
de doenças, e das fadigas que tinham suportado durante tantas horas de lutas – temia que os índios
viessem em suas numerosas ubás (canoas) atacá-los pelo lado do rio; resolveu, então, ordenar que
todos os membros abandonassem o presídio, e para logo deu as ordens necessárias neste sentido.
Seus receios não eram infundados.
Ao anoitecer o som das buzinas e maracás dos índios anunciou a sua aproximação:
embarcaram-se todos em péssimas montarias, e precipitadamente e sem piloto se
entregaram à mercê das águas. – Foi uma cena contristadora a fuga dessas 38 pessoas,
que compunham o pessoal do Presídio de Santa Maria; espetáculo pungente, o que dias
depois ofereciam estes fugitivos, devorados pela fome, acabrunhados de sofrimentos, e
entregues, no meio de tantas atribulações – somente à proteção de Deus.
A canoa, em que ia o comandante, arrebatada pelas águas de uma cachoeira, alagou-
se, e submergiu-se: dois filhos seus e dez pessoas adultas foram arrebatadas pela
corrente, e no seio das águas acharam as suas sepulturas. Ao comandante restava
um filho. Salvo por sua mãe, que o disputou às águas, até consegui-lo salvar!
restava uma montaria, e esta mesma fazia tanta água que preste soçobrou, deixando
nas margens do Araguaia 25 pessoas, inanidas, e entregues ao desespero da dor.
Tinham navegado 15 dias! Em que altura se achavam esses infelizes, para onde
dirigiram os passos? Era preciso resolver em tão terrível conjuntura.
Atravessando as areias ardentes do Araguaia, internando-se pelas florestas, galgando
serras, a pequena caravana procurou o rumo norte, acompanhando as sinuosidades do
rio. Quase 60 léguas venceram em dez dias, para chegarem ao presídio de São João
das Duas Barras. Muitos faleceram nesta penosa viagem, poucos foram os que
restaram, para contarem seus padecimentos, e o trágico fim dos seus companheiros
(ALENCASTRE, 1863:336).
Todos perderam com esta guerra. Perderam, principalmente, vidas e bens. Todos foram
afetados de alguma forma. Essas pessoas passaram pela dor e pela morte de seus entes queridos
por causa do massacre. Perderam familiares e amigos. Outros perderam tudo o que tinham
acumulado durante anos: mobílias, utensílios, animais, terra, dinheiro, roupas etc. O que sobra nos
59
atos violentos da guerra é a depressão, humilhação e o desespero. As atitudes que os
colonizadores dirigem aos nativos e vice-versa resultam de um conhecimento que cada um detém
sobre os valores do outro, inclusive sobre aquilo que seria tomado como ofensa.
Este cruel acontecimento marcou a história de implantação do Presídio de Santa Maria, e se
encontra registrado em grande parte dos relatórios dos governadores provinciais. Foi um trágico
episódio, mas não foi motivo de desistência do plano de governo de implantar os presídios militares.
Apesar de tudo, muitas colônias foram implantadas à margem do rio.
As diferenças culturais entre os povos continuam a demarcar territórios. Assim sendo, o mundo
sem fronteiras não existe. Fronteiras como lugar de encontro entre duas culturas diferentes. Por
se tratar de um tema polissêmico, o conceito de “fronteirastem sido objeto de discussão por
cientistas sociais com diferentes entendimentos, tais como (Silva, 2000; Martim, 1998; Canclini,
2003). Rocha (2008:15) afirma que, para alguns autores, as fronteiras são vistas como cus
principal onde ocorrem os fenômenos de aculturão. Nesse sentido cita Cardoso de Oliveira
(1978) e Ribeiro (1977). Para outros, trata-se de fronteiras em movimento (Velho, 1972). Rocha
(2008) concebe o termo tanto no seu sentido tradicional de fronteiras poticas, quanto como
cus do encontro de culturas diferentes, como fronteiras econômicas e fronteiras sociais.
Entende que as fronteiras podem ser geogficas, nacionais, territoriais e simbólicas. Elas
separam e distinguem os países, mas tamm as nguas, as classes, os neros e os
indiduos.
Canclini (2003:345) diz que as fronteiras podem estar em qualquer parte. Assim sendo,
tornam-se, então, um espaço onde se coloca em jogo a identidade daquele e daquelas que as
cruzam, que se chocam e que se deslocam por ela e em torno dela. Ao mesmo tempo, elas
mesmas são instáveis, uma vez que se redesenham e seu lugar e papel são questionados. Além de
sua realidade empírica, atribui-se às fronteiras uma natureza simbólica, permitindo concebê-las como
local de encontro de alteridade. Fronteira como lugar de comunicação e de troca. Isso permite uma
reflexão sobre o que separa e o que une, sobre o que implica o ato de cruzá-las e sobre o que
implica a construção ou o aparecimento das fronteiras em nível de continente.
Cruzar as fronteiras territoriais e simbólicas e fincar raízes em terras distantes foi o que grupos
de pessoas de vários lugares do Brasil Império decidiram, juntamente com seus familiares e amigos.
60
Os colonizadores levaram consigo, todos aqueles valores que tinham adquirido enquanto viviam em
sua região de origem. Eram pessoas que, voluntariamente, sem pressões políticas ou socioculturais,
deixaram seu lugar de origem, por razões econômicas (crise financeira, fome, seca ou outra), para
morar à margem do rio Araguaia.
Naquele espaço, os colonizadores se encontraram com os povos nativos, que entre
entendimentos e desentendimentos, promoveram entre si um cruzamento de fronteiras culturais.
Tomaz Tadeu da Silva (2000:88) afirma que “cruzar fronteiras” pode significar simplesmente mover-
se livremente entre os territórios simbólicos de diferentes identidades. “Cruzar fronteiras” significa
não respeitar os sinais que demarcam “artificialmente” os limites entre os territórios das
diferentes identidades. Mas explica que
É no movimento literal, concreto de grupos em movimento, por obrigação ou por opção,
ocasionalmente ou constantemente, que a teoria cultural contemporânea vai buscar
inspiração para teorizar sobre os processos que tendem a desestabilizar e a subverter a
tendência da identidade à fixação (SILVA; 2000:88).
Os diálogos visando à troca de informações geraram um encontro com a diversidade, com
a diferença, o que implicou numa junção de identidades, fundadas na alteridade, ou seja, no
encontro de identidades diferentes. Este é um processo que ocorre quase que inconscientemente
no meio em que se vive. Isso ocorre obrigatoriamente com todas as pessoas que vivem em uma
outra comunidade, assimilando ou não a cultura local. É uma questão de vivência.
Entender a dinâmica da cultura é importante para atenuar o choque entre as gerações e
evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a
compreensão das diferenças que ocorrem entre os povos de culturas diferentes, é preciso saber
entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que
prepara o homem para enfrentar serenamente o mundo.
O presídio foi fundado e dissolvido por três vezes, ora atacado pelos índios que povoam as
margens do médio Araguaia, ora por própria deliberação do governo, ora por falta de recursos. Em
1812, o Presídio de Santa Maria foi construído e, em 1813 ocorreu o grande conflito. O presídio foi
palco de uma luta sangrenta entre os índios coligados de várias tribos e a guarnição do presídio. A
primeira implantação ocorreu na região onde atualmente está situado o município de Couto de
Magalhães. Um dos fatores que pesou na escolha do lugar foi o geográfico, visto que à época, era
61
um dos pontos de conexão entre o eixo de penetração fluvial no interior da província e o eixo de
comunicação com os outros centros comerciais, e até aquele momento encontrava-se totalmente
desprotegido. Reconstruído em 1850, acabou sendo desativado por ordens oficiais em 1852. Em
1859, foi novamente construído (em outra área – Araguacema - TO) e, no ano seguinte, foi
novamente atacado e incendiado pelos índios Caiapós e Karajás.
Depois de várias tentativas malsucedidas de implantação do Presídio de Santa Maria
naquela região, o Ministério da Guerra determinou, através do Aviso de 19 de novembro de 1858,
sua nova implantação no lugar que atualmente está situada a cidade de Araguacema (TO). O
mesmo presídio que foi fundado sob determinações Régias de 5 de setembro de 1811
20
, sendo
fundado sob determinações contidas no Decreto nº 750, de dois de janeiro de 1850.
Santa Maria foi realmente restabelecido e efetivado somente em 1861, no governo de José
Martins Pereira de Alencastre (1861-1862), que, seguindo as orientações de seus antecessores,
também evidenciou interesses em desenvolver a Navegação do Araguaia. Esta foi a quarta e última
tentativa de reconstrução da Colônia de Santa Maria. Alencastre, assim que assumiu a
administração da Província (22/04/1861), deu andamento nas providências deixadas por seu
antecessor, Manuel Aragão.
Antes de deixar os negócios da Província, o ex-presidente Manuel Aragão, expediu as
convenientes ordens a Frei Francisco do Monte San Victo para novamente prestar serviços
missionários no Predio de Santa Maria visto que o mesmo esteve naquele local, em 1859, e foi
atacado por grupos indígenas residentes naquelas paragens. Frei Francisco logo que recebeu o
comunicado se dirigiu para o local designado. Seguiu viagem com o navegante e negociante Simeão
Estellita Arraiano, que trafegava continuamente pelo Araguaia com carregamento de neros
alimentícios, para se dirigir ao local.
Um ano depois de sua fundação, nas noites de 12 e 13 de outubro de 1862 e no dia 18 do
mesmo mês e ano o cleo foi mais uma vez atacado pelos índios Caiapós, Karajás e Xambioás.
Entretanto, os moradores conseguiram contornar a situação. Desta vez, o núcleo se encontrava
fortalecido militarmente.
20
Carta Régia de 5 de setembro de 1811 – Veja anexo nº IV.
62
Na noite de 18 repetiram os índios o ataque com maior furor, e em maior número, que o
comandante do presídio orçou em 800, ou mais, durando o ataque desde 3 horas da
madrugada até o romper do dia, retirando-se então os índios, deixando no campo 4
mortos, cujo número calcula-se ser ainda maior pelos vestígios de sangue, que
deixaram nos lugares por onde passaram na realidade, e conforme o costume sabido
de conduzirem consigo os mortos (Trecho do Relatório com que João Bonifácio Gomes
Siqueira, vice-presidente da Província de Goiás, passou a administração da mesma ao
Sr. José Vieira Couto de Magalhães, 14 de janeiro de 1863)
Inteirando-se da necessidade de aumentar o número de força militar no Presídio de Santa
Maria, devido às ameaças de destruição por parte dos índios que residiam naquelas paragens,
Alencastre não mediu esforços no sentido de enviar um número bastante elevado de militares. Esta
ação intimidou e obrigou os índios a aceitarem aquele povoado. Outra medida foi aldear os índios
Caiapós, na aldeia do Cacique Wanaõ
21
, próximo ao Presídio de Santa Maria.
Alencastre autorizou ao Inspetor Geral dos Presídios que enviasse soldados do Presídio de
Monte Alegre (Araguaia), conduzindo além de fardamento e munições (pólvoras, chumbo e
pederneiras), dinheiro, alimentos e gado. Todas essas medidas foram atendidas a contento.
Alencastre recomendou, ainda, ao comandante do Presídio de Santa Maria, o capitão José Manuel
Marque que tivesse cautela e vigilância para com os índios.
Não empreguem a força senão em defesa, e que procure por todos os meios ao seu
alcance firmar relações de amizade com os índios, procurando convencê-los de que o
governo não os quer ofender, mas sim viver em paz com eles (Relatório com que João
Bonifácio Gomes Siqueira, vice-presidente da Província de Goiás, passou a
administração da mesma ao Sr. José Vieira Couto de Magales, no ano de 1863).
Depois de Santa Maria encontrar-se estruturada com residências, igreja, sítios, criações de
gado nos arredores e alambiques, Alencastre e os governantes seguintes providenciaram medidas
atinentes ao fortalecimento do núcleo, pois essa Colônia deveria se tornar o maior centro abastecedor do
médio Araguaia. Era necessária a consolidão do Presídio de Santa Maria como ponto imprescindível
de apoio à navegação. Alencastre estava convicto da imporncia da colônia como o futuro sustentáculo
do abastecimento. Mandou instalar na sede da Colônia Militar um armam para os navegantes; um
pequeno engenho para o fabrico de farinha e solicitou aos moradores que conduzissem para ali o gado
21
Os Caiapós e Gorotire, residentes nas imediações do Presídio de Santa Maria, viviam em contínuos conflitos. Povo de língua da família Jê. Os
Gorotire nutriam sede de vingança com os seus adversários. Os índios Caiapós se subdividem em subgrupos e os Gorotire fazem parte desse
subgrupo (Relatório da Presidência, de 1º de junho de 1876).
63
vacum e cavalar. Ainda na gestão de Couto Magales (1863-64), foi criada uma nova missão religiosa
do mesmo nome.
Pode-se considerar que, enquanto a década de 1850 foi de tentativas de reinstalação do
Presídio de Santa Maria, a década de 1860 caracterizou-se pelas lutas de fortalecimento do Núcleo e
uma preparação para a efetiva instalação da Companhia de Navegação a Vapor. Na primeira metade
da década de 1860, os colonizadores já consideravam definitiva a conquista da região.
A região escolhida para sediar o Presídio foi caracterizada como um lugar de grande viabilidade
de comunicações do dio Araguaia, fertilidade dos campos, riqueza do solo, abundância de água,
presença de boas matas, materiais (madeira, palha, argila) para a constrão das residências e para a
construção dos barcos e condições gerais de salubridade. O escoamento da produção da Província de
Gos, através do deslocamento da fronteira econômica seria possível após a resolão do grande
problema do Araguaia: catequese, povoamento e navegação. Os três fatores, interligados, eram
fundamentais na questão da instalação da Companhia de Navegação a Vapor.
Com o desenvolvimento da navegação, Santa Maria prosperou bastante e havia uma
população superior a 500 pessoas vindas do Maranhão e do próprio interior da Província,
principalmente de Boa Vista e Pedro Afonso. No ano de 1867 já contava com 120 casas.
Quase todas cobertas de telhas e algumas construídas de pedra e cal. As plantações
têm aumentado muito, assim como a criação do gado [...] não só pela procriação, como
porque tem vindo residir no Presídio fazendeiros do Maranhão, trazendo suas boiadas
(Trecho do Relatório com que Augusto Pereira França, Presidente da Província de
Goiás, passou a administração ao vice-presidente da mesma, João Bonifácio Gomes
Siqueira, em 29 de abril de 1867).
As lutas para o fortalecimento dos núcleos eram constantes. Assim como Alencastre, Couto
Magalhães também demonstrou interesse nesse projeto de fortalecimento dos presídios. Precisava
consolidá-los, pois os governos estavam convictos de que a navegação seria possível se o Vale
Araguaiano estivesse realmente povoado. Assim como o presídio de Santa Leopoldina e Santa
Maria, os presídios de Itacayú, São João do Araguaia também representaram a sustentabilidade da
Companhia de Navegação a Vapor do Araguaia. No ano de 1867, o Presídio de Santa Maria era
considerado um importante centro de referência dentre os presídios do Araguaia.
64
Incontestavelmente é o presídio mais importante, quer pela posição que ocupa, quer
pelo desenvolvimento que tem e pode ter ainda. Atualmente o presídio conta uma
população superior de 500 almas a qual tende a crescer com a aquisição de novos
habitantes que se vão para ali passando da província do Maranhão, da cidade da Boa
Vista, de Pedro Afonso e de outros lugares (Relatório da Presidência de Goyáz, Dr.
Augusto Ferreira França, de 29 de abril de 1867).
Depois da abertura do caminho que o liga a Pedro Afonso, na confluência do rio do Sono
com o Tocantins de onde vêm os gêneros que a suprem, percebe-se que surge a crença na
prosperidade da navegação.
O Presídio de Santa Maria, por sua comunicação com o rio do Sono, no Tocantins, de que
dista apenas 3 dias de viagem e, finalmente pela fertilidade do seu solo, passou a ser a
mais importante povoação do Araguaia. Com a interrupção da navegação e a ameaça dos
índios Cayapós caiu em decadência, porém parece reanimar-se, e, com efeito, é de
esperar que isso aconteça, se a empresa de navegação florescer (Relatório do Sr. Dr.
Aristides de Souza Spindola, presidente da província à Assembléia Provincial de Goyaz,
de 1 de março de 1880 – Livro de Relatórios da Presidência, 1880 - Presídios. Arquivo do
Museu das Bandeiras).
As primeiras edificações de Santa Maria foram erguidas aproveitando a topografia
natural. Na margem do rio surgem as primeiras ruas e a primeira igreja. A igreja de Nossa Senhora
da Divina Providência. O presídio foi formado por uma linha de casas simples, paralelas ao braço
do rio e cinco travessas perpendiculares, com vistas para o mesmo. Santa Maria caracterizava-se
pela indústria de alambiques de destilação da cachaça, sendo implantada quase a meia distância
entre Santa Leopoldina e Belém do Pará. Foi o presídio que mais se desenvolveu. O Sr. Dr.
Aristides de Souza Spindola, quando presidente da província à Assembleia Provincial de Goyaz, fez
o seguinte relato, em 1º de março de 1880:
Conta Santa Maria, segundo as informações que obtive, trinta e três sítios e seis
engenhos, tem alguns destes alambiques de destilação. Possui uma igreja, 15 casas de
telhas e 42 de palhas e um escola. Está colocado este posto no centro de tribos
indígenas, ao começo da sessão encachoeirada do Araguaia. É um dos melhores
postos do rio, e oferece grandes vantagens a navegação e a catequese. Será o empório
futuro de grande parte do comércio norte, e tem proporções e elementos para ser uma
das mais importantes povoações e elementos para ser uma das mais importantes de
Goyaz. As indústrias pecuárias e cachariana começaram a ter incremento nos terrenos
que o cercam. É este lugar um dos que tem sido teatro de mais encarniçadas lutas
contra os índios (Trecho do Relatório apresentado pelo Exm Sr. Dr. Aristides de Souza
Spindola, presidente da província à Assembléia Provincial de Goyaz, no dia 1º de março
de 1880 Livro de Relatórios da Presidência, 1880 Presídios. Arquivo do Museu das
Bandeiras).
65
1.3 NAS TRILHAS DA IMAGINAÇÃO
Todos os povosm seus mitos, suas creas e suas lendas inventadas, contadas e passadas de
gerão em gerão. São criões humanas que ultrapassam a realidade. o rios tipos de histórias
antigas. Cada lenda com sua própria hisria, seus mitos e seus motivos de existirem. Umas denotam
medo, outras são muito engraçadas. Afinal, o que leva o ser humano, na sua imaginão, a criar algo tão
absurdo, algo o ilusório? o inventadas com tamanha riqueza de detalhes, com tramas intrincadas e
variadas que chegam a causar, naqueles que as ouvem, fascínio, medo ou pavor. Dependendo do
lugar e horio em que uma lenda é contada, chega a provocar no ouvinte sonhos assustadores ou
espirituosos. As lendas surgem do imaginário humano. É a tão conhecida sabedoria popular. O
imaginário dos povos ribeirinhos é fértil de mitos e lendas, muitos acreditam que o rio e as matas são
povoados de criaturas estranhas.
O rio é um símbolo de fluidez de ideias para os contadores de causos, lendas, contos e
mitos. Embora esses tipos de manifestações culturais não se restrinjam aos ribeirinhos residentes
nas margens do rio Araguaia, eles se fazem presente no seu imaginário
22
. Diz Ribeiro da Silva
(1934): O meio geográfico original e inculto, os selvagens apenas pacíficos, os escassos sertanejos
vegetando a vida rude e cheias de superstições constituem ainda muitos motivos do obscurantismo.
O Araguaia continua a ser uma região lendária, enleada de mistérios. O mundo dos índios do
Araguaia é habitado por um grande mero de personagens lendários. Os Karajás, por exemplo,
consideram grande parte ou a totalidade dos animais que existem aqui na terra pertencentes ao
ijasò que vive nas profundezas do rio. Nessas profundezas também vive o solitário Aruanã, filho de
Aruá e primo dos Arumanás.
22
O conceito de “imaginário” será entendido aqui, a partir das reflexões de Cornelius Castoriadis (1991:339). Segundo Castoriadis, a questão do
imaginário é repensada como sendo um mundo de significações estabelecido na e pela passagem entre um mundo “natural” ou “real” e um mundo
social-histórico. Além do mais, o próprio Castoriadis (1991:399) propõe que a ideia de imaginário também não pode estar centrada, e, de certa forma,
limitada, unicamente aos aspectos que constituem um mundo social-histórico, ainda que dele façam parte. Entretanto, a noção de imaginário também
não pode ser pensada como algo isolado de qualquer contexto, independente e abstrativamente impossível de ocorrer. A proposta de reflexão acerca
desses entre mundos, conforme proposto pelo autor, reside na criação de uma ideia de imaginário que seja sempre superior a “concretude” do mundo
que lhe teria dado origem. Afinal de contas, o imaginário vai sempre além. Assim ele diz: “O mundo das significações cada vez instituído pela
sociedade não é evidentemente uma replica ou um decalque (“reflexo”) de um mundo “real”, nem tampouco sem relação com um certo ser-assim da
natureza” (CASTORIADIS, 1991:399).
66
1.3.1 A Lenda de Aruanã
Aruanã filho de Aruá e primo dos lendários Arumanás –, vivia solitário e triste dentro
das fundas águas do imenso Araguaia. Ele era um eterno enamorado da vida terrestre,
particularmente da vida do homem. Um dia, a poderosa Jururá-Açú, deusa das chuvas,
do orvalho e irmã de Iara, impelida por sagrado desejo, chamou em meio das águas, os
angás, os arumaçás e seus filhos, para irem honrar o poderoso Boto, senhor das águas,
na funda Loca onde habitava o deus marinho. Todos os seres das águas do volumoso e
imenso Araguaia correram para o fundo do rio, a fim de erguerem suaves preces entre
cantos e louvores. Somente Aruanã não conseguiu com a turba e exclamou: ”Pobre de
mim, nas águas nasci, nas águas me criei, contudo já não tenho felicidade!” Assim falou
o valente Aruanã e colocando a cabeça fora da água, continuou: ”Ó pai Tupã, se a ti
próprio te apraz, a felicidade de um pobre mortal, se propício a mim, faze-me um ser
humano e, se algum dia eu tenho que morrer não me deixe nestas águas, tira-me
delas”. Tanto suplicou Aruanã que sua prece acabou sendo ouvida. No aprazível e
sagrado monte Ibiapaba, Tupã observou com seus olhos divinos e compadecidos o que
estava se passando nas margens do rio Araguaia. ”Vai tu Polo e satisfaz os desejos de
Aruanã”. Obedecendo as ordens do supremo, o deus do vento, aproximou-se do local
onde estava o formoso peixe e tomando-o levou-o para o verde campo. Ӄs tu, um
valente guerreiro, Tupã mais do que dele esperavas!” Assim disse Polo, o deus dos
ventos e desapareceu. Ó maravilha! Ali estava um homem! Então vieram, por ordem do
criador, as belas e divinas Karajás deusas da honra, do bem e da justiça e assim
falaram: ”Aruanã, peixe foste tu; Aruanãs hás de chamar-te daqui para o futuro.”
(www.rosanevolpatto,tdr.br).
Foi deste modo que nasceram os valentes Aruanãs. Os Karajás, que foram habitar as
margens do Araguaia, todos os anos organizam o sagrado Ritual do Aruanã, com suaves danças e
divinos cantos, em homenagem ao inesquecível Aruanã, pai da nação Karajá.
Contar lendas e mitos é uma prática social antiga que es se perdendo, tanto por falta de
tratamento adequado que inclua a sua valorização, como por falta de espaço e de tempo no agitado
mundo contemporâneo, tendo em vista que os conteúdos dimicos da memória social, em especial os
transmitidos oralmente, estão sujeitos aos incidentes imperativos do tempo, sob pena de serem
descaracterizados em sua essência e, sobretudo, esquecidos. As lendas são elementos linguísticos,
passadas de geração em geração como método de educação e de preservação dos valores
culturais adquiridos.
67
1.3.2 A Lenda da Serpente
A lenda da serpente era temida pelos barqueiros navegantes e moradores ribeirinhos. Maria
de Fátima Oliveira (2008:93) escreveu sobre esse tema tão instigante e afirma que os barqueiros
“atribuíam a esses seres monstruosos os acidentes causados por funil, rebojos e cachoeiras”. A
serpente era conhecida como uma grande cobra, chamada de “boiúna”. Segundo a lenda, a boiúna
é uma cobra muito comprida, semelhante à sucuri. Além da lenda da boiúna, os ribeirinhos contam
a lenda do negro d’água, conhecido como ‘negod’água. Essa lenda também é muito difundida no
rio Tocantins e Araguaia. As lendas, segundo Couto Magalhães (1975:108),
formam o fundo das tradições dos índios, visto que constituem o atual fundo dos contos
populares do interior: o povo não pode ter indicações que não sejam as que recebem da
Europa, as que vieram da África ou as que vieram dos indígenas. Ora, as lendas não
são africanas, nem européias, pois os animais que nelas figuram são sul-americanos,
assim como, americanas, são as árvores, as circunstâncias, os hábitos e costumes que
aí se descrevem, com admirável singeleza e propriedade.
As figuras de lendas e mitos povoam o imaginário dos ribeirinhos, enriquecendo o universo do
folclore local. A lenda da “cobra de Aruanã” e do “enterro” é contada por João dos Santos Melo
23
, morador de
Aruanã, que passa seu tempo resgatando e registrando as histórias contadas pelos seus amigos, moradores
do lugar.
Conta a lenda que debaixo da igrejinha de Aruanã (primeira igreja do lugar) passa um
rio subterrâneo onde vive uma grande cobra ou uma serpente. Antigos moradores
ouviam, no silencio da noite, os sons emitidos pela serpente (João de Melo, 2008).
1.3.3 A Lenda do Enterro
O Enterro consiste em enterrar a fortuna, joias e dinheiro de cobre, de prata ou de ouro. Diz-
se que a pessoa recebe o enterro através do sonho. O falecido vem em sonho mostrar, para a
pessoa que ele pretende entregar sua herança, o lugar onde ele enterrou a fortuna. A pessoa que
recebe o enterro no sonho deve ir ao local, sozinho, fazer o desenterro. Segundo a lenda, o
escolhido não pode ir acompanhado de outras pessoas. Caso ele leve alguém para ajudar a realizar
23
Melo, João dos Santos escreveu: ABC do Araguaia (1989), Melro (s/d), Terra Braba (2000), Eu Radioamador primo pobre (2004) Banzeiro
(2005) e Remanso (2007). Sem se preocupar com os rigores científicos João do Santos deixa registrada, nas referidas obras, a história de
vida das pessoas amigas que, como ele, vivenciou o cotidiano ribeirinho. Misturando personagens sobrenaturais com fatos da realidade
João do Santos escreve a história local para dar sentido à vida e ao mundo que o cerca.
68
o desenterro, ele pode encontrar, no lugar especificado, apenas carvão e marimbondos, e o
demônio ainda pode persegui-los. Assim diz João dos Santos de Melo:
Meu compadre disse que recebeu um desse enterro. Disse que o enterro estava na
frente da igrejinha. Ele tinha que ir só, mas foi com dois ou três companheiros.
Começaram a cavar, quando, de repente, chegou ao carvão! (Tensão! Grifo meu)
Assustado ele falou: deu no carvão. Veio um vento frio, todos de arrepiaram e
largaram as ferramentas e dispararam a correr. Correram com medo do capeta que
dizem que vem para atrapalhar o desenterro da fortuna (João de Melo; 2008).
João de Melo relata, ainda, que, quando o falecido vem pedir para fazer o desenterro, é
porque ele está preso espiritualmente e o capeta vai fazer de tudo para atrapalhar sua libertação. O
capeta fica ali vigiando para que nenhuma pessoa possa pegar a herança deixada pelo parente ou
amigo.
Edson Duarte relata que, nas proximidades do Presídio de Santa Maria, no córrego
conhecido por Vale, situado paralelo ao Remansão, se extraía ouro o qual era enviado para a
capital da província de Goiás, via Santa Leopoldina através das embarcações a vapor.
Ilustração
9
Primeira igreja de Santa Leopoldina – Atual cidade de Aruanã.
Fonte: arquivo da autora, 2007
69
No Presídio de Santa Maria havia um feitor muito amigo de D. Pedro II. Certo dia, um dos
vapores trouxe a notícia que havia sido proclamada a República e que D. Pedro II tinha
sido expulso do Brasil. Diante da notícia, o feitor não mandou o ouro na embarcação e à
noite atravessou o Araguaia e enterrou 3 potes de ouro em na ilha que fica em frente
ao povoado, a ilha que hoje é denominada de praia da Gaivota (Edson Maranhão
24
,
2008).
O fértil imaginário popular dos ribeirinhos nos remete a um mundo rico de valores e nos
revela sentimentos que são desabrochados nos mitos, lendas e superstições. Essas lendas são
frutos desse imaginário que se transformou no senso comum coletivo e são transmitidas há séculos.
1.3.4 A Lenda da Igrejinha
Em Araguacema existe a lenda da igrejinha. A Igreja Nossa Senhora da Divina Providência
foi a primeira construção em pedra canga a ser erguida no Presídio de Santa Maria do Araguaia. Foi
erigida pelos escravos e soldados do presídio sob orientação do missionário Capuchinho frei
Francisco do Mont Sant Victo, no ano de 1861.
Assim como a primeira igrejinha de Aruanã, a igrejinha de Santa Maria também é um Lugar
investido de memórias. É um patrimônio histórico. Esses lugares serviram de cenário para muitos
casamentos e batizados, que ficaram registrados por vários padres e freis franciscanos. Nelas foram
24
DUARTE, Edson Maranhão reside em Belo Horizonte. Nasceu em Araguacema em 16 de janeiro de 1938. Profissão: empresário. Entrevista
concedida em 20 de julho de 2008, na cidade de Araguacema (TO).
Ilustração 10
Igreja do Presídio de Santa Maria do Araguaia. Esboço de Henri Coudreau, 1987. Fonte: museu das
Bandeiras, Cidade de Goiás – GO.
70
agregados valores de existência, cognitivo e cultural e levam consigo muitas histórias. Histórias de
suas fundações, história de seus cultos, história de seus casamentos e batizados, histórias alegres
e histórias tristes. Histórias de velórios e enterros, histórias de invasões indígenas. Quantas
lembranças e memórias têm naqueles lugares. Tem até lenda. A igrejinha de Santa Maria, hoje
apenas ruínas, tem a lenda das três pedras.
Conta a lenda que Frei Francisco, ao erguê-la, colocou três grandes pedras cangas, na
parede à direita da entrada principal, uma sobre a outra, em posição vertical. Frei Francisco
proferia sempre em suas falas que cada pedra representava uma catástrofe se elas fossem
retiradas daquele lugar. Afirmava convictamente aos fiéis que a cidade iria sofrer três maldições,
caso elas fossem removidas indevidamente. Cada pedra representava uma catástrofe: a primeira,
uma grande enchente; a segunda, um ataque de grupos indígenas à cidade; e a terceira, uma
grande invasão de insetos, precisamente gafanhotos. A população mística temia que se alguém
destruísse a igreja e, consequentemente, retirasse as pedras daquele lugar, a cidade sofreria
todas as referidas conseqncias. Ahoje preservam a igreja em respeito à sua história.
Naquela igrejinha, de frente ao altar de concreto, Frei Francisco celebrava as missas todos
os domingos, feriados e dias santos, onde era comum as pessoas frequentarem para rezar e cantar
ladainhas, pedindo proteção à padroeira local, Nossa Senhora da Divina Providência,
principalmente contra os ataques indígenas. Os moradores acreditaram na profecia do padre que é
repassada de geração em geração. Os moradores de Araguacema, filhos da terra, guardam na
memória lembranças de infância da pequena igrejinha.
Ela foi construída num lugar especial, em frente ao majestoso rio Araguaia. Foi edificada
com o propósito de servir à comunidade religiosa que para ali deveria afluir aos domingos e
feriados. Em 1980, a cidade de Araguacema é marcada pela grande enchente do rio Araguaia. A
cidade foi toda inundada. Foi considerada a maior enchente de todos os tempos, sem deixar de
considerar a grande enchente de 1926. A igrejinha se transformou em ruínas, seu telhado desabou.
Apenas as paredes externas laterais permaneceram em pé. De sorte que as três pedras continuam
erguidas até hoje. Lenda ou realidade, a igrejinha ficou eternizada na memória de cada
Araguacemense, que se orgulha de contar a sua história.
É comum os mais velhos estar atentos fazendo advertências quando crianças vão
brincar nas proximidades da igreja, afirmando: “Cuidado com as três pedras! Quem não
71
se lembra das histórias da tia Chica Preta, rezadeira e narradora das profecias de Frei
Francisco? Moradores clamam a Nossa Senhora da Divina Providência para que proteja
a sua ruína! Caso contrário ficará apenas nos anais da história (Ione Carvalho, 2008).
O folclore brasileiro é rico de lendas. Os relatos dos mitos, lendas e superstições se
perpetuam pelas palavras faladas. As lendas e os mitos são criados e transmitidos por tradição oral.
Misturam fatos reais e históricos com acontecimentos que são frutos da fantasia. O principal intuito
era explicar fenômenos naturais, culturais ou religiosos que não tinham explicação original. Eles se
situam entre a razão e a fé. Nesse imaginário popular, a figura da “grande cobra ou da serpente”, “a
lenda do enterro ou das três pedras”, estão intimamente associadas à vida do lugar e ao rio.
1.3.5 A Lenda dos Martírios
Hemano Ribeiro da Silva, em seu livro intitulado Nos sertões do Araguaia Narrativas da
expedição às glebas bárbaras do Brasil Central, conta que, junto à correria Grande, no pido dos
Martírios, por ocasião das águas vasantes, que se comprimem em um canal de 20 metros, saltam à
vista numerosos sinais gravados numa pedra à esquerda, que, se olhados superficialmente,
assemelham-se ao quadro dos suplícios de Jesus. Ele diz: “Frei Luiz Palha, dominicano da
catequese de Conceição, deu-me a propósito, a sua opinião de brilhante investigador das coisas
sertanistas”:
Há a impressão sobre o rochedo trações curiosos, vestígios de uma raça índia diferente
dos Carajás e inteiramente desaparecida, ao menos das regiões do Araguaia. Neste
ponto o rio se atira por entre as rochas e passa como que por estreita garganta.
Estes vestígios talhados na pedra dura dos Martírios são pintura e desenhos primitivos,
circunferências bem traçadas, por exemplo, que tiveram como autores os índios da raça
tupi, habitantes da região e muitíssimo anteriores aos Carajás. Os Carajás me falaram
dos vestígios como remontando os tempos em que Cananchioué (o deus bom) estava
na terra. Acha-se a maneira tradicional dos tupis em representarem Tupã (o seu deus
poderoso). São grandes circunferências rodeadas de raios, à semelhança do sol. São
tão perfeitamente traçadas que ao primeiro golpe de vista se crêem gravadas por mãos
de artistas. Vêem-se também flechas e crocodilos, sendo um com 2 ventres. Mas o
mais curioso é uma espécie de labirinto tão regular que parece feito com um compasso.
Ao lado do labirinto distingue-se um signo, que se julga de princípio ser um dos signos
do zodíaco. A balança. Marcando os 4 pontos cardeais, os índios gravaram na pedra 4
grandes círculos de raios uniformes, com uma semelhança de suportes, que o a
impressão ao menos momentânea de 4 ostensórios (SILVA, 1934).
72
Além das lendas, os mitos e símbolos povoaram o imaginário dos bandeirantes, navegantes
e moradores do Araguaia. Muitos navegantes e índios reconhecem os desenhos e pinturas
esculpidas na pedra dura dos Martírios, como realização sobrenatural.
1.3.6 O Mito da Lagoa Paraupava
A imensidão do Araguaia também promoveu o mito da lagoa Paraupava. Esse mito foi
criado pelos índios do Araguaia que informavam aos cartógrafos portugueses a existência de uma
imensa lagoa no interior do grande sertão. Dessa lagoa nasciam dois grandes rios que se dirigiam
para a foz do Amazonas e para o rio da Prata. Era a lagoa Paraupava.
A lagoa Paraupava era um mito indígena adotado sem restrições pelos povoadores
portugueses e pelos cartógrafos portugueses, e copiados pelos cartógrafos europeus, que a
reproduziram em seus mapas do Brasil. Os índios da costa do Brasil (incluindo a foz do rio Prata) é
que informavam aos portugueses que todos os rios que davam à costa, tinham suas nascentes
nessa grande lagoa (Memórias Goianas I, 1981:174-187).
Surgia, assim, o mito da lagoa Paraupava. Sua história inicia-se no período de intenso
bandeirantismo em direção à Lagoa Paraupava (lagoa Dourada). A lagoa Paraupava foi inserida nos
mapas do interior do Brasil e ficou solidamente estabelecida. Segundo Ferreira “não um
documento histórico que seja que demonstre alguma dúvida, no século XVI, por parte de quem quer
que seja. Todos, reis, sertanistas, bandeirantes, governadores, cronistas, historiadores acreditavam
na existência da célebre Lagoa”. (Memórias Goianas I, 1981: 175).
Após anos de estudos cartográficos o mito foi desfeito. Ferreira
25
(1981) afirma que os
sertanistas de São Paulo, tentando conhecer o interior do Brasil, verificaram que não havia lagoa
alguma e que os rios Paraupava (hoje Araguaia), São Francisco e Paraguai tinham nascentes
independentes. Identificaram, ainda, a célebre lagoa com a grande ilha do rio Paraupava, à qual
deram o nome de ilha Paraupava (hoje ilha do Bananal). Essa identificação resultou do fato de essa
ilha, que tem cerca de 400 quilômetros, ficar dois terços submersa na época das cheias de fim de ano.
25
João Afonso (1528) escreveu na sua obra Voyages Aventureux du capitaine Jean Alfonce e Cosmographie, que, no interior do grande sertão, havia
uma imensa lagoa, a Lagoa Paraupava. A história da Lagoa Paraupava é relatada pelo historiador e sertanista, Manuel Rodrigues Ferreira em
Memórias Goianas I, 1981.
73
Dessa maneira, os bandeirantes de São Paulo destruíram o mito da Lagoa Paraupava e forneceram
aos cartógrafos portugueses os primeiros elementos geográficos concretos do interior do Brasil.
Assim, a partir de 1628 e 1630, os mapas elaborados em Portugal, omitiam a célebre lagoa, e no
Paraupava (hoje Araguaia), a ilha Paraupava (hoje ilha do Bananal), localizada exatamente onde
anteriormente se localizava a grande lagoa (Memórias Goianas I, 1981: 174-175).
Essa denominação aparece pela última vez no mapa do cartógrafo português Antônio
Sanchez, em 1641. A partir da metade desse século XVII os sertanistas e jesuítas de
Belém do Pará, que começaram a subir o rio, passaram a dar-lhe o nome de Rio
Araguaia, depois simplificado para Araguaia (Memórias Goianas I, 1981:187).
Paraupava é uma palavra indígena que se decompõe assim: Pará+u+pava, sendo que “pará
u” significa “água grande ou lagoa grande”. Daí ter surgido o nome Grão Pará, dado à foz do hoje rio
Tocantins, em Belém. Aliás, os mapas portugueses dessa metade do culo XVII, às vezes
somente denominaram rio Pará ao hoje Baixo Tocantins. E em muitos mapas regionais de Goiás, do
século XVIII, aparece o nome do hoje rio Araguaia, como sendo rio Grande, que é uma tradução de
“Pará u” (onde “pará” passa a significar “rio”, pois os bandeirantes de São Paulo davam ao rio o
nome de rio Paraupava) (Memórias Goianas I, 1981:187).
Manuel Rodrigues Ferreira (1981) afirma que no século passado, após a independência,
muitos historiadores brasileiros, desconhecendo a abundante documentação que hoje temos em
mãos, passaram a confundir o mito da lagoa Dourada com outro mito, o do El Dorado, da América
Espanhola, situado acima do rio Amazonas. Ainda, segundo Ferreira
:
El Dorado era um índio que se pintava de ouro e habitava um lago onde havia muito
ouro. Esse lago do El Dorado foi procurado por muitos europeus, inclusive identificado
pelo cientista Alexander von Humboldt, em 1801, na Colômbia. Era o lago do El Dorado,
o atual Lago Guatavita, na Colômbia (Memórias Goianas I, 1981:187).
Este e outros “mitos”, contados através dos culos, acabaram se misturando ao imaginário
popular, e que com o tempo foram adquirindo vida própria, como a maioria das histórias que são
repassadas de geração em geração. O Araguaia se tornou um extraordinário arquivo de lendas,
criadas pela superstição dos índios e sertanejos. A maior cópia delas guarda o sabor do ineditismo
na nossa literatura.
74
I I P A R T E
2 A N A V E G A Ç Ã O R O M P E F R O N T E I R A S N A S Á G U A S D O
A R A G U A I A
A passagem de Itaboca
26
Escaldava o rigor de um ardente mormaço a paisagem silente;
Os marujos suarentos cansados de aturar os horríveis tormentos pediam com aflição, a
devassar o espaço, um fio de brisa fresca;
E muito além, no escuro d’água mesclado com horizonte, a gente bruta distinguia o local do
temeroso furo onde ia começar acesa e rude a luta;
E o Araguaia espelhava, invicto e diferente, a linda perspectiva;
As praias muito brancas eram quebradas aqui e ali pelas barrancas cobertas de sarã;
Mas um silvo estridente da pequena chalupa acordou a equipagem, anunciando o perigo...
A embarcação desloca a força superior...
Um grito de coragem saúda o espadanar do salto de Itaboca;
E o ruído sobe, aumenta e por fim ensurdece toda a tripulação como eco doloroso;
Palpitam corações, mas acendida cresce de outros a animação no transe perigoso...
Era a primeira vez que a tentativa humana, num louco devaneio, a sonhar com o futuro,
governava o vapor em direção ao muro de rochas, onde a água crepita e ruge
insana;
De pé no tombadilho, ansioso de glória, o capitão saudava a aproximação do hiante e
imenso abismo, com a força alucinante de quem vai para frente, abraçando a viria;
26
Retirado da Revista Nos Rosais do Silêncio. Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, criada pelo Decreto-Lei 475, de 25 de
março de 1944 da prefeitura municipal de Goiânia. Arquivo do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás (GO).
75
E de seu coração de grande brasileiro, ante o esplendor da majestosa catadupa,
formidando hurrah! sai abalando a chalupa, como ovação a maravilha do cruzeiro;
E lesta a embarcação – uma casca de noz – pela escarpa de rocha, esbatida pela água, se
embrenha destemida a se bater na fraga, enquanto do piloto atroava a rouca voz...
E a linfa a espadanar, borbulhando raivosa, atrai ao sorvedouro o barco aventureiro, que
Couto Magalhães, sublime e grande obreiro, conduzia a Goiáz nossa terra formosa;
Um grito de terror se confunde com o ruído medonho da cachoeira e a brava marinhagem
sente a morte adejar e esmaecer a coragem;
Daquele o coração salta e bate transcendo de medo e de outro a mente enfraquecida esvai
ameaçada a loucura, e de todos o alento já está quase perdido...
E água como um tormento não acessa de rugir...
Cresce...
Sobe...
Vem...
Vai...
Quando o barco atingiu o apogeu da disputa com o abismo, o capitão, sereno e destemido,
ao piloto silvou: para a frente e sentido! havemos de vencer ou perecer na luta!....
Medo...
Morte...
Terror...
E a bater nos rochedos o pego enfurecido ululava raivoso,
como um demônio a chocalhar, estrepitoso, seus guisos infernais,
desafiando os penedos;
De repente, a chalupa, estacando,recua
O piloto estertora: “ é impossível romper”!
Troveja o capitão: “para frente ou morrer”!
E no piloto aponta a arma luzente e nua...
“mas já excede a pressão, a caldeira estaleja”!
“avançar ou morrer! Repete o capitão;
E da água só se ouve o tremento gorgolhão, a sibilar furioso, ativando a peleja...
E o prudente piloto, elevado no heroísmo de Couto Magalhães, emprega o
último esforço e, protegendo da chalupa o fraco dorso, se atira
loucamente ao encontro do abismo...
Um crepitar de ferros.
Gritos...
Ais...
E pranto...
Agonia...
Incerteza...
76
E a prece, em cada boca, circula docemente, entre o medo e o espanto, no
meio da infernal cachoeira de Itaboca;
O manômetro pára...
As válvulas apitam...
A chalupa vem...
Volta...
Oscila...
E fere o abismo...
A água protesta e envolve-a inteira em paroxismo de cólera
incontida;
Os tripulante gritam ...
E de repente, no estertor de outro arremesso, o mineiro triunfante excede o
precipício; transpõe o sorvedouro, o fervente bulício, garboso surge
além sem o menor tropeço:
Estava enfim vencido o salto de Itaboca.
E depois na coberta,os rudes marinheiros se abraçavam, chorando, aclamando
seu guia, chefe ardoroso que no transe audaz vencia a lei da natureza;
Os cerrados nevoeiros e as barrancas de rocha atrás iam ficando, como
guardas do tempo e marco desse feito que a historia registrou para
futuro proveito do nome brasileiro, invicto e memorando.
No século XIX, o governo Imperial se mostrou interessado no melhoramento das vias
navegáveis do Brasil Império com a pretensão de estabelecer comunicação comercial do centro do
Brasil com o litoral. Nesse século, a política governamental de Goiás delineia-se rumo ao
aproveitamento técnico das vias fluviais da bacia Araguaia Tocantins
27
. Gandara (2008: 59), ao
retratar a efetivação da implantação das Companhias de Navegação a vapor nas águas
Parnaibanas diz que, “a concretização da estrada líquida fluída na medida em que era encarada
como inauguradora de novos tempos na Província, carregava em si o germe da redenção
econômica”. O mesmo pode ser dito sobre a navegação a vapor nas águas do rio Araguaia. A
navegação fluvial brasileira apresenta-se nesse período como meio capaz de propiciar novas
condições de vida fundamentada no intercâmbio mais efetivo com o exterior. Oliveira (2008) afirma
que
os rios passam a ser vistos, principalmente no discurso dos Presidentes da província,
como uma nova fronteira a ser conquistada e ocupada sistematicamente, para
27
Em 1782 foi liberada a navegação pelos rios Araguaia e Tocantins, que ficara interrompida desde 1733 devido ao contrabando do ouro.
77
possibilitar uma ligação como o litoral, uma saída em duplo sentido, como caminho e
como meio de salvar a Província do marasmo em que se encontrava (OLIVEIRA,
2008:60).
Até 1782, o tráfego do comércio de Goiás, via fluvial, com o Pará, estava proibido devido ao
contrabando de ouro
28
. Com o declínio da mineração e a crise econômica que se abatera na
Província de Goiás, os dois grandes rios Araguaia e Tocantins passam a ser considerados os
escoadores naturais do sertão goiano; o caminho mais indicado para o desenvolvimento do
comércio e integração com as vastas regiões do Brasil. Foi um período em que o governo Imperial
deu andamento à conquista de novos espaços territoriais em vários rios das bacias hidrográficas
brasileiras.
Os governantes optaram pela via fluvial como um meio mais viável de comunicação devido
à falta de estradas, fator que dificultava o acesso dos comerciantes aos centros consumidores. Os
povoados se comunicavam entre si, por trieiros, picadas. A falta de estrada constituía um dos
maiores entraves à expansão agropastoril.
As atenções, tanto por parte do interesse privado, quanto dos governantes estavam de certa
forma voltadas para as tentativas de se estabelecer uma comunicação comercial do centro do Brasil
com o litoral norte, pelo aproveitamento da via fluvial Araguaia e Tocantins. A ligação com os portos
marítimos promoveria o escoamento da produção destinada à Metrópole portuguesa. Para se tornar
possível o trânsito dos viajantes, era preciso cogitar, antes de tudo, a fixação de núcleos de
povoamento. A criação de presídios garantiria a defesa e o escoamento da produção e serviria,
também, de pernoite aos viajantes, facilitando as comunicações entre Capitanias, o
desenvolvimento da região e, consequentemente, beneficiando a metrópole portuguesa.
O governo imperial, ciente da decadência acentuada da Capitania de Goiás, adotou
medidas com o intuito de promover o desenvolvimento da agricultura, da pecuária e da navegação
dos rios Araguaia e Tocantins, bem como resolver questões atinentes aos povos indígenas que
habitavam às margens do Araguaia, com a criação de aldeamentos que foram executadas ao longo
do século XIX.
Teotônio Segurado, Ouvidor de Goiás, ciente da insatisfação reinante na Capitania, se
expressa no documento “Memória Econômica Política sobre o Comércio Ativo da Capitania de
28
Veja mais sobre o declínio do ouro no Tocantins em Apolinário: Os Akroá e outros povos indígenas nas Fronteiras do Sertão, 2006.
78
Goiás”, datado de 20 de abril de 1806. Neste manuscrito ele descreve várias causas que
contribuíram para a decadência em que se via a Capitania, como também, sugestões
“salvadoras” atinentes ao desenvolvimento econômico de Goiás. Depois de registrar seus estudos
sobre a região, Segurado redigiu um documento expondo a realidade local e apresentando medidas
atinentes ao desenvolvimento de Goiás. Em suas considerações, não deixa de referir-se ao
isolamento do norte e dos problemas econômicos existentes na Capitania. Concluiu que:
Uma povoação isolada limita-se à agricultura; [...] ela comerciará, mas o seu comércio
além de interno, nunca passará de ser proporcionado aos seus objetos: e ela viverá em
uma quase continuada desgraça; porque ou as colheitas são abundantes, ou escassas:
no primeiro caso os agricultores não conseguirão as produções do seu trabalho, preços
proporcionados à despesa da agricultura; no segundo os artífices e negociantes apenas
poderão conseguir os necessários mantimentos para subsistência; uma grande parte do
povo padecerá, e muitos gados perecerão de fome [...] A Capitania nada exportava; o
seu comércio externo era absolutamente passivo, os gêneros da Europa vinham em
bestas do Rio de Janeiro, ou Bahia pelo espaço de 300 léguas, chegavam caríssimos;
os negociantes vendiam tudo fiado: daí a execuções, daí a total ruína da Capitania [...]
(Joaquim Teotônio Segurado - Memória Econômica e Política sobre o Comércio Ativo
da Capitania de Goiás, 1806).
Ao explanar sobre as vantagens financeiras da comercialização com o Pará, pela via fluvial,
Segurado relaciona alguns produtos com seus respectivos preços que poderiam ser os gêneros do
comércio ativo na própria Capitania de Goiás como também nas capitanias beira-mar, especialmente
com a Praça de Belém (PA). Cita como exemplo, o algodão em rama, um produto nativo e abundante,
cujo preço em Goyaz era de 2$400 e do Pará, Rio 5$000. O algodão tecido (a vara) em Goyaz $150 e
no Pará $250, açúcar no Goyaz (arroba) 1$800 e no Pará 3$200, aguardente no Goyaz (barril) 1$800
e no Pará 6$000, rapaduras no Goyaz a $0,75 e no Pará a $$320, café (arroba) no Goyaz 1$800 e no
Pará 3$600, toucinho (arroba) no Goyaz 1$800 e no Pará 3$600, carne seca (arroba) no Goyaz 2$00
e no Pará 1$600, sola (hum meio) no Goyaz $600 e no Pará 1$600, couro de veado (hum) $450 e no
Pará $900, fumo (hum rolo) no Goyaz 1$500 e no Pará (a vara) $160, feijão (o alqueire) no Goyaz
$200 e no Pará 4$000, além dos produtos oferecidos pela natureza como a resina, o ruibarbo, o anil e
outras plantas mais,
cujos produtos o pouco volumosos, e de grandes preços, sejam mais interessantes
ao comércio desta Capitania, e a dos quais resulte maior utilidade à Metrópole.
(Joaquim Teotônio Segurado Memória Econômica e Política sobre o Comércio Ativo
da Capitania de Goiás, 1806 – anexo I).
A respeito dos produtos exportáveis, Teotônio justifica a importância e a qualidade de cada
um deles:
79
O produto desta Capitania é todo branco, as árvores o produzem quatro (4) ou mais
annos, e é de fácil cultivo. Goiás pode exportá-lo não para o Pará como também
para a Bahia, através dos tropeiros que vão a S. Reinado buscar sal da terra e que
deverão levar as suas bestas carregadas deste gênero (Joaquim Teotônio Segurado
Memória Econômica e Política sobre o Comércio Ativo da Capitania de Goiás, 1806
anexo I).
O consumo do algodão nesta Capitania era muito alto, devido ser o tecido grosso deste
produto a única fabricação permitida no Brasil pela Legislação vigente. Para este produto, Teotônio
sugere um aumento de manufatura. Sugere que o açúcar, por ser, à época, abundante, entrasse em
concorrência com todas as Capitanias Marítimas e até mesmo propõe que seja importado para a
Europa. Quanto a outro derivado da cana-de-açúcar, a rapadura, apesar de ser um gênero de fácil
aceitação, afirma que é necessário que não se façam grandes carregamentos e nem se exportem
para a Europa, pela falta de duração. É aconselhado que o seu consumo não se estenda muito
longe do Pará”. Quanto ao feijão, a vantagem seria que quaisquer moradores da Capitania, ricos e
pobres, poderiam plantar, por ser uma atividade bastante fácil. Ao contrário da rapadura, a produção
do café traria grande vantagem, pois seria vendido no Pará e em outras capitanias brasileiras e
ainda exportado para a Europa. Considerou o fumo o gênero mais vantajoso para o comércio desta
Capitania. A atividade de salgar a carne de boi com os ossos e conduzi-la para o Pará ainda em
salmoura vinha sendo praticada. A criação de suínos encontrava-se limitada devido à falta de
cultivo da mandioca “[...] é necessário que os escravos se acostumem do seu uso, a fim de facilitar
o aumento da criação dos porcos e por consequência a abundância de toucinho” (Joaquim Teotônio
Segurado Memória Econômica e Política sobre o Comércio Ativo da Capitania de Goiás, 1806
anexo I).
Os dois principais rios, Araguaia e Tocantins, são navegáveis e eram vistos como o
caminho, os meios possíveis de fazer aumentar e prosperar os negócios da Capitania de Goiás com
a do Pará. Portanto, fazia-se necessário remover os obstáculos existentes. Era preciso desobstruir
os canais dos rios e catequizar os índios. Nessa lógica, uma boa relação interétnica facilitaria a
conquista e expansão das fronteiras. Para dar apoio logístico à navegação, defender os colonos
contra as investidas dos índios e proteger o território, Teotônio defendia que, as primeiras
providências a serem tomadas seriam implantar presídios militares:
Três, ou quatro Feitorias no Araguaya, e duas no Maranhão, juntas com o privilégio de
não pagarem Dízimos pelo espaço de 10 annoz as pessoas, que se estabelecerem nas
margens dos ditos rios, afiançarão aos navegantes tanto a sua subsistência, como a
80
sua segurança da parte dos Gentios (Joaquim Teotônio Segurado Memória
Econômica e Política sobre o Comércio Ativo da Capitania de Goiás, 1806 – anexo I).
Evidenciam-se nos escritos de Teotônio uma série de objetivos na política de expansão da
fronteira: 1) demográfico – através da expansão do povoamento nas margens dos principais rios de
comunicação, veria a prosperidade do comércio; 2) objetivos morais pretendiam-se transferir os
marginalizados para as colônias militares e dar a eles trabalhos; 3) objetivo militar defender o
território; e, naturalmente, 4) econômico – veria o comércio interno e externo desenvolvido. Teotônio
estava convicto de que era possível fazer prosperar esta parte do Brasil. Assim afirmou:
[...] Habitar um País, em que para poderem subsistir, para poderem ser riquíssimos, não
tem que abrir canais, dessecar lagoas, fazer rios navegáveis, não tem mais que fazer
recuar não; não tem de pedir frutos a escapados rochedos, não tem enfim que trocar a
natureza, que lhes basta segui-la; quem tem férteis campos, cultivem, tem rios
navegáveis, naveguem (Joaquim Teotônio Segurado Memória Econômica e Política
sobre o Comércio Ativo da Capitania de Goiás, 1806 – anexo I).
Ao concluir os estudos sobre o antigo norte goiano, Segurado enviou o documento ao então
governador D. Francisco Mascarenhas que, ao recebê-lo, remeteu-o a Dom João VI, anexado ao
ofício 25, de abril de 1806. Até o final de seu governo, em 1809, D. Mascarenhas não recebeu
nenhuma resposta oficial da Corte. Quando a Carta chegou ao seu destino, e as autoridades
coloniais tomaram conhecimento do teor do documento, a repercussão foi bastante positiva. Os
ministros aprovaram-na em sua totalidade, dando origem, posteriormente, à Carta Régia
29
de cinco
de setembro de 1811.
Através desta Carta Régia, a Coroa incumbiu ao vigente governador e Capitão – General da
Capitania de Goiás, Fernando Delgado, de tomar as devidas providências. No supracitado Aviso
Régio, D. João afirmou que
:
Tais medidas devem sem vida resultar as maiores vantagens a essa Capitania,
facilitando as relões comerciais, promovendo a riqueza e a segurança desses
povos (ALENCASTRE; 1963:316-320).
O relato das memórias, tanto de Teotônio Segurado, quanto de Barata, são temas muito
abordados nos relatórios dos dirigentes oficiais na fase da vida do Brasil Império. Com a fundação
dos presídios os gêneros produzidos seriam fiscalizados e protegidos e teriam passagem obrigatória
nestes pontos.
29
Veja na íntegra a Carta Régia de 5 de setembro de 1811 – anexo IV.
81
Teotônio defendia a ideia: 1) da criação de uma sociedade mercantil, empreendimento
necessário para assegurar as condições de comercialização dos produtos nativos e produzidos por
essa Capitania com a Capitania do Pará; 2) da fundação de estabelecimentos comerciais ou
entrepostos comerciais, fortificados, para que os colonos pudessem negociar com os povos
residentes às margens do rio os produtos que deveriam ser transportados; 3) da isenção do dízimo
de tudo que o comerciante produzia, pelo espaço de dez anos aos moradores dos presídios; 4) do
privilégio de pagar somente a metade dos ‘direitos da entrada’ por dez anos aos cidadãos que
fizessem o comércio com o Pará. Esse direito era mais um imposto instituído na época.
Teotônio priorizou o comércio com a Praça de Belém do Pará. Os povos da região norte da
Capitania de Goiás faziam o comércio ativo das carnes secas e sola, com a praça da Bahia, Minas
Gerais e São Paulo. Teotônio estava convicto de que o desenvolvimento da Província passava,
impreterivelmente, pelo incentivo do comércio com o Pará, pela via fluvial. Rosa Cavalcante
30
afirma
que Teotônio
privilegiou a utilização da via de comunicação natural entre essas regiões a fluvial
em detrimento da rota terrestre que ligava a Capitania à Bahia, Minas Gerais e São
Paulo, uma vez que esta prejudicava o comércio regional pelo elevado custo dos
produtos importados (CAVALCANTE, 1990:55).
Oliveira (2008:66) afirma que a posição dos administradores ao reconhecerem a deficiência
de comunicação da província com o litoral, defendendo a urgente necessidade de aproveitamento
dos rios como meios de transporte e como forma de povoar suas margens, coincide com o período
de diminuição da produção aurífera em Goiás. A questão da navegação não se apresentava como
um problema isolado, mas como uma solução para tirar a Província da estagnação em que se
encontrava. Mas esta crise é geral. Pondera Prado Jr.:
A primeira metade do século XIX é de transição, fase de ajustamento à nova situação
criada pela independência e autonomia nacional; a crise econômica, financeira, política e
social que se desencadeia sobre o Brasil desde o momento da transferência da corte
portuguesa em 1808, e, sobretudo da emancipação política de 1822, prolongam-se a
meados do século; e se é verdade que antes deste momento se elaboram os fatores
de transformação, é somente depôs dele que amadurecem e produzem todos os frutos
que modificariam tão profundamente as condições do país (PRADO, 1993:192).
30
Veja mais sobre este assunto em CAVALCANTE, Maria do Espírito Santo Rosa. Tocantins O movimento separatista do norte de Goiás 1821-1988, o Paulo: A.
Garibaldi, Editora da UCG; 1999.
82
Mesmo diante dos rios fracassos relativos às questões de implantação da Companhia de
Navegação a Vapor, os governantes da Província de Goiás, continuavam convictos de que sua
implantação seria a grande solução para os problemas socioeconômicos de Goiás. O comércio e a
indústria de Goiás eram tão fracos que só eles bastavam para justificar a ideia de “atraso e
decadência” dessa parte do Brasil Império.
A população do norte de Goiás era a mais segregada do convívio da nacionalidade. A
desarticulação dos correios, telégrafos, serviços de saúde e educação, os serviços de proteção aos
índios e o completo isolamento, motivado pelas desmedidas distâncias. A medicina estava ainda no
período empírico do indígena. Nunca se experimentara o poder das vacinas. Havia epidemias de
toda ordem que dizimavam largamente a população.
Na primeira metade do século XIX, os poucos comerciantes da Província de Goiás se
sentiam inseguros ao se aventurar a percorrer longos trechos de um povoado a outro, e de Goiás a
outra região, em busca de produtos para comercializarem. Sérias barreiras deveriam ser
enfrentadas, como por exemplo: a presença acentuada de numerosos povos indígenas, a imensa
extensão do território, a grande extensão fluvial, bem como as distantes e deficientes povoações da
região, que ficavam isoladas umas das outras no próprio interior da Província. A falta de estrada era
um fator que dificultava o acesso dos comerciantes aos centros consumidores.
Se no interior da Província de Goiás era caracterizado como um sertão pouco povoado,
praticamente sem estradas e sem comércio e sem meios de comunicação, a margem ribeirinha do
Araguaia, especificamente, era caracterizada como um lugar inóspito, desconhecido. Era uma
região rica de elementos naturais, contudo, sem infraestrutura, de modo que proporcionava uma
vida difícil àqueles que se aventuravam a fixar residência. A margem ribeirinha era bastante
povoada por povos indígenas de várias nações tais como os Xavantes, Karajás, Caiapós, Javaés,
Canoeiros.
No ano de 1859, o Presidente da Província de Goiás, Francisco Januário da Gama
Cerqueira, em defesa da navegação declara:
Ninguém, que medite um pouco sobre os interesses desta Província, poderá duvidar de
que o seu engrandecimento depende essencialmente da navegação dos grandes rios,
que percorrem em quase todas as direções, e que a natureza mesma parece estar nos
indicando como os canais de sua vindoura riqueza e prosperidade (Trecho do Relatório
83
do Presidente Francisco Januário da Gama Cerqueira, apresentado em sessão
ordinária, à Assembléia Legislativa Provincial de Goiás, no ano de 1859).
Apesar destes discursos, a navegação a vapor do Araguaia permaneceu inalterada até a
segunda metade do século XIX, ao contrário de outros rios da bacia brasileira. Diz Prado Jr. que a
navegação a vapor se estendera largamente e, além das linhas internacionais, articulava todo o
longo litoral brasileiro desde o Pará até o Rio Grande do Sul; prolongava-se, ainda, para o sul, e
pelo rio da Prata e rios Paraná e Paraguai, comunicavam Mato Grosso com o resto do País. No
Amazonas também subia as águas do rio até Tabatinga, na fronteira do Peru, e ramificava-se pelos
principais afluentes: Madeira, Negro, bem como o Tocantins. No final do Império o aparelhamento
técnico se desenvolvera bastante e a navegação do Araguaia conseguiu, com muitos sacrifícios, se
integrar às demais do império.
Na segunda metade do século XIX, O Dr. Couto de Magalhães defendia a ideia de que o
melhoramento da navegação fluvial pelos rios Araguaia poderia contribuir para o desenvolvimento
econômico da Província de Goiás, rica de elementos que poderiam ser explorados pela ação
administradora. O desenvolvimento econômico local poderia acompanhar as demais do Império ao
seu crescimento e prosperidade. O melhoramento da navegação serviria para dar impulso e
incremento às forças industriais do sertão de Goiás, acompanhada por sua posição central, essa
ação consequentemente diminuiria a dificuldade da saída de seus produtos. O rio era o caminho.
A literatura da época mostra a complexidade dos problemas inter-relacionados à
navegação, principalmente aos que se referiam à fragilidade econômica da província. A
necessidade de intensificar o corcio com objetivo de combater a estagnação determina as
tentativas dos governantes de incrementar a agricultura e a navegação fluvial. Contudo, a a
cada de 1860, o isolamento permanecia e gerava a rotina e a baixa produtividade da agricultura
e do insignificante corcio. A navegação até a era do vapor foi esporádica.
Rompendo as fronteiras geográficas e simbólicas e sem ignorar as dificuldades naturais e
econômicas, o Dr. Couto de Magalhães embrenhou-se na exuberante natureza para conhecer de
perto a viabilidade da navegação e as condições de povoamento nas margens do rio Araguaia.
Assim diz o desembargador João Bonifácio Gomes de Cerqueira:
Quasi todos os administradores desta província, de certa época em diante tem prestado
mais ou menos atteão a este ramo de serviço blico [...] Mas nenhum presidente se
84
applicou a este assumpto com tanta dedicação e perseverança como o Exm. Sr. Dr. José
Vieira Couto de Magalhães, actual presidente de Matto Grosso, o poupando sacrifício de
toda a sorte com o fim de ver estabelecida a navegão a vapor no Araguaya. (Trecho do
Relario da Presincia de Goyáz – Desembargador João Bonifácio de Siqueira – 1º Vice-
residente, 1º de setembro de 1867).
Antes de deixar os negócios da província, Couto de Magalhães empreendeu uma viagem
pelo Rio Araguaia. Partiu, no dia 25 de setembro, de 1863, do porto do rio Manuel Alves, e
percorreu o rio Araguaia até o lago Dundá
31
. Concluiu sua viagem no dia 31 de outubro de 1863
(DOLES, 1973:88).
O general Couto de Magalhães necessitava, também, de um estudo mais preciso do
percurso destinado à navegação a vapor. Por instrução de 10 de julho de 1863, solicitou ao Diretor
Geral dos presídios, o engenheiro Ernesto Vallée, uma análise objetiva das possibilidades de
navegação e das vantagens que o rio Araguaia pudesse oferecer, devendo levar em consideração
as restrições da navegação no período da estiagem.
A exploração do rio Araguaia proporcionou ao empresário Vallée a ocasião de resolver a
questão das distâncias entre Itacayú no Mato Grosso a Patos no Pará, como também conhecer as
vias navegáveis e as restrições da navegação dos rios: Vermelho, Araguaia e Tocantins. A extensão
dos rios foi dividida em 15 seções distintas.
Vallée concluiu que essa imensa linha fluvial que atravessa o Brasil de norte a sul, cujo
desenvolvimento é de 401 ¼ léguas (2.648km e 250m), apresenta 239 léguas (1.577km e 400m)
navegáveis durante todo o ano nas seções , 3ª, , 5ª, 6ª e 15ª. 118 ¼ guas das sões , 7ª, e
1 são navegáveis igualmente a vapor durante seis meses de dezembro a maio o que eleva a 354
¼ léguas (2.338km e 050m) navegáveis a vapor, considerando a navegação nos meses de
dezembro a maio. 44 léguas (290km e 400m) nas seções 8ª, 11ª, 12ª, 13ª e 14ª são obstruídas pela
natureza e permitem a passagem de canoas e no tempo das secas. Para obter-se a franca
navegabilidade fazia-se necessária a remoção dos obstáculos que existiam nas últimas seções
consideradas (Jornal da Província de Goyáz, anno II, nº 45 de 5 de novembro de 1870).
31
O lago Dunbá está localizado a 12km ao norte de Aruanã (GO), à margem direita do rio Araguaia.
85
RIOS
ESTAÇÕES
PONTOS
CONDIÇÕES DE
NAVEGABILIDADE
LÉGUAS
Rio
Vermelho
1º.
Do ponto do travessão a foz
Navegável c/ restrições (de
dezembro a maio)
32
Araguai
a
2º.
Da foz do
Rio Vermelho ou do
Presídio de Santa Leopoldina
até o porto da Piedade
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
26 ½
,,
3º.
Do porto da Piedade à ponta do
sul da ilha do Bananal
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
16 4/4
,,
4º.
Da
ponta sul à ponta norte da
ilha do Bananal
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
83 ½
,,
5º.
Da ponta norte da ilha do
Bananal ao presídio de S. Maria
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
27 ¾
,,
6º.
Do presídio de S. Maria ao
antigo presídio do mesmo nome
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
10 ½
,,
7º.
Do antigo presídio de S. Maria
à correnteza de São Miguel
Navegável c/ restrições (de
dezembro a maio)
53 ¾
,,
8º.
Da correnteza de São Miguel à
Cachoeira Grande
permite a passagem de
canoas e no tempo das secas
11
,,
9º.
Da Cachoeira Grande ao
presídio de São João das Duas
Barras
Navegável c/ restrições (de
dezembro a maio)
29 ¼
Rio
Tocantins
10º.
Do presídio de São João das
Duas Barras ao Bacabal
Navegável c/
restrições (de
dezembro a maio)
3
,,
11º.
Do Bacabal à entrada de Taury
permite a passagem de
canoas e no tempo das secas
12
,,
12º.
Correnteza de Taury
permite a passagem de
canoas e no tempo das secas
,,
13º.
Da Cauda de Taury ao Portinho
permite a passagem de
canoas e no tempo das secas
4
,,
14º.
Do Portinho a Arroios
permite a passagem de
canoas e no tempo das secas
8 ½
,,
15º.
De Arroios à Belém
Navegável sem restrições
(durante o ano todo)
74
DISTÂNCIA TOTAL...........................................................................................................401
¼
Ilustração 11- T
abela 1 Fonte: Jornal da Província de Goyáz, anno II, nº. 45 de 5 de novembro de 1870.
O relatório do Sr. Vallée apresenta um estudo detalhado de todas as seções. Da 10ª a 1
seção trata-se da navegação do rio Tocantins. Falaremos aqui apenas das seções do rio Araguaia,
nosso objeto de estudo. Diz o Sr. Vallée que, na seção, não se encontra a menor cachoeira ou
correnteza superior a 4 ou 5 palmos por segundo de poucas braças de extensão; e a profundidade,
de janeiro até o fim de abril, passagem a um barco de quatro a cinco palmos de calado,
enquanto daquela data em diante diminui consideravelmente e chega a menos de palmo em certos
86
pontos, em razão da pequena extensão da maior parte dos afluentes nascidos da planície imensa e
arenosa que forma a bacia do rio Vermelho. Na 2ª seção, a região é de boas condições de
navegabilidade. A profundidade varia de 1,3m e de 1,5m. Na seção, o rio conserva a mesma
largura de 1,100m e suas águas são aumentadas pelas do rio Crixá, duplicando seu volume com o
do rio Vermelho. As e seções são onde o rio oferece a melhor condição de navegabilidade e
permite a navegação em toda época do ano. Na seção, a 8 léguas abaixo do Presídio de Santa
Maria acha-se situado o travessão dos três portos, numa profundidade nunca inferior a 7 palmos.
Este travessão passagem a qualquer canoa e a um barco a vapor de janeiro a maio. Na 7ª
seção, acham-se os travessões do Jacon, do Pau d’Arco, da Chuva de Manga, do Pilão, as duas
itaipavas dos Karajás, a correnteza de São Miguel. A seção é a seção obstruída do rio Araguaia,
nela se encontra a correnteza de São Miguel, da Carreira Comprida e a denominada Cachoeira
Grande. Entretanto, na correnteza de São Miguel, o Araguaia corre entre dois morros e a
sinuosidade do canal forma uma espécie de ziguezague que não apresenta a menor dificuldade das
passagens das canoas. Depois da correnteza de São Miguel, o rio continua acompanhado por uma
cadeia de morros. Na seção, encontram-se os travessões do Jacaré, São Bento e Do Carmo.
Neste trajeto, a profundidade nunca é inferior a 3,3m e conserva-se sempre mais próxima de 8,8m
do que de 4,4m (Jornal da Província de Goyáz, anno II, nº 45 de 5 de novembro de 1870).
No dia 24 de janeiro de 1864, o engenheiro terminara os estudos técnicos, acompanhados
da cartografia hidrográfica. Apresentou-os ao Presidente considerando dentre outras questões: 1)
que a navegabilidade do rio Araguaia, durante todo o ano, é restrita ao trecho Leopoldina Santa
Maria; 2) nos meses de dezembro a maio (época em que as águas sobem – enchente) a navegação
é francamente navegável do Porto do Travessão (rio Vermelho) a Leopoldina. Doles afirma que
“mesmo intercalando a navegação a vapor com a que se fazia a remo no trecho de difícil
navegabilidade no Tocantins e Araguaia, a viagem seria reduzida à metade, passando de sete a
três meses a sua duração” (DOLES, 1973: 88).
Nas questões relativas ao abastecimento, à tripulação e ao fornecimento de lenhas aos
barcos, Vallée observou, também, que os principais presídios, Santa Maria (atual Araguacema -
TO), Leopoldina (atual Aruanã - GO) e São João do Araguaia, poderiam se tornar os portos de
embarque e entrepostos comerciais. Estes subsidiariam os viajantes com os recursos necessários.
Citou em específico o Presídio de Santa Maria para servir de entreposto por reunir várias
especificidades, tais como: localização estratégica, região de solo fértil, rica em fauna e flora,
87
abundância de águas e de pescados. Afirmou que seria provável que se tornasse o maior centro
abastecedor. Propôs que se promovesse o fortalecimento do Presídio de Santa Maria e de São
João e a criação de novos núcleos.
O Presídio de Santa Maria e de o João é indispenvel, porque esse terreno compõe-se
de 150 guas, inteiramente deserto de gente civilizada e, povoado de selvagens. Nele
existem as cachoeiras do Araguaia, que, dificultando a viagem, exigem mais demora e maior
mero de socorros (MAGALHÃES, 1957: 194).
Para o fortalecimento do Presídio de Santa Maria e em consequência da limitação da
navegabilidade, o engenheiro Ernesto Vallée propôs que fosse conveniente estabelecer depósitos
nos presídios citados, para promover a estocagem dos produtos cultivados e das lenhas. Sugeriu,
também, que esse último produto pudesse ser fornecido pelos índios. Atendendo reivindicações, o
governador Alencastre determinou em 1861, que os negros sentenciados juntamente com os
soldados fossem trabalhar na defesa daquela empresa.
Resolvi, portanto elevar a 40 o número de praças da guarnição e juntar-lhes alguns
sentenciados dos existentes na cadeia desta cidade, os quais indo ali cumprir pena a
que foram condenados, seriam ao mesmo tempo um auxílio para a defesa do presídio
(Trecho do Relatório da Presidência José Martins Pereira de Alencastre, de 22 de
abril de 1861).
O Presidente Dr. Augusto Ferreira França ao passar a administração ao Desembargador
João Bonifácio Gomes de Siqueira, em abril de 1867, mostrou-se preocupado com a real situação
da província de Goiás declarou em relatório:
Atualmente em que consiste o comércio? em exportar o gado que, cumpre confessar,
vai diminuindo em número e tamanho pela incúria com que se tem deixado de melhorar
a raça, alguns couros e peles, e poucos raros, outros objetos mais; e em importar
fazendas, ferragens, sal, vinhos e os mais gêneros secos e molhados que possão vir
enfardados às costas dos animais de carga (Trecho do Relatório do presidente da
província de Goyáz, Dr. Augusto Ferreira França, em 29 de abril de 1867).
Deve-se a Couto de Magalhães o estabelecimento da navegação do Araguaia, cujo objetivo
era estabelecer fácil caminho fluvial entre Mato Grosso, Goiás (e Tocantins) e Pará; comunicar a
bacia do rio Prata com a do Amazonas, realizando um pensamento de Pombal.
88
Terminada a guerra do Paraguai
32
no território de Mato Grosso, com a retirada dos
paraguaios, depois da tomada de Corumbá e do combate do rio Apa, e julgando dispensável o
vapor de guerra Antônio João, Couto de Magalhães solicitou e obteve autorização do governo
imperial para desarmar o vapor e transportá-lo para o porto de Itacayú, à margem direita do Alto
Araguaia. Nesse porto, teve começo a reconstrução do vapor, sob a direção do capitão de mar e
guerra, comendador Balduíno José Ferreira de Aguiar, do primeiro tenente Peixoto, do maquinista
Felisberto Newzam, auxiliados pelos operários e soldados de linha do comando do capitão Lima
(MAGALHÃES,1957: XXXVII).
O então presidente de Goiás, Joaquim de Almeida Leite Moraes (1881), conta o admirável e
grande feito de Couto Magalhães ao conseguir transportar a embarcação que comprara em Cuiabá,
para as águas do Araguaia, viajando por caminhos abertos pelo facão do sertanejo, subindo e
descendo a serra da Chapada, ou de São Jerônimo, atravessando o sertão povoado de indígenas.
Assim diz ele:
Apareceu-lhe um homem que disse-lhe um dia: “Se vancê quiser eu levo e boto esse
vapor no Araguaia”. Couto Magalhães, que o conhecia, contratou com ele o
transporte de seu vapor. Desmontá-lo e colocá-lo em pedaços no carro do intrépido
sertanejo foi a coisa mais fácil do mundo, e o resto? o resto corre por conta do audaz
paulista, que diz é possível quando todos lhe bradam é impossível. E o capitão
Gomes, com uma boiada em cada carro, enfia a sua caravana pelo sertão, sobe e
desce serra, atravessa rios, recebe os ataques dos indígenas, que o perseguem por
muitos dias, e defende-se e, após meses de trabalho insano, gigantesco, desesperado
e horrorosamente pesado, chega na sua fazenda, levanta o estaleiro, e, com o
maquinista que o acompanhava, arma o vapor e o atira nas águas do Araguaia!
(MORAES; 1895:134)
Em meio a tantas dificuldades, no dia 28 de maio de 1868, foi inaugurada a navegação a
vapor no rio Araguaia, no Porto de Santa Leopoldina. O vapor Antônio João teve na inauguração o
nome de Araguay-nerú-açú, posteriormente simplificado para vapor Araguaya. Esteve presente, o
autor do projeto, o Dr. Couto de Magalhães, então presidente da Província de Mato Grosso, o
desembargador João Bonifácio Gomes de Siqueira, vice-presidente da província de Goiás este
acompanhado do funcionalismo oficial, demais autoridades locais e outros cidadãos que se
deslocaram para a margem para assistirem àquele ato histórico
33
. Nessa época, Couto de
32
Veja mais sobre a guerra, em M. MARTINS, Zildete Inácio de Oliveira. A Participação de Goiás na Guerra do Paraguai (1864-1870), 1983. Martins
estuda a ação administrativa em Goiás no tocante a participação da província na guerra do Paraguai entre os anos 1864-1870 e, especialmente, na
frente de Mato Grosso. Dentre outras questões, mostra a conjuntura militar brasileira às vésperas da guerra e a participação no conflito.
33
Ata da Inauguração da Navegação a Vapor do Rio Araguaia. Veja anexo nº V.
89
Magalhães estava à frente da presidência da Província de Mato Grosso. Diz o desembargador
Siqueira em relatório datado em 1º de setembro de 1870:
Couto Magalhães, mandando desarmar um pequeno vapor de Mato Grosso, o fez
transportar por terra até a colônia de Itacayú, no alto Araguaia, onde foi de novo
reconstruído, e, descendo águas abaixo, tendo a seu bordo o referido presidente, que
pretendia seguir para o Rio de Janeiro, foi estacionar junto ao mencionado Presídio de
Santa Leopoldina, tomando no ato da inauguração do nome Araguaya (Trecho do
Relatório da presidência Dr. desembargador João Bonifácio Gomes Siqueira de
setembro de 1870).
Estava dado, pois, o primeiro passo para a navegação do Araguaia. A empresa prometia
abrir os caminhos da prosperidade à Província, caminho este que, até aquele momento, via-se
embaraçado pela grande distância que separava a região do litoral e das enormes dificuldades que
se encontrava em seu trânsito. O Dr Ernesto Augusto Pereira, presidente da província de Goiás, em
1870, relata:
A navegação do Araguaya deverá semvida abranger a do Tocantins e estender-se até o
Pará, de modo que o negociante desta província apenas tenha o trabalho de remeter a sua
encomenda ao seu correspondente no Pará e receber os neros em Santa Leopoldina ou
em outro ponto mais próximo. [...] Os gêneros do corcio virão mais bem acondicionados,
menos sujeitos à deterioração e estragos, chegarão pelo menos cento por cento mais
baratos; virão para o corcio objetos que atualmente é impossível trazer do Rio de Janeiro;
toda a província de Gos gozará do benefício, e a exportação, quase nula do sul desta
província, aumentará assim como a importação (Trecho do Relatório da Presidência
Ernesto Augusto Pereira, 1º de agosto de1876).
Os empreendimentos da navegação a vapor, no entanto, foram efetivados dois anos
após sua inauguração e fortalecidos na década de 1870. A referida década representou a liberação
do grave problema que assolou a Província de Goiás, por longos e longos anos, pois esta se
encontrava numa situação de estagnação financeira e econômica.
A década de 1870 é um referendo importante para o desenvolvimento do comércio e,
consequentemente, dos presídios do Araguaia, que serviram de portos de embarque e entreposto
comercial na rota que liga Leopoldina a Patos no Pará, “garantindo o reabastecimento dos barcos
de carreira e o apoio às pequenas embarcações” (TIBALLI, 1991: 33).
Após a instalação da Companhia e, consequentemente, devido à facilidade de transporte,
verificou-se maior desenvolvimento em todos os setores da vida dos povoados ribeirinhos. Em face
disto, o contato dos moradores dos presídios com os viajantes que por ali passavam e se hospedavam
tornou-se mais acentuado. A implantação da companhia foi um elo propulsor na promoção do
90
aumento do fluxo migratório e do desenvolvimento econômico dos presídios militares. Além desta
via, as populações dos Presídios se comunicavam com outros povoados por trieiros. O Presídio
de Santa Maria se comunicava via terrestre com Pedro Afonso e Porto Imperial (Porto Nacional),
cidades localizadas à margem do rio Tocantins. O Presídio de Santa Leopoldina se comunicava
com a capital da Província, a cidade de Goiás.
Tendo ordenado a fundação do presídio de S. Maria na margem do Araguaia, reconheci
a necessidade da abertura de uma estrada que pozesse aquelle importe presídio em
comunicação com os povoados da margem do Tocantins [...] devendo partir a estrada
das alturas da freguezia de São Pedro do Tocantins, em direção à Santa Maria (Trecho
do Relatório lido na abertura da Assembléia Legislativa de Goiás pelo Exmº. Sr. José
Martins Pereira de Alencastre no dia 1º de junho de 1862).
Nos presídios Militares de Itacayú, Santa Leopoldina, Santa Maria e São João do Araguaia
faziam o embarque e desembarque de passageiros e de mercadorias. As linhas de navegação a
vapor partiam uma para o sul, saindo de Santa Maria até a pequena povoação de Mato Grosso,
denominada Itacayú, outra partia para o norte, saindo de Itacayú até o Presídio de Santa Maria. De
Santa Maria os navegantes seguiam viagem em botes menores, com destino a Belém do Pará. O
olhar satisfeito de Couto de Magalhães em ver as embarcações é percebido pelo relato:
Cortar o planteau central no rumo Norte a Sul em uma extensão de duzentas léguas. Aí
o vapor, passando por entre as numerosas aldeias de índios que ainda andam nus,
apresenta em contraste os dois extremos da cadeia humana: a raça civilizada que usa
desse primeiro agente do progresso e o homem nu, imagem viva da primeira rudeza e
barbaridade selvagem de nossos maiores (MAGALHÃES, 1975: 103).
Por edital de 24 de novembro, o Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas
chamam empresários e comerciantes para participar da concorrência da navegação a vapor do
Araguaia entre os pontos de Leopoldina e de Santa Maria sob as cláusulas do decreto 4.593
34
,
de 9 de setembro de 1870, e, de acordo com o decreto de 5465, de 12 de novembro, de 1873
(Trecho do relatório da presidência de 1º de junho de 1874 – Antero Cícero de Assis).
Através do edital publicado em 24 de novembro de 1870, o Ministério da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas determinou os limites da navegação a vapor. Os barcos a vapor fariam
viagens redondas de Itacayú a Santa Maria e de Santa Maria seguiriam de botes a Patos, no Pará.
Os portos de escalas no Araguaia seriam Leopoldina, Itacaiú, São José de Jamimbu, Luiz Alves ou
Foz de Crixás, São José dos Martírios, Santa Maria, São Vicente e São João do Araguaia; no
34
Decreto nº 4.593 de 9 de setembro de 1870 – Veja anexo nº. VI.
91
Tocantins, Juquirapuá e Travessão dos Patos. Sobre as partidas de Leopoldina, deveriam efetuar-
se em janeiro, março, maio, junho, setembro e dezembro (DOLES; 1973: 116).
O Dr. Couto de Magalhães foi incumbido da dirão do serviço da navegão. O Sr. João José
Corrêa de Moraes aceitou auxiliá-lo na administração por ter ido ao Pará. O primeiro contrato
para a navegação do Araguaia foi lavrado através do Decreto de 4.593 de 9 de setembro de
1870, obrigando o empresário Corrêa de Moraes a fazer seis viagens redondas por ano, a vapor,
entre o presídio de Itacaiú, na margem cuiabana do Araguaia e o de Santa Maria (atual cidade de
Araguacema –TO).
Assim sendo, o empresário firmou contrato sob as seguintes condições: - O empresário
obriga-se a manter por si a navegação a vapor no rio Araguaia, entre Santa Maria, em Goyáz, e
Itacayú, em Mato Grosso; - Os vapores da empresa serão nacionalizados brasileiros; - Os
vapores tocarão nos portos de São José e S. Leopoldina, devendo demorar-se pelo menos 24 horas
no primeiro e 48 horas no segundo, tanto na descida como na subida do rio; - os vapores farão
anualmente, pelo menos, 6 viagens redondas, e terão as dimensões e força precisas para rebocar
em cada viagem 4 mil arrobas de carga no mínimo; - Os dias de partida dos vapores serão
fixados pela empresa; - Serão submetidas à aprovação do governo Imperial as tabelas de frete e
passagens; 7ª - As matérias inflamáveis poderão ser recebidas pela empresa mediante as
cautelas necessárias que preservem os passageiros, embarcações e mercadorias de todo e
qualquer risco; - Far-se-á o abatimento de 10% nas passagens e frete por conta do Estado e das
províncias que subvencionam esta navegação; 9ª - A empresa fará transportar gratuitamente as
malas do correio; 10ª - A empresa obriga-se a conduzir, também gratuitamente, dentro da linha da
navegação, quaisquer valores remetidos de umas para outras tesourarias de fazenda, guardadas as
instruções de 4 de setembro de 1865; 11ª - A empresa fica sujeita às multas: a) se deixar de efetuar
algumas das viagens estipuladas; b) se a viagem depois de encetada for interrompida, salvo de
força maior; c) pela supressão de qualquer escala, bem como pela demora, extravio ou mal-
acondicionamento das malas e objetos pertencentes ao Estado e as províncias, na conformidade da
lei; 12ª - é concedida à empresa a subvenção anual de 40 contos de réis como auxílio a qual será
pago em prestações de 6.666$666, de dois em dois meses; 13ª - o governo imperial poderá
desapropriar o fretar os vapores da empresa para o serviço do Estado em circunstancia imperiosas
e imprevistas 14ª - A empresa terá suas sede no Brasil, dentre outros acordos.
92
Em 14 de novembro de 1873, entrava em novo ajuste o empresário Corrêa de Moraes com
o governo, entregando a navegação do Araguaia à administração pública e tomando a si a
navegação do Baixo Tocantins, com obrigação de fazer doze viagens redondas por ano entre Patos
e Belém do Pará, mediante subvenção anual de oitenta e dois contos de réis. Neste novo ajuste
ficou firmada a cláusula de rescisão do contrato à vontade do governo, devendo este em caso de
rescisão, indenizar ao empresário do valor das lanchas a vapor (Araguaia, Colombo e Mineiro),
armazéns e materiais do serviço da navegação, postos pela empresa à disposição do governo no
alto Araguaia (ofício nº 19 de 23 de setembro de 1889, seção Dr. Eduardo Augusto Montovane
– veja anexo).
Os navegantes que saíam de Leopoldina com destino a Belém levavam mais ou menos seis
meses para fazer esse percurso. Fruto desse empreendedorismo, o sistema de circulação de
informações deixou de ser tão precário. Os viajantes que por ali passavam traziam notícias dos
acontecimentos do Brasil Império. Com a estabilização da navegação, a comunicação melhorou em
vista da implantação dos Correios, ainda que as informações fossem periódicas e chegassem com
bastante atraso, a empresa era obrigada a transportar as malas do correio conforme definida na
cláusula IX do Decreto de nº 4.593 de 9 de setembro de 1870. Nos pontos onde havia agências, os
comandantes mandavam receber e entregar em terra, as malas e, onde não havia, o diretor geral
dos correios providenciava para que a entrega e recebimento fosse feita a bordo dos vapores.
Doles (1973:131) afirma que a ligação do Araguaia e alto Tocantins representava um dos
elementos importantes da rede de viação a vapor do Império, qualquer que fosse o plano geral
definitivo. Após seis anos de árduo trabalho, o Dr. Couto de Magalhães
35
, acusado de utópico e
louco, respondeu a essas acusações.
Havia empreendido e agora digam o que disserem, nem por isso deixará de ser certo que dei o primeiro passo
e mais considerável passo para unir a foz da Amazônia à do rio da Prata pelo nosso interior: essa Glória
ninguém pode me tirar (DOLES, 1973:131).
O comércio fluvial influenciou positivamente a vida dos moradores dos povoados situados à
margem do vale araguaiano. Houve desenvolvimento econômico nos presídios de Itacayú,
Chambioás, Santa Rita, São José dos Martírios (fundados posteriormente), Leopoldina e Santa
35
Documentos Officiaes relativos às tentativas de estabelecimento de uma navegação a vapor nos rios Araguaya e Tocantins, apud MORAES,
Eduardo José de. Navegação interior do Brasil, p. 170-179. Rio de Janeiro, 1869. Doles (1973:131).
93
Maria. Os sistemas culturais diferentes se inter-relacionaram e interagiram com o desenvolvimento
da navegação.
Embora a passos lentos, após dez anos de instalação da navegação a vapor no Araguaia, o
comércio se firmava. Em 1879, o volume da exportação (20.300 quilos) ainda apresentava-se
inferior ao das exportações (38.200 quilos), mas permitia ao sul participação mais ativa nas
vantagens do comércio com o litoral norte [...] João José Corrêa de Moraes colocava à venda em
sua loja, na cidade de Goiás, a preços vantajosos os seguintes produtos: sal vinho do Porto
(2$500 rs. a garrafa) cerveja Tivole (a 2$000 rs. a garrafa) manteiga (2$000 rs. a lata)
azeitonas, lata grande (3$000rs.) bolachas americanas farinha de trigo (12$000 rs. a arroba)
molho inglês conserva inglesa azeite francês querozene óleo de linhaça verniz papel
filme salsa parrilha em ramas machados americanos, marca Colins cadeiras de palhinha
enxadas – chumbo – pólvora em latas e em barricas – tecidos – louças – fogões de ferro econômico
(DOLES, 1973: 119).
Na década de 1870, o comércio fluvial passou por três etapas distintas. Na primeira fase,
1870 a 1873, a Companhia de Navegação a Vapor esteve sob a direção do Dr. Couto de
Magalhães, período em que foi caracterizada por um relativo vigor. As viagens realizadas na rota
entre o Presídio de Itacayú (Mato Grosso) ao Presídio Militar de Santa Maria do Araguaia, com
1.200km de extensão, funcionavam regularmente, de acordo com o contrato firmado entre o
empresário e a administração provincial.
De 1874 a 1878, considerada a segunda fase da navegação, a Companhia foi entregue à
Administração Pública. O governo criou uma pasta no Estado dando ao Dr. Couto de Magalhães, na
época Diretor do serviço de Catequese, a função de diretor do Serviço de Navegação do Araguaia.
Sem remuneração, o Dr. Couto passou a exercer as duas funções até o ano de 1877. No final da
segunda fase, porém, sob a direção do empresário João José Corrêa de Moraes, embora o tráfego
continuasse regular, o volume de seus negócios diminuíram. Nos dez primeiros anos da companhia
de navegação a Vapor, o comércio fluvial se firmara embora a passos lentos. Apesar do volume das
importações se apresentarem inferiores ao das exportações, continuavam atraindo os comerciantes
do sul, principalmente de Goiás.
94
No final da segunda fase e início da terceira, a empresa do Araguaia se encontrava
estruturada. A Companhia dispunha de três vapores, sete botes, várias canoas e igarités. Nesse
período, havia 167 pessoas empregadas na empresa e distribuídas pelos setores administrativos e
nos entrepostos comerciais. Dentre essas pessoas, havia técnico de máquinas e naval marinheiro,
mestre de convés, práticos, foguistas, carvoeiros, marinheiros, despenseiros, cozinheiros e criados.
Nestas duas fases, colheram-se bons resultados: a população afluiu para as margens do rio,
formou-se a povoação de Leopoldina, tomaram incremento os presídios de Itacayú, Chambioás,
Santa Maria e São José dos Martírios, tendo também sido bem explorada e povoada a
navegabilidade do rio no percurso Leopoldina a Santa Maria. Nessa fase, a empresa congregava 44
empregados entre os diversos portos.
No período de apogeu da Navegação a Vapor do Araguaia, os Presídios Militares de
Santa Maria e de Leopoldina foram considerados as mais importantes aglomerações ribeirinhas do
Araguaia. A Navegação foi o elemento de comunicação entre as populações ribeirinhas e os
presídios foram centros de comércio e oficinas. Os serviços da navegação representaram, por um
longo período, um meio de vida para o sertanejo, no processo de abastecimento de bens
necessários à região como: sal, ferramentas, pólvora, utensílios domésticos, tecidos, couros de
gado, meios de sola, peles de animais silvestres, fumo, algodão, cachaça, tapioca, rapadura e
outros.
O início prometia muito, a navegação do Araguaia atraía os comerciantes goianos, mas
estava certo o Dr. Couto de Magalhães ao dizer em seu relatório que aquela empresa poderia
continuar a se desenvolver e a dar os bons resultados que dela se esperava, se o governo imperial
a ajudasse. As doenças constituíam um grave entrave aos negócios. O homem sertanejo era visto
como indolente e parasita, ficando evidente a permanência da imagem da preguiça como uma das
mais constantes representações do povo brasileiro. Couto de Magalhães (1957: 44), afirma que em
Leopoldina:
Quanto à salubridade, não conheço, entre todos os lugares por onde tenho viajado (e
não pouco), um onde se reúnam tantas moléstias graves. Quase que se pode asseverar
que não existe aqui um homem são. A mielite a hidropisia, a hipertrofia do coração,
os aneurismas, a lepra de três espécies diferentes, a tísica, as pneumonias, as febres
paludosas, o raquitismo e idiotismo, o bócio, a sífilis, e, sobretudo, as inflamações
crônicas do estômago, fígado e intestino, ou dizimam anualmente a população, ou
enfraquecem-na e a enervam, de modo que, reproduzindo uma frase verdadeira e
95
melancólica do finado Bispo, pode dizer-se – que aqui se escoa a vida, gemendo
constantemente.
Destarte a navegabilidade entre Leopoldina e Santa Maria ficou bem explorada a partir do
início da década de 1870.
O movimento de importação e exportação realizado entre esta província e do Pará, pelo
Araguaya, affirma o desenvolvimento da navegação, e progresso da empreza à
proporção que as forças productoras da Província se augmentam, correspondendo às
suas exigências. A exportação realizada de 1879 é de 167.234 kilos de peso de
gêneros; a importação, no mesmo período, de 120.000 Kilos (Trecho do Relatório da
presidência – Dr. Joaquim de Almeida Leite Moraes – 10 de fevereiro de 1881).
Em 1878, começa uma terceira fase da navegação com um novo contrato lavrado com o Sr.
João Corrêa de Moraes, que se obrigou a seis viagens redondas a vapor entre Itacae Santa
Maria e quatro a botes entre este último ponto a Patos, no Pará, mediante a subvenção anual de
quarenta e contos de réis, e ainda com a faculdade de dar condução ou reboque a cargas próprias.
Nessa fase, a navegação tornou-se monopólio pessoal e, como consequência, trouxe, muito
gradualmente, a estagnação do comércio e a decadência das povoações que iam se formando na
zona ribeirinha.
Vários fatores contribuíram para a decadência da navegação a vapor: 1º - a pouca fidelidade
do empresário no cumprimento das cláusulas estipuladas, diminuindo a linha de navegação,
fazendo partir os vapores de Itacayuzinho e não de Itacayú Grande, povoado bem mais distante e
acima de Santa Leopoldina; - o empresário também não estava cumprindo com a regularidade
nas viagens, conforme estipulado no contrato feito com a Tesouraria da Fazenda; - a quase
impossibilidade de o governo exercer uma rigorosa fiscalização no serviço; - os oficiais também
estavam abandonando os serviços por serem pouco remunerados, bem como devido ao atraso de
pagamento salarial; 5º - faltava pessoal qualificado para os serviços de conservação do material
flutuante e fixo.
96
PRESÍDIOS DO ARAGUAIA NA ROTA DA NAVEGAÇÃO A VAPOR
1802-1888
Ilustração
12
Trabalho de adaptação do traçado do rio Araguaia apresentando os presídios, as datas
de fundações e os portos da navegação a vapor pelo Araguaia. Adaptado por Francisquinha Laranjeira
Carvalho, 2008 a partir do traçado original publicado pelo Ministério dos Transportes, 2008.
www.transportes.gov.br
. Desenvolvimento visual: Carlos Eduardo Meireles Resende, agrimensor.
97
Devem ser consideradas, também, outras inúmeras dificuldades enfrentadas pelos
navegantes. Apesar da existência de presídios militares, os índios e as cachoeiras eram obstáculos que
o se venciam sem perigos eminentes de vida dos tripulantes e sem risco extraordinário do capital
representado pelos botes e respectivas cargas. Os índios e as cachoeiras tornaram arriscada a
segurança das mercadorias e a vida dos tripulantes dos barcos movidos a remos, único meio de
transporte que pôde ser empregado depois de Santa Maria.
O empresário João José Corrêa de Moraes encaminhou várias propostas ao governo até que
conseguiu um privilégio para a navegação dos rios Araguaia, Tocantins e Vermelho. Este privilégio
acresceu sua subvenção antes de quarenta contos de réis para oitenta e dois contos de réis. O
governo acatou a proposta do empresário pelo fundamento alegado de pouca utilidade da
continuação da linha aPatos, porque ia servir, além de outros povoados, o de São Vicente; mas,
por ser justamente essa a seção encachoeirada e a mais cheia de dificuldades e perigos (Cópia -
19 – Seção – Palácio da Presidência de Goyaz, 23 de setembro de 1889).
No final da cada de 1870, havia um consenso entre os governantes sobre a necessidade
de explorar a região intermediária entre os dois grandes rios – Araguaia e Xingu – nas fronteiras do
Presídio de Santa Maria e verificar se era possível ligar, por uma estrada de rodagem, as
respectivas navegações a vapor de modo que pudesse melhorar a navegação de Leopoldina ao
Pará, visto ser a seção intermediária entre Santa Maria e Patos toda encachoeirada, navegável
por botes. Pode-se dizer que, além do prolongamento da estrada de ferro, o sonho mais dourado
dos governos goianos era ver ligadas essas duas navegações feitas até então do Araguaia e
Tocantins.
Ou a comunicação do Araguaya com o Xingu, no ponto em que ambos são navegáveis
a vapor, salvará a empreza, e com ella os grandes interesses comerciaes e políticos
que repousam sobre a ligação do norte ao sul do império, ou então a sua
impossibilidade aniquilará a empreza no dia de amanhã. Aproximando-se a linha férrea
mogyana de Uberaba, e melhorada a estrada de rodagem do sul, com as necessárias
pontes, e com os já conhecidos atalhos, a via Araguaya necessariamente não será
concorrente ao commércio de exportação e importação (Trecho do Relatório do Vice-
Presidente Dr. Theodoro Rodrigues Moraes, no dia 10 de fevereiro de 1881).
98
Ilustração
13
-
Trabalho de adaptação do traçado do rio Araguaia apresentando os portos e entrepostos
comerciais da navegação a vapor pelo Araguaia, embarcações, obstáculos e acidentes.
Adaptado por
Francisquinha Laranjeira Carvalho, a partir do traçado original publicado no Relatório Estatístico, 2008.
Ministério dos Transportes www.tansportes.gov.br. Desenvolvimento visual: Ana Flávia Lucena, 2008.
99
O Aviso de 15 de dezembro de 1880 expedido ao presidente de São Paulo,
consultando as companhias paulistas sobre o prolongamento de uma de suas vias férreas a Mato
Grosso, confirma que na administração do Estado predomina o pensamento de executar um dos
maiores empreendimentos dos tempos modernos, nesta parte do Brasil. A discussão a respeito da
construção da estrada de ferro alargou o horizonte das esperanças ardentes das populações
limítrofes. “Aquele Aviso operou uma revolução que afirma em seu enorme desenvolvimento a
prosperidade, que nos guarda a todos no dia de amanhã” (Correio Oficial, 1º de junho de 1880).
o illustre brasileiro, o Sr. Dr. Couto de Magalhães sonhava com a estrada de ferro
projetada, quando, nas suas explorações audazes da foz do Amazonas à do Prata,
cortava em todas as direções o divisor das respectivas águas e indicava aos futuros
aruautos do progresso o caminho a seguir para as nossas fronteiras, descrevendo uma
por uma todas as artérias da comunicação interior entre o nascente e o poente, entre o
norte e o sul do Império. Então rompendo as caudalosas cachoeiras dos nossos rios ou
atravessando as nossas florestas seculares, dobrando as suas elevadas montanhas a
descortinar o mundo, aqui e ali, por toda parte, com o revolver em punho, com o facão
de sertanejo à cinta, lutando braço a braço com as feras e com os selvagens, sonha o
sábio explorador com os brilhantes destinos de nossa pátria, nas suas horas de
descanso de tamanhas fadigas via ao longe, por entre as brancas cerrações do porvir, a
fumaça do vapor seguindo pela corda do arco descripto pelo Madeira, transpondo a
região das cachoeiras, cortando por terra um espaço de 50 léguas, ligando assim
perpetuamente os interesses da Bolívia aos do Brasil e garantindo-se a paz, que os
nossos vizinhos não quererão mais perturbar.
Os sonhos de integração do sertão de Goiás ao comércio litorâneo pelos rios e pelos trilhos de
ferro foram muitos, mas nenhum teve êxito total. Em 1878, o senhor Moraes, empresário da Companhia
transferiu o empreendimento, as autorizão da Administração Pública, para uma Companhia norte-
americana denominada “The Pa Transportation’s and Trading Company” através dos seguintes atos:
decreto nº 9.680 de 20 de novembro de 1886, contrato de 21 de dezembro de 1886, decreto nº 3.347 de
14 de outubro de 1887, decreto nº 9.950 de 9 de maio de 1888, decreto de 8 de agosto de 1888. Tendo
feito o contrato para dez exercícios, extinguiu-se a 30 de junho de 1888. Essa Companhia era detentora
de um capital de 7.000,000 dólares destinado a desobstrução de vários canais (Cópia - 19 – Seção –
Pacio da Presincia de Goyaz, 23 de setembro de 1889).
Pom, diante das perspectivas econômicas da Província de Goiás pouco animadoras e cientes
do elevado custo operacional, a Companhia se desinteressou em despender tamanho investimento. O
estabelecimento da navegação depende de um conjunto de medidas de caráter técnico-econômico:
estudo meticuloso do rio, estudo do tipo de embarcações adequadas, investimento financeiro,
100
regulamentação do tráfego, conjuão de esforços dos estados interessados e da União. O que mostra
que pela sua natureza, e pela importância das despesas preliminares que exigem, escapam
rigorosamente à iniciativa particular. O resultado foi que, em 1888, a navegação do Araguaia foi
suspensa. As comunicões com os predios e outras povoações recém-fundadas tornaram-se difíceis,
trazendo como conseqncia sérios prejuízos ao comércio e ao serviço blico. Nesse peodo, o
material fixo e flutuante encontrava-se em ssimo estado de conservação.
Ainda na esperança de solucionar o grave problema que se abatia sobre a navegação a
vapor do Araguaia, o presidente da Província de Goiás Lourenço Cavalcante de Albuquerque,
encaminhou o ofício nº 19 de 23 de setembro de 1889, ao Ministério dos Negócios da Agricultura
Comércio e Obras Públicas, solicitando a abertura de nova concorrência para o serviço da
navegação a vapor pelo Araguaia e, em seção de 23 de outubro de 1889, o referido Ministério
autoriza sobre as bases do contrato findo e com os melhoramentos possíveis, devendo o presidente
da Província, submeter à aprovação do referido Ministério o contrato que celebrar com o proponente
que mais vantagens oferecerem ao Estado. Terminou o século XIX, e o pensamento dos
governantes não mudou a respeito da importância da navegação do Araguaia e Tocantins.
Quando conseguirmos resolver o problema da navegação fluvial desses dous rios,
veremos que o nosso Estado occupará o logar que de direito lhe compete no seio da
federação Brasileira, erguendo-se do marasmo em que vive, devido à sua posição
geographica. Os dous rios serão em futuro próximo os instrumentos da nossa grandeza
e da nossa prosperidade (Trecho do Relatório da presidência do Estado de Goiás
Miguel da Rocha Lima, 1906).
No século XIX existia uma íntima relação entre a navegação, catequese
36
e o povoamento
das margens do Araguaia e Tocantins. O rio Araguaia e o rio Tocantins foram considerados os
nervos principais de toda e qualquer rede de comunicações estratégicas e políticas da província de
Goiás. A navegação dos rios auxiliada por redes férreas promoveria a integração da Corte com o
Pará, visto que esta extensa região não era desprendida do Império. Não era isolada; é uma região
central do Brasil. Portanto, era vista pelos governantes como o segmento, a continuação da zona
povoada de Minas, São Paulo e da própria província.
Destarte, a estrada de ferro era vista como uma utopia. Couto de Magalhães dizia que,
enquanto nas outras províncias o vento enche as velas de mil barcos que para elas conduzem os
36
Veja o Ato nº 3.856 de 18 de janeiro de 1886 que trata do regulamento para o serviço da catequese na Província de Goiás Anexo III.
101
variadíssimos produtos da indústria moderna, enquanto por se não fala senão em navegação de
rios, em vapores, em estradas de ferro, em bancos, em ciências, indústrias, artes, colonização, o
goiano fala em abrir uma picada pelos seus desertos para carregar sobre besta o que os
estrangeiros produzem. Alargando as vistas além daquele presente a devassar os segredos do
futuro, com todas as forças de uma convicção profunda, Couto de Magalhães, poeticamente,
exclamou:
Conceda-nos Deus paz interior, como nos tens concedido até hoje, e talvez um futuro
não mui remoto tenhamos de ver a estrada de ferro ligando essas regiões ao Rio de
Janeiro, tomando a forma de um T colossal, cuja cabeça liga o valle do Rio do Prata,
pelo Pequiry ou S. Lourenço, a outro o do Araguaia e portanto o do Amazonas,
garantindo assim a esse colosso sua integridade territorial, que sem ella difficilmente
conservará (Trecho do Relatório do Vice-Presidente Dr. Theodoro Rodrigues Moraes
no dia 10 de fevereiro, de 1881).
O então presidente Moraes, propunha um traçado com uma direção mais para o norte, o
cortando propriamente o divisor das grandes águas, senão o Araguaia, em Itacayú, e depois os
tributários do rio Manso ou o rio das Mortes, seguindo pelo respectivo chapadão até a serra de S.
Jenimo, onde cumpre explorar a melhor passagem para a capital de Mato Grosso. Eram as novas
iniciativas sendo implantadas. Os antigos caminhos de tropas de burros também estavam sendo
substituídos pelos trilhos do caminho de ferro.
Em 1873, a Comissão Pereira do Lago estudou os melhoramentos necessários para a
navegação. Como resultado dos estudos, o engenheiro Lago propôs a construção de uma estrada de
ferro entre Alcoba e Santa Maria. O estabelecimento de uma linha rrea marginal, de bitola estreita,
de Chambioás a Alcoba, no Pará, serviria para vencer os trechos “intransponíveis” pela natureza
ficando assim ligado o Alto Araguaia ao Baixo Tocantins, a província de Gos ficaria em franca
comunicão com o Pae com todo o litoral.
Este ilustre companheiro concluiu que era preferível vencer os trechos “intransponíveis”
pela navegação por uma estrada de ferro entre Alcobaça e Santa Maria do que realizar
melhoramentos no leito do rio, pois estes subiriam as quantias incompatíveis com as
populações e com as possibilidades imediatas da região (JUBÉ, 1929: 08-10).
A estrada de ferro foi decretada, em 1890, para prolongar a estrada até Santa Maria
conforme o projeto da Comissão Pereira do Lago, a fim de permitir à Província de Goiás o
escoamento de seus produtos e também uma notável economia nos fretes das mercadorias. Em
1890, o governo Provisório através do Decreto nº 862 de 16 de outubro de 1890, concedeu ao
engenheiro Joaquim R. Moraes Jardim o privilégio de construir uma estrada de ferro entre Alcobaça
102
e Praia da Rainha de 180km bem como a subvenção paras as linhas de navegação. Somente em
janeiro de 1938, deu-se início à construção da estrada, contudo, apenas 80km foram construídos
(JUBÉ: 1929: 8). Edson Maranhão Duarte conta que essa estrada de ferro era a menor estrada que
existiu no Brasil, ligando as Cidades de Tucuruí (ex-Alcobaça) à vila de Jotobal, no estado do
Pará.
A fim de evitar a passagem do rio Tocantins na Cochoeira de Capitariquara (hoje
sepultada pelo lago da usina de Tucuruí), cujas águas era impossível transpor (a subida
do rio era feita por um desvio chamado cachoeira de Itaboca também bastante
encachoeirada, porém com muitos obstáculos que demorava bastante), os barcos
tinham que subir o rio descarregados, deixavam a carga no porto de Tucururí que era
transportada pela estrada de ferro até a vila de Jatobal, onde novamente recebiam o
carregamento (DUARTE, E., 2008).
A função da ferrovia era permitir o transporte em trecho terrestre paralelo às cachoeiras dos
rios, as quais impediam a continuidade da navegação, utilizadas para escoar os produtos que
circulavam de Leopoldina a Patos, no Pará e estreitar os laços de relações comerciais e políticas. O
plano de viação a que o decreto
37
862 de 16 de outubro de 1890, deu existência legal, não foi,
até o início do século XX, totalmente convertido em realidade. Dizia Magalhães (1957:195):
O que se tem em vista não é navegar os rios, como meio de dar maior incremento à
marinha, e, sim, dar o desenvolvimento à industria e ao comércio, proporcionando-lhe
fáceis vias de comunicação; a questão da navegação dos nossos rios é uma questão
econômica, que em nada se diferencia das de estradas de ferro, de rodagem, ou de
quaisquer outras vias de comunicação, e parece-me que são os menos próprios para
cuidar delas os ministros, que tem sobre seus ombros o grande peso de velar por que o
país tenha força armada, terrestre ou marítima, para manter a paz interna e o respeito
às instituições e direitos, tanto por nacionais, como por estrangeiros.
A ideia de se construir a estrada de ferro era de caráter nacional, pois significava a efetiva
conquista dos sertões e a ligação comercial e social das regiões norte e sul do País.
É de 1869 a ideia de construir uma Estrada de Ferro que contornasse as corredeiras e baixios do
médio Tocantins. No ano de 1905, a “Companhia de Viação Férrea e Fluvial do Tocantins
Araguaia”, responsável pela execução da obra, através do Decreto 862 de 16 de outubro de
37
O Decreto 862 de 16 de outubro de 1890, concedeu privilégios à Companhia de estrada de ferro Mogyana para o prolongamento da mesma
estrada, a partir da estação do Jaraguá aa cidade de Catalão GO; ao Banco da União de São Paulo, ou à empresa que organizasse. De uma
estrada de ferro que, partindo do ponto mais conveniente, entre Uberaba e S. Pedro de Uberabinha, do prolongamento da estrada Mogyana,
precedentemente indicado, se dirigisse à Villa de Coxim, passando nas imediações ou abaixo da foz do Meia Ponte [...]; ao engenheiro Francisco
Murtinho e ao Banco Construtor do Brasil, de uma estada de ferro que, partindo de Catalão e passando pelas cidades de Goyáz de Cuyabá, de São
Luiz de Cáceres e lugar navegável do rio Guaporé, termine no Estado de Mato Grosso, em ponto limítrofe com a República da Bolívia, devendo servir
à navegação do Araguaia e do rio das Mortes diretamente por meio de ramais [...]; de uma linha de navegação a vapor, no rio Tocantins, de Belém,
capital do Estado do Pará, ao ponto inicial da estada de ferro precedente, e de outra no mesmo rio, compreendida entre o ponto terminal da aludida
estrada e a cidade de Porto Nacional ou de Palma, de modo a poder-se ligar a estrada de ferro que de Catalão deve dirigir-se a Palma; de linhas de
navegação a vapor nos rios Araguaia e das Mortes, em todas as seções navegáveis, podendo estender-se aos afluentes destes rios, bem como aos
do Tocantins (Fonte: Mensagem enviada ao Congresso na abertura da segunda sessão da quarta legislatura, pelo presidente do Estado Dr. José
Xavier de Almeida, em 1902. Memórias Goianas 16, 2003, 62-63).
103
1890, conseguiu um empréstimo no exterior para dar cumprimento ao seu contrato de construção.
Em 1908, foram iniciados os trabalhos, tendo em 1916, alcançado o quilômetro 82, na metade do
trecho Alcobaça à Praia da Rainha, quando por dificuldades financeiras, a Companhia
concessionária entrou em liquidação. Em 1967 o Governo Federal decidiu substituir a Estrada de
Ferro Tocantins por uma estrada de rodagem, sendo que, em 1974, os trilhos foram arrancados,
sendo extinta a ferrovia.
Durante todo o culo XIX, os relatórios dos presidentes da proncia de Goiás mostram o
dilema que era para a solução do problema da navegação do Araguaia. Era como um círculo vicioso. Se
por um lado havia a necessidade de investimentos, principalmente no setor de comunicação e faltavam
condões econômicas, por outro havia, ora a pouca vontade política, ora a incerteza de que essas
medidas proporcionariam os resultados esperados.
Veio a República, na qual a construção da Nação agora é ocupada pela construção do
Estado. Assim sendo, cassa-se tudo: contratos, transferências, privilégios e outras medidas mais. E,
para finalizar o epílogo da navegação do Araguaia, em 2 de julho de 1902, o Ministério da Indústria,
Viação e Obras Públicas, através da Diretoria Geral da Indústria, abre concorrência para a venda de
todo o material da extinta Empresa da Navegação a Vapor do Rio Araguaia, no Estado de Goiás.
2.1 HIBRIDEZ NAS EMBARCAÇÕES
Meu pai tinha um barco chamado Sertanejo, motor búfalo, 20 cavalos,
até prefeito andava nele. Era no pau e na forquilha. O motor enganchava
o gancho pra subir o beiradão (Raimundo Chofer, 2008).
Ilustração
14
Embarcação a motor (1935-1970).
Fonte: Pertence ao acervo fotográfico da família Melo.
104
Na segunda metade do século XIX, os ribeirinhos do Araguaia assistiram à entrada da
navegação a vapor e, no século XX, presenciaram a (r)evolução das embarcações a motor. Até
então, somente embarcações primitivas, sem poluição e sem nenhum barulho, deslizavam
mansamente na superfície das águas do Araguaia. Eram as canoas e as ubás. As canoas e ubás
são embarcações indígenas cavadas e esculpidas do tronco de uma grande árvore, por meio do
fogo. São embarcações abertas, leves e de pequeno porte, movidas a remos e desprovidas de
lemes. As ubás são mais difíceis de serem conduzidas que as canoas; são mais estreitas por serem
feitas de um tronco mais fino, atingindo maior velocidade nas águas. Rani Melo
38
exímio
conhecedor das embarcações indígenas do Araguaia afirma que diferença entre a canoa e a
ubá:
As ubás que trafegam nas águas do Araguaia são embarcações específicas dos índios
Karajás. Não são híbridas. Elas se diferenciam das canoas em vista de suas
extremidades serem bem estreitas para propiciar melhor desempenho nas águas. Sua
especificidade encontra-se na estrutura física do seu tipo. É conduzida tão-somente por
uma ou duas pessoas que, sentadas nas extreitas extremidades, são capazes de guiar
a embarcação e levar várias pessoas ao mesmo tempo. Enquanto que a canoa permite
ser conduzida por mais pessoas utilizando vários remos. Suas extremidades são mais
largas e seu formato é mais avantajado (Rani Melo: 2008).
38
Rani Martins de Melo nasceu em 27 de novembro de 1947. Profissão: piloto, instrumentista, poeta, sertanista, desbravador do Araguaia, barqueiro.
Entrevista concedida em 23 de julho, na cidade de Araguacema (TO).
Ilustração
15
Canoas e ubás no Porto de Leopoldina no século
XIX. Fonte: Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
105
A indústria da construção naval é muito antiga no Brasil, é uma tradição brasileira vinda dos
remotos tempos coloniais. Nas margens do rio Araguaia, o domínio da construção de barcos
começou após a implantação da Companhia de Navegação a Vapor do Araguaia. Nos presídios de
Itacayú, Santa Leopoldina e Santa Maria foram montadas oficinas com máquinas de grande porte e
utilidade para a fabricação e consertos dos botes de carreira do Araguaia, bem como para a guarda
e a manutenção dos barcos.
Possue a nossa Empresa uma officina movida a vapor, que satisfaz as
necessidades do serviço. Compõem-se de duas secções, a officina de machinas
de furar, tarrachas, tornos, etc. Um destes tornos é obra importantíssima, por
prestar-se a toda espécie de trabalho de torneação, tendo completo aparelho e
ferramentas. A machina que move os tornos, tem a caldeira vertical e cilindro
horizontal, sua força é de 6 athinospherae. A secção compreende-se: fundição,
ferraria e carpintaria, a cargo do machinista Punglilioni, que bem procura
desempenhar os trabalhos respectivos. De dezembro do anno passado até esta
data, tem a oficina reparado diversas peças de máchinas dos vapores Colombo, e
Mineiro, dentre ellas algumas de difícil trabalho, como sejam, puchavantes,
centricos, etc. Também tem-se construído dous grandes trabalhos, devido à pouca
capacidade que offerece o nosso porto para estes serviços (Relatório do Dr.
Aristides de Souza Spindola, presidente da província de Goiás, no dia de junho
de 1879).
Ilustração
16
-
fabricação de uma igarité no século XIX. Ao lado
esquerdo, um homem cortando uma grande árvore para a fabricação da
igarité. Fonte: Coudreau, Henri, 1855-1899 -
Viagem à Itaboca e ao
Itacaiúna. Belo Horizonte; Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. Da Universidade
de São Paulo, 1980.
106
A organização dos estaleiros e das oficinas foi facilitada pela grande oferta de madeiras
específicas e a mão-de-obra indígena, juntamente com a mão-de-obra dos negros sentenciados,
bem como pela grande necessidade de reparar as canoas ou mesmo substituir as imprestáveis.
As embarcações dos navegantes do Araguaia, construídas nos estaleiros dos presídios
militares, com o tempo se tornaram híbridas. Vários fatores promoveram essa hibridez cultural, tais
como o processo de integração social entre culturas distintas. Nesses lugares havia a troca de
conhecimento entre índios, negros e brancos. Outros fatores que influenciaram na hibridez das
embarcações estão relacionados à ulitidade da embarcação e à necessidade de proteção das
intempéries do tempo. Para se protegerem da chuva ou do Sol – a região é de clima muito quente –,
adotaram, a princípio, o uso de cobertura de lona.
Quanto à utilidade, existiam canoas com capacidade para carregar, além das mercadorias, até
oito homens. Estas embarcações navegavam a céu descoberto e as pessoas ao rigor do tempo.
Nesse processo de hibridez as canoas receberam várias denominações: igarités, montarias e botes de
carreira. As canoas são também conhecidas por montarias (TAUNAY; 1975: 234).
Ilustração
17
– vapor Colombo, século XIX – estaleiro de Leopoldina.
Fonte: Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás – GO.
107
São feitas de um pau, têm de comprimento cinqüenta, até sessenta palmos, e de
boca cinco até sete são agudas para a proa, e popa são à maneira de uma lançadeira
de tecelão. A grossura do casco não excede na borda a duas polegadas. Custam estes
cascos, sem mais reparo algum, setenta até oitenta mil réis, e mais. Fornece cada uma
de oito homens, oito remos, quatro varas uma cumeeira e coberta de lona, pólvora,
bala, machados, foices, enxadas e armas de fogo. A saber, um piloto que peloteia no
bico da popa em continuamente, um proeiro na mesma forma no bico da proa, cinco
ou seis remeiros também em pé. Os remos são imitações de choupas de Esponteons
com suas hastes: a saber, o remo do piloto é maior que os dos remeiros porque com ele
desvia a lança dos perigos que se lhe oferecem pela proa. Os remos dos remeiros são
todos iguais: as varas que têm suas juntas de ferro servem somente para subir Rios,
que nesse caso se não usa de remos: a coberta de lona só serve para cobrir a carga da
canoa quando chove. (TUNAY; 1975: 234).
Ilustração
18
– Ruínas da antiga oficina de Leopoldina, século XIX. Foto pertence ao
Museu das Bandeiras.
108
O processo de hibridez cultural nas embarcações é dinâmico. De simples canoas, feitas
artesanalmente, sem cobertura, sem metais, guiadas tão-somente pela força humana através dos
remeiros, surgem novos tipos de embarcações, as montarias e igarités, as lanchas, os barcos a
vapor e, posteriormente, os barcos a motor, movidos a diesel.
Ilustração
19
– Vapor Araguaya – no porto de Leopoldina, século XIX.
Fonte: Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás - GO.
Ilustração
20
Batelão, do século XIX. Homens com varas, denominadas
zinga.
Fonte: Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
109
Destarte, a principal causa da hibridez cultural foi promovida pelas mudanças de regras
econômicas e sociais que transformaram e adaptaram as embarcações às suas novas exigências
como os barcos a vapor, os batelões, rebocadores, igarité, lanchas e botes. Assim, a partir do
século XIX, deslizam nas águas do Araguaia, tanto embarcações feitas de modo simples e único,
quanto as embarcações híbridas, fundidas, cujos botes eram caracterizados da seguinte forma:
De 50 a 60 palmos de comprimento sobre 15 de largura e 3 de fundo, coberta por duas
galerias terminadas em arco, da altura de um homem. A popa é coberta por uma galeria
arqueada, da altura de 7 palmos, assoalhada e terminada por uma porta. O porão
oferece cômodos para as cargas; o fundo é terminado por uma arcada, forrada também
de tábuas, e com uma pequena janela [...] adiante do cômodo da poupa existe um
corredor descoberto, da largura de 5 palmos, além, do qual ergue o cômodo da proa,
em tudo semelhante ao da popa, salvo o assoalho [...]. O teto sempre es crivado
(cheio) de armas e munições mosquete de guerra, lata de pólvora, sacos de chumbo,
facas e punhais (MAGALHÃES, 1957:98-99).
Remam todos ao mesmo tempo. O proeiro, que vai no bico da proa tem a obrigação de bater
com o remo na água, dar uma pancada com o calcanhar no lugar onde pisa, de modo que o estrondo
produzido pelo calcanhar sirva de compasso para que todos os remeiros coloquem os remos na água ao
mesmo tempo e remem com força igual e, assim continuamente seguem seus detinos. A parada ou
pouso se faz “embicando
39
a canoa pelo barranco do rio ou na praia. Segundo Cunha Mattos as
igarités que o pequenas canoas mui chatas, cortam a água mais facilmente do que as grandes
embarcações de carga e por isso o escolhidas para correios e conduzem cargas de duzentas arrobas
no tempo seco” (MATTOS, 1824: 136).
Para a prática de reparos e construções de embarcações os dirigentes dos presídios
serviam-se da mão-de-obra indígena e dos negros. Os ferreiros e carpinteiros celebravam contrato
com o inspetor do presídio. Raymundo José Gonçalves foi um dos ferreiros contratados para prestar
serviços na oficina de Santa Leopoldina. Segundo as cláusulas do contrato
40
, caberia ao
contratante fornecer uma tenda, um torno grande, uma tarrafa de um parafuso grande e um
pequeno, e uma carretilha de furar. O contratado deveria residir no presídio juntamente com sua
família; receberia ajuda de custo e estaria sob a disposição da Lei de 13 de setembro de 1830.
39
Embicar uma embarcação é o modo de dizer dos ribeirinhos que quer dizer: puxar a canoa pelo bico, ou seja, por uma das extremidades para retirá-
la da água deixando-a menos da metade dentro da água.
40
Oficio sobre contrato celebrado pelo inspetor geral dos presídios Ernesto Vallée e Raimundo José Gonçalves, o ferreiro - Veja anexo nº VII.
110
Os índios, além de contribuírem com os reparos e a construção das embarcações
colaboraram com a seleção das árvores mais leves, propícias para a fabricação desse objeto.
Cooperaram, ainda, com a derrubada e desgalhada das árvores, bem como com o manejo das
madeiras. Contribuíram em repassar ensinamentos adquiridos milenarmente, quais seja o modo de
fazer e a aplicação específica das matérias-primas utilizada na fabricação de embarcações, tais
como o uso do cipó, folhas, resina para brear e calafetar com estopa confeccionada com
membranas da casca de árvores próprias para a função. Fruto dessa relação, numa convivência
grupal, muitos homens ribeirinhos, ao aprenderem na prática cotidiana a arte de fabricar
embarcações, tornaram-se mestres-artesãos. Foram homens que detiveram e repassaram seus
conhecimentos por meio do exercício prático de sua atividade profissional como carpinteiros-navais.
Os índios do Araguaia, Xavantes, Karajás, Canoeiros, Caiapós, Javaés e outros eram
hábeis na produção de ubás e canoas. Assim sendo, foram indispensáveis nos estaleiros. Ali se
tornaram excelentes carpinteiros e torneiros em vista do uso de ferramentas específicas. Os índios
Karajás, apesar de repassar ensinamentos de sua cultura, mostraram força de resistência ao
fazerem permanecer vivas algumas categorias culturais. O modo de fazer ubá, por exemplo,
permaneceu inviolável entre eles. Essa prática era repassada tão-somente aos membros de seu
grupo que não aceitava fusão no interior de sua cultura. Os índios Karajás, apesar de contribuir nas
atividades dos estaleiros, resistiram ao uso da embarcação híbrida e mantiveram suas tradições
fabricando seus barcos de modo primitivo e original.
Existem resistências a aceitar estas e outras formas de hibridação porque geram
insegurança nas culturas e conspiram contra sua auto-estima etnocêntrica (CANCLINI,
2003: XXIII).
Com a implantação da Companhia de navegação a vapor, destacaram-se, dentre outras
embarcações, os barcos denominados Araguaya, Mineiro, Christóvão Colombo e Santa Maria. A
empresa não produzia barcos como efetivava a aquisição de embarcações de grande porte de
outros lugares. O barco a vapor Araguaya foi construído em 1855 e transportado de Mato Grosso no
ano de 1867. Pertencia à Marinha Nacional. Era movido a roda simples, tinha 70 pés de
comprimento, 10 de largura e 3 de pontal; máquina de alta pressão, de um cilindro com 12
polegadas de diâmetro. O Vapor Mineiro era movido a rodas potentes, tinha 75 pés de
comprimento, 11 de largura e pontal de três e meio; máquina de alta pressão, de dois cilindros e 11
polegadas de diâmetro e 60 a 80 libras de vapor. No seu interior, havia três camarotes com
beliches. O rebocador Christóvão Colombo era um barco movido a hélice, tinha 50 pés de
111
comprimento, 10 e meio de largura e 4 de pontal. Máquina de alta pressão, de força de 20 cavalos.
Rebocava até 60 mil quilogramas de carga. Os botes movimentados a remos comportavam entre
1.000 e 2.000 arrobas (Relatório do Dr. Aristides de Souza Spindola, presidente da província de
Goiás, no dia 1º de junho de 1879).
A lancha Santa Maria, mandada construir em Glasgow (Reino Unido) no ano de 1876 e armada
em um estaleiro no Pará, caiu nas águas do Araguaia no dia 7 mao de 1878, era de ferro e tinha a
máquina colocada na popa. Com 55 pés de comprimento, 15 de largura, três s e seis polegadas de
pontal, possam um guindaste a vapor destinado a facilitar a transposição das cachoeiras. Tinha
capacidade para transportar 25 toneladas (Relatório do Dr. Aristides de Souza Spíndola, presidente da
província de Goiás, no dia 1º de junho de 1879).
Ilustração
21
- Embarcações a vapores: Mineiro, Colombo e Araguaya movidas a lenha,
Vapores pertencentes a Companhia de Navegação a Vapor do século XIX. Ilustração
21
Peças das embarcações a vapores do século XIX. Monumento na Praça de Aruanã –
GO. Fonte: Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
112
No século XX, os ribeirinhos presenciaram a evolução das embarcações que até então eram
os botes, batelões, canoas e ubás. Entraram nas águas do Araguaia embarcações a motor e
gradualmente alguns tipos de barco menos apropriados foram desaparecendo. Neste novo cenário,
entra em cena o barco a motor, movido a diesel.
O primeiro barco a motor diesel pertencia ao alemão Emílio Klemman que
posteriormente vendeu ao meu pai, João Duarte de Souza
41
, que o denominou de “Índio
do Brasil”. O referido barco foi construído em madeira de lei com relativo conforto. No
seu interior havia 1 camarote com um banheiro sanitário; 2 porões de carga; 1 sala de
máquina; 1 cozinha com fogão a lenha. A tripulação era composta de 9 pessoas sendo
4 marinheiros, 1 maquinista, 1 ajudante, 1 piloto e o gerente de bordo. Navegavam
também pelo Araguaia os barcos com motor de popa. Esses barcos são chamados de
penta. Eram barcos feitos de madeira, sem coberturas, com capacidade para
transportar até 10 pessoas ou até duas toneladas de carga. Eram pequenas
embarcações destinadas a fazer curtos percursos, alguns tinham toldos (Edson
Maranhão, 2008).
Os barcos a motor, movidos a óleo diesel, foram introduzidos nas águas do Araguaia a partir de
1930 e tinham capacidade de carga de a 60 toneladas. Eram subvencionadas pelo Governo Federal e
serviam para atender a população ribeirinha no transporte de cargas, malas postais e pessoas.
Os botes eram embarcações de grande porte, construídas em madeira de com
capacidade de carga de até 30 toneladas e eram impulsionadas por remos com cabo
longo chamado voga, os remadores, 4 a 6 pessoas de cada lado, se posicionavam de
costas para a proa (tipo regata). Tinha também o piloto. Nas partes mais rasas do rio,
usavam, às vezes, uma vara comprida, chamada zinga que servia para impulsionar o
bote. No mesmo estilo eram os batelões, porém de pequeno porte, entre 3 e 5
toneladas e 2 e 4 remadores e um piloto. Eram abertos com uma pequena cobertura na
parte central. Os batelões faziam pequenos percursos entre cidades ribeirinhas, não
mais que 20 a 30 léguas. Os botes faziam viagens regulares entre Conceição do
Araguaia e Belém do Pará, levando principalmente a borracha (extraída às margens do
rio Xingu e transportada em lombo de burro para Conceição do Araguaia) e trazendo os
gêneros de primeira necessidade: sal, açúcar, café, querosene, tecidos, ferragens e
outros (Edson Maranhão, 2008).
Com o advento das embarcações a motor, muitas dificuldades diminuíram; os comerciantes
passaram a fazer os percursos em menor escala de tempo e maior conforto. O tempo de uma
viagem no percurso Conceição do Araguaia a Belém reduziu de 25 para sete dias na viagem de ida
41
SOUSA, João Duarte de. Baiano de Jaguarari (BA), nasceu em 1897, veio para Conceição do Araguaia em 1915 e, em 1933, mudou-se de barco
para Santa Maria do Araguaia (Araguacema - GO) com sua esposa Izaurina – natural de Carolina (MA). Foram na época os maiores comerciantes da
região. Foi proprietário da Charqueada nos anos 60 em sociedade com seu filho, o Sr. Edson Maranhão Duarte. Foi proprietário de várias casas
comerciais: loja de tecidos, armarinhos, ferragens, calçados e confecções; uma torrefação de café, padaria, sorveteria, cinema e empresa de
navegação com 4 barcos a motor (linha Araguacema/Belém/Araguacema). Faleceu em junho de 1978.
113
e de 60 para 12 a 15 dias, na viagem de volta. As embarcações a motores tinham capacidade de
carga de até 60 toneladas. Edson Maranhão (2008) afirma que na década de 1950, além de João
Duarte de Sousa, os proprietários de barcos Joaquim de Souza Lima, João Rego Maranhão,
Antônio Botelho faziam o percurso em barcos motores – na rota: Araguacema, Conceição do
Araguaia, Araguatins, São João do Araguaia, Marabá, Tucuruí, Baião e Belém do Paem menor
escala de tempo e maior conforto. O Sr. Raimundo de Melo, navegante do Araguaia conhecido nas
cidades ribeirinhas por Raimundo Chofer, recorda:
Nós tínhamos uma dificuldade enorme de governar os barcos. Pesava muito. Até que
um alemão Emílio Klemman descobriu uma maneira de adicionar o leme. Pronto.
Acabou o problema. O barco ficou maneirinho. Tão maneiro que às vezes tinha que tirar
o leme pra poder controlar o barco, porque tomava da mão da gente. Meio metro pra lá,
meio metro pra cá, e não tinha pancada. Dois homens no leme e pronto; ia embora
(Raimundo Chofer, 2008).
No início do século XX, nos anos de 1920-30, os botes que trafegavam o Araguaia saíam de
Conceição do Araguaia com destino à praça de Belém. Nesse período o comércio de exportação
era a borracha extraída dos seringais das margens do rio Xingu e vinha para Conceição do
Araguaia em lombo de animais. A borracha era embarcada nos grandes botes com destino a Belém
do Pará. Com a implantação da Charqueada
42
na cidade de Araguacema (GO)
43
(antigo presídio de
Santa Maria), surgiram os barcos a motores que saíam de Araguacema com destino a Belém do
Pará, nos anos 40, transportando o charque produzido na Charqueada.
O barco vinha de Belém para Arumateus, bem perto de Taquari, que é a cachoeira.
Passava por Taquari, Breu, Baiano, Pedra de Mergulhão. Descarregava na praia, e
vem (continua a viagem) e segue no garimpo de Xamaúna (ponto de parada), nós
carregávamos e seguíamos pra Ponta da Unha, Castanhal, Remansão, Pontão de
Cupuaçu, Itaboca e entrava no Arrependido até sair das cachoeiras (e continua a
42
A Charqueada foi fundada em 1943 pelo empresário Artur Barreiro e seu sócio, ambos gaúchos. Em 1972, foi extinta. Posteriormente, pertenceu ao
empresário João Duarte de Souza, conhecido por Dodô. O prédio principal da Charqueada era um galpão com matadouro. Nesse galpão havia um
espaço apropriado para desossar e retalhar a carne, 4 tanques que eram utilizados para o processamento da salmora, 2 para o acondicionamento da
carne e 2 para acondicionamento dos couros. Havia, ainda, um autoclave a vapor alimentado por um locomóvel a lenha. Este objeto era utilizado para
a produção do sebo. A carne, depois de salgada, era estendida ao tempo aberto, sobre varais de madeira e, depois de seca, era acondicionada sobre
um cimentado e coberto com lona. Dali era retirada para as embarcações e enviada a Belém do Pará. A Charqueada enviou carnes para Belém, tipo
charques e in-natura. Os charques eram transportados em barcos motores, com capacidade de até 30 toneladas, no período de cheia do Araguaia,
entre os meses de novembro a maio. As carnes in-natura eram enviada via aérea. O primeiro piloto do avião a transportar carne in-natura era
brasileiro e chamava-se Pedro Stainer, filho do alemão Oscar Stainer e proprietário do avião bimotor C-46 CURTIS COMMANDER, prefixo PPDKF.
Depois vieram os aviões REAL AEROVIAS BRASIL, NNAB, NAVEGAÇÃO AÉREA BRASILEIRA, IT TRANSPORTES AÉREOS, PARAENSE
TRANSPORTES AÉREOS, além de alguns hidroaviões CATALINA da FAB. Subvencionado pelo Governo de Goiás eram as linhas aéreas para
passageiros Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, depois a VASP que fazia a rota Goiânia a Belém e escalas. Havia na Charqueada, 20 casas para os
trabalhadores em geral e a casa principal onde se hospedava o gerente. Tinha, ainda, um hotel para hospedagem da tripulação dos aviões quando no
período da carne in-natura (DUARTE, 2008).
43
Araguacema pertenceu ao Estado de Goiás até o ano de 1988, quando foi criado o Estado do Tocantins pela Constituinte de 5 de outubro de 1988.
114
viagem). Pega a carga que vem de Tucuruí e de Jatobá. Era essa a vida dos
navegantes. Parava em Arumateus e vinha para Marabá trazendo 50 hectolitros de
castanhas, era um barcão. Mas, os barcos era tudo ruins. Hoje nós temos barcos que
comportam 300 a 1.000 hectolitros de castanhas. Motor volvo de 300 cavalos. Numa
dessas viagens uns amigos meus, o Olaviano e o Vicente Vieira afundaram o barco do
velho Dodô, cheio de charque. Olaviano morreu afogado (Raimundo Chofer, 2008).
A navegação pelo rio Araguaia ocorrida entre 1870 a 1890 (a vapor) e a navegação (a motor)
iniciada a partir de 1930 foram elementos socioeconômicos dinamizadores, fundamentais nos
processos de hibridez cultural dos povos ribeirinhos do médio Araguaia (índios e sertanejos – brancos
e negros), promovendo a transformação da paisagem do sertão do Araguaia.
2. 2 A ESPERA NA BEIRA DO RIO E O APITO DOS MOTORES
Os vapores e botes fundeando no porto, os marinheiros cruzando-se nos tombadilhos, a
fumaça do vapor que move as máquinas da oficina, carga e descarga, gritos e cantos,
eis o progresso disputando à barbaria os seus velhos domínios! Aproxima-se a hora da
partida [...] a população de Leopoldina está nas barrancas próximas ao porto, e no
casco do Araguaia; o rio Vermelho está amarrado ao Colombo; os marinheiros em
seus postos; o digno comandante no tombadilho [...] só nos esperam! (MORAES,
1918:128 - 140).
Ilustração
22
- Carregamento e descarregamento no porto de Araguacema – GO. Barcos motores:
Expresso Goiano, D. Sebartião Thomaz e Cidade de Araguacema. Proprietário: João Duarte de
Souza (1950-1.970)., em janeiro de 1955
Fonte:
DUARTE, 2008.
115
A navegação comercial pelo Rio Araguaia promoveu vários acontecimentos que marcaram a
vida dos moradores do sertão goiano, pois sua memória é transmitida ao longo dos séculos com
elevado grau de identificação. Michael Pollak afirma que é perfeitamente possível que, por meio da
socialização política ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de
identificação com determinado passado, o forte que podemos falar numa memória herdada
(POLLAK, 1992: 212).
No poema “À espera da barcaça do Araguaia”, Ione (2008) revela o sentimento de saudade,
guardada em sua memória, que sente do tempo que os ribeirinhos aguardavam as embarcações na
beira do rio.
A barcaça desce o Rio Araguaia
em destino a Belém do Pará,
enfrentando corredeiras, cachoeiras e outros obstáculos.
Leva consigo o que temos de melhor:
nossos frutos,
nossos peixes,
lindas morenas
e muitas esperanças.
Esperança da boa negociação
esperança da vinda dos produtos da cidade paraense
para alimentar as nossas vaidades e necessidades,
o bom cheiro do Pará,
o rouget para embelezar suas morenas,
a bolacha de lata, para alegrar as crianças,
o querosene para clarear nossas vidas.
Quantas saudades...
de ver a barcaça chegar
trazendo alegrias no rosto de quem chega
e de quem a espera.
(Ione Carvalho, 2008)
Uma das características simbólicas e representativas de cenas comuns na vida dos
ribeirinhos do Araguaia era esperar na beira do rio os entes queridos, os amigos, a encomenda ou
as notícias. A espera na beira do rio representava recepcionar o esposo ou o noivo, o amigo, o
missionário, a mercadoria, as notícias, o medicamento ou apenas ver o movimento que se fazia no
porto de embarque.
Esperar representava muito mais que aguardar. Era deixar seus afazeres para,
ansiosamente, deslocar-se para o porto do rio e da sua margem assistir à chegada das
embarcações. Era ter o prazer de observar a chegada dos barcos após ouvir o apito dos motores.
116
Ver as embarcações lentamente deslizando na curva do rio. Esperar era ficar ali, na margem do rio,
em pleno sol quente, aguardando os missionários para se casar ou batizar seu filho ou para ouvir
uma cerimônia religiosa. Era estar com os quitutes prontos para servir àquele ente querido que
estivesse chegando. Era ter o prazer de servir. De assistir a cada detalhe dos fatos no momento da
chegada. Pois cada chegada era inédita, única. O rio Araguaia era o caminho, a saída, a chegada,
era a via de comunicação. A saudade do ente querido, a necessidade de um produto, a vontade de
notícias de familiares faziam os ribeirinhos deixar seus afazeres e se deslocarem para a beira do rio
para assistirem à chegada das embarcações.
As embarcações traziam, além de alimentos e utilitários, expressões ou termos linguísticos
típicos de outras regiões, as notícias (boas ou ruins), notícias sobre os costumes, as modas, a
estética, os comportamentos, o lazer, as práticas culturais modo de fazer e até as doenças. Entre
idas e vindas, o Sr. Raimundo Chofer lembra e expõe com sapiência, que as embarcações a motor
(1930-1970) levavam e traziam não só mercadorias:
Levávamos nas embarcações de tudo. Charque, castanha. O charque ia direto pra
Belém. O charque era do velho Dodô e do velho Solino. Pra Tucuruí levávamos a
castanha. Trazíamos de tudo. Secos e molhados. Trazíamos o açúcar, querosene.
Tudo. Remédios, um recado, uma encomenda, um bilhete, um estudante. Tudo era por
barco (Raimundo chofer, 2008).
Maria Aldy, ribeirinha do Araguaia, moradora de Araguacema, conta que viajou pelo
Araguaia na cada de 1960. Diz que as viagens eram longas e intermináveis. Às vezes, os barcos
encalhavam, mas valia a pena viajar naquelas embarcações em vista da oportunidade de apreciar
aquela exuberante paisagem e a certeza de que na beira do rio havia amigos e parentes esperando-
os. Maria Aldy
44
conta:
A gente estudava em Porto Nacional, minhas irmãs, Aldineide, Aldinita e eu. Quando
chegavam as férias, a gente ia de avião para Conceição do Araguaia e de lá seguíamos
de barco para Araguacema. A viagem era longa e cheia de ansiedade. Quando
chegávamos na beira do rio, era aquela festa, minha família estava toda lá, nos
esperando! (Maria Aldy, 2008)
44
ROCHA, Maria Aldy Laranjeira. Piauiense Reside em Xinguara (PA). Morou em Araguacema e estudou em Porto Nacional. Profissão: professora,
empresária. É proprietária de estabelecimento educacional. Entrevista concedida em 10 de novembro de 2008.
117
Conta Joaquim
45
, morador de Araguacema, que, todas as vezes que ouvia o apito dos
motores, deslocava-se até a beira do rio para esperar suas encomendas, visto que ele atendia na
profissão de sapateiro aos viajantes e visitantes. As suas encomendas eram solas, tacha, bomba,
cola de sapateiro, graxa, fôrmas, pé-de-ferro
46
, martelo, prego.
Tudo vinha de Belém. Eu fazia as reforma dos sapatos para as senhoras e moçada.
Fazia a meia sola dos sapatos dos homens e das mulheres. Quando as embarcações
chegavam no porto engrossava de gente no barranco do rio. O apito do motor era
bonito; 5 léguas de distância a gente escutava. Era bonita a chegada dos motores
(Joaquim Aguiar, 2008).
Outros esperavam medicamentos. Os principais medicamentos que vinham de Belém eram
para combater a malária, doença tropical que matava muita gente na região.
A malária matou muita gente aqui. O Sr. Laranjeira
47
era quem cuidava de nós. Ele era
o nosso médico. Ele era o médico da região, tinha vasto conhecimento, principalmente
das doenças tropicais, malária entre outras, atendia em sua farmácia, medicando os
ribeirinhos e, principalmente, os moradores do sertão (Edson Maranhão, 2008).
Conta Joaquim Aguiar que:
No tempo do Frei Rosário, ele trazia bastante medicamento para o serviço da profissão.
Era o atebrina, a rosoquina, a malesin azul injetável, camuquim. A gente tomava e
urinava azulzinho. Era a dagenã, a paludan, esse medicamento acabava com o
inchaço. Outros comprimidos como a pílula 4 humores, a pílula contra o estupor, a pílula
pafaco, a jalapa em pó, as pílulas jalapa, o caramelano. Purgantes: sal amargo,
quinopódio. Tinha a pílula do mato. Essa pílula mais parecia chumbo; servia para
acabar a febre. Depois veio o Sr. Laranjeira pra cuidar da gente. Ele era o nosso
médico. Era Deus no céu e o Sr. Laranjeira na terra (Joaquim Aguiar, 2008).
Depois de longos meses de espera, bastava o apito das embarcações para a população
inteira afluir para a margem. Esse ritual de recepção refletia-se no desejo de matar a saudade, de
poder abraçar a pessoa querida, saber o que tinha ocorrido durante as viagens, bem como havia a
curiosidade por informações culturais. A ansiedade era grande. Os navegantes já eram esperados
pelos ribeirinhos durante dias. Os navegantes e viajantes também sabiam que os ribeirinhos os
aguardavam. Nesses prolixos períodos de espera, a esposa lecionava, educava seus filhos e ou
apenas fazia tarefas domésticas. Enquanto esperava, seu cônjuge enfrentava as longas e
45
Joaquim Aguiar nasceu em 11 de maio de 1931, em Santa Maria do Araguaia, foi sapateiro e funcionário público. Como sapateiro fazia chinelo de
coro. Serviu-se da navegação a motor para viajar para Mato Grosso onde desempenhou a profissão de garimpeiro no garimpo de diamantes, de
Monchão Dourado, próximo do Município de Tesouro. Entrevista concedida em 15 de julho de 2008, na cidade de Araguacema (TO).
46
Pé-de-ferro é uma das ferramentas utilizadas, pelos sapateiros, para o fabrico e conserto de sapatos. A profissão de sapateiro está praticamente
extinta.
47
LARANJEIRA, Aniceto Carlos, natural de Caracol (Piauí). Profissão: comerciante, farmacêutico, fazendeiro. Nasceu em 1915 e faleceu em 1882,
mudou-se com sua família para Araguacema (GO), no ano de 1959.
118
intermináveis viagens. Os navegantes chegavam ansiosos por um bom descanso, uma boa
alimentação. Esperar era uma expressão usada pelos ribeirinhos, que começou com as
embarcações a vapor (1870-1889) e continuou no período das embarcações a motor (1935-1970).
Era um costume saudável, que virou tradição e criou uma identidade específica na região e
perdurou até meados do século XX.
A tradição de esperar na beira do rio surgiu de forma natural, sem planejamento, sem
intenção de criar uma tradição
48
. Foi através da repetição que a espera na beira do rio virou
tradição. Manifestação específica dos povos ribeirinhos. Essa especificidade muito significava para
aquela gente. Aquele dia era dia de festa no povoado. Nestas festas aconteciam dança do tambor,
realizada a céu aberto, nos terreiros das residências. Todos os habitantes se envolviam direta ou
indiretamente com a chegada das embarcações.
Segundo Hobsbawm (1984), trabalhar a tradição ajuda a recuperar a memória e a
identidade local, o que, na atualidade, constitui um imperativo para manter o equilíbrio saudável
entre a manutenção da cultura da cidade e incorporação dos avanços positivos da cultura global.
Quando a memória de uma civilização se apaga, ocorre a desvalorização da identidade cultural. As
referências de um povo se registram por seu passado, seu presente e por todo o processo de
desenvolvimento como homem-social.
No século XIX, os ribeirinhos esperavam os missionários e os recepcionavam com fogos de
artifícios. Era tradição lançar foguetes ao ar para anunciar a chegada dos apostólicos. Ao chegar
aos presídios militares, o eclesiástico que servia aquela pequena localidade, fazia as honras. O
sacerdote local era avisado com antecedência, por um índio que acompanhava a comitiva, da vinda
do cônego.
Naquele período, os índios Karajás esperavam as embarcações para fazerem a troca com
seus produtos artesanais e para comunicar a vinda de uma pessoa especial. Ao ouvir de longe o
apito das embarcações a vapor, imediatamente comunicavam às aldeias seguintes através das
48
Conforme o historiador inglês Eric Hobsbawm (1984: 9), o termo “tradição inventada” engloba dois tipos de tradições, tanto as realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar, num período limitado e determinado de
tempo. Ainda na visão de Hobsbawm, “tradição inventada” refere-se a um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou
abertamente aceitas: tais realizações visam a inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implicaria,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado.
119
colunas de fumaça. Como uma espécie de telégrafo, os índios anunciavam a chegada das
embarcações à aldeia seguinte.
Servindo-lhes de telégrapho ou meio de signaes, direi; é impossível chegar às aldeias
dos Carajás no Araguaia, mesmo a vapor e de águas abaixo, e ellas se estendem em
uma zona de quase trinta léguas, sem que as últimas aldeias debaixo tenham aviso
prévio da chegada do eotêdáo, como elles denominam os vapores. O meio que se
servem é accender fogueiras esperando hora em que não haja vento, porque a fumaça
sobe em coluna para o ar. (MAGALHÃES, 1975:15).
Esta prática cultural é relatada por Frei Michel Laurent Berthet (Memórias Goianas I: 115),
em uma viagem de missão pelo interior de Goiás, vivida pelos dominicanos no ano de em 1883. O
autor da memória Uma Viagem pelo interior do Brasil, que desceu o rio Araguaia, indo depois rio
acima pelo Tocantins, voltando por terras até Goiás, descreve o cenário de uma chegada nas
cidades ribeirinhas do Araguaia. Frei Berthet afirma que, quando um missionário chega em um
povoado
Chegam de todos os lados camponeses que, sabendo da chegada do bispo, aproveitam
sua passagem para confessar-se, comungar, receber a confirmação, assistir à santa
missa e casar-se. De madrugada, um jovem índio, totalmente civilizado, que
acompanha o cônego, corre à rédea solta até Leopoldina para anunciar a chegada do
bispo (Memórias Goianas I: 115).
Frei Beerther (Memórias Goianas I) conta que, ao chegar à residência onde vai pernoitar, é
recebido pelo esposo. As mulheres pouco aparecem. Logo em seguida aparece um escravo para
lhe oferecer uma xícara de café ou uma tigela de coalhada. Após o habitual café, oferecem-lhe rede
para repousar, numa grande sala. Após o descanso, o morador que recebeu o missionário fará um
pequeno passeio pelo lugar, organiza o altar às vezes fez-se necessário improvisar um altar
servindo-se das próprias malas para realizar a missa com a presença de todos os moradores do
lugar. Este dia é importante, não faltam pessoas interessadas no batismo, casamento e em assistir
ao santo sacrifício. Depois da cerimônia religiosa, os missionários distribuem medalhas religiosas e
seguem viagem. A visita pastoral transforma-se em missão e um de seus resultados é um grande
número de casamentos de pessoas que viviam muitos anos juntos.
Na vasta sala que vai servir de dormitório a dez ou doze pessoas, se ergue um altar. É
aí que a família e alguns vizinhos se reúnem aos domingos para rezar o rosário e cantar
alguns cânticos a Santana, São José, São Sebastião, Santo Antônio de Pádua.
(Memórias Goianas I: 119).
120
Segundo o depoimento de Frei Berthet (Memórias Goianas I: 119), os empregados da casa,
chamados por “camaradas” vão abrigar-se num imenso rancho onde ficam guardados todos os
aparelhos que servem de fabrico do açúcar, da rapadura e da cachaça para dar lugar à comitiva
religiosa. Todo o interior das casas era iluminado por candeeiros ou lamparinas
49
.
No período da navegação a vapor, os ribeirinhos esperavam aseis meses as grandes
canoas que saíam de Santa Leopoldina quase todas carregadas de couro, de gado e de cavalos, e
ia aportar em Belém, capital da província do Pará, de onde traziam o ferro, vinho, farinha, mantas e,
em geral, todas as mercadorias que constituem o comércio europeu.
Os ribeirinhos esperavam as encomendas, os utensílios: os comerciantes esperavam a
balança (figura 1) o peso, o copo de medir mantimentos (figura 2), quais sejam a farinha de
mandioca, o milho, o arroz, o feijão e outros produtos mais. A dona de casa esperava o moinho de
moer café
50
(figura 3), e de moer carne, a panela de ferro
51
e o ferro de passar roupas (figura 4), o
bule (figura 5), o ralo
52
utensílio utilizado para ralar a mandioca, o milho para o preparo dos
alimentos, as novidades como a cesta
53
de alumínio utilizada para acondicionar ovos, o ferro a
brasa
54
, muito utilizado pelas mulheres, para passar as roupas da família. As mulheres ribeirinhas
se serviam do ferro a brasa vindo da Europa e, com o uso do abano, feito pelos povos indígenas,
para aquecimento do ferro, passavam-se as roupas. O abano é um produto indígena que serve para
aumentar a chama do fogo. Nesse processo, verificam-se a interação de dois produtos de culturas
distintas.
49
O candeeiro ou lamparina é utensílio doméstico de fabricação caseira. Do algodão de rama, produz-se o pavio, melhor dizendo: enrola-se o algodão
de modo a formar uma pequena corda coloca-se no interior do bojo e enfia no orifício superior do bojo que é descolado da parte inferior, deixando
mais ou menos um centímetro pra fora onde é acessa a chama. Assim que anoitecia, acendiam-se os candeeiros. O candeeiro era muito utilizado
para clarear o interior das residências.
50
Moinho (figura 2) – utilizado para a moagem do café. O café era primeiramente torrado em uma torradeira ou numa panela de ferro e ainda quente
levado ao moinho.
51
Panelas de ferro (figura 2) – as refeições eram preparadas especificamente nestes utensílios.
52
Ralo – utensílio utilizado para ralar milho e mandioca.
53
Cesta feita de arame liso e fino utilizada para acondicionar ovos caipiras.
54
Ferro de passar roupa (figura 4) utiliza-se fazendo primeiro o aquecimento. Para aquecê-lo coloca-se brasa feita de carvão mineral na sua parte
interior, por uma abertura acima do bojo. Para a conservação do aquecimento, usa-se o abano ou a própria boca para assoprar as brasas, retirando,
neste processo, o excesso de cinzas que vai se formando.
121
A interação está presente não nos produtos domésticos como no modo de falar (voz) e nos
costumes. O contato com outras comunidades distantes promoveu nos ribeirinhos uma identidade
própria através dessas manifestões queo fundamentais no processo de valorização da cultura local.
A navegação trouxe como resultado o processo de hibridez cultural entre os povos das comunidades
ribeirinhas do Araguaia ao longo do tempo de maneira bem específica e não planejada. Canclini (2003;
p. xxiv) explica que:
A hibridação para fundir estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas
estruturas e novas práticas, às vezes ocorre de modo não planejado ou é resultado
Ilustração
23
– utensílios domésticos utilizados nas
residências dos povos sertanejos. Da esquerda pra
direita: balança, copo, moinho, ferro, panela de ferro,
bule.
Figur
Figur
Ilustração
24
– utensílios domésticos utilizados pelos ribeirinhos até
meados do século XX. Da esquerda para a direita: panela de ferro,
candeeiro ou lamparina, fogão à lenha, abano, pilão e mão de pilão e
peneira.
Fonte: CARVALHO, 2008.
122
imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou
comunicacional. Mas afirma que frequentemente a hibridação surge da criatividade
individual e coletiva. Não nas artes, mas também na vida cotidiana e no
desenvolvimento tecnológico.
A criatividade está presente nas manifestações culturais dos ribeirinhos de Aruanã que,
servindo-se das embarcações a vapores praticam sua religiosa, ao celebrar a festa do Divino
Espírito Santo. Deste modo fortalecem e valorizam a hibridez cultural. Os batelões foram
substituídos por embarcações a motores, mas não deixaram de deslizar nas águas do Araguaia.
Dentro destas embarcações, fazem um passeio pela margem do rio em sinal de fé. Os batelões
motivaram os religiosos a praticarem suas crenças dentro deles, valorizando-os. Segundo a igreja
católica, esta devoção veio de Portugal e o cerimonial da festa é atribuído aos padres jesuítas que
percorreram o Brasil para evangelizar os índios. O personagem principal da festa é conhecido com
o nome de “imperador do Divino”. Os povos sertanejos do Araguaia, são pessoas religiosas
motivadas pelas pregações dos missionários que viajaram pelo Araguaia e promovem várias
práticas devocionais católicas. A beira do rio é um espaço que produz tradição.
Ilustração
25
- Barcaça levando a Festa do Divino Espírito Santo em Aruanã (antigo presídio de
Santa Leopoldina.)
Fonte: www.aprendebrasil.com.br
123
2.3 AS PRÁTICAS ALIMENTARES NOS BAIXIOS DO ARAGUAIA – PATRIMÔNIO SIMBÓLICO
A nossa alimentação era assim: a gente parava nas barrancas do rio matava um
pássaro na hora que a gente queria. Tinha muita caça: jacu, veado, pato do mato,
pássaro. A gente matava o suficiente para comer. Não tinha necessidade de matar
mais que o suficiente para nos alimentar. A fartura era grande. Outra vez a gente
assava um peixe ou uma tartaruga no jirau. A gente fazia as brasas e colocava sobre o
jirau, o peixe com escama (desses animais retiravam as vísceras) e comia no trisca
com um molho feito de cebola, sal, limão. É uma delícia acompanhada da farinha de
puba.
No tempo das desovas das tartarugas, aí sim, a alimentação da gente dobrava. A gente
pegava os ovos de tartarugas batia com o garfo e preparava tipo bolo frito, colocava um
pouco de sal e uma pitada de açúcar e fritava. Era bom demais. nas longas viagens
que se usavam as conservas feitas em casa, com a carne de porco ou de aves. Essas
conservas eram fritas na banha do próprio animal (Osvaldo Nogueira
55
, 2008).
De acordo com Silva, dentro de uma dada cultura existem suas especificidades que podem
ser identificadas como diferentes de outras culturas e que servirá como fator de referência e
identificação numa determinada sociedade. Assim ele diz: “a identidade é a referência, é o ponto
original relativamente ao qual se define a diferença” (SILVA, 2000:75).
No Brasil, a arte alimentar é complexa e típica de cada região. Assim, nos baixios do
Araguaia, a formação de hábitos e crendices alimentares foram determinadas por vários fatores, tais
como as grandes distâncias geográficas e socioculturais que separam as populações das diferentes
comunidades; pelas características geográficas que lhe são próprias; pelas especificidades dos
produtos locais; por forte influência indígena; pela presença do colonizador e do negro. O encontro
de culturas distintas é considerado elemento importante dos processos de transformação de
padrões culturais locais, podendo até implicar uma perda, mas não necessariamente. As relações
dessas culturas distintas se entrelaçaram umas com as outras, onde cada uma conseguiu uma
eficácia, o que sozinha nunca alcançaria. Na cozinha do ribeirinho predomina os peixes de água
doce, como o pacu e o tucunaré, e as caças, como perdizes, caititu. ainda o arroz com pequi, a
galinha e o arroz de suã, feito com a vértebra do porco.
As comunidades ribeirinhas do Araguaia conseguiram guardar na memória, muitos de seus
singulares costumes culturais herdados através dos contatos e intercâmbios culturais, com grupos
indígenas, negros e viajantes (passageiros) e navegantes. Essa postura contribuiu para manter
55
Osvaldo Nogueira dos Santos (alcunha: Vavá) nasceu em 02 de fevereiro de 1946. Residente em Araguacema (TO).
Profissão: pescador, marítimo, motorista de barcos a motor. Concedeu entrevista em 10 de setembro de 2008.
124
vivas muitas expressões linguísticas, saberes, sabores, lendas e crenças populares transmitidas
oral e gestualmente de gerações a gerações. Destarte, num processo de hibridez cultural, foram
agregando novos valores, acrescentando novos ingredientes, alterando o modo de fazer, e tornando
um terceiro produto original, único, específico.
Na literatura regional do século XIX observa-se o exercício da caça e da pesca para suprir
as necessidades básicas alimentares dos viajantes, ribeirinhos e povos indígenas. Faltavam postos
de abastecimento aos viajantes; os núcleos ou presídios militares, as fazendas ou plantações eram
poucas e distantes umas das outras. Os viajantes recorriam à prática da caça e da pesca como
exercício de vivência. Diz Couto de Magalhães (1957:192), que nos baixios do Araguaia, a caça e o
peixe são tão abundantes, que os viajantes menos abastecidos encontram nela nutrição suficiente,
levando consigo unicamente sal e farinha. Outros alimentos seriam itens muito raros e a caça e a
pesca, eram atividades caipiras por excelência.
A região que margeia o Araguaia é muito rica em alimentos. O rio Araguaia caracteriza-se
pela variedade de animais aquáticos – peixes de variadas espécies, tartaruga, jacarés, tracajás. Em
suas margens encontram-se as pacas, caititus, queixadas, tatus, bugios, jacarés, tartarugas
aquáticas e terrestres, antas, capivaras, sinimbus (lagartos que andam pelas árvores) e teiús
(lagartos que andam pelo chão), cutias, porco-espinho ou cuandu, veado, mucura
56
e outros. A
região é rica de frutas nativas como o pequi
57
, o buriti, a bacaba, o murici, o oiti e outros.
A caça e a pesca são práticas culturais milenares. Com o seu domínio das armas, com as
suas habilidades na caça, o homem possibilitou a existência de acessos a alimentos necessários à
vivência, bem como a incorporação de novas técnicas à prática da caça e da pesca.
Nas margens ribeiras do Araguaia a caça aos animais e a pesca são atividades muito
antigas e que perduram até os dias atuais. Segundo Couto de Magalhães (1957:17) em meados do
século XIX, nas fazendas Pará, Mato Grosso e Goiás/Tocantins, situadas às margens ribeirinhas do
Araguaia, constantemente empregava-se homens na caça e na pesca, para aprovisionar as
necessidades alimentares das famílias dos senhores. Também nas longas viagens pelo sertão de
56
Mucura ou gambá são dois nomes que indicam o mesmo indivíduo.
57
Pequi é uma fruta nativa do cerrrado brasileiro, muito utilizada na cozinha Goiana, mineira, tocantinense e paraense. Dela é extraído um azeite,
denominado azeite de pequi. Seus frutos são também consumidos cozidos, puros ou são preparados juntamente com arroz e frango. Seu caroço é
dotado de muitos espinhos, e necessidade de muito cuidado ao roer o fruto, evitando cravar nele os dentes, o que pode causar sérios ferimentos
nas gengivas. O sabor e o aroma dos frutos são muito marcantes e peculiares
125
Goiás/Tocantins, Pará e Mato Grosso, longe de todo lugar onde não era possível comprar alimentos
completos para 100 pessoas, os viajantes empregavam sempre certo número de homens
exclusivamente destinados à caça ou à pesca. Couto de Magalhães (1957:16) afirmou:
Para o brasileiro que habita as Províncias do sul do Império, a caça e a pesca são
conhecidas apenas como divertimento; para o do norte, elas exprimem um exercício
indispensável à existência, pois delas depende considerável parte dos gêneros com que
se alimentam as famílias do interior, sejam elas ricas ou pobres.
Segundo Couto de Magalhães (1975:84), os índios tupinambás, que habitavam nas
proximidades de Santarém, no Pará, difundiam uma lenda em prol da conservação dos animais
silvestres. Conta a lenda que os índios, tentando proteger a caça contra abuso de destruição,
atribuíram um deus protetor a cada ordem de criação. Anhangá é o deus da caça do campo:
Anhangá devia proteger todos os animais terrestres contra aqueles que quisessem abusar da caça,
destruindo-os inutilmente.
Nas imediações da cidade de Santarém, um índio Tupinambá perseguia uma veada,
que era seguida do filhinho que amamentava, depois de havê-la ferido; o índio, podendo
agarrar o filho da veada, escondeu-se por detrás de uma árvore, e fê-lo gritar; atraída
pelos gritos de agonia do filhinho, a veada chegou-se a poucos passos de distância do
índio ele então a flechou e ela caiu. Quando o índio, satisfeito, foi apanhar sua presa,
reconheceu que havia sido vítima de uma ilusão do Anhangá; a veada, a que ele
perseguia, não era uma veada, mas sua própria mãe, que jazia morta no chão, varada
com a flecha e toda dilacerada pelos espinhos.
Como os tupinambás não tinham nenhum código de lei de proteção para a caça, aplicava
preceito religioso. Era um ato de proteção contra o abuso das caçadas. Os índios tinham na caça e
na pesca o seu sustento.
Antônio Cândido Morais (1995: 170), viajando da capital de Goiás a Belém do Pará, pelo rio
Araguaia, em 1881, relata uma caçada realizada nas proximidades do Presídio de Santa Maria.
Afirma que, quando faltava carne aos tripulantes, atracavam o barco numa barreira e, neste cenário
paradisíaco, onde mal se distingue os pássaros de uma margem a outra e se vê uma ubá que sobe
ou desce, enquanto uns faziam lenha, outros iam à caça dos campeiros e, em menos de meia hora,
voltavam eles, cada um carregando um ou dois veados. Assim diz:
A vinte braças saímos num trilho de índios, amassado de fresco, e continuamos a
sondar aqui e ali os campeiros, com esperança de encontrarmos um cervo.
Atravessamos um brejo, atolando as botas, que estava picado de rastos de cervos, e,
126
contorneando um capão, sem que alguma flecha nos advertisse de imprudência,
saímos numa encosta, limpa e extensa, quando à nossa frente, a cinqüenta ou sessenta
passos, levantam-se alguns campeiros e nos contemplam... fiz fogo no primeiro, e ei-lo
que salta e foge; o meu criado Barbosa exclama: – Vossa excelência errou; e eu
respondo-lhe: – Está enganado; vamos encontrá-lo morto logo adiante. E de fato, a dez
passos do lugar em que foi atirado, estava ele deitado, mas vivo ainda.
Veados e pacas são caçados com a espingarda atirando livremente, como também com
armadilhas e laços. Os caçadores deixam a espingarda armada no lugar em que o animal vai
passar. Ao atravessar o ponto escolhido, o animal se embaraça em uma corda que, imediatamente,
puxa o gatilho, dispara a espingarda e o mata. Até os dias atuais, usam-se essas práticas. A espera
é uma modalidade de caça. É a tocaia, a emboscada, a morte feita à traição ao animal. Quando se
está esperando, às escondidas, um destes animais para caçá-lo, dizem: estar de tocaia ou tocaiar.
O caçador fica escondido no alto de árvores que têm flores, tais como o de pequi e que servem
de alimentos à caça, ou fazem a espera em palanques (em mutá, dizem), nas proximidades de
plantações de feijão, cujas folhas também são alimentos atrativos aos veados. Conta Magalhães
(1957:20) que as tocaias, sejam em mutás ou em árvores, não deixam de incomodar os caçadores
por serem feitas à noite. Os caçadores ficam praticamente imóveis, em silêncio, não podem nem
cuspir, nem fumar, visto que esses animais são extremamente ariscos. Para fazer esta caçada, o
caçador passa uma noite inteira em claro, mal-acomodado, e, por vezes, atormentado pelos
mosquitos.
Depois das caçadas, às margens dos barrancos ou nas praias, os ribeirinhos fazem uma
fogueira e, em torno dela, colocam nos espetos enormes pedaços de costela, seja de anta ou de
veado, come-se acompanhado de farinha, às vezes ao som da viola. “Vi em torno de nossa fogueira
dois espetos colossais nos quais se assavam enormes pedaços de costela de anta, cuja carne é
das melhores do Araguaia” (MAGALHÃES, 1957: 169).
O homem ribeirinho sertanejo integrado à natureza e conhecedor de seus mistérios leva
consigo a sensível heterogeneidade de hábitos alimentares locais. Quando era necessário caçar
bastante alimentos para servir a muita gente, utilizava-se a prática de fazer barris para a caça de
patos e marrecos. Fazer barris é o termo com que designam grandes caçadas aos patos e
marrecos. certo tempo em que estas aves perdem as penas grandes das asas, de modo a não
poderem voar; quando elas estão nesse estado, dizem que estão broncos. Pela sua fragilidade e
por viverem em numerosos bandos, os patos e marrecos se tornam presas ceis dos caçadores
que, invadem os pombais.
127
Por essa ocasião os caçadores espreitam o lugar em que costumam pastar os grandes
bandos; durante a noite, fazem um curral de talos verdes de folha de coqueiros, bem
seguro, dissimulando a entrada com folhas e ramos; a este curral chama caiçara. Pela
madrugada, ao virem as marrecas para a lagoa, os caçadores metem-se pela água
adentro, no lugar oposto à terra do pasto e onde está o curral, e vão-nas tangendo, até
que entram ali, onde as fecham e matam aos centos, para a tal salga (MAGALHÃES
1957:19).
Informa, também, que outro artifício de caçá-las, porém, em menor escala. Segundo ele,
nas lagoas em que de comum costumam pousar, os sertanejos deixam grandes cabaças, até que
as marrecas e os patos se acostumem com as mesmas. Depois que estão habituados aos tais
porungos, ou cabaças, os caçadores vão, pela madrugada, antes de chegar à caça, que vem
para a lagoa aos primeiros clarões do dia, colocam os “porungos” sobre a cabeça, esperam que as
marrecas pousem na água e, então, dirigem-se de manso para o bando com o corpo oculto pela
água. Chegando junto dele, vão segurando as marrecas ou os patos, pelos s e afundando-os na
água, onde se afogam, e isso tantas quantas podem as mãos conter. O caçador utiliza outro meio
para caçar patos selvagens.
Revelando domínio da natureza, espreita-se sobre a árvore em que se sentam à noite.
Fica-se oculto embaixo desta, antes da hora em que costumam eles vir para o poleiro,
que é sempre depois do sol entrar e bem ao cerrar da noite, atirando-os. Os patos
são muito procurados pelos viajantes, porque andam sempre muito gordos, e são das
mais saborosas carnes que se obtém entre os animais selvagens (MAGALHÃES;
1957:19).
Outro hábito alimentar dos ribeirinhos (índios e sertanejos) é o consumo da carne e dos
ovos
58
de tartaruga e de tracajá. A caça da tartaruga se faz quando elas saem, depois da meia-
noite, para cavar na areia os buracos em que desovam. A tartaruga é animal sem agilidade e sem
defesa, e, para prendê-la, basta colocá-la de costas sobre a areia, e nessa posição ficará a
morrer, se alguma coisa não a livrar; sua carne é considerada, pelos ribeirinhos, saborosa e
extremamente saudável. Muitos ainda caçam os animais sem qualquer tipo de controle ou
preocupação ecológica. A tartaruga desova em outubro, época da estiagem do rio Araguaia, cujas
praias estão com o necessário calor para fazer germinar os ovos. Os caçadores nativos escondem-
se à noite, na praia em que elas têm de desovar, e na qual saem às vezes aos centos.
58
Os ovos de tartarugas são divididos em duas classes, uns que produzem o animal, outros que são cheio de óleo e o têm gema, muito maiores
em volume. Os últimos são destinados à alimentação das tartarugas recém-nascidas, visto que, ao nascer não teria força para romper a crosta de
areia que as cobrem e defendem dos predadores. A natureza dispôs aquela alimentação, com a qual podem esperar, nãoo alimento das forças,
como também o tempo que lhes é necessário para romper o buraco (MAGALHÃES: 1957:107).
128
Vêem as que querem e apanham os ovos, ou para comer ou para fazer azeite. Assim
vão destruindo este precioso alimento, para, num futuro, que não está muito distante,
gastarem centos, senão milhares de contos, a fim de repovoar os rios com este
precioso animal, como tem sucedido aos franceses, alemães, ingleses e norte-
americanos pra repovoar seus rios com os peixes que eles destruíram (MAGALHÃES,
1957:25).
Em meados do Século XX, a lista de animais completamente extintos ou em vias de
extinção não parava de crescer. Uma nova atitude começou a surgir, primeiro timidamente, depois
cada vez com mais energia o protecionismo. Atualmente o tracajá é um animal protegido por leis,
inclusive o governo investe na criação e conservação da espécie, ainda considerada em risco de
extinção.
Ilustração 26
Foto 1. Tartaruga. Foto 2 Ovos de tartaruga e 3. Colheita de ovos
Fonte: fotos 1 e 2 : midiaemeioambiente.blogspot.com
Fonte: foto 3 Museu das Bandeiras. Cidade de Goiás, s/d.
129
Mesmo conscientes dos riscos de extinção da espécie, muitos ribeirinhos continuam a
prática da caça à tartaruga
59
para o consumo alimentar. Prepara-se este animal quebrando-lhe o
pescoço e colocando-o, às vezes, ainda vivo, com casco e tudo, dentro de um latão cheio de água e
levando ao fogão a lenha. Cozinha-se por um período aproximadamente, de 1h e 20 mim. Esse
processo geralmente é feito com os animais mais novos. Nesse procedimento, cozinha-se até mais
de uma tartaruga de uma vez. Outro modo mais adotado pelos ribeirinhos é preparar a tartaruga
na margem do rio para comer no trisca. Os ribeirinhos se deslocam para pontos estratégicos para
fazer a captura do animal e ali mesmo saboreá-lo. Nesse ritual, interculturado com os índios,
servem-se do jirau
60
feito de varas verdes e finas. Utilizam-se de vários pedaços de varas verdes,
fazem-se quatro forquilhas. Fincam-se as forquilhas na areia em formato de um retângulo, colocam-
se as varas sobre as forquilhas formando um jirau. Sob o jirau ateia-se fogo feito de gravetos secos
para produzir brasas. A areia ajuda a manter as brasas por mais tempo. Essa prática é feita às
margens dos rios. Depois de assada retiram-se apenas as vísceras do animal. A carne permanece
dentro do seu próprio casco, que serve de vasilha. Todos se reúnem ao redor da tartaruga ou do
tracajá para que cada indivíduo possa comer no trisca, melhor dizendo, abluir pedaços de carne no
molho feito com cebola, cheiro-verde, pimenta, limão ou vinagre e sal.
Esse procedimento é feito, também, para assar o peixe: tucunaré, corvina, caranha,
tubarana. Servem-se, principalmente, do tucunaré. O peixe é colocado sobre o jirau, com escamas
e sem as vísceras. As escamas substituem o papel laminado que servem para proteger a carne do
peixe. Depois de assado, a escama do peixe, que mais parece uma capa de proteção, é retirada por
inteiro ficando exposta a carne branca para ser servida ao molho, no trisca. Para o ribeirinho o peixe
deve ser acompanhado de um molho feito do mesmo modo que é feito para o consumo da
tartaruga. É todo esse ritual que um sabor específico ao peixe. O processo é simples, mas o
sabor é único. Comer o peixe no trisca é a expressão beira-rio utilizada para a prática de saboreá-lo
servindo-se com as mãos. É uma especificidade ribeirinha do Araguaia. Os índios se reúnem ao
redor do peixe estendido sobre uma palha de bananeira e, com as mãos retiram a escama e as
espinhas e comem o peixe à vontade. Deste mesmo modo, o ribeirinho se porta, às vezes
utilizando-se de um talher.
59
Na primeira desova da tartaruga, ela recebe o nome de “cunha” e quando ela alcança a idade adulta recebe o nome de “viração”. A tartaruga na
idade adulta coloca até 180 ovos num só ninho.
60
Jirau armação sobre as brasas feitas de pedaços de varas verdes. Tem o formato de uma pequena mesa. Os índios denominam-no de grajaú.
Também é usado no interior do sertão, como pia, armada na altura de uma mesa e do lado de fora da cozinha.
130
Nessa prática, alimentar os índios saboreavam o animal sem sal e sem molho, mas, os
índios aprenderam com os o-índios a saborear esses alimentos com o sal. A hibridez alimentar
ribeirinha se evidencia tornando-se referência e patrimônio intangível nessas comunidades. É fonte
de identidade. Outro procedimento obtém-se fazendo um fosso na areia:
Deita-se peixe envolvido em folhas, cobre-se de novo com a mesma areia e ateia-se o
fogo por cima, de modo que se opera cocção por meio do vapor resultante da umidade
do peixe, que fica perfeitamente perfumado com os adubos que o traspassam
(MAGALHÃES; 1957: 25).
Raimunda Santos, conhecida por Mundica, afirma que aprendeu a arte de preparar a
moqueca com os índios Karajás.
Aprendi a preparar a moqueca com os Karajás. A gente enrola o peixe na palha da
bananeira e coloca para assar sobre o jirau ou sobre as trempes do fogão à lenha. Para
fazer a moqueca, a gente tempera o peixe com cheiro verde, sal e deixa assar
lentamente. Os índios comiam a moqueca com mandioca cozida e a gente come com
arroz ou farinha. Pode fazer moqueca com pacu, piau, mas o melhor peixe para fazer a
moqueca é o tucunaré. Esse sim, é que é bom (Raimunda Alcântara, 2008
).
A prática alimentar a base de peixe é um costume dos povos ribeirinhos e o modo de
preparar o peixe ou a tartaruga no trisca, cumprindo todo um ritual é específico dos ribeirinhos do
Araguaia. Sair de barco a um ponto qualquer do rio, levando apenas o sal, a cebola, o cheiro-verde
e o limão, pescar o peixe é hábito que pode ser identificado como diferente de outras culturas e que
serve de identificação nas sociedades ribeirinhas do Araguaia. É uma referência. É o ponto onde se
define a diferença entre outras culturas. Além disso, é uma prática cultural híbrida.
Utilizando-se do fogo, os índios do Araguaia, preparam, também, conservas alimentares das
caças. Conhecedores da arte cerâmica possuem vasilhas onde é possível realizar esta operação.
As conservas alimentares o feitas através do processo de “moqueação”, expressão tupi, que
designa o modo de preparar conservas de carne, peixe e frutas. Couto de Magalhães (1957:11)
descreve o processo de moqueação:
Este thodo de preparar conservas, elles conseguem moqueando esta substancia, isto é,
submetendo-as a um calor muito lento, porque o se moquea bem uma carne sem o
espaço de três dias, é para elles um recurso preciosíssimo, porque não conhecendo do uso
do sal, não teriam meio algum de preservar e fazer conservas de substancias azotadas.
D’estas conservas há uma, o piraçuhy, ou farinha de peixe, que goza de grande e merecida
reputão; remetida para uma das exposições de Londres, mereceu as honras de ser
classificada como a mais perfeita das conservas de peixe.
131
As embarcações, entre idas e vindas, não traziam e/ou levavam apenas alimentos e
utilitários, mas também as expressões ou termos linguísticos típicos de outras regiões, as práticas
culturais regionais e locais. Nesse sentido, Canclini (2003) conclui que todas as culturas o de
fronteiras.
Todas as artes se desenvolvem em relação com outras artes: o artesanato migra do
campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um
povo são intercambiados com outros. Assim, as culturas perdem a relação exclusiva
com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento (CANCLINI,
2003:348).
Magalhães (1975:17) afirma que no mercado do Amazonas comercializavam-se cobras
surucucus, preparadas em conservas pelo processo de moqueação, que eram consumidas como
remédios por indivíduos que tinham maus humores. Magalhães (1975:17) também cita outra
conserva não menos notável, conhecida com o nome de “mexira do verbo tupi idêntico, que
significa frigir. A mexira, também é feita com o uso do fogo e da gordura do animal. A carne dos
animais é conservada e guardada em latas ou panelas. Couto de Magalhães (1957:17) diz: “para
Ilustração 27
-
Prática alimentar híbrida - peixe no trisca. Fotos: 1 giral; 2 modo de fazer o fogo; 3
modo de assar o peixe. 4 preparo do molho. 6 modo de retirar as escamas; 7 peixes assados e
descamados; 8 e 9 modo de saborear. Ribeirinhos: Diomar, Ione, Maurivam, Lívia.
Fonte: www.programaraizes.com/rota, 2007.
1
4 5 6
8 7
9
2 3
132
meu paladar, muitas destas coisas são excelentes e, entre elas, a tal mexira de marrecas, patos
salgados e filhotões de tuiuiú (ou jaburu, ou cegonha, ou batuiaiá), que conservam em barricas”.
A prática da mexira” utilizada na Amazônia foi difundida, através da navegação, entre as
povoações ribeirinhas do Araguaia. Os ribeirinhos se serviram desta prática para a conservação de
aves e outros peixes que eram consumidos nas embarcações, durante as longas viagens. Para a
carne frita permanecer em conserva tinha que ficar submersa na banha do animal. O termo mexira
não é mais tão conhecido, contudo, a prática da mexira permaneceu até o advento da energia
elétrica. Era um dos modos de conservar o alimento por mais dias. Raimunda Santos, ribeirinha,
moradora de Araguacema (TO), conta:
A gente preparava muito a mexira. Aqui era um costume comum. A gente cortava e
temperava a carne bem temperadinha, fritava e depois de pronta a banha passava da
carne. Não precisava colocar água. Era frita na gordura. Minha sogra fazia a mexira
para mim quando eu ia ganhar neném. A gente comia muito. A gente enchia as latas e
armazenava principalmente a carne de porco. Duravam anos (Raimunda Alcântara
61
,
2008).
Com os negros, os ribeirinhos aprenderam a preparar o birarubú, que é a cabeça do boi
cozida. Coloca-se a cabeça do boi numa lata, com apenas água e sal e deixa cozinhar em fogo
brando durante todo o dia e a noite em fogão a lenha
62
ou no fogão feito com três pedras cangas no
lado externo da casa. A cabeça do boi deve ser consumida assim que estiver pronta.
Rompendo fronteiras simbólicas, vários costumes como a mexira, a moqueca ou o birarubú
e o peixe no trisca são resultados da interação com outras práticas culturais que, com o tempo,
foram se fundindo e difundindo. Povoados e cidades distantes do Araguaia mantiveram intercâmbio
cultural fundamental para a hibridez de usos e falares antigos e específicos. Esse processo
dinâmico é resultante do encontro entre culturas diferentes como uma mistura de cores criando uma
terceira cor em que ambos sofrem perdas e ganhos e geram um produto híbrido como o peixe no
trisca ou a moqueca de peixe. A troca de conhecimento do negro, do índio ou do colonizador e a
abundância e variedade de alimentos regionais provocou a hibridez de dizeres, saberes e sabores
em produtos específicos, únicos. Couto de Magalhães fala também da bacaba e do açaí:
61
ALCÂNTARA, Raimunda Santos de. (alcunha: Mundica), nasceu em 15 de junho de 1939, em Araguacema. Profissão: do lar. Reside em
Araguacema (TO). Entrevista concedida em 10 de setembro de 2008.
62
Fogão a lenha, feito de barro com cinza. Este tipo de fogão era construído no interior da cozinha, com duas pequenas paredes largas erguidas
sobre uma mesa feita de barro, numa só estrutura, no centro das paredes uma abertura, onde se coloca a chapa e no seu interior inserem-se lenhas.
Geralmente, a chapa é feita de ferro com até 5 aberturas redondas de modo a se assentar as panelas que também eram de ferro ou de barro. No final
do pequeno túnel, fabrica-se a chaminé para expelir as emissões de fumaça e fuligens. Mesmo assim, o interior do ambiente, principalmente no
entorno do fogão e no teto da cozinha ficam impregnados de fuligens, deixando-os de cor escura. Utilizavam-se, também, o fogão primitivo, ou seja,
aberto, com três pedras sem chaminé. Neste último, logicamente, o problema é o exagerado primitivismo, com emissões abertas de fumaça e fuligem
no ambiente interno da casa.
133
Extraem também, com um processo combinado de fogo a macerão, produtos alimentares
de certas andoas, sendolebres entre estes as famosas bebidas das uassahi e bacaba,
lebres o por serem alimentos de primeira qualidade para pessoas debilitadas por
doenças ou idade, como também pelo peregrino do sabor e perfume, tão delicado que
mereceu de um viajante americano o exclamar: d’essas bebidas, cuja tradão, segundo elle,
foi levada pelos fenícios ao velho mundo, nasceu a idéia do ctar o da ambrozia dos
gregos (MAGALHÃES; 1957:17).
Com os índios, os ribeirinhos aprenderam a colher, dentre outras frutas do norte, o buriti
63
, a
bacaba
64
, e o murici
65
, e a extrair a polpa para o preparo da sembereba
66
, que é o suco,
condensado, feito com pouca água para ficar com um sabor forte, acrescentaram o açúcar e
transformaram o alimento em um saboroso suco típico que pode ser bebido gelado ou ao natural.
Misturando dizeres, saberes e sabores, os povos ribeirinhos do Araguaia trocaram conhecimentos e
experiências com os índios locais: Caiapó, Javaés, Canoeiro e outros, principalmente com os
Karajás. É a extraordinária capacidade de ajustamento ao meio que o ribeirinho promove, através
da linguagem, um processo de mistura do compatível e fixação do incompatível. O modo de
preparar a sembereba, o buriti, a bacaba ou o murici são práticas culturais distintas e separadas
que, com o tempo combinaram-se e geraram novas práticas.
Na perspectiva da teoria cultural contemporânea, o hibridismo a mistura, a conjunção, o
intercurso, entre diferentes nacionalidades, entre diferentes etnias, entre diferentes raças coloca
em cheque aqueles processos que tendem a conceber as identidades como fundamentalmente
separadas, divididas e segregadas. Silva (2000:87) argumenta que:
O processo de hibridização confunde a suposta pureza e insolubilidade dos grupos que
se reúnem, sob as diferentes identidades nacionais, raciais ou étnicas. A identidade que
se forma no meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades
originais, embora guarde traços dela.
63
O buriti é um fruto típico da região norte do país. É um fruto avermelhado e de forte sabor. Os frutos são colocados de molho por 24 horas pra
soltarem a película cor-de-vinho que os envolve e então a polpa, de coloração amarela pode ser utilizada para a confecção do "vinho de buriti", bebida
altamente energética. Com a polpa preparam-se também sorvetes e doces.
64
A bacaba é um fruto pequeno e arredondado, tem coloração roxo-escura e a sua polpa é comestível, contendo uma semente. Dele se faz o suco de
sabor agradável, leitoso, muito semelhante ao vinho do açaí. A população, com muita criatividade, mistura esse vinho a farinhas diversas e produz
uma espécie de papa, ou então fazem o suco.
65
O murici - sabor forte, agridoce e ligeiramente oleoso, o fruto do murici pode ser consumido in natura ou em doces, sorvetes e licores.
66
Sembereba é uma expressão bastante utilizada pelos ribeirinhos. Faz-se sembereba de buriti, bacaba e de murici.
134
A hibridez nas práticas alimentares dos ribeirinhos do Araguaia está relacionada ao universo das
trocas culturais, a interão de culturas distintas, em cujas bases se encontram uma cultura local (nativa)
e uma cultura conquistadora. Ela promoveu um novo modo de fazer, dando às alimentações um novo
sabor, cujas partes da equão se encontram modificadas. Um conjunto de fatores foi se entrelaçando
num processo constante e nunca concldo. É um processo que surge o como um mosaico, mas
como um fenômeno novo, original e independente como um plano aberto, dinâmico, resultado do
contado de um sistema cultural com outro, dando forma a uma identidade.
A cultura intangível é visível no interior das cidades ribeirinhas do Araguaia, tais como
Araguacema (antigo Presídio de Santa Maria), Aruanã (antigo Presídio de Santa Leopoldina),
Itacayú, Luiz Alves, São Félix do Araguaia, posto Santa Isabel, Luciara, Conceição do Araguaia,
Xambioá, Couto de Magalhães (primeira sede do Presídio de Santa Maria -1811) que, em sua
diversidade, se manifesta de várias formas. São manifestações que testemunham a cultura do
passado em sentido geral e, portanto, devem ser analisadas como obra humana, razão esta de
considerarmos as especificidades locais impregnadas de valores históricos, artísticos e culturais.
Manter o patrimônio cultural, portanto, está muito além da conservação física de lugares históricos
ou prédios blicos. Significa resgatar a memória e os valores que originariamente o
considerados como patrimônios da coletividade. Valorizar o patrimônio cultural (tangível e
intangível) significa interagir com o meio em que se vive; com o patrimônio que a humanidade tem.
Ilustração 28
da esquerda p/ direita bacaba murici, buriti e pequi.
Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br
135
Reconhecer a importância destes valores históricos culturais é garantir às gerações futuras, um
patrimônio conservado e ainda dar a liberdade de utilização, memória e identidade do povo ribeiro.
Ainda, segundo Silva (2000:88), o hibridismo está ligado aos movimentos demográficos que
permitem o contato entre diferentes identidades: as diásporas, os deslocamentos, as viagens, os
cruzamentos de fronteiras. A hibridez cultural nasce da mistura de culturas onde se está vivendo. As
influências culturais e a hibridez cultural são algo que escapam às escolhas do indivíduo. Essa
hibridez não pode ser considerada uma perda da cultura de origem. Não pode ser considerada,
também, apenas uma aquisição de uma cultura que substitui a anterior. O que acontece é a
recriação ou reconstrução cultural que é produto de todas as culturas que o “outropossuía até
então. Assim observa-se que as culturas não são superiores umas às outras, são diferentes.
A arte de preparar os alimentos é transmitida aos mais novos de geração em geração. É um
procedimento dinâmico e natural pelo qual ideias e sentimentos se transmitem de indivíduo para
indivíduo tornando-se possível a interação social. A construção da tradição é fruto direto dessa
capacidade humana de selecionar e acumular experiências positivas e de ensiná-las aos
semelhantes. Dentre os elementos que particularizam e ou identificam as supracitadas produções
de saberes, ocorrido a partir do século XIX, constata-se a própria situação periférica da região no
contexto do Brasil imperial; o contato com povos de culturas indígenas e, sobretudo, após o
desenvolvimento da navegação a vapor, o contato com outras comunidades ribeirinhas promoveram
a hibridez cultural. Foi assim que, nas colônias militares do Araguaia, Itacayú (MT), Santa
Leopoldina (Aruanã - GO), Santa Maria (Araguacema - TO), São João do Araguaia (PA) e Belém
(PA), se processou uma constante interação da cultura indígena com as práticas culturais dos
colonizadores.
No decorrer do texto foram apresentadas várias expressões linguísticas, fenômenos que
particularizam o modo de falar dos povos ribeirinhos do rio Araguaia ao se referirem a um
determinado tipo de prática alimentar, tais como: mexira, birarubú, moquear, moqueca, jirau, tocaia,
mutá, viração, porongá, porongando, abano, beira do rio, esperar, sembereba, comer no trisca. o
elementos linguísticos que emergiram no próprio meio sertanejo e tornaram-se expressões
específicas utilizadas na comunicação dos povos ribeirinhos. Como um dialeto, a linguagem ribeira
foi adquirindo, ao longo do tempo, certa singularidade em relação à língua portuguesa e, dessa
maneira, passou a ter suas razões próprias de acordo com determinados aspectos sociais e
136
culturais locais. A navegação a vapor contribuiu como uma grande transportadora dessa hibridez
linguística. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é
constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação
com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade,
contribuindo, assim, para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.
137
CO N S I D E R A Ç Õ E S F I N A I S
Na margem do Araguaia, os governantes desenvolveram uma política específica de
povoamento, catequese e navegação. Para o povoamento, executaram a política de implantação de
presídios militares. Os presídios foram instalados ao longo da linha do Araguaia, no século XIX, com
o objetivo de defender o território, desenvolver a navegação e fortalecer o comércio via fluvial. Essa
prática não foi isolada ou experimental; muitos presídios foram implantados em vários pontos do
Brasil, às margens dos principais rios brasileiros. Foi iniciada com a política de proteção territorial
pombalina e adaptada às necessidades conjunturais, no decorrer dos séculos. As cidades de
Aruanã (GO), Araguacema (TO), Couto de Magalhães (TO), São João do Araguaia (PA), dentre
outras, são resultados dessa ação governamental.
No início do século XIX, Teotônio Segurado defendia a ideia da expansão de fronteiras
econômicas, políticas e demográficas cujos objetivos encontram-se evidenciados na Memória
Econômica e Política sobre o Comércio Ativo da Capitania de Goiás 1806: 1) demográfico
através da expansão do povoamento nas margens dos principais rios de comunicação, veria a
prosperidade do comércio; 2) objetivos morais pretendiam-se transferir os marginalizados para as
colônias militares e dar a eles trabalhos; 3) objetivo militar – defender o território; e, naturalmente 4)
econômico veria o comércio interno e externo desenvolvido. Teotônio estava convicto de que
desta forma era possível fazer prosperar esta parte do Brasil. A execução destas medidas,
consequentemente, promoveu a expansão das fronteiras socioculturais.
Ao longo das margens do Araguaia e Tocantins, foram implantados 21 presídios militares
num período em que era visível a crise econômica na Província de Goiás. Os presídios receberam
várias denominações, tais como colônias militares ou fortificações lindeiras. Os presídios militares
implantados na margem araguaiana serviram como portos de embarque e entrepostos comerciais
da navegação a vapor do século XIX. Foram delimitados e demarcados estrategicamente em
espaços inóspitos e bastante povoados por grupos indígenas. Foram erigidos os presídios de o
João do Araguaia (1802), Santa Isabel (1850) – fundado a 15 léguas da ilha do Bananal, foi o antigo
Presídio de São Januário, transferido em 1857 para a margem do rio das Mortes e logo depois foi
extinto –, Presídio Santa Leopoldina (17/10/1856), Presídio Santa Maria (1861), Presídio São José
138
do Araguaia (1862), Presídios São José dos Martírios (1866), foi logo depois desativado e, em 1872,
foi restabelecido para auxiliar na catequese e na navegação. O presídio de Jurupensem (1864) foi o
antigo presídio de Santa Cruz, transferido da margem do rio Tocantins para a margem direita do
Araguaia (Rocha, 1998:77-81).
Resultado dessas medidas, os presídios de Santa Leopoldina, Santa Maria e São João do
Araguaia, se fortaleceram e se tornaram os mais importantes centros de apoio à navegação do
Araguaia e a principal base da Companhia de Navegação a Vapor. Eles aparecem na paisagem
sociocultural dos povos ribeirinhos do Araguaia do século XIX, como um elemento de
transformação. Essa prática de povoamento não atingiu todos os objetivos pretendidos pelos
governantes; não deu a contribuição necessária para ampliar o comércio, mas, sua simples
inovação formal implicou mudanças econômicas e socioculturais para a Província de Goiás. Além
de produzirem o efeito de romperem fronteiras culturais, a paisagem do Araguaia se (re) configurou,
visto que ficou marcada pela formação de povoados e pela passagem constante de grandes
embarcações, transportando passageiros e cargas que movimentavam a vida e o comércio da
região.
A navegação a vapor promoveu a integração de Mato Grosso e Goiás/Tocantins com o norte
do Pará, especificamente com a praça de Belém do Pará, através da comercialização de produtos
nativos. Essa conexão influenciou culturalmente na vida local. Os barcos a vapor, híbridos, movidos
com caldeiras a lenha, levavam e traziam não só alimentos e utilitários, mas também as notícias sobre
os costumes, os comportamentos, o lazer, a estética, e até as doenças. E, nessa dinâmica, a cultura
local se torna híbrida.
Contudo, é importante lembrar que o rio Araguaia já era palco da navegação de
pequeno porte. Os índios do Araguaia viajavam de um lugar a outro nas canoas e ubás. Antes
da instalação da Companhia de Navegação a Vapor, os bandeirantes também navegaram
pelas águas do Araguaia. Posteriormente, vieram os comerciantes que se aventuravam nas
viagens em pequenas embarcações. O rio era o caminho, e o barco o principal meio de
locomoção.
O barco é um dos elementos que está presente em todas as memórias do homem ribeirinho.
Seja o barco a vapor, seja uma igarité ou uma simples canoa. O barco continua presente nas
139
significativas tarefas cotidianas. É uma ferramenta indispensável na vida do ribeirinho que, com o
tempo, adquiriu conhecimento para adaptá-lo às necessidades e para melhor movimentá-lo sobre
as águas, pois é preciso saber navegar para se deslocar de um lugar para outro com segurança.
Numa escala de valores, uma embarcação para o ribeirinho significa tanto quanto ter um carro,
um pedaço de terra, ou uma casa. Dependendo do tipo, é mais que um simples objeto. Significa a
ferramenta de uso cotidiano indispensável à vida. O status social está de alguma forma ligada à
sua capacidade de autonomia e locomoção pela água. Os ribeirinhos deslizam as pequenas
embarcações com a mesma presteza dos índios.
A navegação pelo Rio Araguaia pode ser considerada um fator socioeconômico
dinamizador, fundamental nos processos de integração cultural dos povos ribeirinhos do médio
Araguaia (índios e sertanejos). Num processo de constante convívio social entre povos de culturas
antagônicas, as práticas culturais dos ribeirinhos tornaram-sebridas, tais como os hábitos e crendices
alimentares. A hibridez cultural ocorreu através dos limites simlicos. Essa hibridez foi determinada
principalmente por forte influência indígena; pela presença do colonizador e do negro, como também,
pelas características geográficas que lhe são próprias. Dentre esses elementos, que particularizam a
produção de “saberes”, a partir do culo XIX, constata-se a própria situão periférica da região no
contexto do Brasil imperial, bem como o contato com povos de culturas indígenas e, sobretudo, após o
desenvolvimento da navegação a vapor, a relação com outras comunidades ribeirinhas.
As longas distâncias entre comunidades, ou pontos de abastecimentos, a abundância de
animais aquáticos e terrestres, as dificuldades nas embarcações, as longas e demoradas viagens
pelo sertão de Goiás, Pará e Mato Grosso foram fatores que contribuíram para a permanência da
prática da caça e da pesca como modo de vivência. Onde não era possível comprar alimentos, os
viajantes empregavam sempre certo número de homens, exclusivamente destinados à caça ou à
pesca. Certos costumes de práticas da caça, da pesca, do modo de preparar os alimentos, bem
como do modo de se servir, foram transmitidos pela tradição oral, de geração em geração entre
comunidades ribeirinhas de culturas distintas e entre povos de outras comunidades. Nesse
processo, a navegação promoveu a troca de conhecimentos, o intercâmbio cultural.
As políticas de povoamento, catequese e navegação podem não ter atingido os objetivos
esperados, mas alteraram a paisagem ribeirinha. A navegação provocou mudanças nas estruturas
sociais entre comunidades. Abriu um novo espaço para as relações humanas e comerciais do
140
sertão do Araguaia, cujas tradições e crenças de um povo vindo de todas as províncias do Brasil, se
fundiram.
As populações ribeirinhas do Araguaia, do século XIX, tentaram vencer as grelhas
deterministas do dia-a-dia com uma inventividade em que se revelam como heróis anônimos.
Conseguiram transmitir muitos de seus singulares costumes culturais herdados através dos
contatos e intercâmbios entre povos de culturas antagônicas. Tal postura contribuiu para manterem
vivas (praticadas) as expressões linguísticas, saberes e crenças populares, no século XX. Nesse
processo, a hibridez cultural se confirma.
A hibridez cultural construiu a identidade ou as identidades dos povos ribeirinhos em uma
região de fronteiras – o rio Araguaia. Razão de se considerar acima de tudo o respeito à alteridade e
a valorização do diverso que se assenta no fenômeno físico do território. Assim sendo, podemos
afirmar que o rio Araguaia é muito mais do que um simples acidente geográfico; é um espaço
natural que serviu de escoadouro econômico e integrador cultural entre regiões. Portanto, um
espaço social, rico em histórias e culturas. É um lugar investido de memórias que deve ser
reconhecido, valorizado e preservado através da conservação integrada.
141
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1806 do Desembargador Joaquim Teotônio Segurado. MEMÓRIAS GOIANAS
I; 1982;
2. Relatório apresentado pelo Presidente Januário da Gama Cerqueira, em
sessão ordinária, à Assembléia Legislativa Provincial de Goiás, no ano de 1859
Secretaria de Justiça - Typographia Goyazense. 1859 Livro de Relatórios
da Presidência do Arquivo do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
3. Relatório apresentado por Dr. Antonio Manuel de Araújo e Mello, presidente da
Província de Goyás, ao seu sucessor, José Martins Pereira de Alencastre no
dia 22 de abril de 1861 –Typographia Provincial – 1861 – Livro de Relatórios da
Presidência do Arquivo do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
4. Relatório apresentado pelo Presidente José Martins Pereira de Alencastre, à
Assembléia Legislativa Provincial de Goyaz na sessão ordinária de de junho
de 1861–Typographia Provincial – 1861 – Livro de Relatórios da Presidência do
Arquivo do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
5. MELLO, Antônio Manoel de Araújo. Relatório de 22 de abril de 1861.
MEMÓRIAS GOIANAS 8: 1997;
6. MOURA D. Antonio Rollim de Moura. Carta de Antonio Rollim de Moura a D.
João Manoel de Melo I Villa Bella, 16 de junho de 1761. REVISTA DO
ARQUIVO HISTÓRICO ESTADUAL DE GOIÁS, 1982.
7. Relatório de José Martins Pereira de Alencastre no dia 1º. de junho de 1862 -
(Typographia Provincial 1862 Livro de Relatório da Presidência do Arquivo
do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás.
146
8. Relatório apresentado pelo Dr Augusto Ferreira França, da Presidência de
Goyáz à administração da mesma ao Exmo.sr. Vice-presidente Desembargador
João Bonifácio Gomes de Siqueira, em de 29 de abril de 1867. Typographia
Provincial 1867 Livro de Relatórios da Presidência do Arquivo do Museu
das Bandeiras – Cidade de Goiás.
9. Relatório apresentados pelo Desembargador João Bonifácio de Siqueira, 1º.
Vice-residente da Presidência de Goyáz, na abertura da Assembléia Legislativa
da mesma Província no dia 1º. De setembro de 1867. Typographia Provincial
1870. Livro de Relatórios da Presidência do Arquivo do Museu das Bandeiras –
Cidade de Goiás.
10. Relatório que o Desembargador João Bonifácio Gomes de Siqueira, vice-
presidente da província de Goyaz, leu na abertura da Assembléia Legislativa da
mesma província no dia de setembro de 1868. Goyaz, Typographia
Provincial 1869. Livro de Relatórios da Presidência do Arquivo do Museu das
Bandeiras – Cidade de Goiás.
11. Jornal da Província de Goyaz, anno II, no. 45, de 11 de novembro de 1870,
Arquivo Histórico de Goiás, Goiânia – GO.
12. Relatório apresentado a Assembléia Legislativa Provincial de Goyáz pelo
Presidente Antero Cícero de Assis em 1º. de junho de 1874 (Typographia
Provincial 1874 Livro de Relatórios da Presidência do Arquivo do Museu
das Bandeiras – Cidade de Goiás).
13. Relatório apresentado a Assembléia Legislativa da Presidência Ernesto
Augusto Pereira, 1º. de agosto de1876. Typographia Provincial 1876 Livro
de Relatórios da Presidência do Arquivo do Museu das Bandeiras Cidade de
Goiás.
14. Relatório apresentado pelo Dr. Aristides de Souza Spindola, presidente da
província à Assembléia Provincial de Goyaz, no dia 1 de março de 1880Livro
de Relatórios da Presidência, 1880. (Typographia Provincial 1880 Arquivo
do Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás).
15. Relatório apresentado pelo Dr. Theodoro Rodrigues Moraes, 1º. Vice-
Presidente, ao Exmo. Sr. Dr. Joaquim de Almeida Luiz Mores, Presidente da
Província, no dia 10 de fevereiro de 1881.
147
16. Mensagem enviada ao Congresso na abertura da segunda sessão da quinta
legislatura pelo presidente do Estado de Goiás Miguel da Rocha Lima, 1906
(Typographia Perseverança, de Pacifico Marques Aranha 1906 Livro de
Relatório da Presidência do Arquivo do Museu das Bandeiras – Cidade de
Goiás).
17. Relatórios do Ministério da Guerra. Cx. 77 Presídios e Colônias: material,
fardamento, ferramentas e metas, gêneros, linhas e panos, móveis, utensílios e
municiamentos. Volume II: 1851-1875.
PERIÓDICOS
1. Jornal da Província de Goyáz.
2. Jornal Correio Oficial de Goyáz (1864-1888), Goyáz.
3. Jornal A Tribuna Livre (1880-1884).
4. Jornal O Democrata.
5. Jornal Voz do Povo.
6. Jornal O Monitor Goiano – 1868.
7. Revista do Arquivo Histórico Estadual de Goiás – 1972-1982
8. Revista Memórias Goianas I, 8 e 9.
9. Revista Mensal Oeste, 1933.
10. Revista Nos Rosais do Silêncio – 1944.
11. Livro de Relatórios da Presidência nº 1532
INSTITUIÇÕES DE PESQUISAS
1. Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Goiás – Goiânia- GO
2. Museu das Bandeiras – Cidade de Goiás-GO
3. Fundação Cultural Frei Simão Dorvi– Cidade de Goiás-GO.
4. Gabinete Literário Goiano – Cidade de Goiás-GO.
5. Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira - Arquivo Histórico Estadual de Goiás –
Goiânia-GO
148
FONTE VIRTUAL
http://pauloguilhermeduarte.vilabol.uol.com.br/
http://www.transportes.gov.br/bit/hidro/detrioaraguaia.htm
www.bibvirt.futuro.usp.br
www.programaraizes.com/rota
FONTE ORAL
Relação de pessoas entrevistadas:
1 Cesário Borges reside em Araguacema. Nasceu em Araguacema , em 05 de
fevereiro de 1966 – TO. Profissão: advogado, violonista, poeta.
2 Cleide Santos Morais reside em Araguacema TO. Nasceu em Araguacema-TO
em 03 de agosto de 1968. Técnica de enfermagem e lavadeira.
3 Edson Maranhão Duarte reside em Belo Horizonte. Nasceu em Araguacema em
16 de janeiro de 1938. Foi Prefeito eleito de Araguacema GO 1965-1969.
Profissão: empresário.
4 Ione Carvalho Araújo. Profissão: Educadora. Poetiza. Nasceu em Araguacema em
02/09/1962.
5 João dos Santos Melo reside em Aruanã. Natural de Conceição do Araguaia em
1921. Profissão: escritor, prosador, compositor e cantor.
6 Joaquim da Silva Aguiar reside em Araguacema – TO. Nasceu em 11 de maio de
1931. Profissão: sapateiro e funcionário público.
149
7 Maria Aldy Laranjeira Rocha. Reside em Xinguara Pará. Nasceu em Piauí, em28
de outubro de 1943. Profissão: professora. Entrevista concedida em 10 de
novembro de 2008.
8 Nicanora Martins de Melo - reside em Conceição do Araguaia. Nasceu na Fazenda
Santa (Bom Tempo), Município de Araguacema-TO. Nasceu em 25 de janeiro
de 1927. Profissão: professora.
9 Osvaldo Nogueira dos Santos (alcunha: Vavá) Nasceu em 02 de fevereiro de 1946.
Residente em Araguacema.-GO. Profissão: pescador, marítimo, motorista de
barcos a motores.
10 Paulo Barcelar de Alcântara. Natural de Ibiá/MG. Veio para Araguacema em 1939.
11 Paulo Sérgio Carvalho – reside em Palmas-TO, natural de Araguacema – TO,
nasceu em 11 de julho de 1958. Profissão: comerciante e pescador;
12 Raimunda Santos de Alcântara (alcunha: Mundica), nasceu 15 de junho de 1939
em Araguacema. Profissão: do lar. Reside em Araguacema - TO.
13 Raimundo Cardoso de Melo reside em Conceição do Araguaia PA. Natural de
Belém PA. Nasceu em 02 de janeiro de 1918. Profissão: marítimo, motorista de
máquina - barco motor diesel (chefe de máquina).
14 Rani Martins de Melo, nasceu em 27 de novembro de 1947. Profissão: piloto,
instrumentista, poeta, sertanista, desbravador do Araguaia, barqueiro.
150
AN EXO S
151
ANEXO I
O Collegio Izabel Em nosso último mero, demos notícia da creação deste
estabelecimento. Pelo correio chegado logo depois de destribuida a nossa folha, vierão publicados
os documentos officiaes relativos á esta creação. O governo, segundo se exprime o Sr. Ministro da
agricultura, quer tentar uma experiência de novo systema de cathechese, instruindo a mocidade
indígena. Todo o serviço da catechese no valle do Araguaya foi incumbido ao Dr. Couto de
Magalhães; o collegio dará aos meninos das diversas tribus a instrucção elementar, religiosa e
profissional de artífices.
Parece também que se tem em vista introduzir entre os índios o conhecimento da musica,
tendo sido o Dr. Couto autorizado para contractar o Sr. Costa Lima (já aqui mui conhecido) para
professor das letras e de musica, com o ordenado de 1:200$ por anno.
O governo distribuiu um credito annual especial de 15:000$ para o serviço da cathechese, e
12:000$ para transporte e assentamento das officinas do collegio.
Dous missionários serão collocados á testa da educação religiosa. Além dos empregados já
sabidos, o collegio terá também um médico pago pelo estado.
Transcrevemos em seguida as instrucções dadas pelo governo sobre este assumpto:
“Instrucções para a organização, diecção e regimen econômico do collegio Izabel, no valle
do Araguaia.
1º. O ensino dividir-se-há em duas partes: primário que comprehenderá a doutrina christã,
as primeiras letras e musica; e profissional, de que farão parte os officios mecânicos,
especialmente, ferreiro e carpinteiro com a applicação especial á construcção naval, bem com a
prática da agricultura limita ao amanho das terras, uso dos instrumentos e cultura das plantas
habituaes aos indígenas.
No ensino das meninas entrarão trabalho de agulha e tear.
2º. Serão para este fim contractados necessários professores ou mestres, convido que o de
primeiras letras saiba a língua usada pela mais numerosa das tribus mais fácil communicação com
os alunos á sua entrada e afim de servir detradutor nas relações do estabelecimento indígenas.
152
A instrucção religiosa e educação dos meninos estaa cargo de sacerdortes em numero
sufficiente; as meninas serão confiadas aos cuidados de pessoas de seu sexo devidamente
habilitadas. Será contractado um médico para o serviço do estabelecimento.
3º. A educação e instrucção que se prestarem terão por fim prinpal habilitar os meninos a
serem para o futuo intermediários para com as tribus a que pertenção, attrahindo-as aos hábitos
sociaes.
4º. Reconhecendo o director dp estabelecimento que os indígenas adultos mostrão aptidão
para aprender, tratará de aproveital-os pelos meios à sua disposição.
5º. Haverá no estabelecimento officinas providas dos utensílios necessários não só ao
ensino dos indígenas, como ao preparo de productos que dem renda. Será esta arrecadada para ter
applicação que o governo designar em beneficio do estabelecimento.
6º. O encarregado da creação do estabelecimento estará em permanente communicação
com os missionários que o governo enviar para a catechese das tribus que estão no valle do
Araguaya e suas proximidades, recorrendo á sua influencia para chamar ao estabelecimento os
meninos que tem de ser instruídos e educados.
7º. Intervirá também com os mesmos missionários para que os objectos que houverem de
ser distribuídos a titulo de brindes aos indígenas serão pemutados por productos de sua industria
embora de menor valor.
8º. Como fiscal da economia interna do estabelecimento e suas dependências, proporá, no
mais curto prazo possível, bases para o seu regulamento interno, nos quaes será attendido tudo
quanto se referir a cada um dos serviços respectivos, e o necessário ao seu desenvolvimento, bem
como se determinará o pessoas indispensável, suas obrigações, vencimentos, &. Provisoriamente
porá em execução o que for estrictamente preciso á inauguração do estabelecimento.
. Annualmente apresentará um relario em que será descripto o estado do estabelecimento,
com declaração dos resultados obtidos e indicação de quaisquer medidas que forem úteis. Comunicar-
se-há com o governo ordinariamente por intermédio do presidente da província, sendo-lhe permittido
corresponder-se diretamente quando motivos urgentes o exigirem.
10º. Haverá um thesoureiro responsável para com a fazenda nacional por todas as
despesas e receita que correrem por seu intermédio; este empregado receberá na thesouraria de
fazenda de Goyaz por prestações trimensaes a quota de credito especial correspondente a esse
tempo, se assim for requisitado á presidência de Goyaz pelo encarregado desse serviço.
11º. Na thesouraria de fazenda da província de Goyaz abrir-se-há crédito especial, por conta
do qual correrá a despesa com os serviços seguintes:
153
§ 1º. Construcção do prédio e acquisição das alfaias precisas a 50 alunnos, podendo este
numero ser augmentado, quando convier;
§ 2º. Os vencimentos dos sacerdotes, médicos, professores, mestres e outras pessoas
empregadas no estabelecimento;
§ 3º. Sustento, roupa e medicamentos.
§ 4º. Transportes, ferramentas e outros objectos de uso dos estabelecimentos ou destinados
para brindes aos indígenas.
§ 5º. Eventuaes calculadas em 10% de consignação.
Não existindo fundos proporcionados ao credito distribuído pode a mesma thesouraria
saccar sobre a do Pará ou sobre o tesouro nacional. Em nenhum caso será permitido exceder a
consignação, devendo com precisa antecedência solicitar o seu pagamento.
Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque.
Fonte: Jornal da Província de Goyaz, anno II, no. 45, de 11 de novembro de 1870, folhas 4 e 5.
Arquivo Histórico de Goiás, Goiânia - GO
A N E X O I I
RELATÓRIO APRESENTADO À ASSEMBLÉIA PROVINCIAL DE GOYAZ, PELO ILMO. EXMO.
SR. DR. ARISTIDES DE SOUZA SPINDOLA, PRESIDENTE DA PROVÍNCIA NO DIA 1 DE
JUNHO DE 1879.
Por Aviso de 10 de março ultimo comunicou-me o Ministério da Guerra que ficava extinto o presídio
de Santa Leopoldina, devendo ser recolhido à Capital o pessoal e material pertencente ao mesmo
Ministério; bem como que oportunamente se resolveria sobre a creação de outro presídio no lugar
denominado Furo da Pedra conforme representou o Empresário da navegação do Araguaya,
para onde poderião ser conduzidos os objectos transportados para esta cidade, e recomendei que
154
fossem inventariados e depositados em mão de pessoa idônea. Em vista da importância da
localidade, determinei que alli ficasse estacionado um destacamento militar commandado por um
inferior.
Goyaz, 20 de Maio de 1879.
João José Corrêa de Moraes,
Empresário.
Fonte: Livro nº. 1532 de Relatórios da Presidência. Arquivo do Museu das Bandeiras.
A N E X O I I I
ACTO N.3856 DE18 DE JANEIRO DE 1886
REGULAMENTO PARA
O SERVIÇO DA CATEQUESE
Na Província de Goyaz
O presidente da província, atendendo à urgente necessidade de regular o serviço da catechese
nesta província, de maneira eficaz e uniforme ouvido os encarregados desse serviço, resolve
manda que seja observado o seguinte.
Regulamento
Art 1º. - Ficão creados no rio Araguaya trez novos aldeamentos de índios, situados em Santa Maria,
no Dumbazinho e no rio Caiapó.
§ 1º. - Cada um d’esses aldeamentos será dirigido por um missionário. Que será coadjuvado por
outro encarregado da educação dos índios menores.
155
§ 2º. - Haverá mais em cada um desses aldeamentos, uma professora para a educação das índias,
e, em quanto forem preciso para as construções necessárias ao aldeamento, um pedreiro e um
carpinteiro.
§ 3º. - O presídio de S. Maria será transferido para lugar apropriado no lado ocidental da ilha do
Bananal, logo que ali se tiver, da estabelecer o aldeamento de S. Maria.
Art.2º. - O aldeamento de S.Jodo araguaya, continuará sob a direção do atual diretor até que o
encarregado do serviço da catechese, possa substituir por um missionário.
Art. 3º. - Fica creado em cada um dos aldeamentos, do Piabanhas, no alto Tocantins, de.
S.José do Araguaya, uma escola para educação das índias.
Art.4º. - Os diretores dos aldeamentos se dirigirão pelas instruções regulamentares que forem
expedidas pelo encarregado dos serviços da catechese, na direção dos respectivos aldeamentos.
Art.5º. - O superior dos missionários incumbidos dos novos aldeamentos, apresentara anualmente
ao encarregado do serviço da catechese, um relatório minucioso sobre o progresso e
desenvolvimento de cada aldeamento, sobre a freqüência e aproveitamento dos índios menores e
acompanhado da conta de receita e despeza de cada aldeamento.O mesmo relatório deverão
apresentar os diretores dos aldeamentos dês.Vicente, de S. José do Araguaya e de Piabanhas.
Art.6º. - Quando o trabalho dos índios aldeados produzirem renda será esta escripturada no
respectivo aldeamento e levada a conta do credito para o exercício seguinte.
Art.7º. - Logo que for estabelecido no Dumbazinho o aldeamento creado, o colégio Izabel será
convertido em externato e a sua direção, bem como a educação dos índios menores ficarão a cargo
dos missionários desse aldeamento, ficando conservado os lugares de professora para educação
das índias, dos mestres das oficinas de ferreiro e de carpinteiro e de vaqueiro para a fazenda de
gado.
Art.8º. - Em quanto não estiver definitivamente estabelecido o aldeamento do Dumbasinho, o
respectivo professor servirá interiormente de diretor do colégio Izabel dando a todos os alunos
indígenas as instruções primaria nos dias úteis durante 3 horas.
§ 1º. - O diretor interino dividira os alunos indígenas do colégio em 3 turmas, uma para freqüentar
cada uma oficina e a 3 para se aplicar aos trabalhos da criação de gado, sem prejuízo das horas da
escola.
§ 2º. - As matérias ensinadas na escola do colégio serão leitura, escripta, as 4 operação
aritméticas, catechismo da religião catholica e trabalho de agulha para as índias
Art. 9º. - As despesas snnuaes com a catechese organizada conforme o regulamento pressente,
serão as constantes da tabelas anexa.
156
Art.10º. - Logo que chegarem os missionários destinados a catechese o encarregado desse serviço
inaugurará os novos aldeamentos de conforme da com a disposição deste regulamento, e, desde
proporá a presidência pessoa idônea para professora dos dous aldeamentos estabelecidos que não
os tem, comunicado tudo a esta presidência e a thesouraria de fazenda.
Art.11º. - As quantias destinadas a cada aldeamento serão entregues aos respectivos diretores em
trimestres adiantados.
Palácio da presidência de Goyaz, 18 de janeiro de 1886
Guilherme Francisco Cruz.
Fonte: Relatório apresentando à Assembléia legislativa provincial de Goyaz, em 8 de abril de 1886, pelo exmo.
presidente Dr. Guilherme Francisco Cruz – Livro de Relatórios da Presidência - Arquivo do Museu das Bandeiras
.
A n e x o I V
CARTA RÉGIA DE CINCO DE SETEMBRO DE 1811.
(*) Fernando Delgado Freire de Castilho, do meu conselho, governador e capitão-general da
capitania de Goiás. Amigo. eu príncipe regente vos envio muito saudar-Tendo subido à minha
real presença o vosso ofício datado de 1º de fevereiro deste ano, com o qual remetestes à memória
que vos dirigiu o desembargador Joaquim Teotônio segurado, ouvidor da comarca de S. João das
Duas Barras, sobre os meios de remover os mesmos obstáculos a beneficio do dito comercio; e
tendo tomado minha real consideração este tão importante objeto, que desde muito tempo ocupa os
meus paternais desvelos, sobre o que em outras ocasiões tenho mandado dar providencias ,sou
ora servido à vista da referida memória e das reflexões que sobre o seu conteúdo fazeis no vosso
oficio, determinar-vos o seguinte, esperando do zelo, inteligência e eficácia, com que vos empregais
no meu real serviço, que fareis todos os possíveis esforços para o cabal desempenho das novas
providencias que vos incubo, das quais devem sem duvida resultar as maiores vantagens a essa
capitania, facilitando as suas relações comerciais, promovendo a sua riqueza, e a segurança desses
povos. em primeiro lugar sou servido aprovar o plano proposto para uma sociedade de comercio,
entre essa capitania e o Pará, de que trata o §.
17 da memória, qual me parece muito próprio e conveniente para animar e fazer prosperar o mesmo
comércio sendo esta sociedade formada segundo as condições do primeiro apenso à memória, não
devendo ser o seu fundo menor de 40.00$000; não se admitindo ações menores de100$000; não
157
sendo no capital dos 40.000$00 compreendidas as canoas, e os escravos, com que a sociedade
principiar; pois que o dito capital deve constar de objetos de comercio, e de dinheiro;
estabelecendo seus armazéns e os caixas nos sítios indicados; impondo-se estes caixas as
obrigações e o exercício que ali se declara; e finalmente praticando-se tudo o que diz o ouvidor,
quanto á divisão dos lucros, e as despesas que devem fazer-se por conta da sociedade. Somente,
pelo que respeita a duração da mesma sociedade, parece-me que se mais útil estendê-la ao
prazo de 15 ate 20 anos.e porque a verificação deste estabelecimento, atendendo as atuais
circunstancias das duas capitanias, não pode deixar de encontrar grandes dificuldades, como vos e
o referido ouvidor judiciosamente ponderais, por isso mesmo se faz tanto mais necessária neste
particular toda a vossa eficácia e diligencia, para dispor os ânimos dos negociantes e capitalistas
dessa capitania para essa empresa, fazendo-lhes sentir as vantagens que delas lhes resultarão, e
que eu me proponho proteger e auxiliar em tudo a sociedade,mandando desde por em pratica
todas as providencias que a circunstancias permitem, para tornar mais fácil a comunicação entre as
duas capitanias, procurando que a navegação do rio Tocantins e maranhão seja menos arriscada e
trabalhosa,não por meio das obras, a que se vai proceder, para a limpeza dos rios, e
encanamentos necessários desde Arroios ate Porto Real, mas pelo que mando praticar,para impedir
que as nações gentias continuem cometer os insultos e depredações que infelizmente ainda fazem
em algumas paragens, e para remover os outros obstáculos que dificultam aquela navegação. -
portanto, querendo prover a esses importantes objetos, sou servido mandar declarar a concessão
dos seguintes privilégios a favor da sobredita sociedade, e do comercio e navegação dessa
capitania:- 1º. Que todos os cios e pessoas por eles empregadas no comercio, navegações dos
rios e na cultura das suas margens, e dos sertões, serão isentos do serviço militar. 2º. Que aqueles
sócios que mostrarem ter nesta sociedade o valor de 4000$000 réis concederei um posto de acesso
(servindo eles nas milícias ou nas ordenanças) ate o posto de coronel de milícias, ou de capitão-
mor, inclusive, e uma sesmaria á borda dos rios Tocantins, Maranhão e Araguaia, e de meia légua
de frente, e uma légua e meia de fundo, em qualquer sitio que escolherem, onde o terreno se ache
ainda devoluto, e não concedido, nem demarcado. 3º. Que as dividas ativas desta sociedade tenha
o privilegio de dividas fiscais, para serem cobradas executivamente, como se fossem dividas ativas
da minha real fazenda; 4º. Que todos que se forem estabelecer nas margens graças e sertões dos
ditos rios serão franqueados as mesma graças e privilégios que fui servido conceder aos povos da
capitania de Minas Gerais pela minha carta – regia de 13 de maio de 1808,dirigida ao governador e
capitão-general daquela capitania, relativamente ao Rio Doce,tanto a respeito da isenção dos
dízimos de suas culturas, e dos direito de entrada dos gêneros de comercio dessa capitania de
Goiás, sendo navegados pelos mencionados rios, como também a respeito da moratória concedida
aos devedores da minha real fazenda, e do tempo de serviço que poderão haver daqueles índios,
que,não querendo pelos meios brandos e suaves,de que com eles tenho mandado usar, e que
agora novamente recomendo, viver tranqüilos e sujeitos às minhas leis,cometerem hostilidades
contra os meus fieis vassalos. – Igualmente sou servido, pelo que toca às obras e encanamento dos
rios desde Arroios ate Porto Real, que o ouvidor propõe no §18 da memória, aprovar o plano que
ele oferece, para melhorar a navegação, ordenando que se formem as esquadras com a gente a
ferramentas que ele aponta no segundo apenso,que nos tempos das secas se proceda á execução
158
dos trabalhos pelo método indicado,para se conseguir a limpeza dos rios, o seu encanamento nos
sítios em que for necessário, e os cortes das pontas das rochas e dos baixios;não devendo
esquecer a providencia de por espigões com roldanas de ferro nos sítios dos saltos,ou cachoeiras,
que ouvidor lembra como muito útil, para evitar nestas paragens o risco das canoas, podendo-vos
servir de grande socorro, para execução de tudo isso, as luzes, atividade e patriotismo deste
magistrado.
– Quanto ao procedimento com os gentios, ou servido de terminar-vos que, aquelas nações que não
comentem hostilidade, mandeis usar de toda a moderação e humanidade, procurando convencê-las
da utilidade que lhes resultara de se conservarem em boa inteligência, e amizade com seus
povos,para o que parece conveniente empregue algumas dádivas e ate introduzir com eles alguns
cristãos, que lhes ensinem a agricultura e os ofícios mecânicos mais necessários, como aponta o
§19 da memória, igualmente parece que será útil tentar por meio do perdão que o desertor do Pará,
que vive com a nação Karajá, tem exigido para ela, prometendo que assim tornara a boa fé, e antiga
harmonia.Acontecendo, porem, que este meio não corresponda ao que se espera, que a nação
Karajá continue nas suas correrias,será indispensável usar contra ela da força armada;sendo este
também o meio de que se deve lançar mão, para acontecer e repelir as nações apinage, xavante,
xerente e canoeiro, portanto, suposto que os insultos que elas praticam tenham origem no rancor
que conservam, pelos maus tratamentos que experimentaram da parte de alguns comandantes das
aldeias, o resta presentemente outro partido a seguir senão intimida-los, se necessário for, para
evitar os danos que causam.Neste intuito, vos hei por mui recomendado, não o enviar os
convenientes reforços de pedestres para o destacamento do Porto Real, mas toda a vigilância em
dar as providencias que tenderem ao desempenho destas minhas reais ordens.Finalmente,quanto
aos dois últimos obstáculos de que trata a memória, determino que mandeis proceder ao
estabelecimento dos presídios em distancias proporcionais, como propõe o ouvidor, para assim
poderem mais facilmente ser fornecidas as canoas dos necessários viveres no seu transito, e
igualmente que mandeis por em por em pratica a necessária prevenção, de que as canoas levem
sempre um suficiente provimento dos remedos, que a experiência tem mostrado serem eficazes e
específicos para a moléstia de sezões, que mais ordinariamente costuma a cometer as tripulação
das mesmas canoas-tendo-vos assim participado tudo que julgo conveniente mandar praticar a bem
do comercio e comunicação entre essa capitania e a do Pará, para que tenhais entendido e façais
executar, somente resta prevenir-vos de que nesta mesma ocasião determino ao governo interino
do Pará que pela sua parte haja de promover também o útil estabelecimento da sociedade de
comercio entre as duas capitanias,debaixo dos mesmo princípios e condições expendidas nesta
carta regia; dando-lhe mesmo tempo as mais positivas ordens, para que haja de auxiliar com a tropa
que é necessário o estabelecimento das esquadras, prestando-se a dar todos os mais socorros, que
lhe forem requeridos a bem do recíproco comercio e interesses das duas capitanias. Escrito no
palácio do Rio de Janeiro, em 5 de Setembro de 1811.– Príncipe. para Fernando Delgado Freire
de Castilho.
Fonte: ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Anais da Província de Goiás, 1863. p. 316-320.
Brasília DF: Editora Gráfica Ipiranga LTDA;
159
A N E X O V
ACTA DA INAUGURACÃO DA NAVEGAÇÃO A VAPOR DO RIO ARAGUAIA
Aos 28 dias do mez de Maio do anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de
1868, 47º. Da Independência do Império à margem esquerda do rio Araguaya e a trinta léguas da
Capital de Goyáz, reuniram-se o Exmº. Snr. Dr. José Vieira Couto de Magalhães, Presidente que fei
desta Província e por elle eleito Deputado à Assembléia Geral Legislativa, actualmente Presidente
da Província de Matto Grosso, e o Exmo. Snr. Desembargador Dr. João Bonifácio Gomes de
Siqueira, 1º. Vice-Presidente da de Goyáz, em exercício, com muitos funcionários públicos e grande
número de outros cidadãos que concorreram para o fim de assistirem à cerimônia religiosa da
bençam do vapor “Araguay-nerú-assú” e à inauguração da navegação a vapor do rio Araguaya, em
conseqüência de o haver comunicado o mesmo Exmo. Snr. Presidente da Província de Matto
Grosso ao desta Província, que dirigiu convites e fez público esta facto da mais sabida importância
para o engrandecimento e prosperidade da Província de Goyáz. E achando-se surto no porto, em
frente à foz do rio Vermelho, o mencionado vapor, de que é commandante o capitão da fragata
Commendador Balduino José Ferreira de Aguiar, reconheram-se a bordo os Exmos. Snrs.
Presidentes das Províncias de Matto Grosso e de Goyáz, acompanhados dos Snrs. Dr Theodoro
Rodrigues de Moraes, 3º. Vice-Presidente; Dr. Frederico Dabney de Avellar Brotéro, Chefe de
Polícia da Província; Dr. João Luiz de Araújo oliveira Lobo, inspetor geral dos Presídios; Antônio
Honório Ferreira, inspetor da Thesouraria da Fazenda de Goyáz; Dr. Joaquim Rodrigues de Moraes
Jardim, engenheiro; capitão Luiz Gonçalves de Lima, Engenheiro Constructor; Dr. João Thomaz de
Carvalhaes, Primeiro Cirurgião do Exército; muitos outros funcionários e pessoas importantes. Em
seguida, precedendo os necessários exames e reconhecimentos teve logar a cerimônioa religiosa
do vapor, até então chamado Araguay-nerú-assú, officiando o Revmo. B. da costa Oliveira, capelão
do Presídio Leopoldina, tendo-se antes assentao em mudar-se o nome do mesmo vapor que se
passou a chamar Araguaya. Terminado o acto religioso, ergueiram-se vivas à religião do Estado, a
160
Sua Majestade o Imperador, ao Governo Imperial, aos Exmos. Snrs. Ministros da Marinha
conselheiro Affonso Celso de Assis Figueredo, e o Ministro da Agricultura conselheiro Manoel Pinto
de Sousa Dantas, e finalmente ao progresso da navegação a vapor no interior do Império. Logo
depois, o vapor suspendeu o ferro, largou do porto em direita a margem opposta, atravessou o rio
Araguaya, cruzou em differentes direcções, ao som do Hynno Nacional, subiu o rio Vermelho e,
voltando ao ancoradouro, foi solenemente proclamado achar-se installada a navegação a vapor do
rio Araguaya, acto que foi saudado enthusiasticamente por todas as pessoas que assistiram de
bordo e das praias. Então, o Exmo. Snr. Desembargador João Bonifácio Gomes de Siqueira
levantou vivas ao Exmo. Snr. Dr. José Vieira Couto de Magalhães, a quem se deve a reanimação
da navegação do Araguaya e seus afluentes, a iniciativa da navegação a vapor de sustentou com
tanta constância e sacrifício, e acaba de ser realizada, a despeito de todos os obstáculos e
contrariedades, a que sempre se mostrou superior. O Exmo. Snr. Dr. Couto foi saudado e
cumprimentado por todos por tão alto feito, recebendo as mais vivas demonstrações de gratidão e
reconhecimentos. Assim terminou a cerimônia da inauguração da navegação a vapor no Rio
Araguaya; e de tudo, para memória, se lavrou o presente auto, que vae por todos assignado e de
que se extrahiram seis pias, para serem remmetidas, a saber: duas, aos Exmos. Snrs.
Conselheiros Ministro da Marinha e Agricultura; duas, para a Secretaria do Governo da Província de
Matto Grosso e a mara Municipal da Capital da mesma e, finalmente, duas para as mesmas
repartições de goyaz. Antônio Honório Ferreira, o escrevi. Dr. José Vieira Couto de Magalhães.
Dr. João Bonifácio Gomes de Squeira. Theodorio Rodrigues de Moraes. Frederico Dabney de
Alellar Brotéro. Dr. João de Araújo de Oliveira Lobo. Antonio Honório Ferreira. Joaquim
Rodrigues de Moraes Jardim. Luiz Gonçalves de Lima. João Thamaz Carvalhaes. Confere,
Antônio Honório Ferreira.
Fonte: PINTO, Olegário. O Estado de Goyáz e a falta de meios de transportes. Discurso pronunciado na sessão de 13
de setembro de 1922. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1922 – Gabinete Literário Goiano – Cidade de Goiás.
161
A N E X O V I
DECRETO Nº. 4.593 DE 9 DE SETEMBRO DE 1870
Autoriza o contracto com o Dr. José Vieira Couto de Magalhães para a Navegação do
rio Araguaya.
Hei por bem com conformidade com o Decreto nº. 808 de 20 de agosto do corrente
anno autorizar o contracto com o Dr. José Vieira Couto de Magalhães para a navegação a vapor no
rio Araguaya entre o porto de Itacaiú na Província de Matto Grosso e de Santa Maria em Goiás sob
as cláusulas que com este baixão assignadas por diogo Velho Cavalcante de Albuquerque do meu
Conselho Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura Commércio e Obras
Públicas, que assim o tenha entendido e faça executar.
Palácio do Rio de Janeiro, em 9 de setembro de 1870, 49º. Da Independência e do
Império. Com a rubrica de S. M. o Imperador. Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque.
Cláusula a que se refere o Decreto de Nº. 4.593 desta datas.
I – O empresário obriga-se a manter por si, ou pela companhia que organizar a
navegação a vapor no rio Araguaia, entre Santa Maria, em Goyáz, e Itacaiú, em Matto Grosso.
II Os vapores da empresa serão nacionalizados brasileiros, ficando isenta sua
aquisição de qualquer imposto por transferência de propriedade ou matrícula, gozarão de todas as
isenções e privilégios de paquetes, e a respeito de suas tripolações se praticará o mesmo que se
pratica com os navios de guerra nacionais; o que os não isentará dos regulamentos policiais e de
alfândegas.
III os vapores tocarão nos portos de São José e S. Leopoldina, devendo demorar-se
pelo menos 24 horas no primeiro e 48 horas no segundo, tanto na descida como na subida do rio.
IV – os vapores farão annualmente, pelo menos, 6 viagens redondas, e terão as
dimensões e força precisas para rebocar em cada viagem 4 mil arrobas de carga no mínimo.
V os dias de partida dos vapores serão fixados pela empresa, de accordo com a
presidência da Província de Goyáz, attendendo-se a monção das águas mais conveniente ao
reboque das embarcações que fazem o commércio com o Pará.
VI Serão submetidas à approvação do governo Imperial as tabellas de frete e
passagens, que a empresa organizará de accordo com a mesma presidência, podendo, por ordem
desta, executal-as provisoriamente.
162
O frete da exportação dos produtos corresponderá a metade do que se extipular para a
importação.
Essas tabellas serão revistas sempre que for preciso por ordem do governo imperial, de
accordo com a empresa.
VII – as matérias inflamáveis só poderão ser recebida pela empresa mediante as
cautelas necessárias que preservem os passageiros, embarcações e mercadorias de todos e
qualquer risco.
VIII – Faz-se-há o abatimento de 10% nas passagens e frete por conta do Estado e das
províncias que subvencionam esta navegação. Em cada viagem terão transporte gratuito até 10
colonos e suas bagagens, pagando o governo as corredorias.
IX a empresa fará transportar gratuitamente as malas do correio, devendo os
commandantes dos vapores passar e exigir recibo das que receberem e entregarem. Nos pontos
onde houver agencias, os comandantes mandarão receber e entregar em terra as malas. Onde não
houver agencias o director geral dos correios providenciará para que a entrega e recebeimento
façam-se a bordo dos vapores.
X a empresa obriga-se a conduzir, também gratuitamente, dentro da linha da
navegação, quaisquer valores remetidos de umas para outras thesourarias de fazenda, guardadas
as instruções de 4 de setembro de 1865.
XI – a empresa fica sujeita às seguintes multas:
1º. De quantia igual a subvenção respectiva, se deixar de effectuar algumas das
viagens estipuladas; salvo o caso da força maior.
2º. De 200$ a 600$000, além da quantia correspondente a parte da linha não
navegada, se a vigem depois de encetada for interrompida, salvo de força maior.
3º. De 100$000 a 500$000; pela suppressão de qualquer escala, bem como pela
demora, extravio ou mal acondicionamento das malas e objetos pertencentes ao Estado e as
províncias, sem prejuízo de qualquer outra penalidade em que incorrer, na conformidade da lei.
XII – a interrupção do serviço da navegação por mais de 12 meses salvo força maior.
XIII São concedidos à empresa três territórios nas margens do rio Araguaya, com as
dimensões designadas no artigo 19 do Regulamento de 8 de maio de 1854, correndo por sua conta
a despesa da medição e demarcação. Esses territórios poderão ser divididos em quantos lotes
quantos forem os pontos escolhidos para a fundação de estabelecimentos rurais. E permitir a
empresa o corte de lenha no quarto de légua excluído da concessão de terras a particulares pelo
decreto de nº. 1808 de 20 de agosto deste ano.
163
XIV é concedida à empresa a subvenção anual de 40 contos de réis como auxílio às
que obteve das províncias de Goyáz e Pará a qual será pago em prestações de 6..666$666, de
dous em dous meses.
O pagamento efectuar-se-á na estação fiscal que o governo imperial opportunamente
designar.
XV – o governo imperial fiscalizará o serviço da empresa como entender conveniente.
XVI o governo imperial poderá desapropriar o fretar os vapores da empresa para o
serviço do Estado em circunstancia imperiosas e imprevistas mediante prévio accordo quanto ao
preço, quer da compra, quer do fretamento; cumprindo, porém, que no primeiro caso ella o substitua
por outros, segundo as condições exigidas e no prazo de 18 meses.
XVIII a empreza terá suas sede no Brasil, onde serão decididas as questões que
suscitarem entre ella e o governo, ou entre ella e os partuculares, conforme a legislação vigente.
As questões, porém, entre o governo e a empreza sobre seus direitos e obrigações,
bem como sobre o preço da desapropriação ou do fretamento dos vapores conforme a cláusula 16ª
serão resolvidas por árbitros observando-se o seguinte:
Se as partes contratantes não acordarem no mesmo arbitro, nomeará cada uma o seu,
e estes começarão os seus trabalhos designando terceiros, a quem cabe voto definitivo.
Se não concordarem quanto ao 3º. Cada um indicará um Conselheiro de Estado, entre
os quais decidirá a sorte.
XIX os casos de força maior serão justificados perante o presidente da província de
Goyáz que julgade sua procedência, a vista das provas exhibidas, com recurso necessário para
(ilegível) governo imperial.
XX o presente contracto durará trinta annos, contados do decreto de nº. 1808 de 20
de agosto do corrente anno (ilegível) seis em seis annos, devendo (ilegível) acordo dos
contractantes para as (ilegível) a experiência aconselhar.
Palácio do Rio de Janeiro, em 9 de setembro de 1870, 49º. Da Independência e do
Império. Com a rubrica de S. M. o Imperador. Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque.
Fonte: Jornal da Província de Goyáz, Anno II Nº. 44 28 DE OUTUBRO de 1870, p. 4 e 5.
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A N E X O V I I
OFÍCIO SOBRE CONTRATO CELEBRADO PELO INSPETOR GERAL DOS PRESÍDIOS
ERNESTO VALLÉE E FERREIRA RAIMUNDO JOSÉ GONÇALVES.
O presidente da província, atendendo a necessidade que há de um ferreiro no presídio de S.
Leopoldina resolve aprovar o seguinte contrato celebrado pelo inspetor geral dos presídios. Aos
vinte e sete dias do mês de janeiro do ano de mil oitocentos e cinqüenta e nove, trigésimo oitavo da
independência e do império, nesta cidade de Goiás perante Inspetor Geral dos Presídios Ernesto
Vallée compareceu o ferreiro Raymundo José Gonçalves e pelo inspetor foi dito que queria engajar
por conta do Exno Governo um oficial de ferreiro para fazer as construções e ferramentas do
presídio Colonial de Santa Leopoldina debaixo das seguintes condições. 1 - O ferreiro residirá com
sua família por espaço de um ano no presídio de S.Leopoldina e nele fará todas as obras
pertencentes ao seu Oficio que pelo comandante lhe forem determinada p/ o serviço geral,
fornecimento da arrecadação armamento e fabricação de brindes destinados aos índios. 2 -
Vencerá por mês o salário de trinta e três mil réis, receberá ajuda de custo, e mensalmente as
rações p/ ele e sua família na forma da resolução de 8 de Abril de 1857 a contar do dia de sua
saída, e será obrigado a trabalhar todos os dias em que o serviço exigir. 3-A tenda devesempre
existir no melhor estado de aceio (limpeza) e ser mensalmente fornecida de novas ferramentas que
deverão entrar no inventario, sendo o ferro e o aço fornecidos pela arrecadação. 4- O Contratante
obriga-se a fornecer a tenda durante o seu contrato, de um torno grande, uma tarrafa de um
parafuso grande uma pequena e uma carretilha de furar. 5 - O seu salário será tirado em falha
mensal, em a qual serão descontados as ausências fora do ponto e sem licenças como qualquer
falta por motivo que não seja o de moléstia e pago mensalmente pelo comamdante juntamente c/ as
rações. 6 - O contratante receberá antes de sua saída determinada p/o dia 15 de fevereiro um mês
de vencimento adiantado, as ajudas de custo, na importância de nove mil novecentos reis e os
animais necessários p/ sua condução ate o porto de Thomaz Souza, passando pelo arraial de Santa
Rita. 7 - O dito ferreiro está a disposição da Lei de13 de setembro de 1830- e pelo referido
Raymundo Jo Gonçalves, depois de bem examinar as supra mencionadas condições
apresentadas pelo Inspetor Geral dos presídios em nome do governo, foi dito que se obrigava a ir
residir com sua família e trabalhar por seu oficio no presídio de S. Leopoldina, pelo tempo e forma
declarada nas ditas condições e de como assim o disse e contratou, lavrou-se o presente termo de
contrato que é sujeito a aprovação do exmo. Governo, dele foi feito um numero igual das partes
interessadas. Goyaz 27 de janeiro de 1859 -, Inspetor Geral dos presídios Ernesto Vallée,
Engenheiro de Minas Gerais - Raymundo José Gonçalves. Fação-se as necessárias comunicações
– Palácio do Governo de Goyaz aos 29 de janeiro de 1859.
Francisco Januário da Gama Cerqueira
Fonte: CX: Municípios Diversos - Presídio de S.Leopoldina- 1859. Fundação Cultural Pedro Teixeira/Diretoria de
Patrimônio Histórico e Artístico Arquivo Histórico Estadual.
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