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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Eloísa Porto Corrêa
A PAISAGEM EXPRESSIONISTA NA NARRATIVA DE RAUL BRANDÃO:
NUANCES DO “CLARO-ESCURO PESADELO”
Volume Único
Rio de Janeiro
2008
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A PAISAGEM EXPRESSIONISTA NA NARRATIVA DE RAUL BRANDÃO:
NUANCES DO “CLARO-ESCURO PESADELO”
por
ELOÍSA PORTO CORRÊA
Volume Único
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título
de Doutor em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e
Africanas).
Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira.
Rio de Janeiro
Dezembro de 2008
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Defesa:
CORRÊA, Eloísa Porto. A paisagem expressionista na narrativa de Raul Brandão: nuances do
“claro-escuro pesadelo”. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro, 2008, 246 p.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Luci Ruas Pereira – Orientadora
Professor Doutor Jorge Vicente Valentim – UFSCar
Professora Doutora Regina Silva Michelli – UERJ
Professora Doutora Mônica Figueiredo – UFRJ
Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ
Professor Doutor Flávio Garcia de Almeida – UERJ (Suplente)
Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ (Suplente)
Examinada a Tese
Parecer: _______
Em: 19/12/2008
3
À minha família: Maria Terezinha, Lipe, Edu, André e Marly.
4
Agradeço
A Luci Ruas Pereira por ter me apresentado com tanta empolgação à
obra de Raul Brandão e pela orientação.
A Fernando Monteiro de Barros, meu professor flaneur, pelos
passeios apaixonantes entre vampiros e femmes fatales voluptuosos e
perversos.
Aos amigos Rafael e Diego pelas palavras de incentivo e pelas
sugestões.
A Jorge Vicente Valentim e a Mônica Figueiredo, pela leitura atenta
do meu texto, pelas sugestões e pelas indicações bibliográficas.
Aos meus professores que seguiram o mestre Paulo Freire,
acreditando que “a atividade docente de que a discente não se separa
é uma alegre troca de saberes” e que “ensinar exige querer bem aos
educandos”: Leonila Murinelli, Maria Isaura Rodrigues Pinto,
Regina Silva Michelli, Iza Quelhas, Flávio Garcia de Almeida,
Eduardo Kenedy Arêas, Cleonice Berardinelli, Teresa Cristina
Cerdeira da Silva, Ângela Beatriz Faria, Maria de Lourdes Soares,
José Clécio Basílio Quesado, Carmen Lúcia Tindó Ribeiro Seco e
Jorge Fernandes da Silveira.
5
RESUMO
CORRÊA, Eloísa Porto. A paisagem expressionista na narrativa de Raul Brandão: nuances do “claro-
escuro pesadelo”. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008.
Este trabalho é uma análise do projeto estético expressionista do escritor português Raul Brandão, que
desemboca na especulação existencial sobre a condição humana, através do olhar para os pobres. A
pesquisa terá como corpus quatro narrativas entre o fim do século XIX e o início do século XX, um conto e
três romances da segunda fase artística do autor, chamada claro-escuro pesadelo: O mistério da árvore, Os
Pobres, A Farsa e Húmus. A partir da análise dessas obras, evidencia-se a exploração do efeito claro-escuro
na composição de cenários e personagens, bem como a investigação da situação dos humildes.
PALAVRAS-CHAVE
Raul Brandão, narrativa, claro-escuro pesadelo e Expressionismo.
6
ABSTRACT
CORRÊA, Eloísa Porto. A paisagem expressionista na narrativa de Raul Brandão: nuances do “claro-
escuro pesadelo”. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008.
In this work we study the expressionist aesthetic project of the Portuguese writer Raul Brandão, which ends
in an existential speculation about the human condition, through an insight into the poors. Our research is
based on a corpus of four narratives between the end of the nineteenth century and the beginning of the
twentieth century, a tale and three novels belonging to the second phase of the author’s artistic work, which
is called “clear-dark nightmare”: O mistério da árvore, Os Pobres, A Farsa and Húmus. The analysis of
these works shows both an exploration of this clear-dark effect onto the composition of scenarios and an
investigation of the humble condition.
KEY WORDS
Raul Brandão, novel, clear-dark nightmare and Expressionism.
7
RÉSUMÉ
CORRÊA, Eloísa Porto. A paisagem expressionista na narrativa de Raul Brandão: nuances do “claro-
escuro pesadelo”. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008.
Ce travail est une étude sur le projet esthétique expressionniste de l'écrivain portugais Raul Brandão, qui
rend de la spéculation existentielle par rapport à la condition humaine, en regardant les pauvres. Cette
recherche aura comme corpus quatre narrations vers la fin du XIXe siècle et au début du XXe siècle, un
conte et trois romans de la deuxième phase artistique de l'auteur, appelée clair-obscur cauchemar: O
mistério da árvore, Os Pobres, A Farsa et Húmus. Lors de l'analyse de ces œuvres, il se dégage
l'exploration de l'effet clair-obscur sur la composition des scénarios et des personnages, ainsi que la
recherche de la situation des humbles.
MOTS-CLÉS
Raul Brandão, roman, clair-obscur cauchemar et l'expressionnisme.
8
RESUMEN
CORRÊA, Eloísa Porto. A paisagem expressionista na narrativa de Raul Brandão: nuances do “claro-
escuro pesadelo”. Tese de Doutorado em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 2008.
El presente trabajo es un análisis del proyecto estético expresionista del escritor portugués Raul Brandão,
que desemboca en la especulación existencial sobre la condición humana, a través de la mirada a los pobres.
La investigación tendrá como corpus cuatro narraciones entre fines del siglo XIX y comienzos del siglo
XX, un cuento y tres novelas de la segunda fase artística de Brandão, llamada claro-oscuro pesadilla: O
mistério da árvore, Os Pobres, A Farsa y Húmus. A partir del análisis de estas obras, se evidencia la
exploración del efecto claro-oscuro en la composición de escenarios y personajes, así como la investigación
de la situación de los humildes.
PALABRAS CLAVE
Raul Brandão, novela, claro-oscuro pesadilla y Expresionismo.
9
E é da gente ignorada que levo as maiores impressões da existência. Foram os
pobres que me obrigaram a pensar foi a série de figuras toscas que encontrei
na estrada, duma realidade tão grande que nunca consegui afastá-la da minha
alma. Ainda hoje desfilam diante de mim os mortos e os vivos... Não posso
esquecê-los: parece que todos eles esperam alguma coisa de mim.
RAUL BRANDÃO
Vale de Josafat. III Volume de Memórias
Se a rajada levasse o que a cova leva e desfaz a matéria e ficasse de o
que é eterno, talvez recuássemos de espanto diante de tipos desconhecidos, de
sentimentos desconhecidos, de almas nuas na sua beleza ou na sua esplêndida
hediondez. RAUL BRANDÃO
A Farsa
(...) Põe de acordo a tua alma com a pedra, extrai encanto do céu e da miséria.
Pudesse eu gritar! Pudesse eu ter fome! agora dou pelo sabor das lágrimas.
RAUL BRANDÃO
Húmus
Ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o homem grande,
porque abala e acorda vozes adormecidas. RAUL BRANDÃO
Os Pobres
10
SUMÁRIO:
LISTA DE ABREVIATURAS ................................................................................................... p. 13
1- INTRODUÇÃO .................................................................................................................... p. 14
1.1- Apresentação: inquietações e caminhos a percorrer ....................................................... p. 14
1.2- A obra de Brandão entre românticos e Vencidos da Vida .............................................. p. 16
1.3- A obra de Brandão e a transição para o modernismo ..................................................... p. 17
2- O MISTÉRIO DA ÁRVORE E ALGUMAS IMAGENS RECORRENTES NA OBRA DE
BRANDÃO ................................................................................................................................. p. 33
3- UM MERGULHO NO ENXURRO: AINDA E SEMPRE OS POBRES “GATOS-PINGADOS”
3.1-Os Pobres em encruzilhadas de histórias: uma narrativa entre ruínas ........................... p. 42
3.2-O espaço-tempo de Os Pobres: cronótopos gritantes em tons de claro-escuro pesadelo p. 48
3.3-Vozes e gritos dos gatos-pingados: existências devassadas ........................................... p. 67
3.3.1- Vozes que narram aos gritos .................................................................................. p. 69
3.3.2- Personagens que pensam a vida ............................................................................. p. 79
3.3.3- Os mesquinhos que só passam a vida .................................................................... p. 87
4- TRILHAS NA FARSA: CAMINHO PARA O PESADELO E O ABISMO .......................... p. 97
4.1- Algumas trilhas em A Farsa: confluências na estrada do gênero e/ou hibridismo ........ p. 97
4.2- A Farsa para além do Decadentismo e do Simbolismo ................................................ p. 106
4.3- O meio social e a relativização do Naturalismo ........................................................... p. 111
4.4- Paisagem em claro-escuro pesadelo ............................................................................. p. 117
4.5- Tempo onírico: uma alternativa contra a mesmice ....................................................... p. 126
4.6- Eu-profundo e intimidades devassadas: os farsantes e o narrador abismado ............... p. 130
4.6.1- Existências sombrias: figuras hediondas férteis e sonhos materialistas ............. p. 136
4.6.2- Existências claras: ajuda humanitária de Marias estéreis ................................... p. 145
4.7- Considerações Finais sobre A Farsa: por trás das personas brandonianas, niilismo ... p. 153
5- DO HÚMUS AO HÚMUS: DESGRAÇADOS ENTRE RUÍNAS E O PARADOXO DA
EXISTÊNCIA OU SER PARA NÃO SER .............................................................................. p. 157
5.1- Os fragmentos do diário e o romance em fragmentos .................................................. p. 157
11
5.2- Húmus - um composto de ruínas: o cronótopo gritante em tons de claro-escuro ......... p. 166
5.3- Pesadelo e Sonho: espaço social em ruínas e tempo onírico ........................................ p. 180
5.4- O narrador abismado e algumas figuras desgraçadas: o paradoxal sentido da existência p. 189
5.5- Considerações Finais sobre o Húmus: desagregação, indagação e abismo .................. p. 201
6- UMA CONCLUSÃO SEM PONTO FINAL: PERMANECEM AS INTERROGAÇÕES...p. 205
BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................................... p. 211
ANEXOS .................................................................................................................................. p. 232
12
LISTA DE ABREVIATURAS
AF A Farsa
H Húmus
MI Memórias: Volume I
MIII Vale de Josafat: III Volume de Memórias
OMA O mistério da árvore
OP Os Pobres
13
1- INTRODUÇÃO
1.1- Apresentação: inquietações e caminhos a percorrer
O espanto, verdadeira tônica dos textos mais fundos e mais belos de Raul
Brandão, antecipa a náusea de Sartre, brusca tomada de consciência do existir,
do estar na vida sem razão, cercado de incógnitas e de uma fundamental
angústia. URBANO TAVARES RODRIGUES
Raul Brandão Existencialista Avant-la-Lettre
O meu encanto pela obra de Raul Brandão iniciou-se ainda no começo dos meus estudos de
Mestrado na UFRJ, primeiro com a leitura d’A Farsa; depois com a de Húmus, durante o curso
“Revista Finissecular” com a professora Luci Ruas, hoje orientadora desta tese. O projeto estético
inovador que as obras revelavam, em diálogo com a pintura, e o olhar comovido para os pobres
foram decisivos para aguçar minha curiosidade, levando-me a buscar, no Doutorado, o
aprofundamento do estudo das narrativas deste autor.
Para além do projeto prioritariamente estético de sua obra, Brandão acaba dando relevo a
figuras humildes desprovidas de heroísmos, habitantes de espaços precários –, problematizando-
as, questionando suas relações interpessoais e investigando a condição humana. Sua obra é farta de
indagações e escassa de respostas. Nela, sobram reflexões sobre problemas sociais, existenciais e
humanitários, mas faltam propostas de soluções, sendo o niilismo, desse modo, uma de suas
evidências. Aliás, a construção de um projeto estético atrelado a indagações de caráter existencial
acaba por diferenciar o texto brandoniano do de todos os seus contemporâneos.
Esta tese de doutorado objetiva uma análise do projeto estético de Raul Brandão, tendo
como foco principal a exploração de tonalidades contrastantes e do agressivo efeito claro-escuro
expressionista visível em certa estética do horror na descrição das paisagens –, em contraposição
a uma poética da afetividade em relação aos humildes, presente até na abordagem da condição
humana, investigada na obra.
O presente estudo tem como justificativa a necessidade de se conhecer melhor a narrativa
produzida entre o fim do século XIX e o início do século XX, particularmente a de Raul Brandão,
escritor português de relevo na cena artística do fim do século, mas ainda quase desconhecido no
Brasil. Além disso, a tese ajuda a se entender melhor a construção da literatura que, como obra de
arte e como produto cultural de uma época, muitas vezes se produz em diálogo com outras
linguagens artísticas, como é o caso da obra literária do ficcionista, pintor, crítico de arte,
dramaturgo, jornalista e pensador Raul Brandão.
O corpus da pesquisa é composto, basicamente, por três narrativas longas e uma curta: os
romances Os Pobres, A Farsa e Húmus, e o conto O mistério da árvore (Anexo 21), que são
14
analisados seguindo uma linha metodológica em que se confrontam a fortuna crítica, os postulados
teóricos e a interpretação pessoal.
Para embasar os estudos sobre as paisagens das narrativas e sobre a estética do horror que
as permeia são adotadas as críticas de Falk, de Furness, de Mucci e de Seabra Pereira. Os estudos
culturais de Bronislaw Geremek sobre os “vagabundos e miseráveis na Literatura Européia” são
usados como apoio para a investigação sobre a situação dos humildes e sobre a poética da
afetividade que os cerca na narrativa brandoniana. E as teorias de Vergílio Ferreira sobre
“romance-problema e romance-ensaio” e “novelística contemporânea” fundamentam os estudos
sobre a estrutura do romance e sobre as digressões e indagações acerca da condição humana na
obra de Brandão. Além disso, ao longo desta tese, estabelecem-se alguns diálogos com a fortuna
crítica brandoniana, que conta com estudos de Vítor Viçoso, Maria João Reynaud, Álvaro Manuel
Machado, Jacinto do Prado Coelho, Pedro Eiras, João Pedro de Andrade, entre outros.
A título de estudos introdutórios são desenvolvidos, ainda nesse primeiro capítulo, alguns
apontamentos sobre particularidades da obra narrativa de Raul Brandão, inserida no contexto
artístico-cultural do século XIX e do início do século XX.
Em seguida, no segundo capítulo, são apontados alguns apoios teóricos e críticos usados
para ler Raul Brandão nesta tese, bem como conceitos basilares e alguns esclarecimentos sobre as
tendências estéticas finisseculares, como a decadentista e a simbolista, que ecoam nas obras de
Brandão. Enquanto isso, algumas imagens recorrentes na narrativa brandoniana são apresentadas, a
partir de uma leitura do conto O mistério da árvore.
No terceiro capítulo, iniciam-se as investigações na narrativa Os Pobres, projeto estético
ousado e fragmentário, a começar pela instância narradora, que constrói paisagens em que se
evidenciam traços expressionistas e lança um olhar comovido para as figuras humildes, partindo
do “enxurro” de pobres arruinados que desfilam sua miséria diante do narrador, até alcançar o
íntimo de alguns personagens.
No quarto capítulo, o estudo focaliza A Farsa, projeto estético um pouco mais ousado que o
de Os Pobres, em que se descrevem cenários horrendos em tonalidades de claro-escuro,
promovendo maior interpenetração de gêneros ou tendendo a um hibridismo genológico, o que
confere maior complexidade aos personagens e às relações travadas entre eles e às indagações do
narrador diante dos eventos.
O quinto capítulo dedica-se à análise de Húmus, proposta artística mais revolucionária de
Brandão ou o auge do seu projeto estético revelador de uma evidente tendência expressionista.
Nela se observa uma intensificação do processo de fragmentação estrutural e discursiva, num texto
que se escreve como um diário; povoa-se de figuras fragmentadas e complexas e não mais
personagens canônicos; em que se verifica uma ruptura da cadeia dos acontecimentos e não mais
15
uma diegese coesa e seqüencial; e em que espaço e tempo devoradores se sobrepõem aos
personagens.
Nessas narrativas, observa-se que as digressões de um narrador lírico, cada vez mais
freqüentes e longas, sobrepõem-se à trama, esvaziada de grandes acontecimentos, ou submetem a
diegese às reflexões filosóficas acerca da condição humana, do individualismo, das novas formas
de opressão e de exploração e das fronteiras entre sanidade e loucura, cada vez mais estreitadas ou
relativizadas.
1.2- A obra de Brandão entre românticos e Vencidos da Vida
Ora, o certo é que desde a primeira obra publicada, Raul Brandão reflecte
marcas compósitas de modelos diversos e até contraditórios, nacionais e
estrangeiros, de Camilo, Eça e Fialho, a Victor Hugo, Baudelaire ou Flaubert,
numa espécie de anarquia de estilos e de gêneros, entre a crônica, o diário, o
conto, o poema em prosa, o que, na verdade prefigura outro modo de contar,
essencialmente fragmentário. ÁLVARO MANUEL MACHADO
Raul Brandão: para além dos modelos
É patente a necessidade de situar Raul Brandão entre o fim do século XIX e o começo do
XX, entre seus predecessores e contemporâneos, em face do ecletismo e da “anarquia de gêneros e
estilos” que atravessa sua obra, como bem lembra Álvaro Manuel Machado, em seu artigo Raul
Brandão: para além dos modelos (2000), que retoma e alarga discussões do seu ensaio Raul
Brandão entre o Romantismo e o Modernismo, de 1984.
A segunda metade do século XIX é marcada pela diversidade de correntes estéticas, pelo
embate entre elas, começando com a disputa entre os jovens realistas e/ou naturalistas (Antero e
Eça) e os românticos, conhecida como Questão Coimbrã; terminando com a concorrência entre os
representantes destas consolidadas tendências realistas-naturalistas, alguns dos quais conhecidos
como Vencidos da Vida, e inúmeros jovens defensores de novas tendências artísticas, entre elas a
simbolista e a decadentista, diligenciadas por escritores como Pessanha, Fialho, Junqueiro e
Brandão.
Segundo o professor José Carlos Barcellos, a segunda metade do século XIX é “um desses
momentos em que determinada cosmovisão começa a entrar em crise, em que começa a ruir o
edifício da civilização burguesa” (1985, p. 45). A primeira guerra mundial, de 1914-1918, foi “a
materialização brutal do fracasso de todo esse mundo” e representou a falência do sistema de
valores oitocentistas, pautado na ciência, na autoridade e na família. Na literatura portuguesa,
“alguns poetas percorreram o caminho, algumas vezes desesperado, dessa desagregação da
mundivisão da sociedade capitalista e burguesa, como Antero e Cesário, Camilo Pessanha e
Gomes Leal” (BARCELLOS, 1985, p. 46). Na prosa poética, sem dúvida, poderíamos dizer que
Raul Brandão também foi um deles, como lembra Vítor Viçoso: “Raul Brandão, sobretudo a partir
16
de 1895, (...) fez emergir uma perspectiva crítica, por vezes com acentos visionários, relativamente
aos valores materialistas e ao egoísmo burguês” (1999, p. 39).
O Romantismo considerado por Lowy (1990) como expressão artística revolucionária de
descontentamento com o mundo e com os valores burgueses e, contraditoriamente, considerado
por Barcellos como “expressão máxima dos valores burgueses” –, com sua egolatria, exacerbação
do individualismo e da subjetividade, por isso mesmo multifacetado, apresenta o eu-lírico ou o
narrador na prosa ou na prosa poética quase sempre como porta-voz da verdade, “a última
instância de referência, o próprio critério da verdade, do bem e do mal” (BARCELLOS, 1985, p.
46). Mas, nas últimas décadas do século XIX na poesia de Cesário Verde, por exemplo –, o eu
poético não é mais absoluto como o dos românticos, mantendo “sempre uma postura de análise
[objetiva] do eu, da realidade e da interação entre esses dois elementos” (BARCELLOS, 1985, p.
47). Em Brandão, narrador e eu-lírico se fundem, numa instância subjetiva que se analisa e se
indaga, que analisa e indaga os acontecimentos, os espaços, os outros seres e as relações que todos
estes elementos estabelecem entre si. Trata-se da negação da possibilidade de uma verdade, em
favor da busca do conhecimento e da instabilidade em que, a partir desta negação, o sujeito é
lançado; de uma moderna relativização do saber, dos valores e, conseqüentemente, da priorização
do questionamento, da problematização em detrimento da exposição de respostas e verdades ou
soluções. Como ocorre na filosofia do fim do século XIX, na arte brandoniana “saber é, cada vez
mais, saber perguntar e não saber responder” (BARCELLOS, 1985, p. 48). Esse constante
repensar-se, problematizar-se e reformular-se provoca a fratura do eu, dividido entre inúmeras e
relativas verdades possíveis.
Os narradores que integram as obras de Raul Brandão, abismados com os dramas dos
humildes, lembram o “eu poético” de Cesário Verde, errante “a cismar por boqueirões”,
profundamente comovido com a miséria e com os dramas sofridos pelas “varinas”, calafates,
“mestres carpinteiros”, na segunda metade do século XIX. Paralelamente, segundo Seabra Pereira
(1981, p. 107), o “homem interior, novo tipo social” proposto por Antero, aborda “o problema
metafísico-psicológico” com desencanto, dor existencial, pessimismo e uma inclinação para o
sonho e para a morte, como formas de se ausentar da realidade insuportável e, mesmo admirando
as ciências, “firmar a inferioridade do seu valor em relação aos fatos da consciência humana e,
ainda, a primacialidade dos fenômenos morais e sociais” (PEREIRA, 1981, p. 107), como fazem o
Gabiru de Os Pobres e o de Húmus, ou os narradores brandonianos, nas digressões introspectivas e
especulativas.
1.3- A obra de Brandão e a transição para o modernismo
17
Apesar de biografias não explicarem criações literárias, no caso de Raul Brandão dados
biográficos podem colaborar para o entendimento de muitos aspectos da obra. Por isso, a seguir
explanar-se-á um pouco mais detalhadamente a participação de Brandão nesse período conturbado
de transição do século XIX para o XX.
No Porto, em Foz do Douro, no dia 12 de março de 1867, nasce Raul Germano Brandão ou,
simplesmente, Raul Brandão, como ficaria conhecido, no meio jornalístico e no meio literário do
Portugal do fim do século XIX e início do século XX. Bem cedo, por volta de 1885, ainda aos 18
anos, o jovem Brandão se lança à escrita, ingressando no curso universitário de Letras, que não
chegaria a concluir, e iniciando sua participação em jornais, como O Andaluz. Aos 21 anos de
idade, em 1888, ingressa na carreira militar, da qual somente se afasta em 1912, reformado, aos 44
anos. O cumprimento do serviço e a progressão na hierarquia militar, entretanto, não impediriam o
escritor de continuar, paralelamente e com força total, a produção jornalística e artística.
Em 1889, integra e ajuda a fundar grupos artísticos e revistas, como a Boémia Nova e o
iconoclasta Os Insubmissos, acompanhando o nascimento de inovadores movimentos literários,
como o Simbolismo, através de manifestos lançados nestas e em outras revistas.
Publica, em 1890, o seu primeiro livro de contos, Impressões e Paisagens, ainda sob
alguma inspiração naturalista, mas com traços de decadentismo e certo misticismo, em que
demonstra a larga mundividência, revelando-se um atento observador do homem e da sociedade,
do seu momento histórico-cultural e da realidade circundante, tanto em relação à urbeonde, uma
vez adulto, passa a viver quanto em relação ao campo, no contato com a terra e no convívio com
a natureza, que pôde experimentar durante a infância no Douro e mesmo ao longo da vida adulta,
entre Lisboa e sua quinta nos arredores de Guimarães.
Em 1891, publica uma obra sobre Vidas de Santos: Virgem Maria (Mãe de Deus) e Santa
Isabel (Rainha de Portugal), iniciando incursões religiosas e historiográficas, que se repetiram
em diferentes momentos de sua obra. A incursão pela religiosidade cristã, mais especificamente a
católica, repetir-se-á em diversas oportunidades, em toda a obra do autor, talvez nem sempre tão
convicto de sua opção pelo catolicismo ou, daí para adiante, cada vez mais dilacerado e cada vez
menos ingênuo. O flerte historiográfico será retomado na segunda década do século XX, entre
1912 e 1915, com a publicação de três obras de ficção criadas a partir de acontecimentos
históricos, frutos de longa pesquisa, mas atravessadas de humor, de crítica e de farta imaginação.
São elas El-Rei Junot, A Conspiração de 1817: Quem Matou Gomes Freire e O Cerco do Porto,
pelo Coronel Owen.
Depois dessas obras literárias da juventude, integrantes de uma primeira etapa da obra de
Raul Brandão, até 1892, chamada de “não novista” por José Carlos Seabra Pereira (1981, p. 14);
pode-se notar uma “fase de expansão” (PEREIRA, 1981, p. 14), até o fim do século, com uma
18
crescente substituição dos traços realistas-naturalistas pelos traços que marcarão e serão cada vez
mais aprofundados na escrita madura do autor de Húmus. Esta segunda fase brandoniana será
chamada, em Os Nefelibatas, de “claro-escuro pesadelo”:
(...) claro-escuro pesadelo da sua outra fase, a fase tensionada e alucinada da sua
Nevrose, a paleta macabra de todos os Sabbats da Cor, verdes repelentes de cancros,
esbeiçados de cristas roxeadas, de sinistras prostitutas que a Gangrena e a Lepra roeram,
tintas de pus e de esgoto suando crime, chagas de lampiões, sangrando no mistério
formilhante de larvas dos becos crivados de facadas e uivos de estupros. (PEREIRA, 1981, p.
30)
Os traços realistas-naturalistas da primeira etapa “não novista”, entremeados de traços
decadentistas, de misticismo e de alguns embriões de sua literatura vindoura, serão gradativamente
substituídos, então, pelo mergulho na psicologia dos personagens e narradores, nas relações
interpessoais e sociais entre eles, nas relações de poder, nas de trabalho, nas políticas e
econômicas; bem como pelo mergulho na existência humana, pela problematização do ser, de sua
essência, da vida e da morte e pelos questionamentos filosófico-existenciais, posteriormente
retomados pelos existencialistas, sobretudo os agnósticos, certamente mais céticos diante das
religiões e religações com o sagrado do que Raul Brandão.
Nessa ocasião, Brandão começa uma nova etapa de sua vida, ao lado de Júlio Brandão e de
outros companheiros, com o pseudônimo de Luís de Borja. Encabeça o grupo anarquista Os
Nefelibatas, no qual participou ativamente, colaborando na idealização, no projeto, nas publicações
e até na veiculação de revolucionários panfletos. Simbolistas e decadentistas convictos, além de
anti-parnasianos e anti-realistas, Os Nefelibatas se conclamavam como “os anarquistas das Letras,
os petroleiros do Ideal, ateus do Preconceito e da Opinião Pública”, ideais que, sem dúvida,
marcariam decisivamente a obra do jovem escritor de História dum Palhaço e do maduro artista
compositor de obras como A Farsa, Os Pobres, Húmus e O Pobre de Pedir. O opúsculo Os
Nefelibatas, termo cuja etimologia reflete as atitudes daqueles que o assinam, na prática foi um
manifesto artístico e um pastiche decadentista português, liderado por Brandão no cenáculo
portuense. O grupo inicia oficialmente a “geração de 90” e o opúsculo que os apresenta foi pautado
no pensamento brandoniano.
Com o passar do tempo, Brandão supera o excesso de nefelibatismo, o “ensimesmamento
finissecular”, o ludismo e o esteticismo do primeiro momento decadentista. Passa, então, para uma
fase de maior “pendor ético social”, de uma obsessiva responsabilidade ética, de crítica ao
materialismo, de condenação ao egoísmo burguês dominante no fim do século XIX e no início do
XX e de interrogação sobre o “mundo à deriva”, em processo acelerado de “dessacralização”
(VIÇOSO, 2000, p. 39), como ensina Viçoso:
19
Da fase da originalidade “nefelibata” e do artificialismo “dândi”, enquanto estilo geracional, o
autor (Raul Brandão) transitaria para uma fase de uma obsessiva responsabilização ética e
fundaria a sua sensibilidade estética. Os seus textos, publicados a partir de 1893 no jornal Correio
da Manhã, reflectem um acentuado pendor ético-social e uma obsessiva interrogação sobre o
sentido de um mundo sem valores e em acelerado processo de dessacralização. Nele as chamadas
Questão Social e Questão Religiosa fundem-se numa mesma problemática que passará a dar
conteúdo às suas obras. em História d’um Palhaço (1896) ultrapassado o efémero naturalismo
das suas narrativas de Impressões e Paisagens (1890) podemos detectar uma projecção desta
temática numa tensão entre a idealidade “adolescente” (o sonho) e o pragmatismo do princípio do
real, assente numa mentira fundadora a legitimar uma sociedade iníqua. O protagonista K. Maurício
tipifica simultaneamente um onirismo decadente específico do ensimesmamento estético finissecular
(o romance do eu), uma centração metafísica no tema da morte e um embrião de rebeldia infrutífera
contra as forças sociais corruptoras. (VIÇOSO, 2003-2006)
No fim do século XIX e início do século XX, ainda participa como jornalista em O
Imparcial, onde fala sobre a reforma da Escola do Exército; em O Dia, onde publica reportagens
sobre hospitais, cadeias, manicômios, pescadores e gente humilde; em O correio da Manhã, onde
publica reportagens sobre os vícios e misérias da capital, artigos e ensaios de crítica literária, entre
1893 e 1896. Além destes jornais, contribui no Século, Diário de Notícias e Portugal-Brasil. Essas
experiências, sem dúvida, aproximam o escritor dos humildes e o sensibilizam para com a situação
em que se encontravam os humildes e todos os seus dramas pessoais; a violência, a miséria e as
mazelas sociais, que tão constantemente passaram a ser problematizadas na criação artística
brandoniana.
Com Júlio Brandãocompanheiro de Os Nefelibatas, amigo de uma vida e seu parceiro na
composição de textos jornalísticos, de contos e do drama A Noite de Natal (1894) –, mais tarde,
Raul Brandão lideraria, também, a “anarquista e iconoclasta” Revista de Hoje, que dava
prosseguimento aos ideais e trabalhos já manifestos em Os Nefelibatas. Para essa revista, escreve o
artigo O Anarquismo, publicado em duas partes: a primeira, em dezembro de 1894, e a segunda
parte ou Conclusão, em janeiro de 1895. Nelas endossa a sua inclinação reformista e
insubordinada em termos estéticos, políticos e sociais, como também seu ceticismo em relação à
felicidade, seu pessimismo quanto aos rumos tomados pelas sociedades modernas e pela
Humanidade e à “falsa promessa de igualdade da Anarquia que, como todas as teorias de
felicidade do homem, é um absurdo” (REYNAUD, 2000, p. 25-26).
A História dum Palhaço, lançada em 1896, ainda embrionariamente, inicia a construção
dessa longa estrada de Raul Brandão como “perscrutador de enigmas e de mistérios que sempre
atraíram o seu espírito inquieto e preocuparam a sua consciência de homem profundamente
religioso” (CASTILHO, s/d, p. 9). O livro reúne uma série de colaborações de Brandão para o
Correio da Manhã: Excerto dum diário e O Palhaço, de Fev/1895; Cartas de K Maurício, de
Mar/1895; A Cidade (1ª Parte): Palavras do Pita, de Fev/1896 e Maria, de Jul/1896. O texto
narrativo publicado, como outras obras que a ele se seguiram, apresentava “fragmentarismo
estrutural, uma índole fantástica e nevrótica de figuras e ambientes”, “a revelação de um mundo
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marginal e miserável de par com a carnavalização da narrativa, pessimismo, a idéia de que a morte
exalta e purifica” (REYNAUD, 2000, p. 27-28), várias digressões especulativas e incursões
metafísicas. Essa obra foi, injusta ou exageradamente, considerada por Guilherme de Castilho, no
confronto com outras grandes obras narrativas do autor, como “uma frustre ficção” a cobrir “as
incursões do especulador metafísico” (REYNAUD, 2000, p. 9).
Em 1897, casa-se com aquela que será a sua companheira de toda a vida, Maria Angelina,
para quem havia publicado um conto no jornal O correio da Manhã, intitulado Maria, em 20 de
junho de 1896. Viúva em 1930, viverá até os 95 anos, até 1973, zelando sempre pela memória do
escritor e afirmando que ele “era alegre e bem humorado, o contrário do que sua obra deixa supor”
e que “quando pensava em escrever um livro andava largo tempo a meditar” (MARQUES, 2000,
p. 255).
A pintura, praticada por Brandão até o fim de seus dias, paralelamente à literatura, ao
jornalismo e à carreira militar, também exercerá influência decisiva sobre a escrita do artista,
legando-lhe o gosto pictórico, o trabalho nada ingênuo com as cores em suas obras literárias e o
aproveitamento de tudo o que as estéticas pictóricas poderiam oferecer-lhe, como atesta o poeta,
pintor e crítico Mário Cesariny, no Cinqüentenário da Morte de Raul Brandão:
(...) são pintura descritiva muito do melhor dos seus livros solares, os que escreve
sobre os pescadores, a costa, as ilhas, o mar, o céu. Guilherme de Castilho para os tons de
verde descobre treze... Para azuis, sete... Representam decerto o banho lustral e a
contrapartida da obra negra, nocturna, onde o écran psíquico ignora a cor e fica no desenho,
no traço escuro e escuro lancinante. Como nota de novo Guilherme de Castilho, são de
ordem plástica os apontamentos que faz (...) (CESARINY, 1980, p.12-13)
As formas, as cores e os tons, na obra narrativa de Brandão, comunicam, simbolizam e
significam mais e vão muito além do mero gosto descritivista, do enriquecimento de detalhes e do
adorno vazio. Também não refletem pura e simplesmente estados de espírito, como espelhos dos
personagens ou do narrador. Antes, favorecem e propiciam o mergulho mais profundo na
interioridade das paisagens, dos ambientes, das relações, dos seres em sua individualidade ou em
seu individualismo. Mesmo nas obras noturnas, em que o “desenho” é mais detalhado e a
variedade de “tintas” é bem menor com tons de cinza, de verde e, por vezes, de roxo e de ouro,
contrastando com o negro e com o branco –, a cor é muito representativa e significativa.
Sem dúvida, a preferência e as afinidades de Raul Brandão recaem sobre o universo
artístico e o das letras: pintura, literatura, crítica, jornalismo e história. Da mesma forma, a maior
parte daqueles aos quais admirava, seguia como exemplos de vida e queria ao seu lado eram os
poetas, músicos, escritores, pintores, sonhadores, missionários, “doidos”, atônitos e ignorados,
como Columbano e Pascoaes, segundo afirmara em diversas oportunidades o próprio Brandão.
Prova disso está no Volume I das Memórias, no qual afirma que os homens que mais lhe
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interessaram na existência foram: D. João da Câmara, “poeta e Santo”; Correia de Oliveira, “um
chapéu alto e nervos, nascido para cantar”; Columbano e a sua “arte exclusiva” e “alguns
desgraçados que mal sabiam exprimir-se”, além de “muitos ignorados e felizes”, “meio doidos e
atónitos”, o Nápoles que “ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornais”, um outro que “andava
roto e dava tudo aos pobres”, afirmando que “o homem é tanto maior quanto maior quinhão de
sonho e de dor lhe coube em sorte”.
Assim como na prosa, também no teatro Brandão tenta fugir à mesmice vigente em
Portugal. Estréia em Lisboa, no ano de 1899, com A Noite de Natal, drama escrito em parceria com
Júlio Brandão, apenas o primeiro dos muitos que compôs: O Maior Castigo e O Triunfo (1902);
Teatro (1923), que inclui peças como O Gebo e a Sombra, O doido e a morte (farsa) e O rei
imaginário (monólogo); Eu sou um homem de bem (monólogo, 1927); O Avejão (episódio
dramático, 1929) e Jesus Cristo em Lisboa - Tragicomédia em sete quadros, (com Teixeira de
Pascoaes, 1927) (REYNAUD, 2000, p. 54). Para Seabra Pereira (1981, p. 105), A Noite de Natal
conseguirá ser legitimamente portuguesa e, em simultâneo, participar de uma universal expressão
literária”, entre Realismo-Naturalismo, Neo-Romantismo e Decadentismo, mas alheia à
experimentação de teses, com certo “apreço pela tradição popular, um folclorismo”, atravessada
pela pesquisa histórica, etnográfica e lingüística e apresentando, numa ironia trágica, a insatisfação
diante das camadas média e alta da sociedade liberal, do regime urbano, do tecnicismo reinante, da
mesmice e do conservadorismo, que gera niilismo e uma vontade de evasão, ora ruralista ora
alucinatória ora suicida, entre personagens grotescos e enigmáticos. que se ressaltar que a
experiência teatral de Brandão influenciou muito a sua escrita romanesca atravessada de
monólogos e marcas dramáticas –; ou melhor, as experiências romanescas e teatrais trocaram
influências, que suas considerações sobre o teatro também se aplicam à narrativa (COELHO,
1982, p. 122-123).
O Padre, de 1901, segundo Angelina, a esposa de Brandão, foi “escrito na altura do
manobrado e explorado covardemente caso Calmon” (MARQUES, 2000, p. 256), envolvendo a
filha de um Cônsul brasileiro, cuja presença numa igreja foi recusada pela família Calmon. No
livro percebe-se certa revolta contra a Igreja e seus integrantes, contra os dogmas católicos, os
encaminhamentos hipócritas, a falsidade e a superficialidade das relações que envolvem a todos
nesse sistema, bem na esteira dum Eça de Queirós, embora Brandão fosse católico, conforme anota
Angelina. Apesar de não adotar o ateísmo de Nietzsche, observa-se nesta obra um desgosto em
relação ao Catolicismo e à sociedade cristã. Nota-se também já certa consciência da
impossibilidade de uma pura crença nos dogmas católicos, imposta pelo conhecimento, pelo olhar
aguçado e demiurgo, que problematiza e critica, e pela ausência de ignorância ou do traço de
ingenuidade, necessário à autêntica do crente. Esse questionamento ao Catolicismo ou ao
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Cristianismo tende a ganhar corpo e a tornar-se mais complexo nas obras seguintes, como em
Húmus, abrangendo especulações acerca da existência humana e da existência de Deus, da vida
terrena, da morte e do pós-morte. Nessa obra, uma forte crítica à perversão de valores, de
dogmas e de paradigmas de comportamento, descumpridos pelos mesmos sacerdotes hipócritas
que os pregam aos fiéis, nos cultos, como acontece em O Crime do Padre Amaro, de Eça de
Queirós:
Para combater este estado de coisas, o que era necessário, dirás? Que o padre fosse
uma grande figura, que, nesta sociedade borrada de oiro e de gozo, protestasse em nome do
espírito contra a matéria. E em lugar disto o que vemos? O padre eleiçoeiro, o padre janota,
mamando charutos à porta das tabacarias, o padre intriguista, fazendo cerco às viúvas ricas.
Temo-lo de todas as castas, ignóbil, rindo da religião, pândego de chapéu ao lado. Há-os
amigados, criando mulheres e filhos, jogadores correndo as feiras, bêbados e devassos, padres
que são a ignomínia, babujem dum mar de beleza e sacrifícios. Serão a excepção? Talvez
mas em que número!... E pior do que estes, o padre banal e charro, o padre que confessa,
absolve e baptiza, como um director de secretaria despacha. O padre é ateu. O padre não
compreende a Igreja nem a ama. Para ele o sacerdócio é um ofício. Engorda. (BRANDÃO,
1982)
A crítica e o descrédito em relação à instituição religiosa e a seus integrantes cresceu
durante a segunda metade do século XIX. No romantismo, em Amor de Perdição, de Camilo
Castelo Branco, o comportamento de certas religiosas que vivem em desacordo com os votos que
assumiram, contrasta com o de outra casta de freiras mais piedosas, que se compadecem e ajudam
a protagonista. Em Eça, a ironia e o humor denunciam a corrupção extrema do sacerdócio de
forma melancolicamente irônica, enquanto, em Raul Brandão, a seriedade da condenação revela
uma forte revolta e um grande desencanto diante das atitudes do padre, que faz da religião uma
mera profissão e uma fonte de renda.
As atitudes desses contraditórios “padres ateus” parecem despertar no narrador
brandoniano um profundo sentimento de orfandade, de desamparo, de inconformação fatal e
fatalista, agônica diante da irremediável perda desta porta de religação com o sagrado (que deveria
ser a religião e a religiosidade, mas que não é) ou até da irremediável perda de qualquer
possibilidade de religação com o sagrado. Aliás, o desencanto dilemático diante da religião será
problematizado sob esses e outros aspectos em obras como A Farsa e Húmus, através de diferentes
figuras de beatas e de padres que aparecerão em meio a um niilismo crescente, encaminhando a
existência para o abismo do nada essencial, de onde vem e para onde retornará toda a matéria.
Em Os Pobres, livro escrito entre 1899 e 1900 e publicado em 1906, estreitar-se-á o olhar
sobre as figuras humildes, mesquinhas, desgraçadas, miseráveis, marginais ou marginalizadas.
Remexem-se, num “enxurro” de pobreza, figuras ou momentos que suscitam “assombro,
esplendor, pavor, enigma, deslumbramento”, “histórias diversas que se resumem numa história
única: a da sua (narrador-autor) alma, transitando almas, a da sua vida, percorrendo vidas”, de
forma “espiritual, dilacerada e furiosa, demoníaca e santa, blasfemadora e divina”, no dizer de
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Guerra Junqueiro (2001, p. 4-5). Por trás dessas histórias patéticas de almas, desse “fervedoiro de
vidas insondáveis que o tempo não esgota”, em que “tudo vive, o homem, a fera, a rocha, o lodo, a
água, o ar, braseiros de mundos, aluviões de nebulosas”, nota-se, por um lado, uma voz que
demonstra profundo desprezo pela sociedade, pelo estado de coisas que conduziram a este
“enxurro” de pobreza; e uma inconformação desgostosa e desesperançosa. Por outro lado, também
nota-se ternura, simpatia, complacência em relação aos humildes, observadas em obras anteriores,
como em O mistério da árvore, por exemplo; e em obras posteriores, como na “santificação” da
tríade feminina Joana, Sofia e a Cega, de A Farsa; nas Memórias, de cujo III Volume se extraiu
um dos fragmentos que figuram como epígrafe neste trabalho; e em Os Pescadores. Essa ternura
revela uma poética da afetividade em relação aos pobres, que contrasta com a decrepitude física
dos mesmos e do cenário físico e social, configurando a exploração da técnica expressionista do
confronto entre claro e escuro.
A Farsa, narrativa de 1903, é povoada pelo patético e marcada pela tragicidade. Para
Barcellos, aliás, na obra de Brandão “a degradação humana é explorada em termos patéticos e esse
mesmo patético procura elevar-se à categoria do sublime” (1997, p. 28). Uma morte desencadeia o
início da trama e, fechando o livro, loucura e várias mortes encerram-na. Nessa obra, a morte é um
dos motivos centrais e aparece com múltiplos significados: como fim inexorável de todos os seres
e anulação de todos os sonhos e existências; como fonte de vida, uma vez que o ganha-pão do
Anacleto é a venda de caixões; como salvação para o sofrimento ou como ritual de passagem para
outros mundos transcendentes, no caso da cega, que deseja a morte para livrar-se da carne e do
cansaço, para descansar e recomeçar algo melhor; ou como prova da inutilidade da ação e da vida,
como para o Antoninho, que morre sem concretizar nenhum dos sonhos da mãe ou seus. Também
em A Farsa, como em O Padre, a máscara oculta cada face vil, cada sonho mesquinho, cada
egoísmo pérfido, sob uma fachada de humildade e de retidão de caráter.
Entre 1906 e 1912, época politicamente conturbada em Portugal, de transição entre a
Monarquia e a República, Brandão não publica nada e passa a “dedicar-se a uma actividade de
espírito aparentemente [muito] diferente da que vinha seguindo”, no dizer de Guilherme de
Castilho em sua Nota Introdutória à edição de El-Rei Junot (CASTILHO, s/d, p. 9). Em 1912,
publica El-Rei Junot, fruto de um longo período de estudo e pesquisa historiográfica. Este seria o
primeiro livro de uma trilogia de obras de ficção com traço “historiográfico e belicoso”, voltada
para o relato de certas batalhas, entre o romance histórico e o ensaio, entre História (só os
personagens Junot e Gomes Freire são históricos) e a ficção (outros personagens e eventos),
“conciliando o dramático e o grotesco, humanizando personagens e acontecimentos”, com
“interrogações retóricas no meio do texto, interpelações ao leitor, para chamar atenção a aspectos
esquecidos ou incômodos” (MARINHO, 2000, p. 274). Na mesma esteira de El-Rei Junot,
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seguem-se as publicações de A Conspiração de 1817: Quem Matou Gomes Freire, no ano de 1914,
reeditada em 1917 com o título de 1817 A Conspiração de Gomes Freire; e O Cerco do Porto,
pelo Coronel Owen, em 1915.
Ainda durante este período de estudos e publicações que dialogam com a história, sabe-se
que estava em processo a criação de Húmus, pois Teixeira de Pascoaes, em 9 de novembro de
1914, menciona-o em carta a Brandão: “Já sei que o Húmus é admirável” (VILHENA, 1994, p.
49). Em 1917, vem a público o Húmus, sem dúvida a obra de Raul Brandão mais celebrada pela
crítica. Uma obra difícil de se resumir, em face de sua profunda raiz na especulação acerca da
condição e da existência humana, em detrimento da diegese, sem compromisso com a escrita
tradicional ou com os elementos estruturais da narrativa canônica.
A inquietação indagadora de Húmus e a leitura dos eventos históricos se encontram com o
talento e a linguagem literária do ficcionista em suas Memórias, publicadas no ano de 1919 (apesar
de iniciadas bem antes), com a publicação do volume I, em que o contador de casos Raul Brandão
“um testemunho” (mais do que o seu testemunho), unindo os eventos históricos, o lirismo e a
ficção, numa tentativa de fixar o tempo que passa. Preocupa-se muito mais com o registro das suas
próprias impressões sobre os acontecimentos do que com o registro da história. Problematiza,
critica e opina mais do que relata o acontecimento puro e objetivo, como, aliás, é comum na escrita
diarística e na memorialista: “Só o historiador poderá criar mais tarde, com documentos e
memórias, e certa aparência de verdade, o romance da nossa vida. Nós, por ora, não sabemos nada,
nem mesmo dar resposta plausível às perguntas que nos obsidiam...” (MI, p. 209)
(...) De tudo o que se passou comigo conservo a memória intacta de dois ou três
rápidos minutos. Esses sim: teimam, reluzem no fundo e inebriam-me, como um pouco de
água fria embacia o copo. de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira
hora (...) O resto esvai-se como fumo. (...) Passou depois por mim o tropel da vida e da
morte, assisti a muitos factos históricos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao
contrário, este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquela
laranjeira que, de velha e tonta, deu flor no inverno em que secou. O resto usa-se hora a hora
e todos os dias se apaga. Todos os dias morre. (MI, p. 8-9)
As Memórias de Raul Brandão, em seus três volumes (o I de 1919, o II de 1925 e o III de
1933) apresentam-se sob o formato de diário, sem preocupação com a seqüência cronológica,
explorando, por vezes, os mesmos recortes temporais em diferentes capítulos, sob vários enfoques,
e fazendo ora avanços ora recuos no tempo, como ocorre também em Húmus.
Para além do evidente relato crítico de inúmeras peripécias e eventos relacionados à
historiografia e à sua biografia, nas Memórias, Brandão não se furta ao lirismo e à digressão, numa
linguagem nada objetiva, deixando-se atravessar assumidamente pela ficção, ainda que de caráter
confessional:
Andava o Justino Montalvão na diplomacia, se me lembro secretário de legação em
Paris, quando, voltando ao Porto, encontrou, por acaso, na rua aquela linda varina (...)
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- Tu que fazes?
- Casada!
- E o homem?
- Ficou em Lisboa. Vim a Matosinhos e vou à Costa Nova ver uns parentes e por
causa duma herança.
Olharam um para o outro com saudade e não se deixaram nesse dia nem no outro.
- Tenho de ir...
Mas o Justino não queria que ela partisse (...)
- Vou contigo e passo por teu homem.
Caso resolvido. (...)
- Foi o tempo mais feliz da minha vida dizia-me ele dois anos, velho e
ministro não sei onde...
Os meus amores foram sempre doutra casta e o meu primeiro amor foi mais puro e
mais lindo. (MIII, p. 163-164)
Às memórias junta-se, portanto, a linguagem literária do ficcionista, (re)contador de casos.
Neste fragmento, por exemplo, reconstrói-se um caso não como memória de primeira mão, mas
como citação do relato feito por outro, portanto memória de segunda mão: “Foi o tempo mais feliz
da minha vida dizia-me ele dois anos, velho e ministro não sei onde...”. Assim, as
memórias ficcionalizam-se para (re)construir lembranças de terceiros e de outros tempos, nesses
capítulos sem datas, constituídos de vagas reconstruções e reorganizações de fatos passados em
diferentes épocas. Raul Brandão é um ficcionista convicto da impossibilidade de se fazer uma
escrita histórica imparcial. Não se furta à ficção; dela não se esquiva e nem se envergonha, que
ela naturalmente invade o seu diário e as suas memórias. Por outro lado, critica o exercício de
poder e a opressão que se encontram na escrita histórica ou na história oficial, reconhecendo com
bastante lucidez o quanto “o fato” é inevitavelmente criado pelo escritor:
(...) Sei muito bem que a história viva tanto se faz com a verdade como com a mentira
se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é
preciso criar-lhe primeiro a atmosfera propícia. “Algumas palavras sob caricaturas grosseiras
dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, à
rainha, ao conde de Artois, a Madame de Lambelle, ao poeta da fome, aos vampiros que
sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda que ele acha útil saiu a grande revolução”
diz um historiador. (...) (MI, p. 21-22)
Seguem-se daí a consciência da impossibilidade de uma verdade pura ou absoluta em
qualquer obra humana e a consciência de que a ficção é uma força latente, pronta a se manifestar a
qualquer momento. Aliás, o que, em parte, a escrita diarística demonstra, por si, na busca das
memórias, das histórias por trás da História.
As Memórias se escrevem na tentativa de fixar o impossível de se fixar, os acontecimentos
fugazes, na agônica tentativa de (re)frear a morte dos momentos, da vida e das próprias memórias,
como se pode constatar no fragmento: “A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e
mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos
minutos” (MI, p. 8). Assumidamente, Raul Brandão valoriza mais as inflexões poéticas ou
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existenciais, passíveis de reflexões e introspecção, do que os acontecimentos históricos, mais
rapidamente esquecidos.
Quase sempre a ficção brandoniana caminha entre interrogação e incredulidade, entre a
idéia de “imortalidade da alma” e a inquietação acerca da existência ou não de Deus. A esposa de
Brandão, após a morte do escritor, lembra que “o pensamento de Deus e da morte, torturava-o
sempre”, mesmo quando afirma que o marido “nunca deixou de ser católico” e que nos
“derradeiros instantes passou a recitar o Padre Nosso, espaçadamente, como se estivesse a
meditar” (MARQUES, 2000, p. 257), um hábito seu. passagens da obra, em que questiona a
existência de Deus ou, pelo menos, questiona-se em relação à existência de um Deus tal como é
configurado pelo cristianismo: “Ilusão, mentira? Mas eu é que faço a verdade e a mentira. Dou-
lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode não existir. Com uma
mentira posso forjar outro mundo. Arredemos de vez este suor frio” (H, p. 78). também
inúmeras passagens em que questiona certas crenças e dogmas católicos, como a “vida eterna” no
“céu”, que se atinge pela abnegação ou pelo arrependimento sincero: “Viver não causa
arrependimento. não viver causa. Viver não medo, morrer dá, acabar, e a brevidade da vida
(um momento) e a incerteza-impossibilidade da crença na vida pós-morte” (MI, p. 7-8). No
entanto, esses são questionamentos e inquietações de alguém que gostaria de crer que uma
existência após a morte, mas não encontra nenhuma doutrina plausível em que possa crer.
Por outro lado, nem sempre parece ser tão cético como afirma, ou niilista tão convicto, nem
parece ter conseguido se livrar da doutrina católica em que foi educado:
Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não
me arrependo, nunca me arrependi. Perdia as mesmas horas diante do que é eterno, embebido
ainda neste sonho puído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo
desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido,
até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei nem me importo se creio na
imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir
um momento a este espetáculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o
para a cova, para remoer durante séculos e séculos, até o juízo final. (MI, p.7, grifos nossos)
A sensação de desamparo, causada pela constante inquietação, faz com que,
controvertidamente, por vezes desmereça a doutrina católica e, em outras vezes, recorra a ela,
que está enraizada no seu imaginário, que foi criado e educado dentro dela. Mas, nunca se
curvou resignada ou passivamente diante do Catolicismo; pelo contrário, a crítica aos dogmas e
costumes católicos sempre aparece em sua obra, não se resumindo ao que se constata em O Padre.
A crítica não afasta Brandão do sagrado, não o torna materialista; apenas problematiza seu
misticismo e dilacera seu ser, lançando-o cada vez mais em busca desesperada, melancolicamente
desesperançada, mas incessante por respostas, antes atestando sua necessidade de (re)ligação
religiosa, como mostra o fragmento extraído do seu último volume de Memórias: Vale de Josafat,
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publicado apenas em 1933, quase três anos após a sua morte, também pela Seara Nova: “Ou a vida
é um acto religioso ou um acto estúpido e inútil.” (MIII, p. 9). O que se observa é uma busca de
sentido para a vida, a fé numa crença superior ou uma busca de alternativas religiosas para além do
cristianismo contestado, saturado e alquebrado.
Também no terceiro e último volume de Memórias: Vale de Josafat, observa-se uma forte
presença da Natureza, com a qual convivera fortemente na infância e da qual nunca se afastara
totalmente, nem durante a vida adulta, dividida entre a urbe e sua quinta nos arredores de
Guimarães. Mais do que uma forte presença da Natureza, observa-se uma Natureza forte e
preponderante, por vezes devoradora, como em Húmus; por outras, redentora, (re)humanizadora,
salvadora do ser, do cidadão e da pátria.
Uma, duas, três vezes a Natureza me salvou. Da última apelei para ela num desespero.
Não a vinha que plantei me pagou generosamente em frutos como me ensinou muitas
coisas que ignorava. Deste pedaço de terra, senhor José, a mulher, a filha e os moços e eu
próprio tiro o essencial para a vida. (MIII, p. 10)
Mas essa mesma Natureza que oferece um contato revitalizador com o ser, desumanizado
no viver urbano, também aparecerá como possível instrumento de exploração e de opressão dos
humildes. Ainda é uma Natureza forte, porém manipulada, pervertida pelo homem, pelo poderoso
e usada contra as massas de humildes explorados:
Levam horas a comer. Comer para o lavrador, que sabe o que lhe custa o pão, é um
acto religioso. Moem e remoem devagar devagar o caldo e a broa, com o respeito de nossos
pais diante da mesa posta.
(...) A terra pesa sobre ele e revestiu-o de cascão, a terra secou-o. Vêm os que andam
no peditório de boi, ou os pobres à porta rezar pelas almas (...) (MIII, p.12-13)
O contato do lavrador com a Natureza é de respeito, de temor e de admiração, mesmo que a
Natureza seja usada como arma para castigá-lo. O lavrador respeita a Natureza até porque ainda
não (ou nem sempre) se conta do estado de opressão e de exploração em que se encontra
como a Joana de A Farsa ou a de Húmus, que são iguais na alienação julgando-se parte de um
ciclo natural. E, mesmo quando o personagem se dá conta da dominação e percebe que o homem é
o agente de desconcerto, o que pretende é simplesmente alienar-se do sistema, como o Gabiru, ou
manter o sistema de opressão e galgar ao posto de poder, como pretende a Candidinha, que se diz
elite decaída e se julga melhor do que os outros pobres.
O olhar terno que lança para a natureza é um traço neo-romântico em Raul Brandão,
segundo Seabra Pereira: “O gosto do exótico, no tempo e no espaço, é constante, como uma das
várias formas tomadas pela evasão” (PEREIRA, 1975, p. 51); como também o é essa ternura e
exaltação para com o humilde, que reaparecerá e será explorada, futuramente, na obra de alguns
escritores neo-realistas, como Manuel da Fonseca, segundo José Carlos Barcellos, em seu artigo
“Névoa: resgatando a humanidade dos humilhados e ofendidos”, no qual afirma que no “interesse
28
de Manuel da Fonseca por personagens que estão nos últimos graus de miséria, marginalizados
pelo sistema socioeconômico, reconhece-se, com bastante clareza, o influxo de Fialho de Almeida
e Raul Brandão” (1997, p. 28 e 32).
É evidente que, na obra de Brandão, ainda não uma pretensão revolucionária de cariz
marxista, como ocorrerá nas obras de muitos de seus sucessores neo-realistas que, através da
denúncia da opressão, buscam conscientizar o leitor da necessidade de uma revolução. É
importante assinalar que, ainda que Brandão tenha criado sua obra com projeto estético mais
universal e mais voltado para a indagação da existência, bem antes do movimento neo-realista se
consolidar, em fins de 1930, acompanhando apenas os primeiros passos do movimento, não se
pode negar que, na esteira dum Cesário Verde e dum Guerra Junqueiro, um compadecimento
para com as figuras humildes e uma ojeriza pelos interesses de elites em muitas obras de Brandão,
apesar de não apostar em utopias ou saídas revolucionárias para o povo
1
.
Aliás, em Brandão, essa simpatia e essa comoção para com os humildes se faz acompanhar
de um descrédito diante da possibilidade de mudança social, bem de acordo com a postura
decadentista:
O que é preciso é criar quanto antes novas élites. Diga-se tudo: as nossas últimas
convulsões são uma luta inconsciente de sangue que procura um ideal e não encontra. A
maior tragédia passa-se na obscuridade e no silêncio, entre fantasmas que se querem impor,
para viverem outra vez... Para os vencer e dominar, caminhando, não para o ideal antigo,
mas, ao menos, para a mercearia bem ordenada, de que falava Junqueiro, é necessário criar
rapidamente novas élites. Não élites que nos subjuguem mas élites que nos conduzam para
a beleza e para a justiça... (MIII, p. 276, grifos nossos)
O máximo de pretensão revolucionária que se pode encontrar nas Memórias, como em toda
a escrita brandoniana, é, a um tempo, uma elitista e desiludida elucubração (nem sequer
proudhoniana, que este tinha na posse e no trabalho, em detrimento da propriedade
improdutiva, como solução para a sociedade) sobre a possibilidade de criação de uma “nova elite
bem-intencionada”, de antemão massacrada pela certeza de que ideais e perfeições (situações e
sociedades ideais) são inviáveis: “A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais
nada...” (MI, p. 8). O sujeito parece petrificado, imobilizado diante do mundo e da vida, efêmeros e
imperfeitos, tamanho é o niilismo finissecular na obra de Brandão.
Em 1921, na fundação da Seara Nova, grupo (e revista) de escritores que integrariam mais
tarde o Neo-Realismo português, Raul Brandão publica um capítulo de suas Memórias: Sombras
Humildes. No ano seguinte, participa novamente da revista, publicando a refundição da História
dum Palhaço.
1
A aproximação proposta neste trabalho entre neo-realistas e Brandão se apenas em termos de um certo
“miserabilismo testemunhal”, notado por Machado (1984, 126-129), e de uma simpatia pelos humildes, explorados e
resignados, apontado também por Barcellos (1997, p. 32) em “O herói problemático em Cerromaior: subsídios para o
estudo do Neo-Realismo português”.
29
O romance Os Pescadores é um dos poucos “livros solares” de Brandão, “onde se
manifesta o seu impressionismo atlântico”, segundo Reynaud (2000, p. 51), prosa poética,
carregada nas tintas, na minúcia descritiva pictórica. O livro se revela quase uma crônica das
aventuras de figuras humanas humildes em estreita interação com a natureza atlântica e em suas
relações, nem sempre tão humanas, denotando um vasto contato e conhecimento sobre a vida dura
do trabalhador do mar, o que mostra, mais uma vez, a larga mundividência brandoniana e a
incessante comoção provocada pelos humildes em suas desventuras. Segundo Manuel Mendes, Os
Pescadores seriam o primeiro livro de uma série vasta de obras sobre “a vida humilde do povo
português” (aliás, tendência observada em obras anteriores), escrito num período republicano
marcado pelo desencanto quanto aos rumos do país:
Com ele pensou dar início a uma vasta obra panorâmica, que intitulou A vida humilde
do povo português, a que se seguiriam os lavradores, os pastores e os operários. Do
ambicioso plano ficou este volume, muito embora houvesse ainda anunciado que uma
segunda parte lhe daria continuidade e conclusão: A história humilde do povo português. O
que teria sido, no seu conjunto, essa obra grandiosa, dá-nos o presente volume uma idéia.
Inicialmente, um hino à beleza da terra e do povo, depois a história evoluída dos seus
costumes, dos seus trabalhos, das suas lutas. (MENDES, 1956, p. 16)
No ano de 1926 publica A Morte dum Palhaço e o Mistério da Árvore, uma edição
refundida da História dum Palhaço, de 1896, reorganizando as narrativas e fazendo “substanciais
supressões”, de forma que “cada uma das figuras principais ganhasse maior consistência dentro
das frágeis histórias das suas vidas fracassadas, onde o sonho não passa de uma quimera dolorosa”
(REYNAUD, 2000, p. 29). Além dessa, publica a obra inédita As Ilhas Desconhecidas: notas e
paisagens, que consistem em “notas de viagem, quase sem retoques” sobre os Açores, visitados
por Raul Brandão no verão de 1924:
Este livro é feito com notas de viagem, quase sem retoques. Apenas ampliei um ou
outro quadro, procurando não tirar a frescura às primeiras impressões. Tinha ouvido dizer a
um oficial de marinha que a paisagem do arquipélago valia a do Japão. E talvez valha... Não
poder eu pintar com palavras alguns sítios pitorescos das ilhas, despertando nos leitores o
desejo de os verem com os seus próprios olhos!... (BRANDÃO, 1926, p. 7)
Para Reynaud, a obra As Ilhas Desconhecidas: notas e paisagens está entre os poucos
“livros solares” de Brandão, ao lado de Portugal Pequenino, que escreveu com a esposa, alguns
projetos que não teve tempo de realizar no fim da carreira e Os Pescadores (REYNAUD, 2000, p.
51).
Na noite de 4 de Dezembro de 1930 morre Raul Brandão, depois de muito sofrimento,
segundo sua esposa, Maria Angelina Brandão, com quem escrevera Portugal Pequenino,
publicado nesse mesmo ano do falecimento do marido, “uma obra-prima da nossa literatura
infanto-juvenil” (REYNAUD, 2000, p. 55). Aliás, essa é uma das suas obras de ficção que, ao lado
das Memórias e da ficção histórica, com clara e textual referência à nacionalidade portuguesa,
30
constitui um projeto mais nacionalista de fim de carreira, não tendendo a universalização de
paisagens e personagens, como se verifica em outras obras do autor.
quase um ano depois da morte do escritor, em 1931, sairia a publicação de O Pobre de
Pedir, pela Seara Nova, obra em que, segundo Reynaud (2000, p. 52), “torna-se mais evidente a
presença do sagrado” ou daquela “transcendência de uma verdade com que o homem se harmonize
e se dignifique e se engrandeça” (FERREIRA, 1976, p. 191-192), referida por Vergílio Ferreira
como extensiva a toda a obra brandoniana. O narrador dessa obra é “um desdobramento parcial do
autor”, com sua “consciência burguesa”, e “a exploração obsessiva dum avassalador sentimento de
culpa” que o consome, “entre a consciência individual e a consciência social”, num tom de “auto-
acusação” e “dum valor objetivo de testemunho”, num “cenário biográfico”, para Reynaud (2000,
p. 52-53).
Apenas em 1984, muito depois da morte do seu autor e, também, bem depois da escrita do
prefácio para Os Pescadores, por Manuel Mendes, seria publicado o livro Os Operários. Segundo
Angelina, Brandão deixou, ainda, “rascunhado o romance Os Lavradores, que formaria trilogia
com Os Pescadores e um projeto de escrever Portugal Maior que seria sobre o espaço
ultramarino e na seqüência do publicado Portugal Pequenino (MARQUES, 2000, p. 256).
Ambos encaminham-se pelo projeto, referido pelo prefaciador Manuel Mendes e pela esposa de
Brandão, de escrever uma série de livros estritamente voltada para a abordagem da “vida humilde
do povo português”, projeto que nunca deixou de ser empreendido e cumprido em sua obra, ainda
que por vezes descrevesse sociedades de pobres mais universais, sem chancela exclusivamente
portuguesa e facilmente transposta a diferentes outras regiões pobres, para além do “Portugal
Pequenino”, dentro do “Portugal Maior” e do mundo.
Em 1987 publica-se, ainda, outro livro infantil, com texto de Raul Brandão, ilustrado por
Mário Botas, chamado O Senhor Custódio, sobre um certo ditador egoísta e opressor.
Assim, a obra de Raul Brandão reflete um desencanto e um descrédito em relação ao
cientificismo, visto como incapaz de dar conta de questões subjetivas, como a psique humana, aliás
pensamento corrente nessa época de Simbolismo e de Decadentismo.
O confronto dos opostos que convivem em tensão aparece em todos os níveis da obra, no
contraponto entre o pobre e o rico, a miséria e a opulência, a indigência e o reconhecimento social,
a ignorância e a civilização, a simpatia e a antipatia, o romantismo e o realismo-naturalismo, seja
numa mesma narrativa ou no contexto global da obra, dividida entre o romance luminoso (como
Os Pescadores) e o noturno (como Os Pobres).
Um dos pontos fortes e inovadores da escrita brandoniana acaba sendo a análise filosófica e
existencial das intimidades, através de narradores incomuns e multifacetados. Por isso, as
narrativas de Raul Brandão perturbam o homem (e o leitor virtual), que é colocado diante do
31
insondável em que se mergulhado. São obras que problematizam as mais variadas questões
acerca da existência humana, de ordem material ou não, através de diferentes figuras e de
diferentes e subjetivas digressões especulativas, levantando e problematizando questões como o
sonho, o materialismo, a solidão, a desmobilização social, o mascaramento e os papéis sociais
exigidos do cidadão pela tradição, a dominação e a exploração. Tudo isso a partir de figuras e
cenários pintados em tonalidades berrantes e contrastantes, tendendo ao exagero e à distorção,
como a pintar com palavras telas expressionistas, que ora comovem ora horrorizam e abismam os
narradores.
Por tudo o que fez, o jornalista, pensador, pintor, crítico de arte, dramaturgo e ficcionista
Raul Brandão é nome de relevo na História da Literatura Portuguesa. Sua vasta obra, que atinge
tão diferentes áreas de atuação, promove uma produtiva troca (integração, subversão e
transformação de padrões de escrita) de influências entre diversos campos de atuação do autor e de
produção artística, resultando em: narrativas influenciadas por diversos estilos e vanguardas, com
traços da pintura, exploração sensorial, numa prosa essencialmente poética, que utiliza
significativamente o registro culto, o coloquial e manifestações de oralidade em seu projeto
estético, segundo as necessidades expressivas de cada obra; toda uma produção na fase madura
“em que o literato cede lugar ao velho filósofo, absorvido pela meditação sobre a condição
humana” (COELHO, 1982, Volume 4, p. 122-123), inovando e subvertendo padrões de escrita.
32
2- O MISTÉRIO DA ÁRVORE E ALGUMAS IMAGENS RECORRENTES NA OBRA DE
BRANDÃO
O escritor português cuja problemática está mais próxima da minha é
Raul Brandão. VERGÍLIO FERREIRA
Um escritor se apresenta
Raul Brandão ocupou-se das grandes contradições inerentes à existência ou “da junção ou
mesmo da coincidência dos contrários” (VIÇOSO, 1999, p. 12) no humano e no mundo. A ficção
brandoniana, por isso, aborda ou abarca questões humanas e intimistas, sem se furtar às sociais,
explorando e problematizando tanto a situação individual dos humildes, quanto a sócio-cultural,
em relacionamentos interpessoais e entre os grupos em que se inserem personagens e narradores,
abordando a incontornável tragédia humana, sem com ela se conformar. Por isso, carrega as
“marcas da erosão da narrativa canônica”, como forma de resistência à “morte do sentido (a in-
significância)” e busca essa “possível (desejável) ressurreição do sentido (a significância)”,
(re)criando o “romance possível”, numa “fusão do lirismo, do romanesco e do drama cósmico”,
entre “a decadência e a contra-decadência, o artificial e o natural, o simulacro e o sonho, a
superfície e o interior (símbolo, arquétipo, reminiscência), o riso e a melancolia, o eu e o outro”
(VIÇOSO, 1999, p. 16-39).
Segundo Bronislaw Geremek:
(...) Desprovido dos laços materiais e dos comprometimentos da propriedade, o
miserável expressa um conhecimento universal da verdade sobre a existência humana,
esquecida por todos. É também portador da imagem e da voz de baixo, dos níveis inferiores
da sociedade e da cultura populares. (GEREMEK, 1995, p. 7)
Talvez por isso haja afetividade para com o pobre na narrativa brandoniana, pois, através
dessas figuras humildes, predominantes na sua obra, investiga-se primeiramente algo que está para
além das convenções sociais e da matéria e, paralelamente, é claro, passa-se por complicações
materiais, sociais e culturais. Aproximando-se do pobre e através dele, pretende-se estar mais
próximo desse “conhecimento universal”, dessa “verdade” essencial, um conhecimento que não é
histórico e cultural e que, por isso, é buscado entre aqueles que se furtaram ao materialismo ou
aos quais foi negado o material.
Por outro lado, o pobre “também parece refletir, como num espelho côncavo, os problemas
da sociedade dos homens de bem”; por isso “suscita enorme interesse, tanto por mostrar um meio
esotérico e exótico”, como pelo fato de se encontrar no miserável a “negação do sistema vigente de
normas e comportamentos” (GEREMEK, 1995, p.7). Está a dupla articulação dos humildes na
literatura brandoniana: indagação existencial e negação dos paradigmas vigentes ou
problematização social, compondo chocantes quadros em que o claro e o escuro contrastam, em
que se confrontam os pobres e a chamada “sociedade dos homens de bem” (GEREMEK, 1995,
33
p.7). Está também a origem não somente da poética da afetividade pelos humildes, como
também da estética do horror nas paisagens de suas narrativas.
No conto O mistério da árvore, dois mendigos representam a alegria, a pureza e a
afetividade, em oposição a um cenário grotesco, escuro, degradante e degradado pela ação de um
Rei tirano e perverso. Está configurada e exemplificada, em linhas gerais, a segunda fase artística
de Brandão, a do “claro-escuro pesadelo”: “ignorando o que se passava em volta – olhos nos olhos,
mãos nas mãos... (...) A árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro;
mas de vinha um frêmito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão
reduzira tudo a cinzas.” (OMA, p. 99-102). O amor entre os dois mendigos é luminoso, mas não o
suficiente para os salvar dos desmandos do déspota. A afetividade entre os mendigos contrasta
com a perversidade do Rei; o amor luminoso entre os dois contrasta com o cenário pintado em tons
de cinza e negro. A vivacidade do casal até revigora um pouco o cenário morto por onde passa,
mas não é suficiente para redimir nem o Rei, nem aquele reino.
O horror inexpugnável e persistente, presente no conto de Brandão, corrobora a idéia,
exposta por Walter Falk, de que todo lo que es sigue siendo eternamente lo que es”, “todo se ha
de repetir indefinidamente de idéntica forma, el mismo placer e el mismo tormento. Esto es
terrible, puesto que la vida está impregnada de horror” (FALK, s/d, p. 43). O crítico, ao estudar
Impresionismo y Expresionismo: dolor e transformación en Rilke, Kafka, Trakl, mostra a
importância da dor e do horror na transição da estética impressionista para a expressionista.
Por outro lado, não são apenas o horror e a dor que se perpetuam ciclicamente no mundo,
apesar de todas as adversidades e hostilidades; os mendigos também existiram porque, “a pesar de
lo horroroso, y quizá debido a ello, la vida es hermosa”. Um é a condição para a existência do
outro, portanto, dor e prazer se conjugam, assim como o horror repugna e atrai, como afirma Falk
no fragmento abaixo:
(...) não há, ao cabo, nada tão importante para os homens quanto aceitar a vida com
tudo o que ela traz consigo. Não há que se queixar, nem evitar a dor do mundo, senão desejá-
la. Então, provar-se-á que da dor brota continuamente prazer, pois quem deseja a dor se sente
superior a ela em sua vontade e, por isso, experimenta o prazer do poder justamente na dor.
(FALK, s/d, p. 43-44)
2
Só do contraste e do confronto entre os dois planos se apreendem e distinguem dor e prazer,
horror e atração, desejo e repulsa; por isso o expressionista aprecia a dor, o feio, o horror, o
pesadelo e os confronta com seus opostos.
2
(...) no hay a la postre nada tan importante para los hombres como aceptar la vida com todo lo que ella trae consigo.
No hay que quejarse, ni eludir el dolor del mundo, sino desearlo. Entonces se probará que del dolor brota
continuamente placer, pues el que desea el dolor se siente superior a él en su voluntad y por ello experimenta el placer
del poder justamente em el dolor. (FALK, s/d, p. 43-44)
34
Contraponto dos pobres nessa narrativa curta, o rei é um misto de dândi e vampiro
decadentista, que se alimenta e eterniza da extinção de toda a vida que circunda seu castelo,
levando existência estéril e destrutiva, como a morte em vida: “No silêncio tumular do Palácio os
passos do Rei ecoavam pelos corredores desertos (...) Não podia amar. Nem a voluptuosidade, nem
o ideal, nem o amor, nem a carne láctea das mulheres” (OMA, p. 99-102). Como o vampiro
mantém seu poder “há séculos”, tirando a vida alheia e, uma vez morto-vivo ou morto em vida,
melancólico, não espera nada além de sustento. A morte, que ora horroriza ora deleita, foi um tema
largamente abordado pelos expressionistas, como se pode observar nas telas Pirâmide de crânios
(1898-1900), de Cézanne, e Natureza morta com flores, de Van Gogh (Anexos 15 e 16), nas quais
se amontoam objetos que simbolizam a morte de entes humanos e naturais, como caveiras ou
flores cortadas sobre fundos vermelhos ou negros, contrastando com tons claros e luminosos.
O rei, como o dândi, é elitista, “aspira à insensibilidade”, mostra-se dono de uma “modéstia
mesclada de pudor aristocrático” e de uma “quintessência de caráter e uma compreensão sutil de
todo mecanismo moral deste mundo”, mas “é entediado, ou finge sê-lo, por política e razão de
casta” (BAUDELAIRE, 1995, p. 854). Essa é também a postura do Rei, sabedor de que a morte é
inevitável ao mortal, antecipa-a a todos, mas está acima da morte e, impiedoso, olha de cima de
sua aparente imortalidade a vida medíocre da turba mesquinha (“mendigos”), com um misto de
inveja e desprezo por todos os mortais que aniquila, vegetais ou animais, todos abaixo dele na
hierarquia social: “extrai fantasmagoria da natureza” (BAUDELAIRE, 1995, p. 859). Mas,
diferentemente do dândi, que não é necessariamente um tirano, esse rei se mostra déspota e
autoritário e encontra vigor para oprimir o amor e a luz, que lhe incomodam.
A postura do dândi não é muito recorrente na obra de Raul Brandão, porque os narradores
são sensíveis demais com relação aos dramas populares, muitas vezes identificando-se mesmo
como uma figura do povo, como é o caso do narrador de Os Pobres. Mas, assim como o dândi,
muitos narradores e alguns personagens brandonianos se apresentam entediados diante da mesmice
social e das distorções morais e éticas, bem como demonstram uma mundividência e uma
capacidade de desvendamento dos mecanismos sociais acima da média. E, mesmo que nem sempre
tenham as respostas para as indagações que formulam, demonstram uma inclinação filosófica
invulgar, que se destaca da multidão.
O Castelo desse Rei é uma cripta, uma tumba de mármore, escura, que guarda a solidão
estéril e morta ou mórbida daquele que se alimenta das vidas alheias: “o Palácio Real, construído
num bloco de pedra escura, e o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amar a
árvore triste que havia séculos servia de forca” (OMA, p. 99-102).
Outros personagens masculinos que, como o Rei desse conto, sugam “energia vital” de
outros personagens, surgirão na obra de Raul Brandão, como alguns ladrões de Os Pobres. Todos
35
mostram-se figuras menos vampirescas, como o burguês mercenário Belisário ou o Anacleto de A
Farsa, que também se alimenta de morte, até arruinar-se com a morte da esposa e a descoberta da
traição. Mas, esse Rei de O mistério da árvore é o mais evidente exemplo de vampirismo
decadentista da obra de Raul Brandão.
Segundo o professor Fernando Monteiro de Barros Júnior (2007), o personagem Des
Esseintes do romance Às avessas, de Huysmans, é um bom exemplo de vampiro decadentista, pois
demonstra uma “repulsa ao sexo”, “suga sem provocar gozos, espasmos ou ejaculações, por
demais naturais” e a sua “perversão decadentista é a de abortar o orgasmo, petrificando-o no
momento do frêmito, conforme o deslocamento do foco erótico dos corpos para os objetos
estéticos (capas e caixões), é o gozo dos simulacros fetichizados”. (BARROS JÚNIOR, 2007). Da
mesma maneira como ocorre com Des Esseintes, o rei do conto de Brandão sente uma repulsa por
tudo o que é natural, incluindo o sexo; por isso aniquila a natureza e os mendigos amantes, e se
tranca no seu frio castelo marmóreo (abrigo sinistro como as “capas e caixões”), duplo de sua
frieza e impassibilidade, deleitando-se com o cenário devastado ao redor de sua tumba e da “árvore
que servia de forca”, “simulacros fetichizados” do rei, criados e cultuados por ele em substituição à
natureza e ao amor, que despreza e destrói.
O narrador olha tudo entre contemplativo e comovido com a situação dos miseráveis
“mendigos” e até com a do solitário Rei. Comovido com a felicidade pateticamente ingênua dos
mendigos. Comovido com a infelicidade, solidão e danação perpétua do Rei, preso à morte em
vida. Estarrecido está o narrador com a perversidade, a crueldade, a covardia e a incapacidade do
Rei de buscar para si o amor que inveja, julgando mais fácil destruí-lo: “Noite negra, o Rei subiu
sozinho ao terraço. Restos de núvens, restos de mantos esfarrapados arrastavam-se pelo céu. A
árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro (OMA, p. 99-102)”.
Os narradores pasmam-se diante de desvalidos explorados e perversos, como em Os
Pobres; da danação de personagens ávidos pelo desejo de ascensão, como nA Farsa; ou de figuras
calculistas que espreitam e são espreitadas, como as de Húmus. A figura do narrador apaixonado e
comovido, em deambulações discursivas, é sem dúvida bastante recorrente entre os narradores da
obra de Brandão. Difícil é encontrar um narrador brandoniano que não fique emocionado com o
espetáculo da miséria humana, com o martírio da turba mesquinha, sofredora e digna de piedade,
desprovida de heroísmo e de possibilidades revolucionárias, de onde dificilmente sairá um “herói
clássico” (KOTHE, 1987), mas apenas pobres, ladrões, prostitutas, domésticas, mendigos,
trabalhadores comuns, personagens da turba que podem suscitar ao mesmo tempo um prazer, um
deleite pela promiscuidade e pela miséria. Por outro lado, vezes em que causam repugnância
e/ou piedade, paradoxalmente. Todos os narradores ficam divididos entre uma estética do horror e
uma poética da afetividade pelos humildes.
36
Diante do espetáculo da turba, o narrador exercita a sua inclinação ao devaneio, como se
pode observar no fragmento em discurso indireto-livre a seguir, em que narrador e rei dândi se
misturam na apreciação da paisagem devastada: “Em vão reduzira tudo a cinzas por baixo das
cinzas latejava a vida. (...) Por que não ia também ser macieira, mendigos, húmus? Transformar a
dor em felicidade? Beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh como odiava a mocidade, a
ternura, os lábios moços que se beijam”.
Muitos narradores na obra de Raul Brandão abrem espaço para o “natural-sobrenatural”
(BENJAMIN, 1989, p. 57), apresentando elementos da natureza associados aos mistérios da
existência, da vida e da morte, como nessa passagem do conto, em que alguma força sobrenatural
parece revigorar o galho da árvore após a morte dos mendigos, contrastando com a destruição do
cenário e contrariando as determinações do rei, como numa manifestação do sagrado através da
natureza: “Súbito ficou imóvel de espanto. Aquecida, com o amor de dois mendigos, tinha o galho
em que pendiam enforcados cheinho de flor (OMA, 99-102)”. A ação do homem (o rei no conto) é
muitas vezes a causadora da desordem e do caos entre os entes naturais, mas a natureza vai se
recuperando, na medida do possível, através de seus ciclos e mecanismos de regeneração, aos
quais o homem não pode se furtar. Desta forma, “a natureza defende seus direitos” (BENJAMIN,
1989, p. 57), em detrimento da ação e da obra humana, como se em Húmus, em que a terra se
alimenta de morte e origina a vida; ou como nOs Pobres, em que o “enxurro” arrasta e arruína
obras e homens; e na natureza que se regenera após a ação do Rei devastador no conto O mistério
da árvore: “O que havia ocorrido nessa rua não teria surpreendido uma floresta; os altos fustes e a
vegetação rasteira, as ervas e os galhos inextricavelmente enredados uns nos outros e o capim alto
(OMA, p. 99-102)”.
Diferentemente do que ocorre nesse conto, a árvore em algumas narrativas de Brandão
simboliza vida, natureza, sensualidade e se relaciona com alquimia e espiritualidade; atinge o
mundo físico e o metafísico, e guarda o mistério que responderia à pergunta título do capítulo XVI
de Os Pobres “O que é a vida? e a outras perguntas inseridas ao longo do capítulo:O que é
isto? o que é a vida? o que é este mistério onde o homem entra como a salamandra no fogo? Pode
alguém de repente dar com uma árvore cobrindo-se de flor, sem ficar espavorido? (OP, p. 135)”.
Esse mesmo mistério que o Pita e o Gabiru tentam desvendar no final de Os Pobres, diante da
árvore, usando métodos de indagação e alquimia parece se manifestar na passagem em que a
“árvore que servia de forca” apresenta um galho florido após o enforcamento dos mendigos.
A “árvore trágica” do conto, “maldita que desde séculos servia de forca” também é aquela
que guarda os segredos da vida e da morte, da existência carnal e pós-morte, da primavera e do
outono/inverno, das estações do ano e da vida, como indicam o título do conto e o trecho que se
segue: “Assistira a transformações do solo, a tempestades, a cataclismos e a guerras, sempre
37
petrificada como a morte e, naquela noite, trespassada pelo amor dos dois mendigos,
desentranhara-se em ternura, como se nela se encontrasse toda a paixão, a primavera e o noivado
da terra” (OMA, p. 99-102). Como A Amoreira (Anexo 17), de Van Gogh, que resiste em
sobreviver mesmo num ambiente hostil e frio, a vida brota dos galhos da “árvore que servia de
forca” quando menos o rei espera, comprovando que, na Natureza, a vida sempre brota da morte
ou que, como disse Dalila Costa sobre o Húmus, “o amor como força cósmica, unificante, triunfa
da morte e do desgaste do tempo” e que “o fim lógico não é morrer é viver sempre” (COSTA,
2000, p. 347, 351).
A natureza é “a expressão do corpo ambivalentemente humano e cósmico”, enquanto “o
sonho é expressão do desejo” (SEIXO, 2000, p. 23), da alma, em Raul Brandão. A árvore
metaforiza o corpo cósmico em muitas narrativas brandonianas, como ocorre com o húmus, a terra
fértil que gera a vida e resulta da matéria morta que se deteriora e gera novas vidas.
A mendiga de O mistério da árvore é ingênua e tola, miserável e amorosa, o oposto da
femme fatale decadentista, descrita por Mucci como aquela que representa para o outro “atração e
perigo, paixão e ruína, luxúria e morte, Eros e Tânatos” (MUCCI, 1994, p. 70-71). No conto, a
mendiga até desperta paixão, mas não pratica luxúria, visto que ama seu parceiro e não pretende
destruí-lo. É o rei a figura perversa que os destrói. Diferentemente das femmes fatales, é uma
vítima miserável romântica à moda de Victor Hugo (Os Miseráveis). É indiferente como a femme
fatale, mas por pura ingenuidade, nunca por perversidade. Exerce atração e curiosidade no homem
(rei); mas não é perversa nem destrutiva, pelo contrário, é tola. O relativo fascínio que exerce sobre
o rei é, contraditoriamente, acompanhado de uma repulsa, pois a mendiga apresenta uma beleza
hedionda e parva: “aquela moça sardenta, com resquícios de palha pegados aos cabelos”; ainda que
seja dona de uma sensualidade que não passa despercebida onde quer que esteja: “flores
esvoaçavam pela sua nudez e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros”. Ao
contrário da beleza artificial das femmes fatales e de sua forte ligação com a urbe, a mendiga do
conto é representante de uma natureza primeva, visto que por onde ela e o amante passam,
converte-se o cenário degradado em primaveril: “macieiras deitavam galhos de propósito para os
ver passar”. Ela mantém-se encerrada no amor, indiferente a tudo o mais; corresponde ao amor do
outro mendigo, vê seu amor correspondido e é feliz. Diferentemente da femme fatale, a atração que
exerce sobre o outro representa mais perigo para ela do que para esse outro, que a destrói e não ela
a ele, como faria uma femme fatale.
O rei sente-se ameaçado pelo fascínio que a mendiga exerce sobre ele e pelo perigo que ela
representa, ao romper o tédio e ameaçar a mesmice e o hábito que se instauraram em sua vida. Ela
é para o Rei o que Mucci chamaria de “a figura do desejo, da volúpia, do amor” (1994, p. 71) que
gera frustração, que proporciona felicidade ao outro, mas nunca ao Rei, ele mesmo que é
38
incapaz de ser feliz, sequer de se alegrar, sobretudo se a felicidade advém de cotidianas
banalidades comesinhas: “Por que não ia ele também ser macieira, mendigo, húmus? Transformar
a dor em felicidade? Beber o sol arrastado na aluvião da vida? Oh como odiava a mocidade, a
ternura, os lábios moços que se beijam.” (OMA, p. 99-102)
Assim como a mendiga do conto, as prostitutas de Os Pobres também são donas de
“belezas hediondas”. São mulheres arruinadas, que se sustentam da luxúria e inspiram piedade ao
narrador, mas não exercem uma atração fatal nem representam grande perigo para aqueles que
delas se aproximam. Todavia, ao contrário da mendiga do conto, são noturnas, integradas ao
espaço degradado e não natural, como um componente da paisagem arruinada, embora
psicologicamente complexas. Veja-se a complexidade psicológica da Luísa, no capítulo VIII:
“Memórias da Luísa” (OP, p. 82). Como a femme fatale, elas também são misto de “luxúria e
morte, de paixão e ruína”, mas é contra elas mesmas que essa ruína se volta, quase sempre. Ainda
que desejem destruir e se manter indiferentes ao que ocorre no ambiente em que vivem, elas por
vezes são duramente afetadas pelos outros personagens ou pelo espaço que as cerca e, também,
espancadas e abandonadas, são esfomeadas e/ou tísicas.
O amor dos dois mendigos de O mistério da árvore não é como a luxúria transgressora,
perversa e cerebrina do decadentista, segundo Mucci: “toda artifício, engano, engodo”, que se
desvia da consumação sexual natural. A relação dos mendigos não é pautada na luxúria, muito
menos no fingimento; é afetuosa, infantil, primaveril, sincera, desinteressada e natural, que se
compraz com a consumação física, diferentemente do fetiche decadentista. A morte dos mendigos
não é causada pelo seu amor, nem por um parceiro perverso, mas por um terceiro ou pelo rei
incomodado, este sim perverso, juntamente com seus carrascos. No entanto, em algumas obras de
Raul Brandão, o amor se parece com aquele “sonho que se transforma em pesadelo” (MUCCI,
1994, p. 71), que, em Os Pobres, cada prostituta tem uma história de amor frustrado que as
destina à prostituição; cada prostituta sofreu um tipo de perversidade praticada por um parceiro; e
em Húmus o individualismo parece ter quase suplantado o amor. Mas, assim como no conto, não é
exatamente o amor decadentista que se observa nessas narrativas, que as prostitutas e os ladrões
não são sempre perversos, oscilam entre momentos de deleite e prazer ao cometerem atos cruéis
contra os outros pobres e momentos de piedade e caridade. Esse é o caso do Morto, que violenta e
depois ampara a Luísa em Os Pobres.
A árvore é, a um tempo, vítima e testemunha da perversidade do rei, como também
representante da ação revitalizadora do húmus. É, ao mesmo tempo, “esgalhada e seca” por causa
da devastação promovida pelo rei, usada como instrumento de destruição (forca), testemunha do
martírio dos enforcados e dos demais entes naturais sacrificados, mas também é ela que se mantém
39
viva, alimentada pelo húmus gerado da matéria morta, além de exibir o galho florido, após o
enforcamento dos mendigos.
O casal, assim como o amor que vivem no conto, atualiza algumas propostas do
Romantismo, tanto pela idealização do par amoroso, quanto pela agonia trágica dos amantes
separados pela sociedade perversa e desamorosa; não pela sinceridade do amor correspondido,
desinteressado e feliz, como também pela transcendência do amor, que se perpetua para além da
morte e na natureza: “ignorando o que se passava em volta – olhos nos olhos, mãos nas mãos... (...)
A árvore onde os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de vinha um
frêmito, a sua agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. Em vão reduzira tudo a
cinzas.”
Entre o Simbolismo, com seus paraísos artificiais e oníricos, e o decadentismo da “arte pela
arte”, em busca de um mundo novo, lugar de refúgio da angústia metafísica” (MUCCI, 1994, p.
31), a máscara ou a persona, que não é muito explorada no conto O mistério da àrvore, é
largamente usada em muitas outras narrativas brandonianas, como em A Farsa, em Os Pobres e
em Húmus. A máscara simboliza o fingimento, o atifício e o artificialismo nas relações, a
simulação. É utilizada por muitos personagens para ocultar seus verdadeiros anseios, desejos e
sonhos, guardados na intimidade, escondidos: “Esconde o ódio; vive fechada com seu sonho
enorme, por fora uma velha pelintra, por dentro um horror sem limites” (AF, p. 51). A máscara
representa a exterioridade e as convenções, a fachada ostentada socialmente pelos personagens, em
detrimento do interior complexo, reprimido, que é representado pelo sonho, como ocorre com a
Candidinha, que se finge de coitada, ostentando uma máscara de momo para pedir esmolas e
alimentando-se de seu sonho de vingança contra todos aqueles que respondem ao seu pedido: “a
máscara da estupidez encobrindo a infâmia”. (AF, p. 47).
As máscaras consistem numa espécie de duplo das existências interiores dos personagens:
“no drama se instala a polivalência dos conflitos, na simulação se recolhem os modos de ser e de
parecer dos personagens e da própria mostra dessa ficção” (SEIXO, 2000, p. 18). Elas passam a
ocultar a identidade interiorizada do personagem, chegando até a anular essa identidade, essa
interioridade, como acontece com a Candidinha, ao fim de A Farsa, impossibilitada de “arrancar”
a “máscara” de momo ostentada por ela durante toda a sua trajetória ficcional. “Hiper-realizada”
sobre sua face, por todos os personagens a sua volta, habituados à máscara, Candidinha não
consegue convencer ninguém de que sua momice de sempre não passava de fingimento e de que
sua verdadeira identidade era cruel e vingativa, perdendo então a identidade e enlouquecendo
Assim, na turbulenta narrativa de Brandão, certas imagens contraditórias são recorrentes,
como a árvore e o húmus, representantes de uma natureza cósmica; a máscara e o sonho,
representantes do fingimento e da opressão da civilização; a ruína e a fantasmagoria representantes
40
do horror; os pobres que, ao mesmo tempo em que fazem parte da paisagem degradada e horrível,
são capazes de despertar afetividade nos narradores comovidos. São todos imagens que aparecem
em diferentes nuances do claro-escuro pesadelo pelas obras da segunda fase de Raul Brandão. Na
obra de Brandão, contemporâneo da eclosão das vanguardas num mundo em que a homogeneidade
e a linearidade não mais se sustentam e onde as diferenças já começam a se insinuar, a convivência
de contrários concorrentes é constante seja na sociedade, na natureza, seja no íntimo do próprio
homem. Tudo e todos são feitos para a vida e para a morte, pela beleza e pelo horror, pelo bem e
pelo mal.
41
3- UM MERGULHO NO ENXURRO: AINDA E SEMPRE OS POBRES “GATOS-
PINGADOS”
3.1- Os Pobres em encruzilhadas de histórias: uma narrativa entre ruínas
A conseqüência da adopção inicial dos modelos predominantes de Victor
Hugo e, sobretudo, de Dostoievski leva, em obras posteriores, principalmente
em Húmus, a um discurso que se desenvolve cada vez mais para além dos
modelos, ou seja: leva a uma certa poética da fragmentação herdada dos
modelos românticos (uma tendência estético-cultural neo-romântica, híbrida e
nitidamente anti-positivista), mas já decididamente modernista.
ÁLVARO MANUEL MACHADO
Raul Brandão: para além de modelos
Como num “romance aberto e desmontável”, fragmentos entrecruzados e embaralhados de
histórias de diferentes personagens, em diferentes tempos e em espaços degradados (“ruínas”) e
degradantes compõem a narração, que se assemelha a um quebra-cabeça escrito.
A ruína perpassa a narrativa Os Pobres, a começar pela estrutura e pelo discurso, como
bem observou Álvaro Manuel Machado, na epígrafe. Ruína é a marca de quase todos os elementos
da narrativa, desde espaços, tempo e personagens até a própria estrutura da obra, como a glosar
fragmento do próprio Brandão no Prefácio ao Volume I das suas Memórias, publicadas bem
depois: “A nossa época é horrível porque não cremos e não cremos ainda. O passado
desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós sem tecto, entre ruínas, à
espera...” (MI, grifos nossos).
Por causa dessa ruína da tradição, desde as primeiras obras, Brandão demonstra a opção
por um projeto estético em sua obra literária, buscando inovação estrutural e estilística e
desenvolvendo ora uma afetividade ora uma repulsa pelos pobres, ruínas vivas, como ocorre na sua
última obra escrita no século XIX: Os Pobres, um projeto de representação expressionista.
Essa ternura pelos humildes, que não era comum entre os decadentistas, nem para o
romântico Baudelaire, precursor do Decadentismo, segundo os estudiosos do fim do século Mucci
(1994, p. 32-33) e Moretto (1989, p. 13-34), foi herdada dos romances de Dostoievski
(considerado o pai do realismo russo) e do francês Victor Hugo. Mas, as obras Os Miseráveis,
escritos por Victor Hugo em 1862, e Os Pobres (ou Pobre Gente, em algumas traduções), a
primeira obra publicada por Dostoievski, em 1845, são ainda bastante revolucionárias e
esperançosas, diferentemente do que ocorre na obra brandoniana. Entretanto, já na segunda obra de
Dostoievski, em 1846, O duplo, um triste fracasso”, nota-se “em abundância a imaginação do
desastre mal controlada”, muito intensificada nas obras posteriores aos seus terríveis anos de
prisão, dando à luz “os histéricos e os psicóticos”, que revelam “toda a profundidade da alma
humana”, com o que se tornou, para muitos, um precursor do Existencialismo, segundo Peter Gay.
42
E é esse Dostoievski maduro, misto de “vidente e sádico”, que “trocou o radicalismo político da
juventude pelo ódio feroz a todos os revolucionários, socialistas, ateus, católicos e
ocidentalizantes”, influência decisiva para a escrita brandoniana comovida com a situação dos
humildes, mas desencantada e despretensiosa, em sua obra indagadora da condição humana.
A narrativa Os Pobres é constituída de vinte e quatro capítulos na primeira edição e vinte e
cinco na segunda, em que se insere um novo último capítulo, intitulado “Aí têm os senhores a
natureza”, além de outras alterações. Trata de uma turba de pobres e de suas “tristezas pacíficas”,
constituindo “um flos-sanctorum da miséria, na dor do enxurro canonizada e sublimada”, como
ressalta Guerra Junqueiro em sua Carta Prefácio à obra. Cada capítulo vai contando um fragmento
da história de um personagem em um tempo-espaço diferente. À medida que os capítulos passam,
os personagens vão se cruzando ou os fragmentos de histórias vão se entrecruzando, até que quase
todos os personagens são identificados como vizinhos que moram num mesmo casarão,
apresentado logo no primeiro capítulo da obra.
O título do primeiro capítulo de Os Pobres: O enxurro ou enxurrada, no Novo Aurélio (p.
777) significa “queda d’água, volume de água que corre com muita força e resultante de grandes
chuvas, águas selvagens, aguaça” ou “jorro de imundícies”. Nesse primeiro capítulo, o narrador
apresenta a matéria que será desenvolvida na obra, “o enxurro vivo”, ou a turba de pobres e o rio
de “lágrimas que correm da tristeza pacífica de todos os que sofrem”, ou os lamentos dos pobres
sofredores, como se lê a seguir:
Quedo-me sozinho nas noites estiradas, ouvindo o enxurro vivo. Muitas vezes são
lágrimas que correm ou emoção que brota com o ruído dum fio de bica cheio de cintilações
e rumores. O cair de lágrimas é sempre duma tristeza pacifica... Na noite negra o Hospital
entaipa a cidade: árvores, noras humedecidas, montes solitários, parece que os proíbe aos
desgraçados: como um velho sumidouro espera, guarda, construído de pedra e num brasido
por dentro, todos os que sofrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heróis. (OP, p. 22-23,
grifos nossos)
Esse termo “enxurro” é usado ao longo de toda a narrativa, como observa Junqueiro na
Carta Prefácio, para designar tanto a coletividade de pobres (“dor do enxurro”), quanto o espaço
social, a sociedade de pobres (“enxurro vivo”, “enxurro humano”), a vida sofrida (“jorro de
imundícies”, rio de lama) dos pobres e a dor deles: “o enxurro humano sem cessar carreia
detritos, lágrimas, sonho. (...) Parecem pedaços de noite destacados da própria noite. (...) A lama
faz-lhe pedestal, passa o enxurro, e elas nem se mexem, petrificadas”. (OP, p. 55-56, grifos
nossos)
Nessa obra finissecular, verifica-se interpenetração de traços de diferentes gêneros e estilos,
como acontecerá em maior escala n’A Farsa e em Húmus, em que se conjugam traços de romance,
ensaio e drama, além de inovações na estrutura e na configuração dos elementos estruturais da
narrativa. No que se refere ao estilo, apresenta influências de diferentes correntes estéticas do fim
43
do século XIX. Sobrevivem traços naturalistas, notados nos personagens por vezes condicionados
pelo meio; tendências românticas na poética da afetividade em relação aos pobres; e traços
decadentistas pontuados n’O mistério da árvore e, sobretudo, a atitude expressionista no horror
que sobreleva das descrições de paisagens, que se fazem em tons berrantes de escuro-claro, muitas
vezes destoantes, e na construção de personagens grotescos.
A respeito de uma sobrevivência modalizada de traços naturalistas, leia-se Afonso M.
Rocha sobre a influência de “Sampaio Bruno na evolução estética de Brandão”, artigo que mostra
o quanto o ficcionista, na esteira do filósofo, “questiona embora de maneira determinada a estética
naturalista, mas não a rejeita de todo. É que, para ele (Bruno), o naturalismo não serve, mas apenas
porque é uma concepção estética incompleta” (ROCHA, 2000, p. 191), que os
condicionamentos seriam realmente preponderantes na formação dos caracteres humanos mas não
os únicos determinantes da personalidade, muito mais complexa, uma vez que envolve aspectos
psicológicos e íntimos. Aliás, influência mencionada também por Álvaro Manuel Machado em seu
artigo Raul Brandão: para além de modelos”, em que Sampaio Bruno é chamado de “grande
teórico inicial de uma tendência estético-cultural neo-romântica, híbrida e nitidamente
antipositivista” (MACHADO, 2000, p. 261), como a praticada por Brandão.
O experimentalismo e a inquietação de Brandão em romances como Os Pobres serão
fundamentais para encaminhá-lo gradativamente à experiência radicalmente nova de Húmus,
aclamado como “livro que se subleva contra a estrutura do romance tradicional, subvertendo as
categorias genéricas, desvalorizando os elementos convencionais da narrativa e antecipando as
experiências mais inovadoras efectuadas no âmbito da narrativa contemporânea” (REYNAUD,
2000, p. 11). Muitas dessas inovações, aliás, vinham sendo experimentadas em Os Pobres, que
propõe nova forma para os desgastados moldes tradicionais.
O lirismo invade as palavras do(s) narrador(es) durante algumas das suas digressões
existenciais, devaneios e reflexões filosóficas, revelando um sujeito enunciador lírico, que não se
pode eximir da sua subjetividade irreprimível, da sua parcialidade e da sensibilidade aguçada
diante dos acontecimentos, da sua tendência à inflexão introspectiva e do forte envolvimento com
a matéria narrada, com as relações interpessoais travadas e com os personagens.
Esse comportamento lírico diante de “aspectos da vida comunitária” ou de simulações
desta, não é exclusividade da obra de Brandão, como ensina Angélica Soares:
Sabemos que na Antigüidade, enquanto a epopéia se destinava a cantar o coletivo, a
unidade da pólis, outro tipo de composição, naquela época acompanhada pela flauta ou pela
lira, surgia voltada para a expressão de sentimentos mais individualizados, como nas cantigas
de ninar, os lamentos de morte de alguém, os cantares de amor... Eram os cantos líricos que
(mesmo quando ligados a aspectos da vida comunitária: o lirismo coral), em suas origens,
vinham marcados pela emoção, pela musicalidade e pela eliminação do distanciamento entre
o eu poético e o objeto cantado. Ao passar para da forma somente cantada para a escrita,
44
nesta se conservariam recursos que aproximariam música e palavra: as repetições de estrofes,
de ritmos, de versos (refrão) (SOARES, 2001, p. 24)
O narrador autodiegético
3
(ou narradores), num “lirismo moderno”, parte(m) do “conteúdo
explicitamente social” para o intimismo e a introspecção reflexiva e vice-versa, “resultado de uma
integração entre emoção e desejo de interpretar o mundo; responsável pelo nascimento de uma
significação que, ao revelar o mundo, revela o sujeito que o considera poeticamente, unindo-se,
mais nitidamente, o emocional e o reflexivo” (SOARES, 2001, p. 27). Esse narrador autodiegético
ou os narradores-personagens de alguns capítulos (Gabiru, Morto e a Luísa), partindo dos
acontecimentos narrados deságuam “na revelação, no aprofundamento do próprio eu, na imposição
do ritmo, da tonalidade, das dimensões e, enfim, desse mesmo eu, a toda a realidade” (AGUIAR e
SILVA, 1976, p. 229-230), como se pode observar na passagem abaixo enunciada pelo Gabiru,
que sempre enxerga a natureza como símbolo (e convite à decifração) de um mistério para além do
material concreto: a vida e a existência.
Oh como eu tremo diante das árvores, do luar que corre branco e sem murmúrio, da
natureza esplêndida que adivinho para além dos muros do Hospital!... Passo por doido e na
verdade quase grito de pavor diante do espantoso universo. Olhai a treva a escutar, o mistério,
a água que brota sem ruído, a árvore de braços erguidos, o caliginoso mar...
O homem passa indiferente, mas eu sinto-me enlouquecer diante das coisas mais
simples (...) (OP, p. 38)
Entretanto, a persistência desse sujeito lírico não impede o narrador do primeiro capítulo ou
o Gabiru ou o Morto de, em muitos momentos, também “outrar-se” (AGUIAR e SILVA, 1976, p.
229-230), como neste momento da narrativa em que cede a enunciação ao Gabiru: “Ignora a vida.
Alguma coisa, porém, existe de imaterial emoção violeta e oiro que o rodeia, quase o toca e
súbito foge magoada e aos soluços. E fio a fio vai tecendo e constrói a sua teoria: (...)” (OP, p. 38).
Na passagem, o outro e esta alteridade processada servem como pretexto para novas incursões
líricas, que visam à intimidade do próprio ser. Desta forma, o fato de o sujeito se “outrar” não
exige dele “exilar-se de si mesmo, alhear-se da sua interioridade”, “da sua paisagem íntima”
(AGUIAR e SILVA, 1976, p. 230-231), senão temporariamente.
Aliás, o lirismo aparece, muitas vezes, em digressões e monólogos, seja na voz do narrador
do primeiro capítulo, do Gabiru ou do Morto. Os intermináveis monólogos do Gabiru se
prolongam por vários capítulos da narrativa, servindo de motes, depois, para reflexões existenciais
e filosóficas do narrador, construindo-se como monólogos líricos do narrador.
O lirismo pode se tornar um convite à linguagem poética, ao uso das figuras de linguagem
e à preocupação com a sonoridade das construções frasais, transformando várias passagens em
prosa poética, preocupada com a sonoridade das palavras e com a reiteração de algumas
expressões, como se observa no uso insistente e multissignificativo da expressão “gato-pingado”,
3
Narrador autodiegético porque se desmembra em várias vozes, na narrativa. (AGUIAR e SILVA, 1976)
45
que ecoa durante toda a narrativa, soando também como o tilintar de gotas e pingos, que são os
pobres no “enxurro”, insignificantes e incontáveis respingos que ressoam e resvalam nesse rio de
lama. A sonoridade reitera mensagens e o eco é uma ressonância sugestiva, como se observa nesse
diálogo entre dois gatos-pingados, que se repetem como o eco de gotas pingando no “enxurro”:
Apedrejam-no os garotos ao vê-lo passar para os enterros, fogem dele os vizinhos e só
uma mulher, tão maltratada pelo destino como ele, fala ao gato-pingado.
– A gente é pobre – diz, ele.
– A gente é pobre – diz ela. – E às vezes passa fome.
– Passa.
– Quando a minha mãezinha era viva, eu rapava fome. Era preciso dar-lhe o sustento e
eu mal o ganhava para mim. Até que acabou de penar os seus trabalhos. Tudo se acaba um
dia.
– Pior do que isso é não ter ninguém. É pior do que a fome.
– É o pior de tudo. (OP, p. 85)
A ressonância é um fenômeno musical que, segundo o Aurélio, consiste na “reflexão de
ondas sonoras numa parede” de forma que, “um corpo sonoro vibra quando o atingem vibrações
sonoras produzidas por outro” (FERREIRA, 1999, p. 641), como num eco. No fragmento acima,
as palavras do Gabiru e da “mulher maltratada pelo destino” ressoam como eco uma da outra,
repetitivas, como também são os dois destinos, repetitivos, mas não iguais, semelhantes na
pobreza, semelhantes na fome, semelhantes na solidão, no desamparo, na carência, na dor, na falta
de assunto e de instrução, enfim na “mesma sina”, ainda que vivida em corpos diferentes e em
trajetórias diversas.
Assim, se por um lado o narrador do primeiro capítulo relevo e voz a personagens sem-
voz e invisibilizados pela miséria e pela exclusão social; por outro lado, acaba ganhando relevo
essa liderança comovida e essa voz que seleciona, elege os desgraçados e delega as vozes e o
poder de enunciação. Persiste, desta forma, e em primeiro lugar, o olhar crítico que os e o
pensamento inquieto que os revê, sempre interessado pelo ser humano e pela sua situação no
mundo. A partir dessas reflexões e ponderações, indaga e problematiza as questões que atingem o
homem em seu estar no mundo.
A dramaticidade, na obra de Brandão, não se restringe à construção e à estrutura narrativa;
ela penetra na diegese, de forma que os personagens usam personas, máscaras de alegria e escárnio
(a Mouca e outras prostitutas), de alheamento ou força (os ladrões, por exemplo) para dissimular e
esconder seu verdadeiro ser amedrontado, ressentido e/ou carente. Muitos personagens, com
exceção do Gabiru, confinam-se numa vivência íntima, que contrasta com a exterior representação
teatral. Aliás, entre os expressionistas, numerosas pinturas de ladrões, prostitutas e momos
vestidos com indumentárias coloridas. Essa vestimenta, porém, contrasta com o olhar e as
expressões de desalento ou desespero, configurando a antítese entre a fachada e o mundo interior,
46
como em Arlequim, de Cézanne (Anexo 2); Prostitutas em torno de uma mesa de jantar ou em La
Clowness olha em volta, de Toulouse-Lautrec (Anexos 7 e 8).
Tais personas acabam por homogeneizar, do ponto de vista da exterioridade, algumas
prostitutas e ladrões, figuras estereotipadas, o que resume o condicionamento importo pelo meio
(traço do Naturalismo) a verdadeiras máscaras sociais que, entretanto, não revelam a sua
intimidade. O “eu-profundo”, escondido por trás das máscaras, de forma nenhuma redutível a um
conjunto de condicionamentos adquiridos do meio circundante, remete à diversidade humana. A
complexidade interior corresponde à psique indecifrável, que faz com que cada personagem reaja
de forma distinta e constitua personalidade totalmente diferente, mesmo diante de condições
semelhantes. Assim, as intimidades ocultam-se por trás das personas, mas por vezes afloram e se
revelam em diálogos, monólogos ou digressões. Neste sentido, a narrativa Os Pobres antecipa o
“romance-problema” de Vergílio Ferreira (1975, p. 225-272) pelas indagações e questionamentos
sem pretensão de respostas, por estar mais preocupada em criticar e problematizar a existência, do
que em oferecer a leitura do “romance-espetáculo”, com acontecimentos e “puras reações
exteriores”. Ao contrário, essas reações exteriores abrem caminho para as incursões especulativas,
manifestadas sob forma lírica, estas, sim, fundamentais na obra de Brandão.
Entre os traços de novela, nota-se grande quantidade de núcleos de personagens e tramas
paralelas que se unificam apenas ao fim da obra. Entretanto, a densidade psicológica contida nos
personagens e nas relações entre eles é grande, como ocorre nos romances. O mergulho na
intimidade dos personagens sobrepõe-se à descrição da exterioridade, acabando por virar ao avesso
as figuras que se movem no espaço de Húmus.
A reedição em Brandão ultrapassa os limites de uma simples revisão, chegando à
reescritura ou até à criação de nova versão. Em Os Pobres, por exemplo, o autor não se contenta
em realizar algumas alterações e necessita incluir um novo capítulo, alterando não apenas o fim,
mas a estrutura da obra que, a partir da segunda edição, passa a se encerrar no capítulo “Aí têm os
senhores a natureza” e não mais em “Natal dos pobres”, como na primeira edição. O autor, de uma
edição para outra, promove, além da busca de aprimoramento, a inquietação, o inconformismo do
artista que não se satisfaz com o trabalho feito e que não encerra a obra, mas que, diante de um
novo momento, mostra-se tentado a pintar uma nova tela, compor uma diferente versão, chegando
ao extremo de escrever, mais adiante, três versões para a mesma obra, como acontece com Húmus.
Em suma, na narrativa entrecruzam-se fragmentos de histórias e memórias, de trajetórias de
personagens no tempo e ruínas de espaços, pois assim estão as vidas dos personagens e narradores.
Os personagens estão despedaçados. A um tempo tiranizados e tiranos, são maltratados e
maltratam seus pares, famintos e renegados, ora melancólicos ora histéricos, mas sempre
desesperançados. As relações entre os personagens são destrutivas e superficiais, quase sempre. O
47
pobre é esmagado, nessa sociedade, e ameaça a elite que o esmagou. O espaço físico é marcado
pela decadência, é hostil, sem luz e propício à perdição dos excluídos. Além do espaço, do
próximo e da abulia dos próprios indivíduos, o tempo é um algoz a mais. Por um lado, é
perpetuador da desgraça; por outro, desafiador da estagnação, o que obriga os entes a moverem-se
diante das surpresas apresentadas a cada momento, na luta pela sobrevivência.
3.2- O espaço-tempo de Os Pobres: cronótopos em tons de claro-escuro pesadelo
Os ricos ocupam lugar definitivo e inabalável na existência; os pobres
fazem-se mais pequenos para não ocuparem lugar.
(...) Eu sou feita de terra, da terra que todo o mundo pisa.
RAUL BRANDÃO
A Farsa
Na transição entre o século XIX e o XX, segundo Furness, a arte parecia “ter chegado a um
impasse, todas as suas manifestações deixaram de dar satisfação num nível profundo”. Por isso
mesmo, o expressionismo surge com vontade de superação das correntes naturalistas, que se
“vangloriavam de sua modernidade”; das neo-românticas e simbolistas que, “em sua fuga para o
rarefeito e o refinado”, tornaram-se “ultrapreciosos, decadentes e estéreis”. Eram necessárias “uma
nova visão, uma nova energia e uma nova inquietação” (FURNESS, 1990, P. 10-11):
(...) precisava-se de uma nova paixão, de um novo pathos, da expressão de uma visão
subjetiva que independesse da mimesis, uma preocupação com a vida humana, com o
homem esmagado sob a maquinaria impiedosa e sob as cidades desumanas, que fosse muito
mais intensa e pungente que a descrição naturalista das condições sociais. Outrossim, a ênfase
dada à vida interior, aos poderes da criação, à imaginação acima de tudo, devia sobrepujar o
culto da alma. Mais emoção vital, mais poderes dinâmicos de descrições eram enaltecidos,
uma criação oriunda de dentro, uma subjetividade intensa que não relutava em destruir a
pintura convencional da realidade a fim de que fosse mais forte a expressão: é essa a nova
tendência. E se, nas obras de arte do começo, se encontrassem distorção e expressão
agressiva de emoção, então essas obras eram glorificadas como precursoras da nova atitude.
(FURNESS, 1990, p.10-11, grifos nossos)
Muitos pontos da proposta do expressionismo se encontram na proposta estética de
Brandão e se manifestam em Os Pobres, escritos entre maio de 1899 e janeiro de 1900. Além da
clara subversão ao cânone, a ela se acrescentam traços característicos que aqui serão analisados, de
forma que a narrativa pode ser considerada como lugar de manifestação do expressionismo,
apresentando bem mais do que a distorção e mera expressão agressiva da realidade, conforme se
sublinha no trecho citado.
As descrições dos espaços, marcados pelo grotesco e pela violência, denotam uma
decadência crescente de paisagens e ambientes enegrecidos. O negro é uma tonalidade encontrada
para dar destaque à penumbra do submundo, à miséria, à carência de saneamento, de água, de
energia elétrica e de progresso, à sujeira dos becos e cortiços em que se amontoam os desgraçados.
Tons de negro contrastam violentamente ora com ouro, cor que remete à moeda; ora com violeta
48
ou vermelho berrante que, na narrativa, remetem à desgraça, que são as cores dos hematomas e
sangramentos, causados pelas pancadas, que podem levar os pobres à morte. Os tons de negro
contrastam também com tons mais luminosos, como azul, branco, acinzentado ou verde, cores
associadas ora ao musgo, ora ao enxurro, ao lodo, ao esgoto, ao submundo ou à umidade.
Numa extensão da estética do claro-escuro, explorando mais a fundo os contrastes, sonhos
(mais luminosos, em tons pastéis) se opõem a pesadelos em combinações de cores berrantes; os
risos de escárnio das prostitutas contrastam com seus uivos de dor como resposta às pancadas ou à
fome. Cores altamente expressivas e significativas, fantasmagóricas e assombradas, em cenários
que são verdadeiras telas expressionistas as quais, como O Grito, de Munch (Anexo 1), apontam
para uma interioridade por vezes inconsciente, intuitiva e desconexa, desaguando num non sense
4
,
que é a “vida” dos pobres, aparentemente sem nexo.
A sombra tinge as figuras grotescas de Os Pobres, que permanecem em luto na vida,
experimentando uma morte diária, lenta e dolorosa, e compondo uma paisagem soturna, que
resulta numa estética do horror: “Havia as grandes, as médias e as pequenas (órfãs). As grandes
eram desajeitadas, de mãos enormes, com vestidos negros e grossos. E todas eram feias.
Faltava-lhes não sei que graça, que existe nas que têm mãe” (OP, p. 62, grifos nossos). Os tons
escuros estão nas roupas sujas e maltrapilhas, nas faces surradas pela vida e pelos semelhantes, no
“pacho negro num olho” estirpado da Mouca, no alimento corrompido e nas sobras que os pobres
comem, nos corpos secos, carentes de alimento, de afeto, de descanso e de vestes. Tudo colabora
para a lenta degradação, para o ressecamento e obscurecimento do corpo, da alma e do gesto:
“passei a noite ora a cismar, ora a chorar. Nesse dia pôs-me o corpo negro, como este lenço que
trago na cabeça. Olhai... Ainda tenho as marcas. Estas na cova me passam” (OP, p. 33); “vai
moendo na sua as tristezas, as aflições e o pão negro” (OP, p. 43); “Olha soturna (Luísa), com
os negros cabelos violentos todos soltos e a fisionomia empedrada de mágoa”. (OP, p. 55).
Sombrias são também as casas sujas, despedaçadas, mal iluminadas e úmidas por causa das
chuvas constantes, do acelerado processo de urbanização, do desmatamento e da poluição, que
provocam o desgaste das construções, a erosão e a conseqüente aridez do solo e da miséria, como
nas telas Os Comedores de Batatas e Mulher cozinhando ao fogão (Anexos 5 e 6), de Van Gogh,
ambas de 1885, que apresentam figuras miseráveis, com olhares perdidos e expressões de angústia
e resignação diante do escasso e modesto alimento, para dividir entre muitos na primeira tela. A
escuridão da sujeira das casas, do tempo nublado ou da poluição contrasta com o solo arenoso,
lavado pela enxurrada. A umidade do ar e das casas contrasta com o ressecamento do solo arenoso
e infértil, ambos causados pelas chuvas torrenciais e pela urbanização desordenada, que causa
repugnância ao narrador:
4
Do violento expressionismo para o non sense do inconsciente e da intuição. (PESSANHA, 1980, p. 210-214)
49
Chove, mas a terra árida não tem água nem plantas.
Em volta a cidade é odiosa, pedras sobre pedras, muros atrás de muros. O céu fica
muito alto e se das trapeiras. seres no fundo que nunca levantaram a cabeça...
Andam-se léguas e a cidade não acaba, envolta em fumo cada vez mais negro e riscada de
chaminés cada vez mais altas. (OP, p. 22, grifos nossos)
A fumaça, em tons de negro e cinza, que representa o progresso, corrompe cada vez mais o
espaço, poluindo o ar, sujando as cidades e encardindo as casas. Obscuros são, portanto, os
cenários físicos e sociais, duplos um do outro. Não apenas os personagens da narrativa são pobres
maltratados e explorados uns pelos outros, mas também a natureza, os animais e o espaço são
devastados, transformados e esfumaçados pela ação do homem. O verde da natureza primitiva
inexiste na narrativa, substituído que foi pelas “pedras sobre pedras” das construções que
enegrecem a terra, e pelas “chaminés” que enegrecem o ar e inebriam o homem (“fumo”), com sua
sede crescente e insaciável de dominação: “chaminés cada vez mais altas” “e a cidade não acaba”.
A penumbra da noite é a companheira dos pobres famintos que não dormem, quase sempre
por falta de comida, de carinho, de diversão e de justiça, e intensifica-se pelo medo da
perversidade, do mistério da existência, do frio (“é negro o frio”, OP, p. 148) e da poluição (“rio
negro como lava”), que contamina toda a paisagem:
O ladrão escondia-se. Perseguiam-no, fugira, andara, e nessa noite, com um pedaço de
pão metido entre o seio e a camisa rota, fora dar ao cais. O céu estava negro e o rio negro
corria como lava. A água à noite assusta; fala, atrai, e a sua frialdade tem qualquer coisa de
cova. O rumor das águas lembra um ruído de vozes a concertar baixinho coisas presagas.
(OP, p. 75, grifos nossos)
A noite é, a um tempo, assustadora e misteriosa, mas também bela e atraente; ela contém o
silêncio e a escuridão remetem à morte (“cova”), mas também o “rumor das águas” e a luz das
estrelas, remetem à vida, como na tela Noite Estrelada, de Van Gogh (Anexo 19), de 1889,
também entre a escuridão e a claridade das estrelas, explorando a estética do claro-escuro.
A mesma ambivalência observa-se na “terra molhada” ou húmus: “a terra molhada é dum
negro gordo; um frémito corre nas folhas tenras...” (OP, p. 217). A terra, mesmo poluída, torna-se
fértil húmus, gerando novas vidas sempre, na Primavera, título e/ou tema de vários capítulos da
narrativa: “Primeiro o tronco incha: como ponto negro que estoura, para ser botão e depois
flor... Medita. Está um dia morno e húmido. Saíram das tocas os bichos internados todo o inverno.
Vespas passeiam a sua roupa de oiro no mármore das flores e toda a terra remexe”. (OP, p. 217). A
natureza cumpre seu papel de renovação, dando à luz novas criaturas, ainda que acabem
ciclicamente contaminadas e deterioradas pela vida/poluição.
Observa-se que as cores escuras da paisagem poluída contrastam com a luminosidade das
novas vidas que paulatinamente perderão o brilho e a cor e se tornarão escuras num ritmo
crescente até serem preenchidas pela morte, num ciclo que se tinge de claro-escuro, num degradê
que se estende desde o começo branco, luminoso, até o fim “negro gordo”, que alimenta novos
50
ciclos. O preto e o branco são também o início e o fim na escala das cores ou, segundo Chevalier,
“cor e contracor, as duas extremidades da gama cromática” (2001, p. 141), “o ponto de partida e o
ponto de chegada” (CHEVALIER, 2001, p. 633); entre eles situam-se todas as cores. Entre a luz e
a sombra, estão a primavera e a natureza que, ainda que férteis e renovadoras, não podem conter o
breu que se espalha pelo espaço e se apodera gradativamente dos seres. Trata-se do tempo que,
belo e tenebroso, limita as existências, dividindo-as em ciclos, dentro do que Coelho chamou de
“tempo cósmico”, repetitivo, “da condição humana de sempre” (COELHO, 1976-a, p. 222). Entre
início e fim, claro e escuro, luz e sombra, a misteriosa existência. O claro-escuro é, portanto, o
espaço-tempo, o cronótopo
5
que rege o ciclo da vida: o nascimento (início, luz), a existência
(intervalo de vida em cores) e a morte (fim, breu).
Esse cromatismo tão simbólico observado em Os Pobres e n’O mistério da árvore, cabe
ressaltar, corresponde à influência simbolista inegavelmente presente na obra de Raul Brandão. O
verde aparece com duas nuances na obra: uma luminosa e uma noturna, o que se justificaria,
segundo Chevalier, pela dupla polaridade dessa cor: “o verde do broto e o verde do mofo, a vida e
a morte” (2001, p. 943). O verde luminoso, na obra, representa uma natureza arquetípica e perdida.
Já o verde noturno ou o esverdeado colore a doença, a umidade, a sujeira e a degradação.
O verde luminoso remete a uma paisagem natural e aconchegante, com um “valor mítico
dos green pastures, dos paraísos verdes dos amores infantis, da juventude do mundo”, segundo
Chevalier (2001, p. 940). Mas, esse verde associado à luz refere-se a uma natureza longínqua e
inatingível, como um sonho perdido e inalcançável, ou que não se fixa, salvo na imaginação e na
intuição que o Gabiru tem sobre a vida, a existência e o cenário fora dos limites do “enxurro”,
onde vive. Para Chevalier, isso ocorre porque, “desde que a civilização industrial ameaça a
natureza”, o verde ganha “um tom de nostalgia, como se a primavera da terra fosse desaparecer
inexoravelmente sob uma paisagem de cimento e aço” (2001, p. 942):
(...) para lá do Hospital é para ele um grande mar ignorado e verde (...)
(...) Nunca me pude habituar a olhar a natureza cara a cara. Isto! que significação tem
isto? E um sonho, um grito de beleza, uma alma? Montes verdes e etéreos ao longe,
constelações infinitas, névoa que do mar nasce e sobre o mar vai, como um portentoso rolo,
como um giganteu fantasma...
(...) Todas as manhãs é como se pela vez primeira me achasse diante da monstruosa
natura verde, oiro, azul, com os seus rios, florestas, o mar a bramir e árvores que são
seres, vida que pressinto extraordinária e que nunca vi ao pé!...
(...) E eis-me perdido no canto duma negra trapeira, encolhido e esguio, a sonhar em
quê? Naquele universo verde e ígneo que está para das pedras... (OP, p. 37-38, grifos
nossos)
5
Segundo Fernandes, nos estudos de Bakhtin, o cronótopo é empregado em dois sentidos, stricto e lato, “como
unidade de análise narrativa que permite a aplicação a textos literários concretos, encarados na sua singularidade” e,
em sentido lato, como “unidade de estudo susceptível de detectar estruturas invariantes e trans-históricas”. A “dupla
operacionalidade é possível dada a natureza bifocal do cronótopo, como a maior parte dos termos característicos do
dialogismo”, podendo ser “utilizado como uma lupa reveladora do pormenor característico do texto único ou como o
óculo adequado à visão distanciada”. Assim, “tanto podemos apreender e caracterizar o cronótopo de um texto
concreto, como podemos falar do cronótopo característico de um autor ou de um gênero”. (FERNANDES, 2005)
51
O mistério da vida pertence aos domínios do tempo, representado pela natureza, que está
cada vez mais distante e longínqua, como reconhece Gabiru, “naquele universo verde e ígneo para
lá das pedras”:
Oh! e horas, quando uma neblina de sol cai sobre as coisas estarrecidas, todas
verdes, em que eu quase toco o mistério. Ouço as palavras da natureza numa linguagem de
que não compreendo o sentido. Os sons são sílabas perdidas, umas de oiro, outras verdes. O
ar é fino, alma empoada de luar, as árvores desmaiam e os grandes montes pálidos, onde o sol
deixou fuligem, que vai esmorecendo até ao vir da noite, falam baixinho, entontecidos. Mais
tímido é o murmúrio das fontes, como se não quisessem perturbar o espantoso diálogo. É
esta a melhor hora para se ouvir e em que eu quase entendo as palavras, coisas
desfalecidas: árvores vão tombar de emoção e de tudo o que existe sai uma prodigiosa alma
etérea e viva, que me envolve e toca, e que fala! que vai falar!... (OP, p. 39, grifos nossos)
A Natureza desperta no filósofo Gabiru e no narrador, “poeta filósofo”, segundo Dalila
Costa (1999, p. 346), uma tendência ao sonho e à digressão reflexiva sobre a existência e o mundo,
mistérios que estão sempre por decifrar e a um passo da decifração, como num interminável jogo
de leitura da linguagem da natureza e tentativa de decifração da sua simbologia, vista como duplo
do Absoluto, mais tarde investigado pelo Fernando Pessoa ortônimo (COSTA, 1971) em sua
poesia. Se a Natureza é a portadora do segredo da existência, desvendando-a o homem talvez
desvende a si e entenda um pouco melhor a condição humana e o sentido da existência. Por isso, o
Gabiru e o narrador, “exemplos de “homem[ns] unido[s] ao mundo, perfeito antropocosmo”,
assumem uma “posição de inquirição amorosa” (1999, p. 346-347).
Por outro lado, os objetos são esverdeados na obra quando corrompidos, velhos,
embolorados ou lodosos, como se pode observar num fragmento em que o Gebo e outros falidos se
reúnem e um deles traja um “casaco verde” (OP, p. 48) de velhice, de bolor e de sujeira.
O mar da narrativa é verde, mas não de esperanças; é destrutivo, transporta a tragédia
humana, como o enxurro, segundo fala do Gabiru em diálogo com o Pita: “O mar, que daqui ao
longe, todo de poeira verde, é trágico e feroz. Brame de fúria, despedaça. É esverdeado e cheio de
cóleras...” (OP, p. 42). O mar e o enxurro são corrosivos e inconstantes, responsáveis pelo caos e
pela desagregação da matéria, recuperada depois pela natureza construtiva para germinar vidas. Do
mesmo modo, todas as águas em movimento: lágrimas, chuvas e rios, são erosivas e rançosas,
sempre as mesmas, presentes na cíclica existência terrena, animal, vegetal ou mineral.
O dia, na obra, praticamente existe para o Gabiru sonhador. Ao contrário, a maioria vive
à noite em verde e negro. As cores diurnas são ouro e verde, natureza e sol, vegetação e luz, luz
cuja incidência fará toda a diferença na paisagem: “Eu sei, eu vejo do meu quarto: havendo sol é
belo: é tudo de oiro e verde. Sei que árvores, o mar, rios, mas nunca ninguém os viu ao pé...”
(OP, p. 103) Os demais personagens, em sua maioria, mostram-se sombrios, destrutivos e
incompatíveis com uma natureza luminosa e verdejante, com o sonho e com a beleza.
52
O Gabiru não se acostuma com a perversidade humana, com o submundo, com a dor e, por
isso, prefere o isolamento, a solidão, o sonho, à acomodação às sombras. A natureza verdejante e
luminosa aparece também em digressões filosóficas dos narradores, nos capítulos da primavera e
nos debates entre o Gabiru, o Astrônomo e o Pita, às vezes com um traço ambivalente, entre bela e
sinistra, a um tempo destrutiva e construtiva, misteriosa e reciclável: “É uma coisa esplêndida! É
ao mesmo tempo a frescura e o fogo, um incêndio verde que pacifica e estanca toda a sede. Águas
a rolar e árvores esgalhadas falando... Sabeis o que são árvores? ali montanhas de riqueza,
tesouros para da dor... Deitai abaixo!” (OP, p. 126). Eles três também discutem a devastação
irresponsável da natureza pelo homem: “Todo o globo é revolvido para abrigar o homem. A árvore
e a ossada da terra são arrancadas para o servirem”. (OP, p. 22)
Assim, as verdes águas, que levaram os portugueses em viagens a terras distantes, em Os
Pobres conduzem também a mundos desconhecidos, mas ao íntimo do ser, a mistérios
desafiadores e insolúveis para além da vida: “Folhas caíam e iam devagarinho viajar sobre a água
verde. Para onde?... Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes quantas vidas protegi e
defendi!... As minhas raízes tocavam na vida!...” (OP, p. 153)
As cores do mundo aparecem como parte de um meticuloso e interminável trabalho de
reciclagem da natureza, a qual transforma tudo e todos em que depois originará novos entes
coloridos:
(...) O mundo é misterioso, cheio de gritos. A cada passo um túmulo donde renasce um
amálgama, uma poeira verde, azul, doirada, cova onde o Desconhecido remexe formas: o
mar, as criaturas, as pedras, as tempestades, tudo vivo e a falar! O homem passa inconsciente,
mas eu tremo de pavor.
Estas pobres criaturas que vivem no mesmo prédio em que eu habito, ladrões,
filósofos, coveiros, mulheres perdidas, são esmagadas para que alguma coisa se crie. Geram
o mistério e o mar bravo da dor. (OP, p. 41, grifos nossos)
É uma torrente, um rio subterrâneo branco e verde, que vem à supuração? Um riacho
de tintas, brotando à superfície do solo em labaredas verdes, todas roxas, inteiramente
brancas? Há verdura tão ténue que di-la-íeis uma névoa verde; folhinhas que parecem feitas
de um hálito que se pegou aos troncos. (OP, p. 218, grifos nossos)
À árvore, como representante da longevidade da natureza, representante do ciclo da vida, é
dado um destaque especial em Os Pobres, como se viu no conto O mistério da árvore, tanto nas
passagens em que se aborda a natureza e o verde como no encerramento do capítulo têm os
senhores a natureza!”, que fecha a obra, a partir da segunda edição:
Estes pedaços são arrancados às reflexões filosóficas do Gabiru, a que chamou A
Árvore. A Árvore por quê? Porque com ela germinaram, deitaram grandes ramos, raízes
subterrâneas e fundas. A Árvore sustentou-se de desgraça. As suas raízes alimentaram-se
deste húmus – a vida dos pobres. (OP, p. 219)
O ouro é uma das cores mais mencionadas na obra, depois do negro. Ele é
plurissignificativo, remetendo por vezes à sua significação mais corriqueira e previsível, de apego
53
ao dinheiro, aos bens materiais e ganância, como nas passagens a seguir: “O homem trabalha
desesperado, atrás do oiro, da ambição, da vaidade, do sonho vão, para quê? Para ser desgraçado”
(OP, p. 135); “Por cada homem que amontoa oiro, cem criaturas morrendo no desespero e na
aflição”. (OP, p. 136)
Entretanto, o ouro pode remeter também a sol, luz e fogo, que consomem e alentam; para
água, córregos, lágrimas, mar, natureza ou, em níveis mais profundos de significação, para chama
da vida, sonho, emoção, sensibilidade, intuição, desejos e sofrimentos, como em “dum farrapo de
nuvem como um sudário a rasto, dum raio de luz em pó, todo de oiro vivo, que entra no meu
quarto.” (OP, p. 38); em “Uma luzinha, que brilhava ao largo deixando na água um fio de oiro
trémulo, de todo se sumira.” (OP, p. 77); ou em “como agora acontece desde março, o sol lhe
deixou poeira de oiro nos galhos. Vai-se o sol embora e ainda lhe fica sol nos ramos” (OP, p. 140).
O ouro representa, não raro, objetos ou sentimentos diferentes e, por vezes, contraditórios,
como nas passagens: “Ao fim da tarde levanta-se dos campos um lindo luar azulado que sobe e se
dispersa. É a névoa. Baba de oiro luz na água e os choupos são sombras”. (OP, p. 209); “Oh aquela
brasa que ainda reluz como uma poeirinha de oiro, aquela brasa que vai morrer no lar quase de
todo apagado!...” (OP, p. 88); “O homem é uma fonte onde a vida corre límpida ou turva, num fio
que a emoção torna de oiro” (OP, p. 81). Nelas, “o ouro-luz é o yang essencial, símbolo do
conhecimento e da imortalidade” (CHEVALIER, 2001, p. 669), é a alma, não apenas a humana,
mas a alma contida em tudo. Quase sempre se refere ao imaterial, à intuição, ao sonho e aos
desejos dos seres animados ou inanimados, racionais ou irracionais, que fazem parte da natureza.
A contradição pode ser também representada pela aproximação do ouro a uma cor contrastante,
como na “emoção violeta e oiro” (OP, p. 38), sentida pelo Gabiru, ao intuir a dupla articulação do
ser, material e imaterial.
O azul, por vezes, também remete a algumas dessas significações do ouro, como em:
“poeira azul que embebe os seres e as coisas” (OP, p. 22), “luar azulado” (OP, p. 154).
Normalmente, na obra, o ouro remete ao imaterial, ao tempo e à vida que se esvai
lentamente dia a dia: “Posto à janela do cubículo espreita por cima do Hospital, sente correr o
doirado jorro dos dias” (OP, p. 37). O ouro, associado ao passar do tempo, também aparece nas
gotas que pingam, na chuva que cai, no rio que passa, no sol que irradia enquanto caminha para o
poente, dando vez à noite e às estrelas: “O Gabiru curvado mergulha as mãos afiladas e negras na
poça. Tira-a depois para fora fascinado. As gotas daquela água turva caem qual oiro líquido,
trespassadas pelo sol, num chuveiro de faíscas. Eis estrelas! exclama comovido”. (OP, p. 215).
Cabe ressaltar que é do tempo dos pobres que se fala, por isso mesmo as gotas são de lama do
“enxurro”, lama que, contraditoriamente, comove e faísca como ouro, a um tempo preciosa e
mesquinha, numa síntese extraordinária.
54
Assim, “é tudo de oiro e verde” (OP, p.103), porque tudo, nesse universo ficcional, é
duplamente articulado, material e imaterial, natural e sonho, exterior e intimidade, matéria e alma.
O imaterial é limitado pelo material e vice-versa, compondo mais um ciclo: “As fontes deitam
oiro, as plantas têm fios de oiro e no chão toalhas e caminhos de oiro e sombras” (OP, p. 217).
Em outras palavras, a matéria ou a existência carnal é limitada pelo tempo imaterial, que
lentamente se esvai, mas a alma e o sonho imateriais também são limitados pela existência
material que os aprisiona. Árvores, montes, terra e húmus e não somente os seres humanos e
animados, são compostos de verde e ouro, para o Gabiru e para outros narradores: “sinto um ar
vivo que é a respiração dos montes adormecidos, batendo como ondas nos muros compactos do
hospital, e ruídos, claridades, mistura de oiro e verde, gorgolejos de minas, chuva de sol e de água
tombando” (OP, p. 86, grifos nossos).
O espaço é um labirinto, que germina e abriga o ser, durante seu intervalo de tempo
limitado em vida, que Coelho chamou de “tempo individual” (COELHO, 1976-a, p. 222). Por
outro lado, a matéria dos seres mortos alimenta novas vidas cíclica e infinitamente. Assim, faz-se o
tempo da natureza: cíclico e infinito.
O tempo meteorológico, também cíclico e infinito, encarrega-se do desgaste e da corrosão
dos seres, precipitando a deterioração e a morte, que alimenta o ciclo vital: “A ventania açouta o
casarão e passa, levando poeira de cisma, ais, para outro mundo ignoto” (OP, p. 21). O vento, que
é meteorológico e metaforiza a passagem do tempo, é também veículo da desgraça que ecoa nos
ambientes. O vento ou tempo perpetua e agrava a desgraça: “É noite. A ventania redobra e nas
lufadas que passam viajam gritos, catástrofes, lamentos” (OP, p. 20).
O tempo em Os Pobres é, quase sempre, chuvoso, frio e escuro, exceto para o Gabiru, um
dos poucos personagens que, por causa do seu sonho ou do seu otimismo, vê o sol, o dia e a luz. A
água, a lama e a umidade são constantes na obra e exercem papel fundamental, minando o chão,
construções, vidas e seres, adoecendo os pobres, degradando casas e vidas, tornando o solo
escorregadio, fétido, movediço e até insólito, fantasmagórico e escuro. Como no quadro A
Tempestade, de Vincent Van Gogh (Anexo 12), em que a chuva forte castiga e varre o cenário
cinzento, ainda que também irrigue o solo, preparando-o para que a natureza de novo brote; a
chuva e o vento frio são constantes em Os Pobres e essenciais para sustentar e perpetuar o
“enxurro” de desgraças e de desgraçados que, em simbólicas torrentes, arrasta os pobres pela vida
em ritmo frenético sem que tenham tempo, nem esclarecimento, nem instrução para formular
estratégias de libertação ou de melhoria de vida, sequer tempo para refletir sobre sua condição de
excluído ou de explorado. Esse “enxurro” é pior que um purgatório, é um vale de lágrimas, que se
avoluma à medida que aumenta o número de pobres e de desgraças. Quanto mais lágrimas, maior o
55
metafórico rio ou enxurro, que arrasta os pobres freneticamente nessa “vida húmida, torrentes de
detritos” (OP, p. 39).
O “enxurro” de desgraças, de seres e de espaços, alimentado pelo tempo meteorológico,
engloba o espaço social e o físico, de forma que todos são arrastados e sofrem erosão e ruína nesse
rio de lama. Nessa massa de pobres não ganha relevo uma nacionalidade específica que reúna os
seres, que agregue as pessoas. Espaço e tempo são universais, sem qualquer menção a país, estado,
local ou época, ano ou século: órfãos, ladrões, prostitutas e outros “desgraçados” que habitam
hospitais, orfanatos, casarões e cortiços. Apenas as estações do ano ou meses são citados. Não
referências textuais à nacionalidade portuguesa, a Portugal ou a espaços exclusivamente
portugueses. Parece muito mais importante a questão da condição humana do que a da
nacionalidade. Em outras palavras, os problemas de então: individualismo, exploração,
materialismo, indigência, descaso ao outro, são focalizados prioritariamente na obra, problemas
humanitários ou de toda a humanidade, independentemente de fronteiras nacionais.
A noite é, geralmente, a hora predileta dos desgraçados: “Com a noite redobra a vida desta
multidão feita de terriço: certos homens são sonhos, outros gritos. Põe-se o Gebo a contar a sua
história, surge uma velha trágica, com o caio dos palhaços” (OP, p. 21). Protegidos pela penumbra,
na sombra da vida e dos ricos, invisíveis, fantasmagóricos, ora saem para assombrar aqueles que os
marginalizam, ora buscam um pouco de prazer, um momento de euforia, uma tentativa de escapar
à desgraça que persiste e não deixa o pobre. Trata-se de um prazer trágico, simulação de prazer:
A casa das mulheres de dia é fúnebre, mas de noite, à luz do petróleo que esvoaça e
deixa tudo numa meia tinta de aflição candeeiros partidos, luzes fumarentas lembra um
circo de desgraça, onde palhaçadas trágicas façam gargalhar e onde os ladrões e as mulheres
enfarinhadas representem a sério vícios e crimes, com risos e choros à mistura, para que o
público que paga se possa rir. (OP, p.54)
Se a existência é trágica
6
, mais trágica é a do pobre, para quem nem o prazer, nem a alegria
são possíveis, sequer lícitos. A situação da mulher pobre é ainda, quase sempre mais grave.
Trabalha, prostituindo-se ou servindo, apanhando e se humilhando, e torna-se objeto da violência e
da humilhação, o que a coloca num plano inferior àquele em que se situa o homem pobre.
Não lazer em Os Pobres. À noite, o rico dorme, dono do dia, da luz, da lei, da alegria,
do contentamento, do dinheiro e do mundo, contrapondo-se ao do pobre e compondo mais um jogo
de claro-escuro. Mesmo nesses momentos de prazer subversivo dos pobres ou do prazer que lhes é
possível, “o público que paga” pelas “palhaçadas trágicas” representadas por ladrões e “mulheres
enfarinhadas” se faz presente. O rico se beneficia das desgraças e das “palhaçadas trágicas”, seja
6
O drama trágico ou tragédia, seguindo os ensinamentos de Aristóteles (s/d, p. 248 e 255), é “a imitação de uma ação
(mito ou fábula) importante apresentada por atores (personagens) que, suscitando a compaixão ou o terror, tem por
efeito obter a purgação dessas emoções” em decorrência de um infortúnio, “acontecimento patético (catástrofe) que
provoca morte ou sofrimento” ao herói. Assim, a condição humana é trágica, e sobretudo a situação do pobre na obra
brandoniana, porque conduz invariavelmente à morte.
56
ao comprar jornais ou ao freqüentar prostíbulos em busca de prazer mórbido ou de diversão. Esta é
outra forma de explorar, humilhar e escarnecer o pobre.
Sem a pobreza não existe a riqueza; são as duas faces do claro-escuro, presente em tudo o
que se manifesta no texto. Segundo o narrador, sem a miséria do explorado não existe a fartura do
explorador; por isso interessa a estes a perpetuação do sistema de exclusão social. Para alguns,
uma desgraça maior (“circo de desgraça”) ameniza as desgraças particulares do sujeito, alentando-
o (“para que o público que paga se possa rir”) e fazendo com que se sinta melhor, menos
desgraçado e mais feliz.
A morte, vista por muitos pobres como o fim do sofrimento na terra, é desejada e cultuada,
mas o tempo é impiedoso com os pobres: “nem a Morte escuta os desgraçados, nem o tempo se
apressa; vai moendo na sua as tristezas, as aflições e o pão negro” (OP, p. 43, grifos nossos).
Aliás, Brandão e outros pós-impressionistas não apenas tematizam a noite, a morte, a natureza
morta e o artificial como contrapontos da vida e da luz, quanto exploram esteticamente o
cromatismo desses contrastes. É o que se observa na tela Pirâmide de crânios (1898-1900), de
Cézanne (Anexo 15), que, segundo Rogério Bettoni, remete à “brevidade da vida” ou à morte, mas
também, contraditoriamente, à vida que animou a matéria ora morta. São exemplos também de
exploração estética da morte em contraste com a vida e em contrastes de cores berrantes, os
quadros Natureza morta com flores (Anexo 16), de Van Gogh, e Natureza morta com maçãs e
laranjas (Anexo 20), de Cézanne. Os dois exploram tonalidades de vermelho e laranja,
contrapostas à luz e à sombra, ao branco e ao preto. Num quadro, vermelho e laranja são as cores
das frutas, natureza já morta que serve de alimento a outros seres. No outro, vermelho e laranja são
as cores das flores, ao mesmo tempo responsáveis pela fertilidade, pela vida, como parte do
aparelho reprodutor das plantas, mas também natureza morta, porque cortadas. Todas encerram em
si traços da vida e da morte, do claro e do escuro, da luz e da sombra, num jogo de oposição e
complementaridade e numa representação nada realista, mas distorcida e subjetiva, como ensina
Rogério Bettoni, em seu artigo “Tornando viva a natureza morta”:
(...) Mais tarde, outras representações, fora do contexto religioso, definiriam mais uma
função da natureza-morta a caveira representava a brevidade da vida. (Paul Cézanne
Pirâmide de Crânios, Grand Palais Exhibition, Paris, França, 1900). (...) Na obra de Cézanne,
“Natureza morta com maçãs e laranjas”, por exemplo, uma preocupação estética por parte
do artista que não se resume, apenas, à mera representação científica do objeto. A distorção
provocada pelos objetos pintados, tomando como origem diversos planos de perspectiva,
denota um afastamento dos preceitos do Naturalismo. Cézanne, nessa obra, preocupa-se em
preencher todo o espaço da tela, aplicando assim novas técnicas de angulação nessa
representação. A realidade, agora distorcida, representaria dois pólos distintos: o da realidade
científica e o da visão que retratava distintas “realidades”.
57
Tanto na obra literária de Brandão, quanto na pintura expressionista, a distorção das
imagens desafia os padrões e reivindica múltiplas possibilidades subjetivas de representação para
um objeto, mesmo que aparentemente contraditórias.
Contraditório, na narrativa, é também o tempo, que o pobre sente como parado. O tempo de
vida parece aos pobres pior do que a morte, como morte em vida ou mortificação lenta. Por isso,
viver é cansativo, tedioso e parece perda de tempo ou tempo perdido. Por isso, o tempo preferido
pelos pobres é o passado, pois é o tempo morto e “do tipo proustiano, recuperação dum
momento inefável, [que] logo volta a perder-se”, segundo Coelho (1976-a, p. 222). A dor passada
é a que menos dói, menos que a dor do presente ou que a misteriosa dor futura. Às vezes, é mais
amena a dor do rememorar, que a memória é seletiva e pode apagar o que não interessa e/ou
atenuar o que não foi bom: “O melhor tempo que eu vivi foi o da enfermaria. Havia uma irmã
que me beijava e fazia festas...”. Mas, de acordo com o objetivo do sujeito, a memória tanto pode
suavizar o evento passado, quanto agravá-lo no presente. Pode também subvertê-lo pelo riso, como
faz a Mouca, para tornar cômicas as lembranças trágicas; o que torna mais patética a cena:
uma que ri de tudo. É magra, pálida e gasta. Traz um pacho negro num olho e ri
sempre, com um ar de máscara, de si, das outras e de todas as desgraças.
Eu sou a Mouca começa ela às risadas. A minha mãe deitou-me fora era eu
pequenina, e eu, se tivesse uma filha, botava-a à roda pra ganhar a vida. (OP, p.30)
O objetivo é, senão neutralizar, ao menos banalizar males passados ou aparentar descaso
por eles, tentando mascarar o inconformismo e a autopiedade, ainda que nem sempre o consigam.
Bom exemplo é o da Mouca Mouca, que ri descontroladamente das memórias da sua desgraça e
orfandade.
O tempo e o espaço são labirínticos, por mais que se pense sobre eles ou se deambule por
eles, não solução, não saída para se fugir à desgraça. Por todos os caminhos os pobres de
Raul Brandão encontram dor. Os caminhos parecem descaminhos e a vida é vã: “Sozinho o Gebo
cismava muito tempo, olhando a luz. Depois, horas e horas, ouvia-se a pena correr no papel, parar,
tornar... E vão cinco, e vão sete... noves fora nada... até que a vista se lhe toldava, e a desoras,
embrulhado no cobertor, tombava sobre a mesa, soluçando”. (OP, p. 46). A única saída para o
labirinto do mundo e da vida (tempo-espaço) parece ser a morte, para alguns personagens, já que o
narrador e o Gabiru, por exemplo, sentem o tempo cíclico do universo, em que toda morte
matéria a novas vidas.
Como o homem é desconhecido até de si próprio, porque o tempo passa, vem a morte e
ele não esteve sozinho! Se estou vêm falar-me vozes eu mesmo mas com que palavras
únicas! Os seres de que sou composto, se me habituo à solidão, nos primeiros tempos
balbuciam, mas depois falam! pregam!...
Tenho a certeza de que fui árvore e é por isso que tanto as amo. (OP, p. 50)
58
Só as épocas de Natal e algumas primaveras parecem menos perversas, como pausas para o
horror, épocas luminosas que contrastam com as épocas sombrias do resto do ano. A estética do
claro-escuro também é via de acesso à compreensão do tempo: vida-morte, noite-dia, chuva-sol,
frio-calor, épocas de caridade e contraditoriamente de perversidade. Um capítulo é dedicado ao
Natal dos Pobres, o último da primeira edição e penúltimo da segunda, e dois capítulos são
dedicados à primavera, VII Primavera e XX A outra Primavera, fora as menções a ela em outros
capítulos.
O verão, tempo de frutos; o outono, tempo de folhas secas; e o inverno, tempo de morte que
aduba a terra, são épocas de luta pela sobrevivência, de dor, de riscos e de morte. Enquanto isso, a
primavera é responsável pela parte mais agradável da vida e do ciclo vital: a reprodução, a
concepção, o tempo de flores, de acasalamento, de prazer, de amor, de começo ou de recomeço, de
renovação dos seres ou para os seres e de renovação da própria natureza:
Tomaram. Tenho pensado nisso. Pois foi a primavera. Você tem visto um charco,
lama e água revolvida? Vem a primavera e aquilo transforma-se. O mesmo sopro que faz
bater mais alto; o coração dos montes cria naquele palmo negro a vida murmúrios, gritos,
um arrancar de mistério. A primavera faz isto; transforma o húmus inerte numa vida furiosa.
Eu já vi... (OP, p. 123)
A “época primeira ou aurora” (FERREIRA, 1999, p. 1637) é a que inicia o ciclo da vida,
remetendo a juventude, força criadora, luminosidade, vigor, fertilidade e parece tentar deter o
ímpeto destrutivo dos seres (“tira a força”), em favor da concepção, da construção da vida, como
demonstra essa fala do Morto:
– Não sei porquê, este tempo aflige. Não devia haver este tempo.
– Qual?
Este, de primavera. Até na cadeia, quando numa noite assim o luar consegue entrar
pelos buracos, os ladrões acordam sobressaltados. Tenho visto assassinos abalados. Havia
duma vez um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas
encostou a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar. Este tempo tira
a força. (OP, p. 138, grifos nossos)
A primavera luminosa fortalece o potencial criativo e construtivo dos seres e, por outro
lado, enfraquece o ímpeto destruidor e pervertido, como se estimulasse a criação e inibisse, ao
menos momentaneamente, a destruição. Deste modo, “tira a força” dos assassinos, inibindo neles o
ímpeto destruidor, neutralizando a agressividade deles e despertando neles momentâneas
inclinações artísticas (“cantar”) e/ou reflexões (“aflige”, “abalados”).
Incompreensível para muitos pobres, a primavera pode ser encarada como algo perturbador,
porque representa uma quebra no cotidiano de dor, sofrimento, luta e morte a que o pobre se
habituou: “A primavera isto! O amigo desvaira. Como a primavera? Eles aparecem de noite,
criam-se nos saguões. Deparo com criaturas que nunca vi. Uns são lama viva, outros que são?...
Homem, dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo” (OP, p. 123). A primavera é um tempo
59
misterioso e perturbador também porque contém em si e guarda o segredo da origem da vida. Por
isso, constitui a época perfeita para as investigações do Gabiru e do Pita, na obra.
No entanto, em relação aos pobres, as primaveras nem sempre podem cumprir seu papel de
trazer prazer, amor e renovação, por causa do ambiente de decrepitude e perversidade em que se
inserem. A “Primavera” do capítulo VII enfoca as prostitutas e suas desilusões, o esgoto com sua
“seiva dolorida que fará nascer um dia alguma misteriosa Árvore” (OP, p. 55) e também o “sonho
que para o esgoto é a única realidade” (OP, p. 55), num presente de desilusão. “Vivem de um
passado de fogo”, que as lembranças alimentam e consomem as prostitutas; ou vivem de sonhos
para o futuro e tudo são frutos da pura imaginação. Assim, o Gabiru “olha a Mouca a sonhar”,
sempre “a cismar”; em ambos os casos “farrapos de sonho espezinhado”.
Um misto de fertilidade e esterilidade afeta matéria e sonhos nesse capítulo: são prostitutas,
profissionais do sexo, mas desiludidas. Não são amadas, não procriam, salvo a Asilada Luísa que
procriou antes de tornar-se prostituta e execra a filha. Os ladrões são figuras errantes; perversos,
vão e vêm, fazem sexo com as prostitutas, mas as maltratam, quase sempre: “Os homens são todos
o mesmo, falam todos pela mesma boca. A gente, coitada, prende-se, mas vem a morte e tudo leva
consigo”. O Gabiru ama e não é correspondido, mas continua a sonhar, mesmo desprezado e
humilhado. Mas, a “Primavera” se impõe. Sonhos germinam, ao menos temporariamente, que a
matéria é estéril, pois, ainda que brotem “Árvores”, a matéria morta fertilizará. De um modo ou
de outro, a fertilidade da “Primavera” sempre se impõe.
“A Outra Primavera”, a do capítulo XX, é a da Natureza, que não deixa de conter a
anterior, a “Primavera” dos pobres, de cuja matéria morta germinou a “misteriosa Árvore imensa
que enchia o mundo” (OP, p. 124), investigada e amada pelo Gabiru, que enfim consuma pan-
eroticamente seu amor pela Mouca, num novo amor cósmico, de sonho e matéria, também misto
de fertilidade e esterilidade. “A Outra Primavera” é a da “lama viva” em que “todos os sonhos
tomam corpo”, em que “homens e sonhos misturados num rio que tudo acarrete”, ou a matéria, a
terra, a água, enfim “a floresta prodigiosa” e feminina é fecundada pelo “jorro branco do raio de
luar”, pelo “vento carregado de pólen”, como num lindíssimo e cósmico ato sexual que fecunda a
Natureza:
– É a Árvore!
– Calem-se! calem-se!...
Calaram-se todos e depois durante um momento, sob o luar magnético tiveram a visão nítida
duma floresta imensa... Viram a floresta prodigiosa, a floresta calada, sob o jorro branco do luar.
Silêncio e depois do silêncio corre um murmúrio que vinha de muito longe, agitou as folhas, trouxe
consigo vozes de bichos, ruídos indistintos e por fim o vento carregado de pólen e a voz dum mar
que se espraia. O rumor dum bicho na folhagem tornou o silêncio mais profundo e mais sagrado.
(...) (OP, p. 125, grifos nossos)
O masculino é aquele que vai copular, errante, instável (“luar”, “vento” e “mar que se
espraia”), enquanto o feminino é aquele que espera, recebe e sofre.
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Enfim, as primaveras são pausas luminosas que contrastam com o lado sombrio da
natureza: “nessa primavera o vento trouxe por cima dos telhados duas borboletas que vieram
noivar no saguão” (OP, p. 91), mas no caso dos pobres, nem sempre a natureza pode fazer bem o
seu serviço. As condições sociais, mais uma vez, interferem negativamente nos processos naturais,
como se viu em relação à sombra da poluição que se espalha pelo cenário. parcialmente a
primavera ameniza o caos social, ou só para alguns, e bem rapidamente.
O amor, que poderia expressar o primaveril, juvenil, luminoso, esperançoso, cabe ao
Gabiru e ainda assim apenas no sonho, no ideal, porque na “realidade” o amor (sobretudo o seu,
idealizado) é inviável, como é inviável e vedado o amor à Mouca e a todas as prostitutas, ladrões e
outros marginais, presos a uma sensualidade vazia, amarga e estéril ou a uma abulia imobilizadora.
O Gabiru sentiu-se aquecido, como a terra quando vem a primavera. Ia criar! ia
criar!... Aquele chão que o arado do sonho lavrara, ei-lo atravessado por este veio turvo,
que tudo remexe e transforma – a vida.
Consumira-o o sonho, tornando-o cambado e gasto, esguio e de olhos perdidos de
cisma... Acordara enfim para a realidade e ele, que tinha passado a vida a revolver um brasido
de ideias, longe da terra e do seu lodo, amou a Mouca, rasa como o chão. Todos se riam dela,
magra e pálida, de pacho num olho, com um ar de máscara que vai gritar de aflição.
O seu ideal prendera-lhe os olhos tal qual no-los prende o lume, de forma que, ao
erguê-los, dera de cara com a vida e perguntara: Que é isto? O mundo, a tempestade, tudo o
que do cubículo vejo, arfando ao sol, penetrado de ruídos e de sombras? (OP, p. 53, grifos
nossos)
A riqueza simbólica da Natureza nesses capítulos não se resume ao masculino e ao
feminino, à sensualidade, à física e ao Mistério da Vida, mas também aponta para a especulação
metafísica, de um misterioso sagrado de que a Natureza seria representante e símbolo, investigado
pelo Gabiru, pelo Astrônomo e pelo Pita de olhar imaginativo e sonhador. A Natureza de A Outra
Primavera é fecunda e progenitora de elementos e entes do mundo físico; é também representação
de uma simbólica metafísica. Renova não apenas a Natureza física, fazendo circular a matéria
orgânica, mas também renova sonhos, fazendo circular essa “matéria inorgânica”, impalpável,
metafísica, “união do homem com a Natureza até ao céu unindo imanência e transcendência”
(DALILA, 1999, p. 351). Prova disso é este diálogo entre o Pita e o Astrônomo, personagens
inquietos e indagadores como o Gabiru, instrumentos do narrador na “tentativa de dar forma pelo
verbo ao mistério”, investigando a “amplidão naturalista e os limites cósmicos” (DALILA, 1999,
p. 346-347):
(...) Homem, dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo.
– Tomaram. Tenho pensado nisso. Pois foi a primavera. Você tem visto um charco, lama e
água revolvida? Vem a primavera e aquilo transforma-se. O mesmo sopro que faz bater mais alto; o
coração dos montes cria naquele palmo negro a vida – murmúrios, gritos, um arrancar de mistério. A
primavera faz isto; transforma o húmus inerte numa vida furiosa. Eu já vi... (OP, p. 123, grifos
nossos)
61
Desta maneira, A Outra Primavera é o espelho da “Primavera”, o reflexo invertido da
anterior. Uma aguça o olhar para o processo físico e a outra para o Mistério metafísico. Ambas
enfocam a fertilidade da Natureza.
Mas, a Primavera centra-se na vida física das prostitutas, ocupadas e preocupadas mais
com a física do que com a metafísica, na vida humana afetada pela Natureza, porque parte dela,
com seus corpos e sonhos que nascem, reproduzem-se e morrem lentamente, ratificando o ciclo da
vida natural. Enquanto isso, A Outra Primavera está centrada na gestação não apenas dos corpos,
mas também dos sonhos que os habitam, investigação metafísica que depende da imaginação e da
disposição de alguns personagens para desvendar símbolos, enfocando também a fertilidade
simbólica e onírica da Natureza, buscada pelos sonhadores Pita e Gabiru.
Outra luminosa pausa na desumanidade é o Natal, inventado pelo homem e não natural
como a primavera, que funciona como uma pausa social na desgraça, para reflexão, afeto e
caridade. Trata-se de um ritual ou da mística encenação de um mundo melhor, mais unido e justo,
discrepante daquele selvagem e seccionado entre ricos e pobres, representado na obra. Uma
espécie de momento de religação com o sagrado, com uma essência que unifica os seres.
O Natal dos pobres, último capítulo da primeira edição e penúltimo da segunda, é uma
fronteira temporal entre dois anos, um ponto claro que encerra a escuridão do ano. Contrasta com o
ano acabado, representando o nascimento do novo, que provavelmente será um duplo do anterior,
mas que sempre é uma possibilidade, por menor que seja, de melhorar e de recomeçar. O Natal é
um momento isolado dentro da dura rotina do ano que passou e a que provavelmente se estenderá
no novo ano e único na narrativa: um único capítulo, em que pobres e ricos meditam e refletem
sobre suas vidas, a sociedade e o mundo, sobre a importância do amor, da caridade e da piedade e
praticam o bem:
(...) natal dos pobres!... Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua
gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos
das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição! Chegam-se uns
aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os
doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais
pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa
mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao de brasas extintas no filho doente, no filho
ausente... cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão. (OP, p. 148, grifos
nossos)
Recordação remete tanto para lembrança e memória, quanto para reminiscência de um
mundo ideal, tropo mais místico, que Natal é uma manifestação da cristã que se contrapõe à
realidade massacrante dos pobres, reconfortando-os com a paz, ainda que momentânea.
Por outro lado, contrasta a clara e verdadeira dos humildes com a instituição religiosa
que explora o pobre, que “todas as catedrais se construíram da dor” (OP, p. 148). O que de
espiritual é luminoso, o lado materialista da religião é sombrio.
62
Social e politicamente, também há as nuances de claro-escuro do Natal, no contraste entre a
momentânea libertação espiritual promovida e a persistência da dominação e da passividade
terreal; entre a meditação religiosa e a ausência de um pensamento crítico sobre as relações de
poder; também entre a bela mobilização religiosa em torno de uma causa humanitária e a
inexistência de um movimento ou uma ação revolucionária contra as mazelas do mundo e a
exploração.
Natal...
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para as árvores despidas não bolem.
A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes.
Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. entanto um grande rio
envolto que nunca cessa de correr... (OP, p.147, grifos nossos)
Reflexão para a física é “modificação de direção de propagação de uma onda que incide
sobre uma interface entre dois meios e retorna para o meio inicial” (FERREIRA, 2000). A reflexão
promovida pelo Natal interrompe apenas temporariamente o estado de desumanidade em que os
pobres vivem, que logo volta ao que era, miséria e solidão. No Natal, os pobres se confortam uns
aos outros e se preparam para iniciar mais um ciclo de desgraças e tragédias. Amam sua porção
anual e aprontam-se para talvez não amar até o próximo Natal: “Há entanto um grande rio envolto
que nunca cessa de correr...”. Assim, o rio do hábito, das convenções, da miséria e da violência
“nunca cessa de correr”, ainda que o Natal constitua uma pausa para a caridade e amor.
O Natal é a única reunião de figuras em torno de um ideal comum em toda a obra, marcada
por individualismo, egoísmo e desmobilização: “Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os
seus meninos, matando saudades. Quase não comem e sustentam filhos, sustentam netos. Os
velhos, que têm atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem: É hoje o maior dia do ano” (OP,
p. 148). Ao longo de toda a obra e, sobretudo, nos últimos capítulos, tem-se a certeza de que nada
acontecerá, exceto o Natal, para tornar a vida dos pobres do “enxurro” menos sofrida ou para
mudar a situação dos humildes, como também se tem a certeza de que eles mesmos nada poderão
fazer.
Assim, o “enxurro” é protagonista e antagonista da trama, o principal “personagem”,
representante de todos os desgraçados, de toda a desgraça e do espaço, tudo em curso desenfreado
pela vida e pelo mundo, como um rio que acaba certeiro no mar da morte. Esse espaço físico
molda até certo ponto a fisiologia dos desgraçados, tornando os personagens enegrecidos, magros,
macilentos e pastosos, mas não de forma homogênea e previsível, que os personagens
destacados da turba na obra demonstram comportamentos não previsíveis e psiques complexas,
não constituídos apenas de condicionamentos do meio. Com isso, mesmo fisicamente a marca
pode ser inusitada e inesperada, visto que o Gebo engorda exageradamente ou incha, em
conseqüência de sua fome, da penúria e da deambulação ou do nervosismo causado por sua
situação de miséria, ao contrário da maioria, que seca. Da mesma forma, uns costumam rir e
63
escarmentar as desgraças, como forma de amenizá-las, ao passo que outros choram e lamentam-se
para aliviar a dor. São reações distintas para situações semelhantes.
O interior das casas casarões velhos, cortiços, asilos e o hospital que deveria ser
acolhedor, protetor, aconchegante é escuro, precário, vazio de objetos, cheio de desgraçados,
pouco iluminado, fantasmagórico, marcado pela tragédia. A casa é o lugar em que se sofre.
Algumas mulheres são espancadas (“O homem chega a casa e bate-lhe”), outras passam fome,
alguns maridos são ferozes, outros fracos, como o Gebo. Todos sofrem, principalmente os que
apanham, mas até os que batem. A casa é o depósito de desgraçados e desgraças amontoados, fora
do campo de visão e da responsabilidade dos ricos, mas não o lar-abrigo, não um refúgio:
A casa é trágica, de tectos negros, sumidouros, corredores onde toda a gente agoniza
uma luz de petróleo.
mulheres tísicas, com tosse e a tábua do peito rasa! há-as que insultam quem entra
para serem espancadas. (...)
Ao fundo divide a casa um corredor com cubículos. Às vezes, altas horas, tudo sereno,
ouve-se na escuridão um ruído de choro sufocado. (OP, p. 55)
As casas são como túmulos e a cidade como cemitério; as pessoas vivas, mortas por dentro
e por fora, são secas de carnes e de sentimentos, em sua maioria fantasmagóricas. A morte é o
coração dos vivos e das casas dos vivos; está no cerne de tudo e de todos, seres finitos, animados
ou inanimados. A nadificação é a certeza da vida e dos vivos. Assim, a nadificação está sempre a
espreitar a existência: “Aposto que, quando arrancam das casas os caixões como quem arranca o
coração dos vivos, ao ouvir gritos, tem o riso interior de quem está farto de viver só, arredado e
humilhado... Gato-pingado! gato-pingado! Vive de lágrimas, sustenta-se de dores” (OP, p. 26). O
interior das casas é também esconderijo de criminosos, cenário de crimes, estupros, agressões
contra mulheres e assassinatos; exílio e até mesmo túmulo de vítimas silenciosas e indefesas.
Todos, enfim, vítimas uns dos outros, em última instância, e de um sistema sócio-político que
“esmaga” os pobres.
Todavia, por mais fria, precária e degradante que seja a casa que abriga os pobres e
narrador(es), no fundo abriga também sonhos, que se reacendem ao menor sinal de esperança:
“Escancara-se o portão, caem-lhe os telhados, mas se, em cima, nas mansardas arrombadas de
chapa o sol, acreditá-la-eis a cismar, a cantar. É efectivamente de pedra e de sonho” (OP, p. 29). A
aparência ou fachada é serena (“tudo sereno”), conveniente para aqueles (ricos) que não querem se
deparar com a pobreza nem com as vítimas dela. Mas, por trás da aparente calma e serenidade
simulada, o problema vai assumindo proporções descomunais (“choro sufocado”).
No espaço físico exterior, nos guetos, o que se é mais miséria, falta de saneamento,
sujeira e amontoados de seres humanos vivendo sem condições mínimas de sobrevivência:
64
(...) Fazem-lhe nicho as arcarias e arrancam à treva, para se embrulharem, um farrapo
do seu manto. Às vezes da escuridão sai um perfil, mãos que querem arrepelar, mas logo tudo
se some entre roupagens, que têm a rigidez trágica das estátuas. a mão, que o lampião
ilumina, fica decepada. Por vezes toda a figura baça e amolgada surge, para logo se aniquilar.
A lama faz-lhe pedestal, passa o enxurro, e elas nem se mexem, petrificadas. Algumas, de
viverem dum passado de fogo, parecem mirradas, outras procuram minguar, extinguir-se, não
ocupar lugar na terra. E, entretanto, as mulheres vão cantando na mesma toada de catástrofe,
que a noite traga, como farrapos de sonho espezinhado... (OP, p. 55)
Se nem condições de sobrevivência essas criaturas possuem, lazer e distração então é que
não há, apenas a luta diária pelo sustento. Tornam-se, por isso, criaturas amarguradas, sombrias,
como o meio. A “toada de catástrofe
7
”, cantada durante a labuta, ou as risadas de escárnio durante
os encontros entre prostitutas e ladrões são dos raros momentos de distração possível que
providenciam.
A imobilidade do cenário social é evidenciada pela “rigidez trágica das estátuas”, que
congela qualquer gesto que se insinue. Petrificadas, as figuras são incapazes de sonhar, muito
menos de ousar! O medo acaba por encolher e acovardar as figuras descontentes.
O descaso das autoridades é flagrante na narrativa: os pobres estão expostos a toda sorte de
eventos: estupros, roubos e espancamentos, sem que em nenhum momento a lei os favoreça,
funcionando somente contra eles, quando praticam delitos contra os que não são pobres. A falta de
saneamento e de condições mínimas de sobrevivência, o desemprego, a falta de instrução, de
escolas e de hospitais endossam o descaso e o abandono sofrido pelos pobres. As autoridades não
podem tirar dos pobres o direito de nascer e de morrer, mas não oferecem condições mínimas de
sobrevivência ou amparo e ainda exigem deles que permaneçam “calados”. O direito de
permanecer vivo é garantido aos pobres, desde que sirvam aos interesses dos ricos, não
incomodando e fornecendo mão-de-obra barata, passiva e mansa, como nos fragmentos a seguir:
“Andai, andai! Lá tendes todas no hospital uma enxerga e o lençol. E o cemitério pode sempre com
gente. Aquele nunca se farta” (OP, p. 34);
O pão do Asilo tinha um sabor que nunca encontrei em outro pão, por mais
desgraçados que fossem os meus dias: um gosto amargo e requentado. E em todo o
refeitório havia um cheiro idêntico. Todo, até o Cristo, até o caldo aguado, a mesquinha
ração que nos davam, parecia dizer-nos: ‘Olhai que viveis por caridade! Habituai-vos à
desgraça!’ (OP, p. 63, grifos nossos)
(...) Saída do asilo com uma trouxa debaixo do braço e o discurso do senhor provedor,
foi servir. Logo que o patrão viu aquela rapariguinha ao abandono na terra, pôs-se a falar-lhe
baixo, às escondidas.
– Era como se me pisassem o coração... (OP, p. 77, grifos nossos)
As crianças que têm família também ficam desamparadas. Enquanto as órfãs têm alimento
e proteção, mas não m carinho, algumas têm parentes, mas não têm nem uma coisa nem outra,
como a filha da Luíza; e outras têm carinho e proteção, mas não alimento, como a filha do Gebo:
7
Segundo Franco (2005), “catástrofe é, na lógica da tragédia clássica, o evento ou os eventos dolorosos e funestos que
acontecem em cena, correspondendo a ferimentos ou mortes”.
65
“Estendia a mão na rua como os mendigos. Um dia foi preso, e expulsavam-no das lojas. A ideia
da filha abandonada e com fome alucinava-o” (OP, p. 114).
Os poucos hospitais, asilos, orfanatos, prisões, que aparecem na narrativa são “as clínicas
de vigiar e punir”, de que fala Foucault (1983), lugares concebidos para que os pobres continuem
sob controle, passivos diante da dominação e não ameacem os dominadores e os mecanismos e
sistemas de dominação, como na tela A Ronda dos Prisioneiros, de Van Gogh, de 1890 (Anexo 9),
em que prisioneiros desmantelados andam enfileirados em círculos, dentro de uma fortificação,
sob o olhar severo de guardas altivos. Ladrões, órfãos e doentes pobres são afastados do convívio e
marginalizados.
Os ricos têm o “poder disciplinar”, são os controladores das “clínicas de vigiar e punir”,
menos focalizados por não integrarem o enxurro, são apenas citados pelos pobres, são os
provedores e os cruéis líderes do orfanato, os donos do Hospital e os patrões das órfãs
emancipadas. São exploradores que ensinam e impõem a submissão, a indigência e a
insignificância a todos os órfãos e pobres: “E na casa que as recebe sejam agradecidas. Tomam-nas
por esmola... E assim, com uma trouxa debaixo do braço, partíamos para a vida” (OP, p. 64).
A polícia trabalha para os ricos, punindo com rigor os pobres que os incomodam, fazendo
vista grossa aos crimes praticados entre os pobres e permitindo aos ricos infratores que não sejam
punidos:
Afogou-o (o filho dele com a amante) na latrina. Depois veio a polícia. (...) A criada
ouvira os gritos. Sabe-se sempre tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele fugiu
para o Brasil, eu fui presa (...) (OP, p. 152)
Os serviços oferecidos pelas autoridades aos pobres são paliativos, a polícia é corrupta e
não pune ricos, nem crimes contra pobres; o Hospital recebe moribundos, mas não assiste
periodicamente os pobres, nem faz prevenção contra doenças; o Asilo atende precariamente aos
órfãos; não há empregos nem assistência às crianças pobres.
O capítulo final da segunda edição consagra seus últimos parágrafos a considerações sobre
o húmus, que já se insinua ao longo da narrativa: “A primavera faz isto; transforma o húmus inerte
numa vida furiosa. Eu vi...” (OP, p. 123), como o que se nutre dos pobres mortos para germinar
vidas:
Que se cria de tudo isto? que é que se alimenta no infinito? Destes pobres
espezinhados, revolvidos, nascem as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma, espírito
lácteo, com que se constroem os mundos. Na vala comum os seus corpos, cansados de sofrer,
são a vida da terra: as arvores, o pão, as formas, a seiva esplendente. No infinito é da sua dor
que se sustenta Deus. (OP, p. 156)
O húmus, alimentado tanto dos corpos, quanto dos sentimentos e sonhos, vai gerar as novas
vidas que povoarão esse eterno “vale de lágrimas”, consistindo no genitor de entes e no
66
receptáculo dos mortos, que gera vida e se nutre da morte, cíclica e infinitamente, numa verdadeira
amplificação da lei de Lavoisier: “nada se perde tudo se transforma”.
Assim, a Natureza é associação entre o espaço e o tempo, tanto meteorológico, quanto o
cronos, progenitor devorador dos entes, contém invariavelmente todos os personagens e suas
vidas. O “enxurro” é cronótopo dos pobres, engloba cenários, espaço social e personagens,
arrastados freneticamente no turbilhão da vida até a morte. O húmus aparece como o solo fértil
que possui o dom de reciclar a morte (matéria e alma, sentimentos e sonhos) e de conceber vida,
antecipando traços em pequena escala da obra mais aclamada de Brandão.
A correnteza do “enxurro”, com suas propriedades erosivas, corrói os seres. Esse serviço
será completado pelo húmus, que opera e recicla a matéria orgânica, gerando vidas, que morrerão e
se transformarão em húmus, fazendo perpetuar-se o ciclo. Opostos complementares são os dois,
portanto, enquanto o enxurro segue da vida para a morte (claro-escuro), o húmus vai da morte à
vida (escuro-claro). Assim, igualam-se morte e vida num desconexo pesadelo, colorido com tons
escuros que contrastam violentamente a nuances de luz e cores berrantes, como dourado, violeta e
vermelho. Nos cenários personificam-se os piores medos dos personagens, que vivem vidas sem
sentido, sem nexo e sem direção, como duplos do espaço físico labiríntico, que se define pelo non
sense.
3.3- Vozes e gritos dos gatos-pingados: existências devassadas
A ventania açouta o casarão e passa, levando poeira de cisma, ais, para
outro mundo ignoto. Com a noite redobra a vida desta multidão feita de terriço:
certos homens são sonhos, outros gritos. RAUL BRANDÃO
Os Pobres
“Gato-pingado” é uma expressão largamente usada pelo narrador na obra, ora para designar
os pobres coletiva ou individualmente, ora para referir-se à miséria, ora para referir-se à pessoa
insignificante ou sozinha e desamparada. O termo aponta a íntima relação que aproxima os pobres
da morte, sustentando-se dela e/ou vivenciando-a dia após dia, que também pode designar
“profissional que agencia enterros” ou “pessoas que acompanham enterros a pé”, segundo o
Aurélio (FERREIRA, 1999): “Hélia lá foi pra o hospital. É morta. E todas morrem se se deixam ter
coração”, “o cemitério pode sempre com gente. Aquele nunca se farta” (OP, p. 33). Através da
expressão fica evidente a zoomorfização do pobre, aproximado de um pequeno felino
domesticado, fato que aponta para a passividade dos pobres e, por outro lado, para os resquícios de
ferocidade que podem de repente se manifestar, como ocorre com os gatunos ou ladrões da obra.
Um dos problemas centrais da obra Os Pobres é o da miséria e da marginalidade, não é
novidade; mas acompanha a humanidade, ganhando complexidade no século XIX, segundo
67
Geremek: “no início da Idade Moderna, torna-se claro que as transformações da estrutura de
propriedade no campo expulsam do âmbito da existência normal um grande número de pessoas,
que vão procurar o seu ‘lugar ao sol’ nas cidades” (GEREMEK, 1995, p. 20-21). Sem capacidade
para absorver esse contingente, a cidade assiste ao crescimento desordenado das “massas de
miseráveis”, que se convertem em “parasitas, aventureiros, vigaristas ou até mesmo criminosos”. É
evidente “a decomposição dos valores morais e das normas de coexistência coletiva” (GEREMEK,
1995, p.21). O pobre torna-se um incômodo aos cidadãos ricos e à classe média nas cidades. “A
auréola de perfeição que na Idade Média circundava a pobreza voluntária e em parte se estendia
também à pobreza por necessidade se apagou”. Com isso, a miséria passa a soar “como uma praga
social, e o pobre como uma figura perigosa para a ordem pública” (GEREMEK, 1995, p. 21-22).
Ainda dentro do projeto expressionista da obra, mas ultrapassando as fronteiras do
puramente estético, com vistas a focalizar o já citado “homem esmagado pelas cidades desumanas”
(FURNESS, 1990, p. 10), o “enxurro humano” se mostra como esse aglomerado descomunal de
miseráveis citado por Geremek, uma ameaça ao bem-estar social, ainda que o narrador da obra por
vezes demonstre afetividade em relação aos humildes. Aliás, os maiores prejudicados são mesmo
os pobres, que a violência maior ocorre entre eles, pouco afetando os que estão fora do
“enxurro”. Pobres, prostitutas, ladrões, assassinos, mendigos e palhaços aparecem em Os Pobres
como “os demônios das cidades”, “imagens hiperbólicas do monstruoso horror da vida nas
cidades” ou figuras marginais e bizarras, entre a euforia e a tristeza, como em muitos quadros,
peças, poesias e outras obras expressionistas (Anexos), segundo Furness (1990, p. 55). Os temas
são, por vezes, os mesmos dos naturalistas, entretanto, para Furness (1990, p. 56-57) “os
expressionistas não tiram fotos, mas m visões; a imitação da natureza é totalmente rejeitada em
favor da subjetividade ardente”, exatamente como ocorre na obra de Raul Brandão.
Não há, como se viu, entre Os Pobres uma figura central do enxurro, mas alguns
personagens de relevo, como Gebo, Sofia, Morto, Luíza e Gabiru. Cada um funciona como
personagem principal de um ou mais capítulos. Também não protagonistas, nem antagonistas,
todos são ora sombrios, ora luminosos, ora desprezíveis e grotescos, ora comoventes e dignos de
piedade.
Os personagens, materializações da desgraça, podem ser separados em vários subgrupos
contrastantes: os que narram capítulos e os que não narram; os que sonham e os que não sonham;
os presos à materialidade sombria, seja em busca de realizações de projetos materiais, seja pela
incapacidade de desejar algo além ou diferente do carnal e/ou material; e os dela desgarrados,
ligados à imaterialidade luminosa e suas diferentes manifestações: sonho ou delírio com o não
material, reflexão filosófica ou existencial. Todos são expressões grotescas, como as “monstruosas
imagens hiperbólicas do horror da cidade” (FURNESS, 1990, p. 55). No grupo daqueles que estão
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presos à materialidade, os que sonham com condições melhores de vida e os que nem sonham,
ambos obscurecidos, parte integrante do horror terreal. Esses não gastam tempo nem energia
pensando. No grupo dos desapegados das coisas materiais, o “filósofo” Gabiru, o Astrônomo e
o intuitivo Pita, na fronteira entre materialismo e reflexão filosófica. Ambos também são exemplos
de pobreza, mas acabam desligando-se de sua porção material de dor e concentrando-se na
existência e na metafísica, enquanto o primeiro grupo está mais concentrado na luta pela
sobrevivência e suas implicações materiais e carnais.
3.3.1- Vozes que narram aos gritos
Os dramas desses miseráveis de Os Pobres são narrados em “focalização estereoscópica
8
”,
que a obra é construída a partir de um emaranhado de vozes, como num coral de angústias, com
acontecimentos narrados a partir de diferentes pontos de vista, por diferentes vozes, de forma que
“o mesmo acontecimento recebe diferentes interpretações” (SOARES, 2001, p. 53). Desta
maneira, narradores integrantes da turba assumem a narração de alguns capítulos e enunciam
fragmentos de suas próprias histórias, assim como as de outros personagens, entre comovidos e
horrorizados com a miséria humana, a um tempo narrando, interrogando a existência e se
indagando diante das virtudes e vícios de cada personagem da obra, com suas nuances particulares
de luz e sombra.
Um narrador central inicia o livro, no primeiro capítulo, e organiza o discurso,
reaparecendo em diferentes momentos da narrativa, revelando-se uma “instância narrativa de
primeiro grau” e “homodiegética, um eu que pode assumir características várias”, quase sempre
“apenas um observador que conhece pessoalmente e analisa os personagens e que com alguns
deles pode ter relação de convivência” (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 269-270): “Neste casarão
onde moro a toda a hora se ouve o ruído da levada” (OP, p. 20). Esse narrador central voz a
personagens humildes, saídos do anonimato e do isolamento, durante seu processo de coisificação
ou sua trajetória de desgraça pelo mundo, sem-voz, oprimidos e esmagados, transformando-os em
“instâncias narrativas de segundo grau”, “intradiegéticas” (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 268), que
narram histórias a um tempo trágicas e banais.
Esse narrador central se apresenta como morador de um cortiço, em que co-habita com
ladrões, prostitutas, um pobre filósofo tido como “louco” e toda a sorte de miseráveis, sendo ele
próprio um dos desgraçados: “Sou pobre e transido e nada sei da vida, mas sou um príncipe. De
que terra?, direis. Do sonho. E assim neste prédio revolvido me quedo, sozinho e triste, a
8
Focalização estereoscópica consiste em diferentes pontos de vista entremeados numa mesma narrativa, segundo Vitor
Manuel (1976) e Angélica Soares (2001).
69
escutar... Ouço um rio que os mais não sentem” (OP, p. 20). Identifica-se com os demais
desgraçados, por ser pobre, solitário, triste, calado, cabisbaixo (“quedo”) e ignorante (“nada sei da
vida”), provavelmente pouco escolarizado e sem acesso aos produtos culturais das classes mais
favorecidas (livros, filmes, músicas ou jornais), problemas causados pelo abandono e pelo
desamparo das autoridades para com os pobres. Entretanto, distancia-se dos desgraçados comuns
por se declarar mais sensível que os demais, adepto do sonho: “Ouço um rio que os demais não
sentem”. Neste sentido identifica-se com o Gabiru. O narrador central diferencia-se dos
desgraçados não apenas por sonhar e libertar suas intuições, como o Gabiru, mas também por
demonstrar senso crítico diante do que ocorre a sua volta, não apenas observando, mas também
sentindo e intuindo, criticando, refletindo e filosofando, em suas digressões e especulações, e
buscando diferentes pontos de vista e ângulos para analisar uma mesma questão. Neste ponto, o
narrador central, que se apresenta como o pobre autor da obra, supera as limitações socialmente
impostas, o que não é suficiente para provocar uma transformação na sociedade que o rodeia, mas
revela crescimento individual.
Os personagens que ganham voz são o filósofo Gabiru, o Morto e a Luísa adulta. Esta
representa as prostitutas, o Morto representa os ladrões e o Gabiru representa aqueles que pensam
sobre a vida, o mundo, a morte e muitas outras questões, tidos como loucos. Esses personagens
pobres expõem fragmentos de seus pontos de vista, em monólogos que se estendem por um ou
mais capítulos, precedidos por uma espécie de introdução breve feita pelo narrador do primeiro
capítulo ou narrador central.
É comum os narradores manifestarem pasmo ou indignação diante de situações narradas,
em digressões que se assemelham a gritos de terror existencial”, rasgando a obra e projetando-
se para além da escrita, comuns nas obras expressionistas, segundo Furness (1990, p. 18, grifos
nossos), como em O Grito (Anexo 1), de Munch. Outros personagens, porém, não narram seus
pontos de vista diretamente, como o peregrino cansado e conformado Gebo, nem a Sofia abnegada
e resignada. Cada um tem o seu tipo de força pessoal e disposição para sobreviver às adversidades,
mas talvez sem ousadia para se fazer ouvir, sem-voz, muitas vezes abúlicos: “O Gebo (...) Triste
existência sem ódio e sem gritos. A vida não na entende e recebe cada empurrão com o ar
espantado e aflito de quem não compreende. Que mal fizera? que mal fizera? Pois a desgraça faz
rir? O sofrimento faz rir?” (OP, p. 25). Nota-se no fragmento que não é o próprio Gebo que conta e
analisa suas desventuras, nem nos capítulos intitulados História do Gebo.
Em primeira pessoa, ironicamente, frisando o quanto a sociedade é irremediavelmente fria
e negligente para com as aflições dos miseráveis, o narrador central simula insensibilidade diante
dos lamentos que o Gebo faz durante suas andanças a pedir esmolas, exatamente como se
comportam os personagens insensíveis a quem o pobre pede: “Para nada me importa a história
70
banal que esse homem gasto conta, abalado pela dor, a suar de aflição... Morta a mulher o lar ficou
gelado” (OP, p. 111). Aliás, a adjetivação usada denuncia a sensibilização do narrador para a
situação do personagem: banal, aflito, gasto, abalado e gelado (seu lar). Os lamentos do Gebo são
gritos de dor e a ironia do narrador, riso de escárnio e indignação, que ecoam da obra.
Cada uma das vozes narradoras apresenta um ponto de vista revelador de um eu-profundo,
de um indivíduo com suas memórias, dramas particulares, aflições, comentários, indagações,
contestações, descontentamentos, traumas, sonhos ou pesadelos, em seus monólogos interiores,
seja pelo narrador central ou pelos narradores em segunda instância.
O narrador central manifesta-se, tanto em discurso direto como em indireto e em discurso
indireto livre, sempre demonstrando profunda identificação com os dramas dos pobres
personagens, como na passagem: “A filha caíra a um canto sem palavra e o Gebo pôs-se a
engordar e a chorar. Se tudo acabasse!... Mas não, era preciso tornar à mesma vida de desespero,
pisar sempre o mesmo chão, atrás de esmolas para a sustentar” (OP, p. 111, grifos nossos). O
narrador central parece comungar o mesmo cansaço experimentado pelo personagem diante da
vida difícil que leva. O narrador, entretanto, parece cansar-se duplamente, doer-se duas vezes,
pelas dores e cansaços do personagem e pelas suas próprias, que se coloca também como
desgraçado, mas um desgraçado ainda mais sofrido, pois tem a consciência do que vivem. Trata-se
de um grito dado por ele mesmo e pelo outro, pela sua dor que é causada também pela dor do outro
miserável. Revela-se, nessa identificação entre narrador e personagem, uma comoção com a
miséria e uma afetividade para com o pobre.
Mas, o narrador central traz diversidade de pontos de vista à narrativa, ora demonstrando
profunda afetividade pelos pobres, ora explorando a plasticidade grotesca de cenas, como neste
enterro, em que se nota a “imagem não como uma projeção da realidade, mas como uma verdade
interior contada em linha e cor, a manifestação de uma visão criativa” (FURNESS, 1990, p. 28),
como numa tela expressionista: “Eis o enterro. Vão mulheres perdidas e uma velha a tossir, vai o
Astrónomo, e na frente dum caixão de passarito, comboiando a turba, lá marcha o gato-pingado, de
brandão em punho, chapéu alto e casaca a esvoaçar...” (OP, p. 120, grifos nossos). Reúnem-se na
cena elementos concorrentes, contraditórios e por vezes até desconexos, como o vento a concorrer
com a chama da vela; a morte contrapondo-se às vidas que marcham; a inércia do jovem morto a
contrastar com o movimento dos adultos e do vento nas roupas; a mistura de figuras profanas e
sagradas; as prostitutas integrando uma cerimônia religiosa; a teatralidade e a representação de
papéis diferentes dos cotidianos na cena do cortejo; bem como a presença do teórico e sonhador
Astrônomo numa experiência mundana e comezinha.
Aliás, o fragmento confirma também a poética da afetividade de Brandão, que
simbolicamente se insere na cena e também acompanha o cortejo do pobre, representado pelo
71
brandão, “grande vela de cera, círio ou tocha que acompanha os funerais” (FERREIRA, 1999),
rendendo-lhe homenagens, reverenciando-o, com esta obra ou com as suas outras obras, com ele
identificando-se e solidarizando-se, misturado à turba, como um errante:
Altas horas da noite. Saio, erro... A pensar em quê?
Em coisas desligadas, sem nexo: na ambição, no ódio, no exaspero.
(...) A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a
sua desgraça. Três horas numa torre. um silêncio cavo. Chove sempre a mesma chuva
tenaz, com um céu nublado e aflitivo. A cidade morta, sob o aguaceiro, espapaça-se na
lama. Debaixo de cada um destes tectos escondem-se as mesmas misérias e os mesmos
sonhos. Esta pedra abriga ódios, crimes, escárnio. A sombra perde-se no escuro, torna, pára
indecisa... (OP, p.94, grifos nossos)
O narrador horroriza-se com as desgraças e se abisma diante da miséria e das figuras
grotescas e bizarras, ele próprio feito sombra, numa manifestação da estética do horror (escuro),
faceta sombria do jogo entre claro-escuro. Ele se deleita com os cenários sombrios que castigam os
pobres, contemplativo no silêncio e na penumbra, contrastando sua inquietude errante e crítica com
a imobilidade do cenário, entre narração e indagações sem respostas. Até os sonhos são
obscurecidos pela mesmice, que neutraliza seu potencial libertador.
Luísa ou Asilada, depois de infância difícil, amadurecida e endurecida pelo sofrimento,
ganha voz, num depoimento de cinco páginas, em que narra e comenta suas desventuras,
demonstrando uma personalidade constituída de “pólos positivo e negativo” ou tisnada de pontos
claros e escuros, prática comum na construção de personagens expressionistas, segundo Furness
(1990, p. 18). Ela própria narra as suas memórias, no capítulo Memórias de Luísa, ainda que
controvertidamente o narrador central declare em outra passagem que o personagem “quase não
fala”. Durante a narração, a castigada prostituta reavalia sua trajetória desde a infância sem família,
sem lar e sem carinho, expondo seu ponto de vista sobre alguns acontecimentos relacionados à sua
própria existência e à de outros personagens, como o Morto, participando do coral de lamentações
ou de gritos:
É assim a história duma das mulheres.
‘Tive sempre frio. Esta impressão de ter os ossos gelados vem de muito longe, de
pequenina. Nunca tive mãe, nem ninguém. Fecho os olhos e vejo o Asilo, os corredores
húmidos, o dormitório, o frio refeitório abobadado de granito. Toda aquela pedra parecia
sepultar-nos. Também guardo de pequenina esta impressão: a vontade que tinha de beijar,
sem ter ninguém a quem dar beijos’ (OP, p. 61)
O grito de Luísa é de desespero pelo desamparo e pela humilhação e de pavor da solidão,
do desamor e da carência sofrida desde criança: de alimentos e vestes (“nos davam um leite
aguado”, “O pão do Asilo tinha um gosto amargo e requentado”, “o caldo aguado, a mesquinha
ração que nos davam”, “Tive sempre frio”); de higiene e saúde (“as paredes tinham musgo”); de
carinho e amparo (“vontade que tinha de beijar, sem ter ninguém a quem dar beijos”; “Esta
impressão de ter os ossos gelados vem de muito longe, de pequenina”); de auto-estima, instrução,
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liberdade e até de lazer (“O sol, que entrava pelas janelinhas, abertas numa muralha de prisão, era
pálido e, mesmo de verão, parecia um sol de inverno”, “Brincávamos sem barulho no claustro.
Parece que tinham medo de nos mostrar árvores e sombras”) e de autonomia e auto-estima,
humilhada pelos líderes da instituição (religiosos e ricos), que ressaltam o fato de ela viver de
esmolas dos ricos, cobrando-lhe gratidão, submissão e subserviência: “Tudo parecia dizer-nos
‘Olhai que viveis por caridade! Habituai-vos à desgraça!” (OP, p. 63).
As irmãs e os demais líderes do Asilo escondem os órfãos ao mundo e escondem o mundo
aos órfãos, para que um não exista para o outro. O mundo dos órfãos resume-se ao asilo, sem
passeios, informações nem contato com o mundo exterior. O mundo exterior também não toma
conhecimento dos asilados, de suas necessidades, anseios, sequer de sua existência. Trata-se de
uma maneira de corroborar a indigência, negando ao pobre cidadania, inferiorizando-o, para anular
sua ação e a sua possibilidade de intervenção na sociedade:
– Tu quem és?
– Não sou ninguém.
– Que estás aqui a fazer?
– Não estou a fazer nada.
– Tu que queres, então?
– Vim deitar-me ao rio.
– Ah!...
– Mas tive medo. A água do rio sempre é mais fria do que a morte. (OP, p. 76)
O mundo, negado à criança órfã, será bruscamente adentrado pela jovem despreparada,
presa fácil: “Eu não sabia nada. Estou grávida, acabou-se. Porque é que não ensinam à gente que
todos nos querem fazer mal? Uma pessoa devia aprender” (OP, p. 76). Engravidada pelo patrão e
expulsa pela patroa enfurecida, vê-se desamparada e só, à mercê de um mundo, de seres e de leis
que desconhece, do qual foi excluída. Vítima de sua carência, muito mais do que da luxúria,
engravida na primeira busca de afeto e, depois, lança-se à prostituição para sustentar-se.
A tendência expressionista de pôr os opostos em tensão pode ser observada também na
construção dos personagens, complexos, que manifestam os “pólos positivo e negativo da psique
humana”, segundo Furness (1990, p. 18). Luísa é exemplo desta “predisposição aos estados
extremos de tensão” (1990, p. 18). Nutre pelo Morto sentimentos contraditórios, que é por ele
violentada, entretanto ele acaba sendo o único que demonstra alguma preocupação com o destino
dela e da filha, ainda que não consiga fazer nada para ampará-las: “Agora vais ser minha... A
desgraça é que pode tudo, ninguém no mundo tem mais força. Se tiveres fome, hão-de-se rir de ti e
dar-te terra a comer.” (OP, p. 78)
A criança assustada e carente, mas afetuosa, tornar-se-á uma Luísa adulta obscura,
insensível, como a vida que levara no Asilo, ou irada contra a própria vida (“Daquela vida idêntica,
seca, dura, vinha um dia, quando éramos grandes, arrancar-nos o provedor”, OP, p. 64), não
73
apenas aprendendo com os exemplos e conselhos recebidos das freiras e provedores, mas também
desenvolvendo uma espécie de autoproteção, que não lhe permite afeiçoar-se a ninguém nem
esperar de ninguém qualquer tipo de afeto ou benfeitoria. Passa a depender única e exclusivamente
de si mesma, vivendo para si. Com isso, não cria mais expectativas em relação aos outros, como
fazia na infância, e não se frustra mais. Vive de vontade, contrariada, entre a abulia e a ira
contra as ofensas que sofreu. Por isso, continua relacionando-se com o Morto e não suporta a filha,
talvez por vê-la como reprise da sua desgraça. A incapacidade de dar afeto à filha deve-se ao fato
de nunca ter recebido afeto, por ser fruto de uma violência sofrida pela mãe ou, simplesmente, por
saber que o mesmo destino trágico seu, aguarda a filha: a prostituição, a humilhação, o desamparo,
a violência, a dor e a indigência. O fato é que detesta a filha e a abandona, como fizeram a ela na
infância:
A filha da Asilada e do Morto criou-se na viela entre gritos das mulheres e chufas de
soldados e ladrões. Tinha quatro anos e dormia pelos cantos ou nos braços da Gorda e da
Mouca. Assentava-a nas pernas o Velho que tinha sido cavador e que abria para ela a enorme
boca desdentada. Fazia-lhe festas a patroa. Enchiam-na de beijos as mulheres num frenesi e
dias inteiros passavam por ela sem a verem. Esqueciam-na. Adormecia a chorar nas camas ou
nos degraus das portas.
Só a mãe lhe fugia sempre:
– Não a posso ver!... (...)
– Mas porque é que bates na pequena? – diziam-lhe as outras.
– Não sei! não sei! – gritava.
No começo do inverno a Asilada foi para o hospital e antes de a levarem abraçou-se à
filha a chorar num desespero. Foi difícil arrancar-lha dos braços. (OP, p. 143)
Torna-se cruel com a filha, não porque não lhe tenha amor, mas talvez por não poder criá-la
como gostaria para uma vida digna, para uma sociedade diferente, para um destino melhor.
Desconta na menina a sua frustração diante da própria vida e da vida que aguarda essa menina.
Julga melhor a morte da pequena do que a vida que a espera, como julgara melhor a morte para si
mesma do que a orfandade e a indigência. A amargura que a vida lhe provoca despeja-a na filha,
futura mulher amargurada ante seu destino trágico, o que pode ser comprovado na passagem em
que o Morto flagra um homem molestando a menina, após a morte da mãe: “Talvez nesse
momento compreendesse o horror da Asilada pela filha e a sua ternura antes de a levarem de vez
para o hospital talvez visse o Velho com a criança nos braços e aquela boca escancarada lhe
parecesse monstruosa” (OP, p. 144). Por mais que o Morto e outros personagens a condenem por
odiar a própria filha ou o destino que a aguarda, o narrador central parece compadecer-se dela,
como dos outros desgraçados.
A crueldade para com a filha contrasta com a resignação diante das surras do amante, das
surras da vida e do seu destino. Aprende a contentar-se com os carinhos do amante violento, como
aprendeu a contentar-se com migalhas e restos que lhe davam no Asilo, depois nas casas de patroas
e no prostíbulo. Luísa mantém-se viva por medo do desconhecido, que sempre a barbarizou tanto,
como ela própria atesta na passagem em que o Morto lhe interroga por que não se mata: “Mata-te.
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Para que vieste tu ao rio?” e ela responde: “Para me afogar... Mas tenho um medo à água!...
Quando meti os pés no rio tão negro, fugi...”. Os homens, a vida e o mundo com seus dilemas e
problemas, desconhecidos enquanto estava no Asilo, maltratam-na ainda mais do que os
provedores, freiras e faltas dos tempos de Asilo. Diante disso, supõe que a morte não trará nada
mais terrível do que o mundo e a vida lhe trouxeram, como atesta a sua ação pouco antes da morte.
Outro personagem marcado por sentimentos e comportamentos contraditórios, a quem o
narrador central cede voz é o ladrão Morto, o qual depois de velho e arrependido de ter usado,
violentado, oprimido e abandonado a órfã grávida Luísa ou Asilada, conta, no capítulo XIII, tais
desventuras também contadas sob o ponto de vista da Asilada –, a resignação da órfã violada,
seus remorsos e a pena que sente pela criança nascida depois da violência, que considera como
filha:
Quedo-me a cismar sozinho neste velho casarão...
De noite ouço vozes, logo sufocadas, que me querem falar e não podem. os meus
crimes de outrora (há tanto esquecidos) se põem a pregar dentro de mim.
Arqueja o lume no escuro e sinto em redor toda a treva povoada...
Foi vinte anos e no entanto hoje, como em certas horas presagas, alguma coisa
remexe e acorda dentro em mim. Oh não! bem sei, por de mais conheço a forma por que as
ideias se ligam, até as mais contraditórias, e como um nada recorda um velho crime abafado...
(...) (OP, Cap. XIII, p. 83)
O grito do Morto é de arrependimento, sentimento de culpa e de remorso por seus crimes,
sem falar no sentimento de impotência diante da sina da filha, que lhe parece um espelho da mãe
Luísa, prostituta amargurada, como se pode observar no capítulo Essa rapariguinha, título que
tanto pode se aplicar à mãe quanto à filha, ambas vítimas da vida, dos atos do Morto e dos próprios
atos. Ao Morto, também, parecem existências duplicadas, que fazem refletir através do tempo a
mesma desgraça, uma igualdade na diferença, que em suas histórias diferentes podem ser
identificados traços da mesma desgraça: no desamparo da criança e no desejo de carinho, que
podem tornar a menina amargurada no futuro, como ficou a mãe.
O narrador central descreve o Morto como alguém “que fala com desprezo do sofrimento,
das mulheres, da morte” (OP, p. 91), “que aperta sempre uma contra a outra as mãos geladas,
como se tivesse vontade de maltratar” (OP, p. 92), como um ladrão “pálido soturno, com um laivo
na cara”, a quem “as mulheres temem pela crueldade e pelo sorriso trágico”, que “despreza a dor e
os gritos” e de quem não se “há a esperar piedade” (OP, p. 54). Nessa faceta noturna, o Morto
aproxima-se do Rei de O mistério da árvore, vampiresco e destrutivo.
Entretanto, o Morto se mostra um personagem controvertido, para além da fachada de mau,
ora cruel, ora afetuoso; ora destemido, ora espantado e aterrorizado diante da morte do Astrônomo
(“Nas feições cruéis, espanto e terror.”, OP, p. 131), capaz de atrocidades, como a violação de
uma indefesa jovem grávida, e dos mais estranhos atos de amor, complexos de culpa e gestos de
piedade, como dar todo o alimento que tinha conseguido depois de dias de fome, ou como retirar a
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Asilada do relento e sua instalação no prostíbulo ou, ainda, a tentativa de salvar a filha da
desgraça, afogando-a. Essa idéia talvez tenha derivado de uma conversa com o Gabiru, em que o
filósofo leva o ladrão a refletir sobre como seria melhor a morte do que uma vida desgraçada como
a de prostituta:
Não quero... Ouve. Se uma criança tem de vir a ser como as mulheres da viela não
era melhor morrer?
– Talvez.
– Não é isso que te pergunto. Não era melhor morrer?
– Não sei.
O ladrão ficou um minuto a olhá-lo calado, e depois, de repente, abalou. (OP, p.139)
O Morto é, portanto, outra figura marginal, mais um dos “monstros das cidades”
(FURNESS, 1990, p. 55), figura construída ao gosto expressionista. Criado sem família, nas ruas,
entre os ladrões, dificilmente o destino do Morto seria outro, da mesma forma que uma mulher
desgraçada dificilmente teria oportunidade fora da prostituição. Não tem oportunidade de ser outra
coisa senão ladrão, por isso segue seu caminho pela marginalidade, onde se cria, como fica claro
neste diálogo entre o Morto e o Gabiru:
– Quem és tu? – disse-lhe o Gabiru.
– Sou filho do crime. Que te importa o meu nome?
O meu nome ao certo ninguém o saberá. Não tenho família.
– Quem te criou?
– Os ladrões.
– Se não tens onde dormir, deita-te lá em cima. (OP, p. 137)
Sem outra chance de sobrevivência, o Morto encarna e executa a função que lhe sobra: a de
ladrão. Na marginalidade, em contato com os criminosos, e na falta de oportunidade de
sobrevivência, aprende e passa a desempenhar seu papel social de “vilão”. Para tanto, precisa
ostentar um comportamento cruel que, aliás, não é difícil de se adquirir quando se passa por
situações de indigência, de carência extrema e quando se tem professores tão experientes: os
ladrões, a necessidade e a rua. O Morto passa a ser agente de ações perversas que dele são exigidas
para se sustentar na função de criminoso, ainda que paradoxalmente também cometa ações que
contrariam o papel social que assumiu. Humanizando-se, oscila entre gestos ditos “bons” e
“maus”, quando se compadece de uma desgraçada, dando a ela seu único pedaço de pão, ainda que
depois a violente e abandone, e quando deseja destino melhor para a filha: melhor a morte do que a
desgraça e a prostituição.
Entretanto, percorre um caminho em busca da conscientização e da reflexão sobre o mundo
e não fará sacrifícios para se redimir. A marginalidade e as dificuldades da vida endureceram-no e
obscurecem-no, obscurecem-no e tornando-o perverso:
Nada... Durante o tempo que persisti na cadeia conheci cada um... Os que matam
inda são os que têm melhor coração. (...)
– De que serve fazer mal?
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– Em primeiro lugar é fazer mal, e quando a gente nasce para fazer mal, é sempre bom
fazê-lo. Tenho horas em que tudo em mim – tudo! – me prega que faça mal e as minhas mãos
procuram logo quem matar. Às vezes sonho que mato. É sinal que a minha hora ainda não
soou. (OP, p. 138)
A cena de que participam o Gabiru e o Morto parece compor uma verdadeira tela pintada
em tons claro-escuros. Nela o Morto faz-se como um contraponto do sonhador Gabiru e também
dos paradigmas exaltados pela sociedade do bem e do belo: O Morto tinha um feitio singular.
Uma força desconhecida – dessa corrente a que estamos sujeitos toda a vida – impelia-o para o mal
(OP, p. 137)”. À medida que o sujeito vai cometendo crimes, sente-se converter gradativamente de
indigente impotente em marginal poderoso, temido, o que o faz se agradar do sabor da crueldade e
parece agravar sua vampiresca sede de cometer atrocidades.
Outro comportamento apresentado pelo Morto incomum a um ladrão é uma certa
inclinação que apresenta para a reflexão sobre a vida, mas que procura evitar e que teme por julgar
que o enfraquece:
(...) nessa noite o Morto, mais agitado, não quis dormir. Sentados à beira um do outro
falam durante largo tempo (Morto e Gabiru).
– Não sei porquê, este tempo aflige – começa o Morto. – Não devia haver este tempo.
– Qual?
Este, de primavera. Até na cadeia, quando numa noite assim o luar consegue entrar
pelos buracos, os ladrões acordam sobressaltados. Tenho visto assassinos abalados. Havia
duma vez um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas
encostou a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar. Este tempo tira a
força. (OP, p. 138)
Refletir sobre a vida, sobre o ser humano, sobre a existência, sobre os atos que pratica,
sobretudo para alguém que age transgredindo as normas sociais de conduta e de comportamento,
pode trazer arrependimentos, dramas de consciência, certamente levando o indivíduo a ponderar e
a pensar em mudanças de comportamento. Por isso, o Morto tenta desviar-se da reflexão (“não
quero ver”) e foge dela (“O ladrão ficou um minuto a olhá-lo calado, e depois, de repente,
abalou”), pois sabe que “isto tira a força à gente” que sobrevive de roubo e assassinato:
Pobre de ti! diz por fim o filósofo. Tu és a terra, tu és a terra a falar... Tu és
terra. Eu não vivi? Tu és como a forja apagada e eu não, eu não, eu ardo!... Olha! Olha!...
Mostrava-lhe os montes, o rio, os pinheiros transformados ao luar.
– Não, não quero ver. Isto tira a força à gente. (...)
Não quero... Ouve. Se uma criança tem de vir a ser como as mulheres da viela não
era melhor morrer? (OP, p. 139)
Por outro lado, a palavra “abalou”, com sua multissignificação, pode apontar tanto para a
fuga como para o fato de o Morto ter se impressionado, estremecido e até mudado de opinião após
aquela conversa com o filósofo Gabiru. O provável abalo é sustentado pela tentativa de salvar a
filha da desgraça e da prostituição que a aguardam, afogando-a, o que aponta também para uma
compreensão tardia da ojeriza que a mãe nutria pela filha ou pelo destino que ela teria:
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Aquilo que julgava fácil era impossível. Matá-la era melhor, mas não podia. Tinha de
aceitar o destino: o soldado vesgo, o Velho que a esperava com a alegria duma fera que sente
a presa próxima e escancara as fauces temerosas. Soltou devagarinho a corda, dirigiu o barco
para terra e, deitando a correr desvairado, com a criança nos braços, foi entregá-la à viela.
(OP, p. 147)
Pensar sobre questões religiosas e existenciais pode desviar o sujeito do crime, levá-lo a
mudar seu destino, como faz Gabiru, desapegando-se de bens materiais e de preocupações com
“status”, respeito e temor:
– E Deus?
Deus foi que me criou, Deus não se importa. Que tenho eu que fazer neste mundo?
Só mal. É porque Deus me criou para o mal.
– Resiste.
– Quando a gente é criada para isto, não há nada que nos impeça... (OP, p. 138)
A religação a questões não-materiais afasta o filósofo de uma possível vida de
criminalidade; entretanto não lhe traz qualquer vantagem, muito menos lhe garante o temor da
sociedade, o respeito de seus pares, enfim não alcança o status social que gozam o Morto e os
demais ladrões. Por outro lado, o desprezo pelo semelhante, pela vida, necessários para se manter
indiferente e capaz de se identificar com a criminalidade abalam o Morto, a partir do momento em
que não consegue escapar das reflexões propostas pelo Gabiru sobre quais realizações materiais
são importantes, sobre a fugacidade da matéria e sobre a parte ardente da vida, que se constitui,
para o Gabiru, do pensar e emocionar-se: “Pobre de ti! diz por fim o filósofo. Tu és a terra, tu
és a terra a falar... Tu és terra. Eu não vivi? Tu és como a forja apagada e eu não, eu não, eu
ardo!...” (OP, p. 139)
Sem dúvida, cobiça, vaidade e luxúria estão entre os vícios do Morto. Ao contrário do
Gebo, não se subjuga à desgraça e se entrega ao crime na luta pela sobrevivência, para não precisar
se humilhar ou se sujeitar e para, usando o status e o temor advindos de sua condição de ladrão,
humilhar e maltratar outros pobres, como as prostitutas. Sua força para se manter vivo advém da
violência, da perversidade, que até certo ponto lhe amenizam as dores íntimas, enquanto evita a
reflexão sobre seus atos.
O nada convencional Gabiru tem vários capítulos reservados às divagações e elucubrações
filosóficas, que acentuam na narrativa a tonalidade lírica. Alguns monólogos são introduzidos pelo
narrador central, em terceira pessoa; outros são iniciados em primeira pessoa pelo próprio Gabiru.
Nesses monólogos, o filósofo narra acontecimentos relacionados a ele mesmo, à Mouca e a outros
pobres; comentando toda sorte de assuntos sua solidão, suas íntimas teorias –, tecendo reflexões
sobre variados temas. Além dos seus monólogos, ainda os capítulos em que o Gabiru é
focalizado por outro narrador, como em “O que é a vida?”. o narrador central o focaliza de
forma “interna, onisciente e interventiva” (SOARES, 2001, p. 53) em suas aventuras ligadas a
investigações físicas e metafísicas: “O Gabiru não entende a vida”. O Gabiru faz tantas
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intervenções e tem tanta autonomia porque não se deixa silenciar, não se subjuga aos padrões e
amarras sociais, transgredindo-os através da sua pretensa “loucura”, paradoxalmente lúcida e
inconformada, como se pode observar no fragmento abaixo, que abre o capítulo O escárnio, ora
em primeira, ora em terceira pessoa, após a introdução feita pelo narrador central:
No ermo da noite o Gabiru vai tecendo a sua teia:
«A matéria também sonha. Nessa mistura de homens e calhaus, torrente que leva
consigo gritos e forças embravecidas, turbilhão a rasto pelo infinito fora, não é indiferente ir
ser pedra ou nuvem, nascer em macieira de quintal escondido e humilde ou na água fulgindo
duma fraga. Não é o acaso que reúne ou afasta as moléculas, para as fundir noutras formas.
corpos que a química não consegue ligar, porque os separa o ódio, e outros que se atraem
com sofreguidão. Depois da morte a matéria entra num mar. (...) (OP, cap. XIV, p. 121)
O título suscita os risos escandalosos, que mais uma vez remetem ao espanto e/ou às
emoções expostas de maneira agressiva contra o Gabiru, figura discrepante, se analisada em
relação ao senso comum. O filósofo Gabiru comunga do grito de pavor da natureza: “O grito que a
terra revolvida foi o meu grito” (OP, p. 97), escarnecido, maltratado, desrespeitado e
incompreendido pelos outros pobres, assim como a Natureza devastada pelo homem.
Aqueles que ganham voz narrativa são os de alguma maneira capazes de lançar o olhar
crítico para sua própria vida, para as vidas dos outros e/ou para a sociedade. São menos
conformados, mesmo oprimidos e mesquinhos, mas questionam-se e pasmam-se diante da
situação coletiva ou da natureza, como o Gabiru; ou diante de seu próprio drama individual, como
a Luísa; e/ou ainda do drama do próximo, como o Morto. Os outros são representados pelas quatro
vozes.
Ao lado do narrador central, o inquieto Gabiru é um dos que mais pensa sobre a vida e a
condição humana. Além disso, é o filósofo quem provoca alguns personagens com suas
indagações, despertando neles a vontade de pensar e de pesquisar. Por isso, ele será também
matéria do próximo tópico, ao lado de outros personagens pensantes.
3.3.2- Personagens que pensam a vida
São incontáveis os exemplos de pobres, velhos e de ladrões esquecidos desse essencial a
que se refere o Gabiru, capazes de cometer contra outros as atrocidades de que são vítimas (“Havia
duma vez um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas encostou
a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar”, OP, p. 138), capazes de fazer
perpetuar o vale de lágrimas que é a carnalidade, como o Lesma, que violenta a menina Mouca
(“Aos treze anos um ladrão desfrutou-me. Era um velho careca que parecia um S. Pedro.
Chamavam-lhe o Lesma, vocês hão-de ter ouvido falar”, OP, p. 30-31), como a própria Mouca,
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mais velha, que agride a Sofia, ou como o Velho cavador, que acalenta a filha do Morto como
“uma fera que sente a presa próxima e escancara as fauces temerosas”.
Há, entretanto, exceções, como o narrador central, que se apresenta como o artista “escritor
da obra”, no primeiro capítulo; o Gabiru, que passa “por ‘doido’ e na verdade grita de pavor diante
do espantoso universo” (AF, p. 38); e o Astrônomo, misto de intelectual, pesquisador, filósofo e
cientista; e casos que fogem à regra da total insensibilidade, dividindo-se entre o materialismo e a
indagação existencial, como se observa no Morto, após diálogo com o Gabiru, ao início do
capítulo XII, Essa Rapariguinha (OP, p. 83); e no Pita, com outra nuance: “mas o Pita
transfigurado e triste; o Pita com dentes de menos e não sei que doloroso sorriso; o Pita mais velho
e mais sórdido”, que se (pre)ocupará com “Maquinações filosóficas” (OP, p. 42) ao lado do
Gabiru, sobretudo no último capítulo da segunda edição. Ambos são incompreendidos, em parte
por serem exceções à regra da ignorância, como atesta a fala do narrador central: “Estas pobres
criaturas que vivem no mesmo prédio em que eu habito, ladrões, filósofos, coveiros, mulheres
perdidas, são esmagadas para que alguma coisa se crie”.
As reflexões e remorsos do Morto passam-se no seu “eu-profundo” e são reveladas nos
monólogos, na solidão e no escuro, que favorecem a introspecção e a reflexão sobre a vida, o que
pode acontecer com outros personagens que não revelam sua intimidade e não narram nenhum
capítulo, mas que também possuem cada um seu “eu-profundo” insuspeitável, escondido sob as
máscaras, como a Mouca que, atrás de sua máscara de escárnio e riso, pode esconder mágoas,
traumas e sentimentos que não se quer revelar a ninguém. O Morto é um exemplo do universo
interior dos personagens, que se esconde atrás da fachada de ladrões, prostitutas e donas-de-casa:
“hoje estou num dia enervado e sinto-me sozinho neste velho casarão. Parece que a noite tem
vozes e que os meus crimes de outrora encontram enfim palavras e se põem a falar dentro em mim.
É talvez para fugir a esta obsessão que me deito a cismar na vida deste ser banal como a própria
banalidade” (OP, p. 85).
Enquanto Gebo e Sofia mantêm-se cada vez mais passivos diante dos acontecimentos, o
Gabiru, personagem que também é apresentado ao leitor no primeiro capítulo, o filósofo tido como
louco (o Gabiru) mantém-se alheio à realidade e agarra-se aos sonhos, às especulações, em
detrimento do “vale de lágrimas”, que ignora:
Gabiru, filósofo esguio que tem descoberto mundos e ignora as coisas mais simples da
vida. Remexe num brasido de ideias e nunca olhou cara a cara a existência. Anda atónito na
rua, perdido num mundo que descobriu à proa do seu barco como um navegador. No
subterrâneo do prédio mora quantos anos? um homem que ninguém viu e de quem
ninguém sabe a história. Emparedou-se. Odeia a luz: essa poeira azul, que embebe os seres e
as coisas, março, a árvore, a vida tumultuária e larga como um rio, nunca mais a viu. Está
vivo num túmulo: as paredes esbraseadas, à força de sonhar, a rubro como as pedras duma
forja, conhecem a sua dor. (OP, p. 28)
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O Gabiru abriga-se em universos imaginários, sob a sua capa protetora e demonstra uma
aparente loucura: “Antes viver com um sonho, ignorando tudo”, o que para um materialista parece
terrível pode ser causado, em parte, pela aversão ao mundo material, pela incompatibilidade com a
realidade terrível da desgraça, em parte, também, pela certeza da esterilidade e da fugacidade da
vida, neste sentido tão identificada ao sonho que abriga o “louco”. Mostra-se, por um lado, livre e
isento das regras e julgamentos sociais, por causa da sua loucura que é louvada pelo narrador da
obra. Gabiru não se contenta com o senso comum, nem em ser convencional e também tem uma
grandeza e uma ousadia incompreensíveis para o homem comum, por isso tachada de loucura na
narrativa por muitos personagens. Gabiru não se contenta em ser “um cadáver adiado que procria”;
precisa pensar, imaginar, ousar, buscar explicações e problematizar a existência e o mundo,
tornando-se incapaz de viver apenas a vida rotineira e comezinha. Todavia, por ser diferente, é
desprezado e escarnecido por muitos pobres:
Sim, um doido. E nunca foi feliz. Veio um dia a catástrofe e incendiou-lhe a casa: mais
tarde enganaram-no, mentiram-lhe. E não faltou a doença a escalavrá-lo brocando-lhe a cara e
a tísica a romper-lhe o peito com tosse, nem a miséria a deprimi-lo. É por isso que ele, ao
sacar das casas o caixão dos mortos como quem o arranca do peito dos que ficam, decerto ri
por dentro, há-de rir consolado.
Apedrejam-no os garotos ao vê-lo passar para os enterros, fogem dele os vizinhos e
uma mulher, tão maltratada pelo destino como ele, fala ao gato-pingado. Foi sempre assim:
raquítica, triste e feia. (OP, p. 85)
Para o Gabiru, como para o Astrônomo, o imaterial é mais acessível do que o material,
interditado a ele pela sociedade; por isso constrói moinhos de vento ou sonhos, essências e
universos paralelos, como um Quixote que se incompatibiliza com a vida materialista, que se lança
ao abismo do delírio ou ao irracional, comum no expressionismo, segundo Furness (1990, p. 50).
Se o sonho é rejeitado pela sociedade, o sonhador rejeita a vida; por isso Gabiru é
considerado “louco”. A sociedade não o aceita nem o consegue compreender e, por isso, ele passa
a viver o sonho e a criar ou intuir seus “moinhos de vento”, que também constitui tendência
expressionista (FURNESS, 1990, p. 50). Como em “Os meninos sonhadores, monólogo lírico em
devaneios eróticos” do expressionista Kokoschka (FURNESS, 1990, p. 42), o criativo Gabiru
reinventa até a mulher amada, construindo uma visão da Mouca diferente da dos outros,
conferindo-lhe uma face onírica, mais agradável que a dura e “real”:
O Gabiru, na noite branca e calada, sente-a (a Mouca) aproximar-se e olhá-lo muito
tempo.
– Minha alma!
Nem um murmúrio. Noite a noite era mais o luar. Absorvia tudo. A sua claridade
misteriosa diluía a terra e as coisas. A Árvore imensa e só dor (...)
Via-a perfeitamente. O oval do rosto pálido, os negros cabelos compridos, inteiramente
feita de sonho e de lágrimas. Só os olhos se perdiam em duas sombras, cega talvez de tanto ter
chorado – por a outra rir.
– Não fujas!
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Correu um dia para a Sombra. Lua cheia, lua alta. O mundo, todo embebido em luar,
era como um grande sonho de beleza. Logo a imagem se esvaiu e na sombra funda, na sombra
opaca, restavam apenas manchas vagas e dispersas, luar desfeito... Apalpou a terra. Havia um
ruído ainda –pelo chão corria um fio de água ou um fio de choro...
– Meu amor! meu amor! (OP, p. 118)
Nessa paisagem, personagens e cenário são tingidos de claro-escuro, o rosto pálido da
Mouca contrasta com os seus cabelos negros, a noite contrasta com o luar, a sombra contrasta com
a claridade da alma da Mouca “diluía a terra e as coisas” e o chão contrasta com o “fio de água” ou
as lágrimas. Assim, a lua e a Mouca ou a alma da Mouca (sentida ou intuída pelo Gabiru) se
misturam em tons luminosos que contrastam com o chão e a noite sombria. Os tons claros que se
associam apresentam uma conotação positiva para o Gabiru: luz, lua, Mouca, alma, “sonho de
beleza” ou intuição, interpenetrados na visão do Gabiru. Por outro lado, a noite e a sombra
representam perdição e/ou dispersão dos elementos luminosos: “os olhos se perdiam em duas
sombras”; “a imagem se esvaiu e na sombra funda, na sombra opaca, restavam apenas manchas
vagas e dispersas”.
O Gabiru é um dos poucos que tenta trazer afeto para a relação interpessoal, priorizando o
sentimento, em oposição às relações superficiais, violentas e frívolas vistas na obra. Mesmo depois
de morta, Gabiru pode ainda ver a sua Mouca ou a sua “Maria”, já que a Mouca que morre não é a
mesma que o filósofo inventa e ama: morre corpo/matéria e Gabiru ama uma alma/idéia, morre a
carne e o filósofo quixotesco venera o que intui dela, a (re)invenção que fez dela.
Gabiru parece sempre a um passo de desvendar o(s) mistério(s). Investiga sempre o lado
imaterial dos seres (sonho, delírio, intuição, essência, idéia da Mouca) e serve de intérprete para
alguns personagens, como o Pita, e para o narrador, decodificando-lhes ou tentando revelar-lhes o
mistério da natureza e da vida, que investiga ou intui.
singelos elos entre o Gabiru e a realidade sensível. São eles: a Mouca e o Pita, que
impedem o filósofo de se desconectar por completo da vida material para mergulhar apenas na
imaginação, no delírio e na especulação. O Gabiru também é personagem de Húmus, mas não terá
essas ligações com a realidade, enxergando-a como via simbólica de acesso ao imaterial,
mostrando-se muito mais alheado e desligado da parte carnal do seu ser.
O narrador dá relevo ao Pita, no final do primeiro capítulo, ainda que não lhe ceda voz para
narrar seu próprio capítulo, revelando-o como um personagem crítico, consciente de sua condição
social, de seu lugar de explorado e capaz de perceber e de criticar a realidade que o cerca. Mostra-
o num patamar mais elevado de consciência que a maior parte dos demais personagens pobres,
ignorantes e incapazes de formular reflexões mais críticas sobre sua condição social.
Era o Pita, mas o Pita transfigurado e triste; o Pita com dentes de menos e não sei que
doloroso sorriso; o Pita mais velho e mais sórdido.
– Maquinações filosóficas, meu preclaro amigo.
82
A realidade é triste e amarga. Isto que daqui e não compreende, árvores, montes e
águas, é no fundo tão revolvido e espezinhado como o lodo humano. (OP, p. 42)
O narrador coloca-o à frente dos demais pobres, no que tange a experiências e a reflexões
sobre os acontecimentos cotidianos do cortiço em que habita, tendo conquistado o respeito e a
admiração dos demais, mesmo quando não alcançam seu raciocínio, como na morte da Mouca:
Este acto de o espírito se libertar é de tal forma grande, o início do mistério, que até o
Pita olhava estarrecido. Fora disse para os ladrões:
A morte, rapazes, ensina. Não lição mais formidável. É doloroso e no entanto
pacifica. Ver morrer enche de grandes ideais, filhos!... (OP, p. 132)
O Pita é o único, dentre os pobres, capaz de refletir sobre esse evento, pensando-o para
além das aparências, tecendo comentários que deixam os outros sem palavras. Entretanto, ele
parece ter conquistado credibilidade na comunidade, talvez por sua capacidade de articular
reflexões ao cotidiano, diferentemente das reflexões oníricas do Gabiru. Fortemente ligado à
natureza, identifica-se com o narrador central (“Só outro pobre, o Pita, da trapeira contígua
como eu a prodigiosa natureza a Mãe.” OP, p. 39), com o Astrônomo e com o Gabiru,
companheiros de inquietações e investigações filosóficas sobre o mistério da vida:
Os dias passaram-se e a Árvore era um colosso esbranquiçado e mudo. Nessa noite o
Astrónomo encontrou o Pita desvairado, com o xale-manta ao vento.
– Pita, você tem um ar estranho.
E o Pita, transido, murmurou:
– Você deve tê-los visto. Nascem, irrompem da treva...
O outro, cheio de serenidade, afiançou:
– Foi a primavera.
A primavera isto! O amigo desvaira. Como a primavera? Eles aparecem de noite,
criam-se nos saguões. Deparo com criaturas que nunca vi. Uns são lama viva, outros que
são?... Homem, dir-se-ia que todos os sonhos tomaram corpo. (OP, p. 123)
Os três, o Astrônomo, o Gabiru e o Pita investigam o desconhecido: a vida, a morte, a
existência humana e a de Deus, o espaço físico e o metafísico; por isso, para os pobres, estão no
limite entre sanidade e loucura. Nessas investigações filosóficas, movem-se na fronteira entre vida
e morte, entre noite e dia, ignorância e conhecimento, cotidiano (dos pobres) e teoria dos filósofos,
entre vida dura e sonho suave, enfim situam-se num entrelugar, de onde percebem nuances do
claro-escuro com que se pinta a existência, como nesse fragmento em que Pita e Gabiru pesquisam
sobre a condição humana, durante a madrugada, que nem é noite fechada em que deambulam os
pobres, nem dia, é a fronteira entre dormência e vigília. O exemplo que se segue parece contemplar
todas essas considerações:
Nessa madrugada o Pita arrastou o Gabiru por um esgoto que do prédio ia desaguar
ao outro lado do Hospital e de queele sabia a existência. As paredes arrombara-as donde a
onde a raiz torcida da árvore.
Anda! anda! Estas raízes são mais duras que a pedra. Nada lhes resiste, nem o
granito. A árvore há-de acabar por nos tragar a todos.
83
Tinha chovido na véspera e era ainda noite quando saíram do esgoto. Abala-os logo
uma lufada de ar vivo, deste ar que é como a água da rocha, que apetece sempre beber e que
traz consigo existências de árvores, cheiinho de emoção. Param. Uma brancura, nebulosa na
cova onde se criam mundos, ainda erra esparsa. No céu brilham estrelas e sente-se sobre as
terras lavradias o nevoeiro espesso, que das árvores tomba em gotas grossas como chuva de
verão. Os troncos além são espectros e outros, mais longe, de todo desaparecem. Ao norte luz
uma estrela enorme. Sobre o monte abre-se um rasgão de claridade. Eis o sol fraco,
escorrendo por entre troncos, misturado de branco e sem calor, tal qual luar. Nos regos do
arado correm rolos de névoa e a verdura da erva, na manhãzinha, é imaterial, como se fosse
a respiração da terra. As aves, nas moutas, começam o seu dia cantando.
– Que sentes? – pergunta o Pita ao Gabiru. (OP, p.214-215, grifos nossos)
O Pita escolhe uma fronteira espacial, entre os detritos da cidade e a natureza; uma
fronteira temporal: a madrugada, entre dia e noite; uma fronteira existencial, entre a vigília e o
sono, que também podem remeter à vida e à morte; e que revelam também a fronteira das cores,
entre o escuro do esgoto, da noite, da terra, dos espectros; e a claridade da “água da rocha” ou da
chuva, do sol, do luar, das estrelas. Essa fronteira parece aos filósofos propícia para a investigação
do ser, da sua condição e do mistério da vida.
Além da madrugada, o húmus é outra fronteira entre vida e morte também observada por
Pita e Gabiru: “É vida. Esse pedaço de terra é húmus. Incha com a primavera, fala. Está morna e
escuta, põe-na ao ouvido... Ouves?”. Os dois avançam na pesquisa, ainda que não cheguem a uma
resposta conclusiva e nem se aflijam por isso. Apenas vibrem a cada avanço, como atesta a
observação do Gabiru: “Ruído, vozes, gritos de embriões, um burburinho...” (OP, p. 214).
O Gabiru tem no Pita um intermediário entre suas idéias e a vida, entre suas teorias e a
prática. O fato é sempre trazido ao Gabiru pelo Pita, mais presente em acontecimentos mundanos,
mais atento a problemas materiais do que o filósofo sonhador. Talvez seja o elo necessário, que
faça com que as elucubrações do Gabiru por vezes pareçam mais lúcidas:
Ei-lo o prodígio, o extraordinário milagre, esta vida que o Pita me mostrou, árvores,
nuvens, mar, este monstruoso referver de vida, igual nos montes e nos ígneos mundos. E eu
pertenço a este pélago como tu, passo os meus dias a contemplá-lo!
Fico horas a aparar nas mãos o jorro do sol, olhando-o correr...
Por força existe uma razão superior, senão o homem seria Deus, a consciência do
universo, o que se não compreende: um deus reles, com misérias e gritos, sempre a escalar o
infinito e sempre despedaçado pelos tombos. (OP, p. 90)
Os três companheiros de elucubrações e de questionamentos filosóficos formam uma
espécie de triângulo, em que o Pita conhece melhor a Natureza terrena; o Astrônomo, as estrelas e
o espaço; e o Gabiru, o sonho e a imaginação, sempre com o fito em algo maior. Completam-se e
parecem fechar as possibilidades de uma associação e de uma relação entre material e imaterial:
Falavam de suicídio, riam do Astrónomo um sonhador! e no fundo todos temiam a
morte e quereriam ser como ele. Morrer sem ter vivido!... O que haviam tentado realizar, esse
esforço para materializarem a própria alma, que outra coisa não é criar, dera-lhes como
resultado um bloco gélido e informe, talvez vivo mas um bloco. Por isso a morte os aterrava,
a morte que era o nada para todos, até para o Pita então idealista. Sabiam que iam morrer sem
ter vivido. A existência não era decerto como eles a haviam compreendido: alguma coisa lhes
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falhara. Tinham rido de tudo. Só a Morte ainda restava intacta, sem dedadas na sua roupagem
negra, com todo o seu mistério e toda a sua beleza. (OP, p. 103)
As reflexões desses personagens, assim como os seus gestos, tornam-se enigmáticos,
cifrados e ininteligíveis aos pobres (e aos leitores potenciais), como se pode perceber nas reflexões
do Pita sobre a árvore, no capítulo dedicado a ela:
O Pita sentiu que alguma coisa de extraordinário se passava nessa madrugada de abril:
um jorro de vida brotara, uma aparição, um sonho realizara-se tornado em matéria. A própria
luz dir-se-ia enternecida, estremecendo ao tocar na Árvore. Envolvia um fluido, um rastro de
emoção.
Erguida, enorme, transformada em flor a dor que as suas raízes tinham bebido. Com
um grito o Pita viu o Gabiru pendurado num ramo.
Namorara sempre, depois do escárnio da Mouca, aquela Árvore, cismando num
encontro etéreo para depois da cova. A tísica, nos últimos dias, quando a morte a tocara,
não tirava dos troncos despidos o olhar absorto.
– Aquela Árvore – dizia aquela Árvore... Não sei se repararam... As criaturas mesmo
antes da agonia pertencem mais a um outro mundo do que à terra. A matéria está toda
embebida de mistério, há mais luz do que noite... (OP, p. 140, grifos nossos)
Tão misteriosas quanto as revelações experimentadas pelo Pita, pelo Astrônomo ou pelo
Gabiru são os seus gestos, como este do Gabiru, quando pratica atos libidinosos com a misteriosa
árvore, atos incomuns e pansexuais, incompreensíveis e surpreendentes até para o Pita. Sentido há,
mas jaz na intimidade daquele que a praticou, inatingível ao Pita e ao narrador, talvez uma
tentativa de penetrar o mistério (da árvore, da natureza, da existência e do ser) ou de juntar-se à
natureza ou à Mouca, consumando enfim seu amor.
É essa tentativa de penetrar o mistério da vida, da existência, da natureza, do ser e do
universo que leva o Pita, no último capítulo da segunda edição, a tentar enveredar por reflexões
existenciais mais complexas sobre sonhos e astros, impensáveis para os demais pobres, ainda que
os três visionários pareçam sempre prestes a desvendar o mistério ou um dos mistérios:
Ele (Gabiru) e o Astrónomo ficaram um pedaço a cismar. O que os prendia afinal à
vida? em que criam? Nesse fim da tarde, chovia e aquilo era lúgubre: como que as coisas os
empurravam para a morte. Na vida tudo lhes falhara e aos quarenta anos se não constroem
nuvens. (...)
– Que querem se eu nasci para isto? Eu só vivo na solidão, e a vida para mim é sonhar.
Como hei-de eu, que vivo em cima, pobre, com este casaco que de gasto nem sequer me
aquece, compreender a existência? Dum lado estou eu misérrimo, do outro um turbilhão de
astros... Quantas riquezas! Astros todos de oiro, astros de crime, plagas duma areia fina e
rubra e depois largos oceanos desertos... Talvez o céu seja uma árvore sempre na primavera...
Infinitos mundos, colossos mudos, que passam, e eu pobre, transido de frio, compreendo e
vejo!... Depois, se desço pra baixo, nu, a vida parece-me triste e logo corro a refugiar-me
no céu. (OP, p. 102-103)
A morte do Astrônomo é tão patética e propositalmente ridícula quanto são a sua figura na
narrativa e seus propósitos incompreendidos pela maioria dos personagens, sem esclarecimentos
sobre os objetivos, as metas e até sobre a matéria:
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Encontraram ontem o Astrónomo estendido na latrina. Ultimamente ia-lhe no crânio
um ruído estranho.
Constelações de fogo, mundos e coisas terrenas confundiam-se. Absorto, tremendo de
frio dentro do casaco de alpaca, olhava o céu num êxtase. Donde tombara? Da fome ou dum
sonho? Consumira-se como um tronco num lar. (OP, p. 129)
Para o narrador central, como também para o Gabiru, para o Astrônomo e para o Pita, o
mundo em que vive e em que experimenta a dor é uma sombra do mundo ideal:
Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um velho... Não o distingo bem:
é a sua sombra que eu vejo, cómica e desengonçada e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe
notei cabelos brancos. Aquela sombra agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala
sozinho, discute... Às vezes tropeça, ergue-se e parte a pregar por entre a casaria e o ruído,
debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.
(...) Alvorece e, àquela primeira luz, a cidade parece desenterrada. A casaria ressurge,
emerge da treva leprosa, cambada, gasta pelo ódio, pelas ambições, pelos rancores...
Ei-lo que se senta na terra, arrasado, enlameado, exausto... Ao romper da manhã
começa de novo a chover e ele chora. Tanta lágrima! Um dia a desgraça, no outro a
desgraça... Aquela sombra é a minha! aquele homem sou eu!... (OP, p. 95)
Os personagens são extensões do cenário doentio e misterioso, pintados em tons de luz e
sombra (“lama negra”, “àquela primeira luz”, “treva leprosa”, “dia”), como o velho sombrio de
“cabelos brancos” e como a cambada “gasta pelo ódio, pelas ambições e pelos rancores”. Sombras
deste mundo de horror, fantasmas grotescos de uma verdade intangível ao homem, mas suspeitada
pelos personagens menos agarrados à vida material, que passam “por doidos e na verdade quase
gritam de pavor diante do espantoso universo” (AF, p. 38): filósofos, artistas, escritores e
metafísicos. Mas, são previsíveis na degradação, no mais cada personagem, como cada ente
natural é único e imprevisível.
A observar todos os cenários e personagens problemáticos e arruinados, está o narrador
central, aquele que pensa a desgraça, a sua e a do próximo, a existência, o sonho, a morte e o
invisível, o imaterial e Deus, questões sobre as quais se debruça em infindáveis digressões
filosóficas, suas e de outros a quem confere voz. Dentre esses personagens observados, talvez o
que mais se destaque seja o Gabiru, o que mais pontos de semelhança apresenta com o narrador
central.
Não otimismo no pensar do narrador e não personagem otimista diante da vida e das
possibilidades de regeneração da humanidade. São todos céticos; por isso não razão para
mobilizações ou demandas, por isso tanta abulia entre os personagens, que se arrastam pela vida:
Gebo, Sofia, Luísa, Mouca. Uma atmosfera de niilismo atravessa não apenas a narrativa, os
personagens e os acontecimentos, mas também as idéias e reflexões do(s) narrador(es). A falta de
possibilidades e de soluções é flagrante e encurrala a todos, tornando o “enxurro” um labirinto sem
saída, um vale de lágrimas que deságua ciclicamente na morte; e até o além reconduz o ser, através
do húmus, ao vale de lágrimas. O homem está preso à desgraça, sobretudo o pobre.
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3.3.3- Os mesquinhos que só passam a vida
O Gebo é um dos personagens que apenas passam a vida, cumprem a existência, sem
pensar sobre ela, preocupando-se com a luta pela sobrevivência e ocupando-se de busca da
satisfação material, ainda que para agradar à mulher, contentando-se ele mesmo com bem pouco,
abnegado, ingênuo e generoso, doando a fortuna aos que lhe pedem. Mostra-se incapaz de se
libertar das imposições materiais, ao contrário do Astrônomo e do Gabiru, por causa da esposa que
o obriga a pedir esmolas, por causa do amor à filha e por não ser dado a especulações e
inquietações. A preguiça nele crescentemente se agravará, tornando-se abúlico, ao fim da
narrativa. Luta contra a acídia durante toda a existência da esposa, mantendo-se em e de mão
estendida, buscando esmolas e caridade, forjando ânimo e energia; até que, com a morte da
mulher, entrega-se ao desânimo, à exaustão e à inércia, que se insinuaram durante toda a sua vida
desencantada e frustrada. Não consegue arranjar ocupação que lhe rendesse algum dinheiro; por
isso a esposa o estimula até a roubar para aumentar as possibilidades de angariar dinheiro. Ao
contrário da Candidinha, mas como a Joana de A Farsa, o Gebo é humilde, caridoso, terno, sempre
disposto a dividir e a doar, portanto nada vaidoso, avarento, invejoso, irado, nem guloso, que
ingere poucos alimentos, guardando sempre o que pode para a família. Sua gordura talvez seja
fruto muito mais do inchaço, por causa das intermináveis deambulações, da ansiedade ou do
nervosismo. Luxúria nem lhe passa pelos pensamentos, ocupado que está com o sustento,
despreocupado com a aparência física que se degrada a cada dia e sem ânimo como se apresenta.
O Gebo, como um bizarro palhaço, é um “velho que pára nos patamares das escadas, gordo
e mole, de cabelos brancos estacados”, “todo curvo”, que “olha com um olhar aguado e tonto”,
sempre “aflito” (OP, p. 25), “que faz riso e piedade”, “chora, depois caminha esbaforido”, “parece
que vai gritar e, de súbito, baixinho, pede-vos esmola”, “tem um riso de humilhado e o aspecto
duma bola de sebo”, “gebo por ser pícaro e roto e por a desgraça o ter calcado aos pés até o tornar
ridículo” (OP, p. 25). Essa “triste existência sem ódio e sem gritos” é patética, lamentando
desgraças para platéias:
Pára no patamar o Gebo contando o que sofreu aos pobres que o querem ouvir. Muitos
fazem roda e ele narra pedaços duma triste existência de humilhação e de esmola, sempre
esbaforido e escorraçado, a filha a sustentar o desprezo do mundo, as suas correrias,
desorientado e com lágrimas, atrás do pão para os seus. (OP, p. 22)
Trata-se de um momo, entre os vários pintados pelos expressionistas, como o esguio e triste
Arlequim (Anexo 2) de Paul Cézanne que, com sua “sensibilidade vibrátil e nervosa, não traduz
apenas as aparências de um momento, mas rejeita a busca do efêmero para se concentrar no
permanente” (PESSANHA, 1980, p. 162) ou na tragicidade da condição humana. Como será a
Candidinha de A Farsa, o Gebo é o momo que faz rir em troca da “côdea” para alimentar a
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família: “em torno as bocas escancaram-se, ao verem-no gordo, pedinchão e grotesco” (OP, p. 25);
“E todos se riam ao vê-lo chorar de aflição” (OP, p. 26). No entanto, diferentemente da sucessora,
demonstra bondade e ingenuidade, que comovem o narrador e que compõem o contraponto triste e
obscuro à sua máscara cômica e parva:
A tressuar, aflito, depois de espezinhado, ainda esse ser mole e gordo, aos quarenta
anos, cria na vida como as árvores e as crianças crêem: assim no globo passam existências
ignoradas de sofrimento e de bondade, que não deixam o mais simples vestígio, como os
veios de água escondidos que são a vida da terra. Sempre a suar, quase sem saber gritar nem
queixar-se, o Gebo tinha um coração ígneo. (OP, p.25)
A família do Gebo representa um contraponto aos personagens solitários, predominantes na
narrativa. Diferentemente de outros personagens, que não m companhia e nada em que se
agarrar, que não têm qualquer momento feliz, o Gebo tem ao menos uma esposa, que o impulsiona
à ação, uma filha a quem ama e por quem deseja melhorar, razões que o levam a deambular
pedindo, relevando qualquer humilhação e vencendo o cansaço e o desânimo: “Era casado e tinha
esta felicidade: uma filha. Uma filha sempre prende a existência! uma filha pequenina sempre tem
nas mãozinhas uma força!” (OP, p. 32). Para proteger as duas, o Gebo é capaz de criar um mundo
fantasioso no lar: “Muito tempo mentira à mulher, que ia vivendo iludida. Ria o Gebo com o
coração torcido, para que elas fossem felizes mais algumas horas últimas horas tiradas à
desgraça” (OP, p. 26), mas, ao fim dos dias, lamenta não ter sido capaz de cobiçar, de odiar, muito
menos de roubar ou matar para proteger seu lar. Diz sentir “pena de ter sido honrado” (OP, p. 28),
ao fim de sua trajetória, que, por isso, viu a mulher morrer de desgosto e a filha prostituir-se
para sustentá-lo. Arrepende-se de não ter sido capaz de nenhum gesto mais ousado ou fora dos
padrões de honestidade.
Por honestidade, covardia, acomodação, acídia, desgraça ou azar, o Gebo é um dos poucos
a suportar a desgraça sem se corromper, embrutecer ou tornar-se frio, um dos poucos a não perder
a ternura pelo próximo. Entretanto, perde o amor-próprio e transforma-se em alguém cada vez
mais passivo, anulando-se. De qualquer forma, suporta como poucos a violência sem revidar e sem
guardar rancor. É talvez essa forma de reagir diante da adversidade que mais comove o narrador
central em sua poética da afetividade.
O Gebo não demonstra senso crítico, consciência, muito menos revolta diante de sua
condição sócio-econômica, ainda que seja oriundo de uma classe mais abastada, que normalmente
tem acesso à educação, aos produtos culturais da elite, os quais também não lhe garantiram
posicionamento crítico e transformador diante dos acontecimentos à sua volta. Vê-se preso à
materialidade, não porque ame a vida carnal e o dinheiro, mas por estar vivo e precise de
condições para se sustentar, que não tem bens, nem ambição, nem cobiça, como quase todos os
pobres.
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Encontra na mulher força e incentivo para se arrastar nas ruas atrás do sustento da família,
tanto que, morta a mulher, torna-se um desvalido e passa a depender da caridade e do amor da
filha. Alimenta com mentiras o sonho mesquinho da esposa. Mais ainda: submete-se a esse sonho
quando também depende dele como estímulo para a ação e para a vida.
Por outro lado, o Gebo nunca se deixa deslumbrar muito pela vida material, já que não dera
valor à sua fortuna, doando-a, nunca se empregara, nem ousara sonhar benesses materiais em
benefício próprio. Seguindo seus instintos e contrariando o desejo da esposa, busca apenas o
mínimo para a sobrevivência da família, mesmo que se arrependa dessa postura ao fim da vida.
Deseja apenas uma coisa de fato: a felicidade da filha, tanto que, na velhice, repete várias vezes:
“Tenho pena de ter sido honrado”, “Anh? anh?... Se eu não tivesse sido honrado...” (p. 28 e 113);
“Oh, a minha filhinha!”, “Quem quer saber da desgraça dos outros? Ai a minha filha!” (p. 27),
lamentando o destino incerto de Sofia. Aquele que parece ser o único sonho do Gebo, comum
também à esposa a felicidade da filha, ou pelo menos uma vida melhor para ela frustra-o
quando, com a morte da mulher e a ruína física e emocional, vê-a forçada a prostituir-se para
sustentar os dois.
A gula não é um vício comum na narrativa, até porque os pobres não têm como entregar-se
à fartura. A gordura nem sempre é sinal de gula, na narrativa. O Gebo é gordo, mas passa fome e é
capaz de tirar o pão da própria boca para dá-lo à filha e à esposa. Por outro lado, talvez uma grande
representante da gula e, mais ainda da cobiça e da avareza, seja a Gorda ou patroa, a cafetina,
sempre a contar dinheiro, receber moças para a prostituição e convencer as prostitutas de que o
amor enfraquece as pessoas e os negócios: “Outra canta, e a patroa, gorda e desdentada, calcula o
ganho. Às vezes prega-lhes horas e horas: ‘O amor sabe a vinagre. É pior do que a morte...’” (OP,
p. 32); “Tu bocado disseste que bem sabias onde ir buscar o dinheiro. Era à Gorda, pois era?
Podes dizer, que eu bem sei. Estou pronta! Sou um cangalho, sirvo de tropeço...” (OP, p. 59);
“Nada mais ignorante, mais puro, mais simples... Foi um crime. Deixei-a rapidamente, dando
dinheiro à mulher gorda e vesga, que sorria, e fugi como quem foge ao remorso”. (OP, p. 84) ou
“No entanto o remorso acorda, o remorso põe-se a rugir... Vejo a mulher gorda e vesga dar-lhe
dinheiro; vejo-a depois partir através das ruas, encharcada até aos ossos, sem perceber porque foi
vilipendiada, enganada e expulsa” (OP, p.87). Mas, os maiores representantes da gula na narrativa
são a terra, sempre ávida por devorar seres, a quem sempre apetece a morte; e o “enxurro” que
nunca se farta de desgraças e de desgraçados: “a terra molhada é dum negro gordo”; “Dormir na
terra funda e gorda é bom – dormir para sempre. Ir ser árvore, luz, detrito, correr nas veias da terra,
e quase consolador excelente sono sem sonhos, depois da lide canseirosa dum dia” (OP, p. 49);
“As couves são do tamanho de árvores e a água sussurra, mina por toda a parte, em carreirinhos,
embebe à farta a terra negra e gorda” (OP, p. 100); e “tanto tempo empedernidos, que esfuracam
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para o sol; das sementes que rebentam e sobem para a luz, o glu glu das raízes gordas e felizes ao
mergulharem no húmus”. (OP, p. 218)
A esposa do Gebo, a forte e incisiva mãe de Sofia, oposta ao marido em muitos aspectos,
deseja melhorias materiais, demonstra impaciência com a ingenuidade do marido e, tentando
salvar a família:
– Não fosses tolo! olha os teus amigos como trepam.
– O mulher, mas que hei-de eu fazer? Tu não me dirás o que hei-de fazer?
– Roubá-lo! roubá-lo!... (OP, p. 44)
Dura com o marido, é ela quem mantém o Gebo de pé, saudável, ativando-lhe o máximo de
energia, empurrando-o para a ação e dele cobrando sempre mais empenho em sustentar a família.
Neste sentido, faz bem ao Gebo, fortalece-o, através da pressão, ainda que esse modo não seja o
melhor. No entanto, para isso, talvez o enfraqueça psicológica e emocionalmente, anulando os
sonhos e desejos próprios do marido, submetendo-o aos seus (da mulher) desejos e sonhos, que ele
acaba não buscando com tanto afinco e empenho. Empurra-lhe a responsabilidade de conseguir
melhores condições de vida. Cobra dele a concretização do seu sonho material, irritando-se com o
fato de o Gebo contentar-se com muito menos do que ela:
A velha trabalhava, ruminava projectos desconexos para enriquecerem; a roupa
andava defendida e cuidada até às últimas. Luziam as coisas e quase não comiam para
poupar, sobretudo ela que tudo guardava para o Gebo e para a filha.
– O homem, mas então? Toda a gente se arranja e tu estás sempre na cepa torta!
– Deixa estar, mulher! As coisas não vão como tu pensas.
– Ora não vão, não vão!...
Era ela afinal que o empurrava, àquele ser gordo e inútil. Fortalecia-o.
– Por vossa causa é que eu luto – dizia ele sempre.
– Não posso mais! (OP, p. 47, grifos nossos)
Severa e amargurada, prega “dias inteiros em monólogos cheios de gritos, de sonho
espezinhado, todos lavados em lágrimas”, porém é agregadora. Enquanto vive, mantém a família
unida, apesar de todas as desgraças, e mantém também o Gebo em campo, lutando para buscar o
que é possível. Projeta e executa tarefas administrativas: poupa e guarda, incumbindo o marido da
captação de recursos para ascenderem socialmente, recursos que nunca chegam, tendo em vista a
falta de competência para os negócios, de disposição e de ganância do Gebo.
Entretanto, não auxilia o marido na tarefa de suprir as necessidades do lar. Contenta-se com
sonhos, esperanças de realização material, que praticamente forçam o marido a mentir. A
convicção de que o homem deve ser o provedor do lar leva-a a convencer o Gebo a mendigar,
mantendo-a em casa, cuidando da casa, da filha e do marido, afastando-a da rua, da mendicância e
da prostituição.
Agarra-se aos sonhos que cobra do Gebo, incapaz de projetar e buscar também ou de agir.
Cobra do Gebo a ação que por ela mesma também não é capaz de empreender. Culpa-o pela
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inércia e pela incapacidade de ganhar dinheiro que era de ambos, inconformada com o fato de o
marido não ter cultivado a fortuna que ela ama e valoriza, e não é amada e valorizada pelo Gebo,
inconformada por querer de volta a fortuna perdida pelo marido e por ver que ele não a quer tanto
de volta e nem é capaz de reconquistá-la para satisfazer a esposa. Assim, aquele que talvez tenha
sido o grande defeito do Gebo, na concepção da esposa, a preguiça, não deixou de acometer
também a ela mesma, escondida atrás das “obrigações do lar” e da “criação da filha”.
Ela preferiria a condição de rica, mas nenhum dos dois foi suficientemente competente,
forte ou apegado aos bens materiais para manter-se rico. Não foram capazes de roubar, nem de
abandonar a família e nem de prostituir-se, habituados aos princípios morais e éticos da elite, o que
também não os torna melhores do que nenhum dos desgraçados ignorantes e corrompidos, pela
miséria e pela indigência, levados à marginalidade ou à criminalidade na luta pela sobrevivência.
Em condições semelhantes às da família do Gebo, vivem os homens que defendem a lei e
aqueles que a contrariam, como pares, ladrões e soldados: “As mulheres dos ladrões e dos soldados
moram ao pé da dor”; “Mouca, escárnio de ladrões e de soldados”; “entre as mulheres, os ladrões e
os soldados”; “Entre as ideias que vai tecendo surge sempre aquela figura trágica, que todo o dia ri
com’os ladrões e os soldados...”. São quase sempre equiparados por gestos e atos desumanos, seja
para o bem seja para o mal, seja pela perversidade, seja pela indigência, provocando piedade e
surpresa no narrador. O narrador central põe no mesmo nível “os ladrões e os soldados”, “os que
sofrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heróis”, defendendo os humildes, marginalizados,
ainda que fora da lei dos ricos, apontando como algozes os ricos exploradores. Mesmo aqueles que
prestam caridade, não deixam de humilhar e subjugar, como atesta Guerra Junqueiro no prefácio
da primeira edição:
Nenhum dos ladrões, nenhuma das prostitutas do seu poema resvalaram ao vicio ou ao
crime por vontade própria, por fatalidade fisiológica. Obrigou-os a fome, calcou-os a
injustiça. A sua infâmia e a sua ignomínia é a avareza ou a luxúria dos homens opulentos e
devassos. Todos os ricos, ainda os caridosos, são perversos, e todos os miseráveis, ainda
roubando ou esfaqueando, são criaturas boas, porque são vítimas dos primeiros. (OP, p. 10,
grifos nossos)
Das prostitutas, a mais resignada é a Sofia, filha do Gebo. Mesmo tendo sempre morado no
cortiço, em que ladrões, prostitutas e “loucos” transitam, e a proteção da mãe e do pai, cresce
desconhecendo a vida. Uma vez morta a mãe, torna-se uma jovem inexperiente e desprotegida
diante da violência do mundo, mas nem por isso covarde.
O narrador apresenta muitas semelhanças entre Sofia e o pai, a quem ama e protege
incondicionalmente, mesmo em criança. Humilde e resignada com a miséria, caridosa e carinhosa,
sacrifica-se, desde a infância, para ver a felicidade daqueles a quem ama. É incapaz de se zangar
com qualquer um, mesmo com aqueles que a ofendem, como a Mouca. Perdoa qualquer ofensa,
encolhe-se diante do agressor e tem sempre ternura para responder às agressões. Além disso,
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pacífica, tenta contornar qualquer discórdia, sobretudo aquelas que se iniciam entre a mãe e o pai;
procura confortar aqueles que se encontram deprimidos ou descontentes, como faz com a Mouca
no leito de morte; e tem sempre um afeto sincero e desinteressado para doar. Tira de sua própria
boca o pão para os outros e não deseja nada a mais do que o cortiço, a presença do pai e a
companhia das prostitutas e dos ladrões, com quem convive retraidamente na idade adulta.
A filha, sumida na sombra, compunha-lhe a roupa, e a mulher ralhava, passeando na
sala. Batia a luz do candeeiro na cara oleosa do Gebo, no nariz enorme, nos seus olhos
tristes, e, do outro lado da mesa, se viam iluminadas as mãos de Sofia, toda a noite
trabalhando sem ruído e sem descanso...(OP, p. 45, grifos nossos)
As descrições de Sofia e do Gebo, que por vezes se misturam ou se duplicam, como na
passagem acima, despertam no narrador “um desassossego e uma tendência ao extremo, ao inflado
e ao grotesco, um anseio pelo novo e pelo estranho”, usando “a distorção para obter um maior grau
de expressividade” (FURNESS, 1990, p. 35-36), marcas que levaram alguns artistas e obras do
século XIX a serem “saudados como precursores” pelos expressionistas. A inquietação e a piedade
do narrador diante de tais figuras e dos sortilégios que padecem é patente em passagens como esta
em que Sofia, resistindo às adversidades, sacrifica-se e doa seus afetos maternais a um menino
carente:
Noite de chuva, desta chuva miúda que enlameia e entristece como uma angústia. Na
rua Sofia passa com o xale de rasto. um clarão de tochas à porta. Vai sair um enterro.
Morreu o pequeno do gato-pingado. Trouxe-a para casa uma noite, a essa criança que
encontrou caída na rua. Um rapaz de dez anos, abandonado e com uma pneumonia... Que lhe
queria o gato-pingado fazer, não me dirão?... (OP, p. 119-120, grifos nossos)
Sofia é apresentada pelo narrador, por um lado, fisicamente grotesca e repugnante; mas, por
outro lado, nos gestos e sentimentos, como um clarão de bondade e abnegação que persiste na
escuridão do enxurro mesquinho, encorpando a estética do claro-escuro pesadelo. Talvez por isso
seja estéril e infértil, como a Joana de A Farsa. Não parece possível existir, que dirá perpetuar-se,
uma bondade grande como a sua nesse mundo. No entanto, ela existe na obra e persiste viva, sem
deixar de ser boa.
A poética da afetividade em relação ao pobre se manifesta também na expiação redentora
da penitente Sofia que, no profundo desânimo diante da vida, cala-se, não sorri e, na necessidade
de sustentar-se e ao pai, entrega-se ao ofício mais próximo e rápido, a prostituição, mesmo não
sendo um ofício fácil, que a faz sofrer o horror das pancadas, dos insultos e da miséria.
A coisificação aumenta a penitência do personagem que não se entrega à luxúria ao se
prostituir, mas serve como mero objeto do desejo alheio, nunca tirando nenhum proveito, salvo o
parco recurso financeiro. Mantém-se trancada em seus pensamentos. Com isso, se não consegue
manter-se na claridade, consegue pelo menos autopreservar-se do “enxurro” em que vive, não se
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deixando obscurecer por completo, não se tornando perversa nem violenta como a Mouca ou como
os ladrões, que quase sempre descontam seus recalques e problemas em inocentes indefesos.
Toda a resignação, o cansaço diante da violência sofrida e a abnegação de Sofia parecem
duplicar a tela Mulher deitada, de Toulouse-Lautrec (Anexo 4), pintada em 1896 em tons de
branco, laranja e cáqui, a cor da carne, que alimenta a luxúria alheia, fonte de sustento para o
personagem. A tela contrapõe a sensualidade dos contornos femininos em roupas íntimas à
lassidão e indiferença do personagem dormente. A estética do claro-escuro expressionista revela-se
na descrição de Sofia, como na do Gebo, imperfeita, fisicamente cinzenta, com sua aparência e
roupas rotas e encardidas, mas pintada em tons mais claros de bondade, como uma ilha de
sentimentos e gestos claros cercada pelo “enxurro” escuro de sordidez, crueldade e egoísmo.
A insatisfação e a violência sofridas por Sofia colaboram, possivelmente, para a
infertilidade do personagem e do tipo de bondade que representa, fadada à predação, mas não à
extinção, num mundo de contrastes insolúveis, em que figuras cruéis e violentas são mais comuns,
mas figuras como o Gebo, em sua geração, e depois a Sofia vão aparecendo, como prova da
imprevisibilidade da psique e da alma humana, que podem surpreender e tornar-se diferentes do
esperado, que cada subjetividade é fruto de processos psíquicos inconscientes, segundo Freud
(1975). A bondade de Sofia, ainda que pareça fadada à sufocação e ao desaparecimento, perpetua-
se e continuará se perpetuando sempre no húmus, que recebe e recicla tons, matéria e sonhos, para
depois os repintar em novos seres, novas existências em que existirão o claro e o sombrio, o bom e
o mau.
Outra prostituta pintada pelo narrador em tons de claro-escuro é a Mouca, que nem ousa
mais sonhar depois de uma infância muito mais sofrida do que a de Sofia, em que sofre toda sorte
de violências, chegando a perder uma das vistas, o que a obriga a usar o “pacho negro num olho”:
Eu sou a Mouca começa ela às risadas. A minha mãe deitou-me fora era eu
pequenina, e eu, se tivesse uma filha, botava-a à roda pra ganhar a vida. Tomaram conta de
mim os ladrões, cresci na rua e a minha cama eram as pedras dos portais... Tomaram conta de
mim os ladrões. Vidas! vidas!...
– Tu não te calarás!
Em pequena andei todo um inverno com uma camisa rota. Até foi bom, agora não
sinto o frio. Depois moeram-me. Vocês não querem saber? Calcavam-me aos pés por nada.
Aprendi. Muito custa a levar a vida... Aos trezes anos um ladrão desfrutou-me. Era um velho
careca que parecia um S. Pedro. Chamavam-lhe o Lesma, vocês hão-de ter ouvido falar. A
gente só aprende à sua custa. Vidas! vidas!... Eu sou feita de terra, da terra que todo o mundo
pisa, mas também tenho calçado. Ele desgraças piores, eu sei que há. vi gente morrer
por não ter uma côdea pra a boca. Olhai que eu conheço a desgraça. Tenho-a encarado... Faz
mal quem se abaixa... (OP, p. 30-31)
A criança abandonada torna-se uma figura grotesca, uma versão miserável ainda mais
decrépta que a “feia e velha” Yvette Guilbert (PESSANHA, 1980, p. 239) de Toulouse-Lautrec
(Anexo 3), uma adulta nervosa, histericamente risonha, amargurada, carente, revoltada contra seu
93
próprio destino, ainda e sempre humilhada e escarnecida por todos. Representa a prostituta e o
palhaço, figuras recorrentes em telas expressionistas. É escarnecida por todos, objeto de riso.
Encontra no riso uma maneira de amenizar os efeitos de sua própria desgraça. A Mouca, rindo dos
seus próprios males, mascara seu eu-profundo, sua insatisfação e sua amargura diante do passado e
do presente, transformando o trágico em cômico. Rir também a ajuda a não pensar sobre sua
condição: “Há uma que ri de tudo. É magra, pálida e gasta. Traz um pacho negro num olho e ri
sempre, com um ar de máscara, de si, das outras e de todas as desgraças” (OP, p. 30).
Demonstrando alheamento e alegria falsos, a Mouca dissimula e esconde seu verdadeiro ser,
amedrontado, ressentido, carente, triste, profundamente infeliz.
A luxúria, que trás o sustento da Mouca e de todas as prostitutas, parece estar muito mais
naqueles que as usam e pagam pelos seus serviços do que propriamente nas prostitutas, vítimas
que são do desamparo, das suas necessidades básicas, da falta de opções e do desencanto: “Eu cá
diz a Mouca – eu cá estou tão habituada a que me dêem dinheiro, que se o meu amigo fica comigo,
escondo moedas no lençol... Quando acordo e as encontro, parece que me pagaram”. (OP, p. 33)
A Mouca aproxima-se da imagem decadentista da femme fatale apenas diante do Gabiru, de
quem ri, a quem despreza, humilha e escarnece. Não podendo ser uma autêntica femme fatale, age
como tal apenas diante do Gabiru, tornando-se a femme fatale do Gabiru, que a idealiza, ama com
fixação e a deseja inutilmente:
Todas as noites o Gabiru vai sentar-se a um canto a cismar. Olha a Mouca sem
palavra e sonha. Conhecem-no os ladrões e os soldados, e elas, vendo-o entrar, esgrouviado e
triste, exclamam:
– Lá vem o enguiço!
A Mouca às risadas diz:
– Cá temos o enguiço!...(OP, p. 56)
Outro personagem mesquinho e decadente é o Velho, que não ganha voz na narrativa, mas
tem destino de criminoso, semelhante ao do Morto; entretanto tornando-se mais cruel, vampiresco
e frio, sem falar que a ele nenhuma reflexão filosófica se insinua: “Vem um Velho, que sem falar
gargalha toda a noite ao vê-las maltratadas” (OP, p. 54) e “Entre a turba sinistra vem sempre o
Velho, calado e feroz, que ri com uma boca disforme, e o Morto, que fala com desprezo do
sofrimento, das mulheres, da morte”. (OP, p.91). Violento, regozija-se da dor das mulheres e de
outras vítimas suas.
Por outro lado, o Velho é capaz de um gesto de piedade na morte da Mouca, mostrando-se
também capaz de sentimentos e atitudes contrastantes, de “estados psicológicos extremos, muitas
vezes patológicos” (FURNESS, 1990, p. 20), comuns nos personagens expressionistas, entre o
claro (piedade) e o escuro (perversidade): “e ante também o Velho se chega para a cama. A
Mouca abre os braços e dum lado o Morto, do outro Sofia, seguram-lhe as mãos: ‘Aqui está uma
manta’ diz o Velho baixinho. E apresenta um farrapo de manta coçada” (OP, p. 132). Esse gesto
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de humanidade e caridade demonstra que a crueldade nunca é absoluta. Algo de humanitário, por
menor que seja, sempre pode se manifestar num instante em qualquer ser.
O Velho é um contraponto sombrio do Gebo. Como os outros velhos ricos ou pobres, chega
ao fim da existência, segundo o narrador central, sem ter compreendido a vida, sequer sem ter
pensado sobre ela: “O velho não entende e aceita. Talvez não pergunte o que é a vida”, (OP, p.
112). Mas, outros velhos na obra, uns velhos desgraçados pela miséria e revoltados por não se
terem realizado, outros soberbos com as suas concretizações, mas uns e outros esquecidos do
eterno, do imaterial, dos sentimentos e do pensamento, como mostra o Gabiru ao Morto:
Deparo às vezes na rua com estes velhos falando só, encostados às paredes, com o
casaco no fio. São os velhos pobres, os velhos que chegam ao fim da vida, com olhos de
pasmo, sem terem compreendido a vida e habituados à desgraça. E comparo-os com os
velhos ricos que passam por mim nos seus carros de guerra, imponentes e duros, como
quem avança sentado sobre os depósitos à ordem no banco. A vida acabou de esculpir estas
figuras no ponto em que vão morrer. mais alguns golpes de escopo, duas ou três
marteladas de cinzel e a obra está concluída... Nuns o olhar é directo, os outros mal se
atrevem a fitar-nos: m medo. Aquela boca é imperiosa e habituada a mandar; estes
nem sabem falar senão quando estão sozinhos, em monólogos pueris que acabam no
túmulo, em monólogos infindáveis de dor, de isolamento, de desgraça. Até pelas mãos se
distinguem pelas mãos fortes e grossas pelas mãos magras e exangues. (OP, p. 27-28,
grifos nossos)
Nos personagens focalizados no fragmento, ainda explorando a tendência expressionista
para lançar “ênfase sobre os estados psicológicos extremos, muitas vezes patológicos” (FURNESS,
1990, p. 20), o sujeito abismado (Gabiru) confronta velhos ricos arrogantes e demolidores, donos
de mãos fortes e grossas; velhos pobres ensimesmados e cabisbaixos, fracos e sem voz,
demonstrando nos “olhos pasmos” o grito de pavor que sufocam diariamente. Sem dúvida, como
num quadro expressionista, essa cena “produz um ataque quase físico ao observador (narrador),
com seu estilo violento e suas cores irrealistas, concentrado na expressão de experiências
emocionais e perturbadoras” (FURNESS, 1990, p. 28).
Deste modo, o Velho e os velhos, como a Mouca, o Gebo, Sofia e sua mãe, arrastados pelo
turbilhão da luta pela sobrevivência, não refletem sobre questões metafísicas nem sobre a condição
humana. Deixam-se explorar, vagam ou partem para a criminalidade e a prostituição,
diferentemente dos que demonstram alguma inquietação acerca da condição humana, como se
observou no Morto; ou dos que pensam sobre a vida, ofício desmerecido, ridicularizado e não
remunerado: os “doidos”, filósofos, intelectuais, cientistas, pesquisadores, escritores e artistas.
Mas, todos são pobres gatos-pingados, miseráveis, carentes, solitários, mesmo o narrador central
que observa o “enxurro”. Mesmo os que são ricos também são desgraçados, também têm suas
tragédias particulares. Não lhes faltam bens materiais, mas nem por isso são completos, inteiros ou
plenos. Conhecem-se apenas por apelidos. A indigência afeta-lhes a auto-estima, fazendo com que
percam o apreço pela própria imagem.
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Observa-se que não personagens idealizados. Quase todos apresentam vícios, ainda que
em forma de sonhos irrealizáveis. O Pita, mesmo demonstrando interesse na pesquisa do que
transcende a matéria, prende-se ao dinheiro, recebendo os aluguéis do cortiço. O Gebo é abúlico,
arrasta-se com sua acídia atrás do sonho de fortuna da esposa, que deseja conforto para a família e
humilha o marido. A Sofia, ainda que repetindo a acídia do Gebo, busca conforto para o pai e
sujeita-se à prostituição. A Luíza despreza a própria filha pequena, descontando nela a desgraça
que a assola. A Mouca inveja e humilha a Sofia, escarnece sua dor e se mantém viva por julgar
vida e morte são o mesmo. A avara e aproveitadora Gorda conta os lucros e substitui o amor aos
homens pelo amor ao dinheiro. O Velho e o Morto, em diferentes nuances, manifestam violência e
luxúria contra as prostitutas. O Gabiru e o Astrônomo são alienados da realidade circundante e o
próprio narrador central é habitante de um cortiço. O Astrônomo vive com a cabeça nos astros, que
desviam seus interesses do âmbito material e carnal e conduzem-no para a contemplação e a
reflexão sobre o intangível, da mesma forma que o Gabiru e o narrador central. A diferença é que o
Astrônomo, cientista que é, está preso a um mundo físico, que o conduz também a reflexões sobre
a vida. O Gabiru, por seu turno, concentra-se na contemplação, na emoção e na especulação do
além-vida. E todos três personagens mais o narrador voltam-se para a crítica e a reflexão sobre a
existência, a sociedade e os seres que a povoam, desligados dos sonhos materiais e vivendo em
função do seu pensamento e da reflexão. Não personagem bom ou mau. Todos apresentam
vícios e virtudes em maior ou menor escala. Todos são capazes de um gesto fraterno, ao menos
uma vez na obra. Todos são humilhados e grande parte, como é de se esperar, humilha também,
com exceção dos abúlicos Gebo e Sofia e dos desapegados Gabiru, Astrônomo e o narrador
central, que lança um olhar fraterno e condescendente sobre cada desgraçado, mesmo os mais
cruéis e perversos à primeira vista e sensibiliza-se com as mazelas dos pobres.
A falta de “uma solução ou desfecho na estrutura da diegese” e na história de muitos
personagens se mostra “ideologicamente bastante funcional, pois é forte indicador textual da falta
de solução para a vida” (SOARES, 2001, p. 45) dos personagens em questão, como também para
os problemas sociais e políticos geradores da miséria, da ruína, da violência e de outras
circunstâncias existenciais.
Assim, que se concordar com José Carlos Seabra Pereira (1995) e com Jorge Vicente
Valentim (2004), que aproximam a escrita brandoniana da pintura de Columbano e de outros
pintores expressionistas. A obra Os Pobres é um coro lancinante de gritos do narrador central, dos
narradores secundários e dos personagens, que compõe um quadro de desespero coletivo que
multiplica muitas vezes O Grito, de Munch (Anexo 1). Por outro lado, cada grito e cada drama
particular investigado na obra consiste na entrada no eu-profundo, uma revelação sobre a
existência e sobre a condição humana.
96
4- TRILHAS NA FARSA: CAMINHO PARA O PESADELO E O ABISMO
Escrever não é outra tentativa de destruição, mas antes a tentativa de
reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e pesando todas as engrenagens,
as rodas dentadas, aferindo os eixos milimetricamente, examinando o oscilar
silencioso das molas e a vibração rítmica das moléculas no interior dos aços.
JOSÉ SARAMAGO
Manual de Pintura e Caligrafia
Publicada antes e escrita depois de Os Pobres, A Farsa apresenta uma trama mais coesa e
seqüencial que a narrativa que a antecede, a par das inovações e experiências estéticas promovidas.
Sem abandonar a focalização estereoscópica, observada nos capítulos Candidinha no Sótão
Monologa e Notas dum Ambicioso, por exemplo, o narrador de A Farsa ganha mais espaço para
suas digressões filosóficas e indagações existenciais.
4.1- Algumas trilhas em A Farsa: confluências na estrada dos gêneros e/ou hibridismo
Desde Baudelaire, após “o surto de sensibilidade romântica”, começa “a crise da rigorosa
separação dos gêneros” (GUIMARÃES, 2000, p. 27), que conduzirá às experiências de Raul
Brandão e de alguns prosadores dos séculos XX e XXI, segundo Fernando Guimarães, em seu
artigo “Raul Brandão e os Poetas em Prosa”. Esse fato pode ser observado no romance de
Huysmans, considerado a “Bíblia do Decadentismo” (PAGLIA, 1992, p. 377) por Camile Paglia e
por Latuf Mucci, intitulado Às Avessas (1884), no qual o narrador se estende em longas digressões
sobre diferentes obras de arte, livros, músicas, críticas, em detrimento da diegese, diminuta e
francamente secundarizada.
Segundo Maria Alzira Seixo, em seu artigo Raul Brandão e os sentidos do modernismo
português, A Farsa é um bom exemplo para uma reflexão que problematize os caminhos do
romance modernista em Portugal”, “pela abertura a concepções literárias de rotulação indecisa”
(SEIXO, 2000, p. 16), ainda que o faça em menor grau que Húmus, o seu sucessor.
Essa obra é já, sem dúvida, não uma gratuita tentativa de destruição do romance, mas uma
possibilidade de reconstrução do gênero a partir do seu interior, como aponta Saramago no
fragmento em epígrafe neste capítulo. No caso de A Farsa, essa tentativa de reconstrução será
empreendida através da insubordinação a cânones e/ou do flerte com outros gêneros e estilos
literários, praticando o hibridismo ou produzindo uma literatura de “rotulação indecisa” ou, ainda,
ampliando e enriquecendo o gênero romance, o que “de forma menos programada lança as bases
para a novelística do século XX, nas letras portuguesas” (SEIXO, 2000, p. 17).
O hibridismo, aliás, é pontuado por Álvaro Manuel Machado em seu artigo “Raul Brandão:
para além de modelos, em que ressalta a influência do filósofo Sampaio Bruno, “grande teórico
97
inicial de uma tendência estético-cultural neo-romântica, híbrida e nitidamente antipositivista”
(MACHADO, 2000, p. 261), praticada por Brandão, amigo pessoal e, neste sentido, pupilo de
Bruno. Inovação ou renovação é, portanto, a trilha que Brandão vai seguindo e alargando na
literatura.
Trilhar é, ao mesmo tempo, “debulhar, marcar com pegadas, e seguir um caminho, uma
trilha, uma pista” (FERREIRA, 1999, p. 726). Muitos caminhos podem ser trilhados por entre as
searas ficcionais de uma obra de arte vasta e profunda como A Farsa, caminhos que terão
invariavelmente a marca de um olhar crítico, as pegadas de um sujeito, entre os muitos outros
leitores-críticos possíveis. Por ora, algumas trilhas serão eleitas para este percurso.
Este item propõe reflexões sobre algumas particularidades estéticas, formais, genológicas,
estruturais e estilísticas de A Farsa, ousada narrativa finissecular brandoniana híbrida, que aponta
alguns novos rumos do romance modernista português:
Híbrido, do grego hybris, cuja etimologia remete a ultraje, corresponde a uma miscigenação
ou mistura que violava as leis naturais. Para os gregos o termo correspondia à desmedida, ao
ultrapassar das fronteiras, ato que exigia imediata punição. A palavra remete ao que é “originário de
espécies diversas”, miscigenado de maneira anômala e irregular. Esta origem etimológica foi
responsável pelo fato de serem considerados como sinônimos de híbrido, palavras como: irregular,
anômalo, aberrante, anormal, monstruoso, etc. Híbrido é também o que participa de dois ou mais
conjuntos, gêneros ou estilos. (BERND, 2005)
O hibridismo se manifesta em A Farsa, como se viu n’Os Pobres, em ao menos dois
aspectos: no sentido mais moderno que o termo pode oferecer, relativo à interpenetração de traços
de diferentes gêneros e estilos literários; e também no seu sentido etimológico, de ultraje, de
ousadia inovadora. Mas, o sentido vulgar do termo: irregularidade, anomalia, aberração”, sob o
ponto de vista desse estudo, nunca será aplicável à obra brandoniana, ainda que a incompreensão, a
intolerância ou a resistência à mudança possam levar certa corrente crítica a apontar o que de
inovador e subversivo ao cânone na obra brandoniana como “anomalia”, como fez Câmara Reys,
na década de 40, em “Os quatro defeitos de Raul Brandão”.
Os gêneros literários não são puros; sempre alguma confluência entre dois ou mais
gêneros, como apontou Staiger no epílogo de seu livro Conceitos Fundamentais da Poética,
“frente ao problema de diferenciar gêneros e modelos e de não prejudicar a liberdade do poeta, ao
delimitar gêneros separadamente”: “Um drama pode ser mais drama, quando corresponde mais
a dramas-modelos, e uma composição lírica, pode ser mais lírica se aproximar-se mais de uma
lírica considerada modelo” (STAIGER, 1975, p. 182-183).
Rosenfeld, em seu Teatro épico, após afirmar de antemão que “não existe pureza de
gêneros em sentido absoluto” (ROSENFELD, 1965, p. 4), estabelece fundamentalmente três
gêneros literários lírico, épico e dramático com suas diversas manifestações. O estudioso
enfatiza, ainda, que “esses tipos ideais de modo nenhum representam critério de valor”, de forma
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que “a pureza dramática de uma peça teatral não determina seu valor, quer como obra literária,
quer como obra destinada à cena” (ROSENFELD, 1965, p. 9).
O gênero lírico, “o mais subjetivo” dos três, é, segundo Rosenfeld, aquele em que “uma voz
central, um eu no encontro com o mundo exprime um estado de alma e o traduz por meio de
orações”, as quais tratam “essencialmente da expressão de emoções e disposições psíquicas,
concepções, reflexões e visões enquanto intensamente vividas e experimentadas” pelo emissor ou
eu lírico. Desta maneira, a prioridade é a “expressão emocional e não a narração de um
acontecimento”, o qual não está impedido de ocorrer no gênero lírico, mas quando ocorre
subordina-se à expressão emocional do eu lírico: “O universo se torna expressão de um estado
interior”. Associado ao gênero lírico está, “como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da
musicalidade das palavras e dos versos” (ROSENFELD, 1965, p. 11-12).
O gênero épico é apresentado como aquele em que o emissor “emancipa-se em larga
medida da subjetividade”, geralmente não exprimindo de forma monológica “seus próprios estados
de alma”, mas narrando os de outros seres, com certa serenidade e objetividade na descrição das
circunstâncias, ainda que “participe, em maior ou menor grau, de seus destinos”. Cria-se, com isso,
“certa distância entre o narrador e o mundo narrado” (ROSENFELD, 1965, p. 12-13), pretérito e
não presente como no gênero lírico. Diferentemente da lírica, em que “não oposição sujeito-
objeto” (ROSENFELD, 1965, p. 15), dois horizontes se opõem na narrativa ou pelo menos na
épica pura: o do sujeito e o do objeto: o do narrador (sujeito), maior e mais vasto, que conhece
também os acontecimentos futuros; e o dos personagens (objeto), mais restrito.
No drama, “desaparece de novo a oposição sujeito-objeto”, de modo que “é agora o mundo
que se apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado a um sujeito),
emancipado do narrador e da interferência de qualquer sujeito épico ou lírico”. O gênero
dramático, em que “desaparece qualquer mediador” e em que “o objeto é tudo”, é “oposto ao
lírico”, no qual “o sujeito é tudo”. A Dramática, em que a ação é imprescindível e determinante,
“absorveu em certo sentido o subjetivo dentro do objetivo como a Lírica absorveu o objetivo
dentro do subjetivo” e, portanto, “ligaria a Épica à Lírica”, para Rosenfeld (1965, p. 15-16).
As obras de Brandão são marcadas por uma forte interpenetração dos gêneros. O título A
Farsa, que remete a uma manifestação do gênero dramático, antecipa a confluência genológica
do texto, tendência apontada também pelo narrador em diferentes passagens: “Quem tivesse génio
para narrar o drama entre mãe e filho! Ela conta-lhe as aflições, a fome e os maus tratos a
comédia e a tragédia; as horas amargas atrás da côdea, a humilhação, a máscara da estupidez
encobrindo a infâmia” (AF, p.47, grifos nossos).
A narrativa apresenta, portanto, elementos romanescos, novelísticos, trágicos, cômicos, da
farsa e até líricos, numa interpenetração bem ao gosto modernista, aliás experiência recuperada das
99
narrativas românticas, como Eurico, o Presbítero, de Herculano; Viagens na minha terra, de
Garrett; Amor de Perdição, de Camilo, por exemplo, que recorrem aos diferentes gêneros,
tornando fluidos os limites entre eles, experiência intensificada e alargada por Brandão e pelos
modernistas, durante o século XX.
Na esteira de Baudelaire, em diversas passagens de A Farsa, muitas vezes atravessadas de
lirismo, o narrador utiliza linguagem poética, quebrando regras formais da prosa, com o objetivo
de representar uma imagética mais sofisticada ou um maior efeito emocional, o que faz do texto
prosa poética, conferindo-lhe um efeito estético sem par entre os contemporâneos de Brandão: “a
água come as pedras, as lágrimas molham e desgastam as criaturas (AF, p. 91)”; “Todas as almas
segregam sonho, como todas as flores exalam perfume. É uma irradiação. (AF, p. 126)”.
Nota-se que, “no texto lírico, os recursos sonoros e de significação se aliam de tal forma,
que se cria uma unidade” (SOARES, 2001, p. 26), como ocorre na aliteração das sibilantes (/s/ e
/z/, representadas pelas consoantes “s”, “x”, “ç”), na passagem: “Todas as almas segregam sonho,
como todas as flores exalam perfume. É uma irradiação. (AF, p. 126)”, em que odores e sonhos,
entre outras imaterialidades, sinestesicamente se desprendem das almas e das flores, num misto de
som, imagem e odor que causa forte efeito emocional. Como deixar de associar sonhos a odores,
ambos imateriais, e o odor agradável das flores à sensação despertada pelo sonho? E como deixar
de ouvir e ver na aliteração da mesma sibilante (“s”), no primeiro fragmento mencionado no
parágrafo anterior (“a água come as pedras, as lágrimas molham e desgastam as criaturas”: AF, p.
91), a erosão que vai sendo lenta e gradativamente provocada pela água que jorra e corre, gastando
as pedras e as criaturas? E como deixar de remeter à relação entre tempo e água, nessas pessoas
gastas pela corrosão do tempo (clepsidra, relógio de água) e do sofrimento (lágrima, água que
corre acelerando o tempo), multiplicando o envelhecimento e acelerando a morte? Muitas dessas
relações e significações são provocadas pela sonoridade.
O lirismo é sempre um convite à linguagem poética, ao uso das figuras de linguagem, à
sonoridade, como se pode observar nos fragmentos acima (metáforas, comparações, aliterações e
assonâncias), desde a Antigüidade Clássica, segundo aponta Angélica Soares:
Sabemos que, na Antigüidade, enquanto a epopéia se destinava a cantar o coletivo, a
unidade da polis, outro tipo de composição, naquela época acompanhada pela flauta ou pela
lira, surgia voltada para a expressão de sentimentos mais individualizados, como nas cantigas
de ninar, os lamentos de morte de alguém, os cantares de amor... Eram os cantos líricos que
(mesmo quando ligados a aspectos da vida comunitária: o lirismo coral), em suas origens,
vinham marcados pela emoção, pela musicalidade e pela eliminação do distanciamento entre
o eu poético e o objeto cantado. Ao passar da forma somente cantada para a escrita, nesta se
conservariam recursos que aproximariam música e palavra: as repetições de estrofes, de
ritmos, de versos (refrão) (...) (SOARES, 2001, p. 24)
Observa-se, na prosa de Raul Brandão, um narrador que não se pode eximir do lirismo (o
qual borbulha da “vida comunitária” que vai narrando), em digressões, comentários, reflexões,
100
fruto da sua parcialidade e da sensibilidade aguçada diante dos acontecimentos, da sua comoção
diante dos fatos, da sua tendência à inflexão introspectiva, do forte envolvimento com a matéria
narrada, com as relações travadas, com os personagens. A sua imaginação irreprimível pode
deformar sua visão e produzir nele sensações próximas do delírio.
Dentre as manifestações do gênero narrativo, Vitor Manuel de Aguiar e Silva destaque
ao romance, à novela e ao conto. Estes dois últimos diferem do romance “não pela sua menor
extensão, mas também, e sobretudo, por possuírem caracteres estruturais muito diversos”
(AGUIAR e SILVA, 1976, p. 347). Menor e menos denso do que o romance e do que a novela, “o
conto é uma breve história, de enredo simples e linear, caracterizado por uma forte concentração
da diegese, do tempo e do espaço”, enfim “um curto episódio, um caso humano interessante, uma
recordação”.
Livre das “exaustivas análises psicológicas de personagens” e das “longas digressões e
descrições próprias do romance”, a novela é “a representação de um acontecimento, sem a
amplidão do romance no tratamento dos personagens e do enredo” (AGUIAR e SILVA, 1976, p.
348), apresentando um número maior de espaços e núcleos de personagens, com mais ação, tempo
e espaço mais condensados e o desenvolvimento da intriga em ritmo mais acelerado.
Em primeiro plano, o estudioso põe o romance, que, a partir do século XIX, “avulta como
fenômeno de capital magnitude e crescente importância”, “alargando o domínio de sua temática,
interessando-se pela psicologia, pelos conflitos sociais e políticos, ensaiando constantemente novas
técnicas narrativas e estilísticas”, tornando-se “a mais importante e complexa forma de expressão
literária moderna” (AGUIAR e SILVA, 1976, p.249).
Fundamentalmente narrativo, o romance A Farsa apresenta personagens aparentemente
planos, vários tipos sociais, mas que, ao longo da trama e por conta da focalização interna, tornam-
se mais complexos, em função da densidade psicológica. Candidinha e Antoninho são exemplos
desse processo. Além disso, alguns personagens apresentam uma determinada configuração inicial
e sofrem transformações inesperadas ao longo da trama, como ocorre a Sofia, mimada e
temperamental ao início, e martirizada ao fim da narrativa.
A trama de A Farsa ocorre em diferentes espaços, como a vila provinciana, a serra e a
cidade
9
. Os espaços e ambientes são bastante significativos para o comportamento apresentado por
alguns personagens. A cidade, como lugar em que o materialismo atingiu seu auge, por um lado,
oferece mais oportunidades de emprego e de ascensão social; por outro lado, um esvaziamento
nas relações e um aumento da individualidade, maior competitividade profissional, disputa por
ascensão social mais acirrada, muitas vezes marcada pela deslealdade, como a busca de ascensão
9
Entenda-se cidade ou urbe como localidade não agrícola e dada à atividade mercantil, industrial e/ou financeira
(FERREIRA, 1999), mesmo que em países pobres.
101
através de métodos escusos, valores burgueses e individualistas, menor caridade, que ainda se
observa na vila e, em maior escala ainda, na serra. A serra, habitada por personagens pobres,
desapegadas e menos individualistas, é o espaço da vida rústica, simples, onde a caridade ainda
pauta as relações humanas, apesar da carência material. A vila é o espaço intermediário entre a
serra e a cidade, em processo de urbanização, apresentando distanciamento nas relações e
materialismo, porém ainda sem a intensidade com que aparecem na urbe.
Alguns personagens representam o espaço em que vivem, recurso usual no romance. A
forte, afetuosa e caridosa Joana representa a serra; a ambiciosa e frustrada Candidinha representa a
vila provinciana; e o corrupto e individualista Antoninho representa a cidade, a urbe. Os
personagens que mais se aproximam da serra são os mais luminosos: De outra vez recolheu na
cabana uma rapariga, que o pai, ao vê-la grávida, expulsara de casa (...) Naquela alma espessa de
trevas a humildade e a ternura nasciam como a água nasce nas rochas. Por isso a comparo com a
serra” (AF, p.81) e “um dia descobre a mulher do Antoninho e cobiça-a (...) O Antoninho
aproveita. Depois vem um negócio político. (...) Antoninho hesita. Candidinha diz-lhe: Agora ou
nunca! Faze-lhe tudo o que ele pedir, mas joga pela certa, filho! Estamos ricos!...” (AF, p.61)
Enquanto Joana, entre a serra onde mora e a vila onde trabalha, pratica a caridade e
demonstra desprendimento material, Antoninho é incentivado pela Candidinha, mulher que,
incapaz de concretizar seus ímpetos materialistas, projeta-os no filho. Este, por sua vez, usa a
esposa para obter vantagens econômicas, para ascender profissional e socialmente, demonstrando
seu individualismo extremo.
Alguns traços apresentados no início da narrativa parecem aproximar a narrativa à novela.
Parece reforçar essa tendência a existência de vários núcleos relativamente independentes: beatas,
habitantes e freqüentadores da vila, moradores da serra e trabalhadores citadinos; a organização
dos elementos narrativos em função de acontecimentos extraordinários: a morte da irmã de
Candidinha, como mote para a apresentação dos núcleos e dos personagens, que iniciam a
narrativa tipificados; a expectativa em torno do sonho de Candidinha e da irrupção de sua
verdadeira personalidade, em torno da qual se desenrola o enredo: “Ai que ma levam” (AF, p. 13,
14, 18, 19); “discute com o padre: Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma
pessoa da família...” (AF, p. 15); “Às vezes do corredor escuro irrompe outra criatura, toda em
lágrimas: é a criada, a Joana (...) minha menina que fica sem mãe!...” (AF, p. 17) e “Só a
Candidinha, embrulhada no xale, sem bulir, espera” (AF, p. 17). Entretanto, os personagens,
tipificados em princípio, ganham complexidade, os vários núcleos convergem para Candidinha e
seus problemas sociais e o narrador mergulha na intimidade de certos personagens, relegando a
segundo plano os acontecimentos extraordinários e eventos exteriores, afastando-se
definitivamente da novela e aproximando-se do romance.
102
A epístola, como ocorre desde o Romantismo, também é explorada na narrativa, no
capítulo XIV, a Carta da Serra: “Esta gente que me rodeia, pobres, cavadores, pastores, homens
que se parecem um pouco com as árvores pela sua simplicidade e grandeza (...) são criaturas
diferentes da que tu conheces...” (AF, p.143). Na carta, o narrador passa a narrar em primeira
pessoa e um testemunho comovido sobre a vida dos residentes da serra, lugarejo dormitório de
parte dos personagens pobres da obra, como a Cega, a Sofia (depois de perder o pai) e a
trabalhadora Joana.
Além da epístola, traços de outro gênero aparecem na obra, como sugere o próprio título.
Farsa é, segundo Vassalo (1983, p. 45-46), “dentre as peças curtas do teatro profano”, a que
“pretende provocar o riso sem intenção didática ou moralizante, mas a partir de exageros tirados da
observação da vida quotidiana”, tendendo para a comédia de costumes, sem usar alegorias e sem
objetivo de edificar. A grande dramaticidade, somada ao burlesco do desfecho, à galeria de tipos, à
configuração do personagem central Candidinha, um momo além de inúmeras cenas cômicas
remetem à farsa: “Lembra um palhaço com o chapéu sem penas e a saia emendada, em perpétuas
correrias, do tribunal para casa, contando a quem a quer ouvir a eterna história da herança” (AF, p.
50) e “são gaiatos à volta duma velha. Dois galegos dão-lhes gebadas: ao redor dela as faces
arreganham-se num gozo feroz. É talvez uma doida (...) uiva, não diz coisa com coisa, entre as
risadas, que vão subindo num crescendo. A garotada berra” (AF, p. 140).
Verdadeiras cenas teatrais, os trechos representam, de forma burlesca, a farsa diária
representada pelo personagem central: Candidinha. O primeiro fragmento mostra as momices
diárias que ela encenou durante toda a sua vida ficcional, como um bobo da corte, um “palhaço”,
provocando risos aos mais ricos, com seus despautérios, e recebendo deles côdeas em troca, como
esmola. Passa a vida encenando palhaçadas e se curvando sempre para os que lhe podem pagar
com migalhas por uma risada, ainda que depois desconte seus ódios e humilhações nos poucos
pobres coitados mais miseráveis do que ela: Joana, Cega e Sofia, as únicas que lhe conhecem a
face perversa, por trás da máscara de momo representada para a vila. Não apenas encena a farsa,
humilhando-se e representando seu personagem patético diante de uma platéia, como força o filho
a participar da farsa, não lhe oferecendo opções, roubando-lhe a autonomia e a vida, programando-
o para executar um plano seu de vingança. Não vive e tira o direito do filho à vida e à escolha.
O segundo fragmento situa-se no final da narrativa, logo após a Candidinha tentar
arrancar a máscara de “palhaço” diante da platéia, revelando sua verdadeira face, seus ódios e
mágoas presos e cultivados durante tanto tempo; entretanto, sem ser levada a sério pelo público,
que a sempre como um momo e a qualquer gesto seu como parte do seu número burlesco. Essa
é a cena final da farsa da Candidinha, uma grande carnavalização, com direito a apupos, vaias,
risos, figuras adereçadas, fantasiadas, e um enterro, que pode ser o enterro do próprio personagem,
103
do seu sonho, do seu filho ou da peça, conduzido por um carro dourado, semelhante a um carro
alegórico, como no fim de uma farsa mesmo, como nos momentos finais do último ato de uma
peça burlesca.
A tragédia e a comédia em A Farsa aparecem como as duas faces do mesmo evento:
trágico para o eu que o vivencia, cômico para o outro que o presencia. Assim, se por um lado o
desfecho de todos os personagens é trágico, por outro, também tem ares burlescos, cômicos.
Enquanto a Candidinha representa uma farsa em sua trajetória, tragicômica do início ao
desfecho, Sofia, Joana e a Cega passam por tragédias em suas trajetórias. Do início ao fim da
narrativa, a empregada doméstica Joana sofre e faz uma série de sacrifícios por causa de Sofia, a
filha dos patrões, a quem chama maternalmente de “minha menina”, em princípio sofrendo com os
maus tratos da moça, depois continuando a sofrer para protegê-la de Candidinha, até morrer de
frio, sempre no intento de ajudar ao próximo. Sofia, que começa a narrativa superprotegida e
mimada, após um golpe da tia Candidinha para casá-la com Antoninho passa a sofrer toda sorte de
humilhações e crueldades praticadas pela tia e pelo primo e companheiro. A cega, por sua vez,
casada com Antoninho durante a estadia deste pela cidade, é usada pelo marido como isca para
conseguir do chefe vantagens financeiras e profissionais e, depois, humilhada pelo marido e pela
sogra, acaba cega de tanto chorar. Aliás, poucos são os personagens cujo destino não é
tragicômico, mas unicamente trágico. se destacam a Sofia e a cega, que ganham um contorno
mítico e nos são apresentadas liricamente: quem diga que as gotas que tombam uma a uma da
abertura da fraga são as lágrimas que as duas choraram neste lugar de desterro. É uma água frígida
e límpida que apetece sempre beber” (AF, p. 145).
Curiosa a forma como o texto explora, a um tempo, o lirismo e a teatralidade. Convivem
com páginas de expressão lírica do narrador inúmeros monólogos e diálogos dramáticos, dispostos
mesmo como no teatro: falas entrecortadas apenas por pequenas rubricas:
Quem se importa com a desgraça? Empurram a gente, magoam... A gente serve
para ser enganada.
E aquilo irrompe aos uivos do negrume.
– A vida é uma mentira, a vida é um escárnio, Senhor! Por quem há-de a gente gritar se
todos nos atiram para a desgraça? Quem se importa com o mal que acontece com os outros?
Quem se lhe importa? Tiraram-me tudo! Despiram-me de tudo! Foi pior que a morte. E quem
se importa? Quem?
É aos gritos de aflição que as palavras surgem da noite aziaga.
Enganaram-me e ficaram-se a rir. Parece-me que os vejo rir. Tiraram-me tudo!
Levaram-me tudo! (...) (AF, p.94)
As interrogações retóricas, as expressões exclamativas, simulando lamentos, os gritos, o
choro, os uivos, que denotam o exagero, o fingimento, a simulação, a teatralização da cena, ao
mesmo tempo denotam o clamor pela piedade alheia e o sentimento de autopiedade e dão um tom
patético à passagem. Desta forma, o drama se apresenta na narrativa “para além da área do
104
conteúdo, também como uma modalidade e um gênero: o gênero dramático e a modalidade a ele
análoga, da simulação” (SEIXO, 2000, p. 18). O conteúdo da obra é dramático (comovente,
patético), monólogos, diálogos, máscaras (traços e recursos dramáticos) e simulação em
segunda instância, que os personagens (ficção, simulação em primeira instância) em suas
relações simulam, fingem para os outros personagens, mascaram-se.
Outro recurso teatral que aparece largamente explorado na narrativa é a máscara: Teatro
para nós mesmos, onde não máscaras, (...) Assim essa arquitetura feita de invejas, de ódios,
de pequeninos nadas, era a Candidinha; a outra não passava duma máscara...” (AF, p.55) e “a
máscara, por mais que queira, não a consegue arrancar. Afivelou-se-lhe para sempre à cara. Seu
castigo é esse, criou aquele tipo – não o pode modificar” (AF, p.136).
O tipo social, característico das farsas, vivido pela Candidinha, não passa de máscara, de
fachada ostentada pelo personagem, a fim de encobrir e ocultar a sua complexidade íntima, o seu
ódio, sua sede de vingança. Por trás da máscara, o leitor observa o personagem complexo que é a
Candidinha, com sua interioridade conturbada, misteriosa e enigmática, produto de processos
psíquicos inconscientes, imprevisíveis e, muitas vezes até, indecifráveis.
A máscara social de Candidinha lembra as imagens dos vagabundos e vigaristas, veiculados
pela literatura até o século XVI, “acumulam diversas ocupações, vagam pelas estradas, vivem livre
e alegremente à custa dos outros e não desdenham uma esmola” (GEREMEK, 1995, p. 29). Essa
máscara ou fachada, ostentada por ela, de mulher ingênua e parva, remete ao teatro e à farsa,
revelando a capacidade de simulação e de dissimulação do personagem que, por um lado, simula
ter ingenuidade e alegria que não tem e, por outro, dissimula o ódio e a sede de vingança que
realmente sente. Mas não finge, apenas:
(...) simular não éfingir: “Aquele que finge uma doença pode simplesmente meter-
se na cama e fazer crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si
próprio alguns dos respectivos sintomas”. Logo, fingir, ou dissimular, deixam intacto o
princípio da realidade (...), enquanto que a simulação põe em causa a diferença do
“verdadeiro” e do “falso”, do “real” e do “imaginário”. O simulador está ou não doente, se
produz “verdadeiros” sintomas? (BAUDRILLARD, 1991, p. 9-10)
Ao mesmo tempo, essa capacidade de simular e de dissimular tão “verdadeiramente”
também revela a possibilidade da doença psicossomática do personagem ou, ao menos,
problematiza o “verdadeiro” e o “falso”, o “real” e o “imaginário” e questões psicológicas, como a
sanidade e a loucura: “O simulador está ou não doente, se produz ‘verdadeiros’ sintomas?”. Além
disso, a “verdade” íntima do simulador parece perder terreno para a máscara por ele simulada, que
ganha aderência, status de verdade e acaba por invalidar a verdade por trás dela. E, no caso de
Candidinha, que valida o clichê de que “uma mentira contada mil vezes vira verdade”: “a máscara,
105
por mais que o queira, não a consegue arrancar. Afivelou-se-lhe para sempre à cara. Seu castigo
é esse, criou aquele tipo – não o pode modificar” (AF, p.136).
Assim, a simulação, a linguagem poética e os recursos de diferentes gêneros explorados
nessa narrativa mostram que a fixidez de um único gênero não é capaz de dar conta da
multiplicidade de ângulos e de perspectivas que o artista necessita ressaltar. Na estrada dos
gêneros, a mão única não satisfaz, um desvio também não resolve. uma terceira via, em que
haja a possibilidade de fazer confluírem o épico, o lírico e o dramático pode atender às
necessidades expressivas brandonianas. É preciso aproveitar todos os gêneros e recursos para
poder encenar um pouco da complexidade que é cada alma humana, irredutível a um mero
conjunto de regras.
4.2- A Farsa para além do Decadentismo e do Simbolismo
A partir dos anos 95-96, vemos, com mais rigor, desenhar-se uma vontade
de superação de certos cânones decadentistas, embora as contradições se
mantenham; afina-se a sua adesão ao Simbolismo e configura-se uma estética
literária do grotesco. VÍTOR VIÇOSO
A máscara e o sonho
Sypher chama o período de transição entre o século XIX e o XX de “época neomaneirista”,
considerando-a um momento de inquietação e experimentalismo, entre “a rejeição dos cânones
oficiais e a necessidade de experimentar” (SYPHER, 1980, p.125-133). Por um lado, o artista se
mostra “revoltado contra o estilo dominante” e busca sua reformulação sem “um padrão fixo de
gosto”; por outro lado, num verdadeiro “maneirismo arqueológico”, estéticas passadas são
pesquisadas e convivem com novas tendências, como o Expressionismo. Nem o Naturalismo,
estética imediatamente anterior ao Decadentismo, representante do cânone e da tradição para o
artista finissecular, é de todo descartado, mas modalizado, considerado “estética incompleta”, mas
aproveitado por filósofos como o português Sampaio Bruno (ROCHA, 2000, p.191). É uma época
de sincretismo, “fusão de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, continuando
perceptíveis alguns traços originários” (FERREIRA, 1999, p. 677).
Assim como ocorre com o gênero, um estilo único não é capaz de satisfazer às
necessidades expressivas de um artista inquieto e versátil como Raul Brandão, que ora descreve,
ora investiga, ora analisa, ora critica, ora opina, ora problematiza, ora indaga, ora aprecia, ora
penetra em espaços físicos e sociais, ora penetra na intimidade de alguns personagens, em suas
existências e na condição humana, tornando sua obra uma galeria de “quadros que Brandão
pintou”, na opinião de Cintra (1984, p. 8). A “vontade de superação aos cânones decadentistas” e
106
simbolistas concretiza-se nos traços expressionistas que despontam em sua escrita, avançando
rumo ao modernismo, que Raul Brandão em muitos aspectos antecipa.
Na segunda metade do século XIX, para Seabra, “a inteligência francesa (e da Europa) se
inclinou para uma visão pessimista da evolução histórica”. Deste modo, “o sentimento perturbador
de Decadência é anterior ao eclodir do movimento literário decadentista” (PEREIRA, 1975, p. 17-
18), manifestando-se ainda durante o Realismo e tendo por marco inicial a poesia de Baudelaire,
inserida numa “atitude existencial de caráter espiritual”:
No período realista, numa atitude similar à de Eça e outros em Portugal, alguns pensadores,
críticos e escritores franceses (Proudhon, Taine, Flaubert...) passam a ver no que julgam
dessoramento literário (subjetivismo fantasista, sentimentalidade, verbosidade, etc., de cariz
romântico), não apenas um sintoma ou imagem da decadência ambiente, mas uma verdadeira causa
da degeneração dos tempos. (PEREIRA, 1975, p. 18)
Mas, “a insatisfação da imanência e do material” que conduzem ao espiritual simbolista, à
“vocação do Mistério e do Além”, os quais, não raramente, atravessam a arte do Decadentismo,
implicam “num real abandono cristão do Divino”. Desta forma, a “religiosidade, como tema ou
elemento literário, também pode ser ora uma fruição sensível, ora uma derivação de bizarria ou de
desequilíbrio psico-nervoso” (PEREIRA, 1975, p. 30), como ocorre entre as velhas beatas de A
Farsa ou de Húmus:
Felícia, presidente honorário das servas de Deus, associação instituída para que ninguém
possa morrer sem confissão, é uma velha magra, austera e ríspida. (...) Quando fala, ordena. Os
passos rangem-lhe ao atravessar as salas. Põe e dispõe. Nas sacristias temem-na: nomeia e demite
padres, e entra como uma rajada nas existências alheias, revolvendo tudo, derrubando tudo. (...) Perto
dela outra velha, inquieta e rancorosa, discute com o padre:
– Até a gente devia mostrar satisfação quando nos morre uma pessoa da família...
– Conforme... – resmunga o sacerdote.
– Porque a dor é uma afronta a Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para nos salvar.
E todas as velhas, ao santo nome de Deus, logo descolam à uma o traseiro do canapé. (AF, p.
15)
As velhas de A Farsa seguem o Catolicismo de forma fanática, aderindo cegamente à
doutrina e repetindo sem qualquer crítica as suas determinações, pregando-a com radicalismo e
impondo a adesão de todos com autoritarismo e perversidade algo vampirescas, que se
regozijam na dominação e imposição perversa de todos os dogmas, punindo e humilhando
sadicamente os pobres por qualquer mínima desobediência.
Ora são hipócritas, que pregam e cobram dos outros a caridade, o perdão e a compaixão
que não praticam ao odiar, “rancorosas”, “egoístas e secas” (AF, p. 23). Usam e oprimem até os
padres: “Põe e dispõe. Nas sacristias temem-na: nomeia e demite padres e entra como uma rajada
nas existências alheias, revolvendo tudo, derrubando tudo”. Elas demonstram incompreensão dos
dogmas, cujas lições apenas decoram e repetem de forma distorcida ou vazia: “Porque a dor é uma
afronta a Nosso Senhor Jesus Cristo, que morreu para nos salvar” e “todas as velhas, ao santo
nome de Deus, logo descolam à uma o traseiro do canapé”.
107
O narrador, por sua vez, ora aborda temas religiosos em “fruição sensível”, ora questiona a
divindade do Deus cristão:
É um prodigioso cenário, uma convulsão momentaneamente petrificada que nos aproxima de
Deus: gargantas aspérrimas e vales pacíficos: o caos e a mansidão: o infinito o silêncio e a
humildade que penetra e comove. (...)
É resignada, humilde, e faz-se sempre pequenina. Aquela gente habitua-se a aceitar tudo, até a
desgraça das mãos de Deus, com uma fé enorme: acodem-lhe à boca sempre as mesmas palavras: -
O Senhor lá sabe! (...) (AF, p. 79, grifos nossos)
Na mesma página, o narrador refere-se a Deus como presença serena, consoladora e
concreta diluída na beleza da paisagem e, mais abaixo, apresenta a ignorância e o conformismo
sustentados pelos clichês cristãos de um Deus opressor, caprichoso e até incoerente.
Para Seabra, “o que parece caracterizar primariamente o decadentismo é um estado de
sensibilidade do homem finissecular desgostado de si mesmo e de uma civilização em crise
aberta”, por causa da agudização da “consciência de um estado de decadência social e cultural: a
vida materializada, a sociedade injusta, a destruição da beleza, a limitação e a vulgaridade ou o
formalismo em arte”, levando o sujeito a sentir-se “aprisionado num beco-sem-saída de um
imanentismo absurdo”. Desta forma, “tomando a forma de avatar do mal do século romântico, o
Decadentismo afirma-se como uma luta instintiva pela libertação da vida interior longamente
amordaçada por dogmas racionalistas e convenções” (PEREIRA, 1975, p. 22-23).
Diante da miséria e do desamparo de alguns personagens em oposição à opulência e
descaso de outros, da humildade de uns contraposta à vaidade e arrogância de outros ou, ainda, dos
momentos de humildade contrapostos aos momentos de vaidade de cada um, contra-sensos do
mundo material, o narrador se pasma e tanto liberta seus sentimentos, indagações e inquietações
mais profundos, como busca desvelar a profundeza da alma de muitos personagens:
A velha quer-lhe como à vida. Talvez o seu filho pudesse um dia vingá-la, calcar aos pés
todos os benfeitores. Para isso o cria. Esse ser gelatinoso, alimentado de côdeas, e representando
desde que se conhece a comédia da esmola agradecida, é mais que um filho, é a alma da Candidinha.
Encharcou-o de rancores. Insuflou-lhe o ódio. Podem calcá-la à vontade: serve-lhe de pedestal. Está
pronta a dar por ele o corpo à terra e a alma ao Diabo. Construiu-o de restos e dum amor
extraordinário, dum amor que gerou nas noites de mudez e de sonho. (...)
Contar o quê? Esta vida de exasperos e contrariedades, mesquinhas, que desgasta lento e lento
como a água às fragas? A raiva de estorcegar, quando tinha de babujar, desprezada e escarnecida, e o
sonho inútil, que a deixa tonta e de olhar esgazeado?... Quem tivesse génio para narrar o drama entre
a mãe e o filho! Ela conta-lhe as aflições, a fome, os maus tratos a comédia e a tragédia; as horas
amargas atrás da côdea, a humilhação, a máscara de estupidez encobrindo a infâmia. Seca-o; dentro
desse pequeno de orelhas despegadas do crânio, amarelo e hirto, uma velha, de xale rapado, a
pregar catástrofes, farta de hipocrisia e de esmolas. (AF, p. 47)
Enquanto tenta desvelar e desvendar a intimidade da amargurada, vingativa e hipócrita
Candidinha; do pequeno Antoninho, que vai sendo contaminado pelos sentimentos da mãe
(“dentro desse pequeno de orelhas despegadas do crânio, amarelo e hirto, uma velha, de xale
108
rapado, a pregar catástrofes”), o narrador lírico
10
vai desvendando-se a si próprio; enquanto
problematiza, pensa e indaga o estar no mundo do outro, também está indagando e refletindo sobre
a sua própria condição e sobre a sua narrativa.
A “arte torturada” decadentista revela um “pessimismo desgarrado”, “uma profundidade
que ultrapassa qualquer motivação político-social de circunstância” e “uma tentativa de
salvamento deste drama espiritual do homem”, tendendo à “inibição prostrada” (PEREIRA, 1975,
p. 27-28), à sensação de impotência, à conformação na desistência e à indisposição para uma
tentativa de reconstrução. O fim d’A Farsa é marcado pelo derrotismo pessimista e pela prostração
passiva, seja na loucura ou na morte social de Candidinha, fitando “um abismo de ódio inútil”, ou
na morte e/ou desaparecimento da Cega e da Sofia ou, ainda, nas observações derrotistas do
narrador: “A realidade é o nada temeroso”, “a realidade é o negrume, o abismo donde sai o
silêncio”; e, ao mesmo tempo, reveladoras da complexidade da vida e da profundidade do ser
autocontemplativo, impotente e abismado: “o que te faz viver e o que nos faz viver tiraste-o da
tua própria alma”, “o sol foste tu que o criaste porque a realidade é a treva: a luz nasce aos
borbotões do teu ser”. (AF, p. 141-142)
O individualismo e a “crueldade do humor de um espírito que não ri” (PEREIRA, 1975, p.
28-29), como atesta a crônica de Eça: A decadência do riso (1913), por “causa ou efeito das
aspirações, das limitações referidas e do sentimento exacerbado por cada insucesso”, são
marcantes em Brandão, “egotista”, balizador do “seu próprio mistério interior”, com seu lirismo
introspectivo, chorando “traumas longamente ignorados” (PEREIRA, 1975, p. 33-34).
Palavras! De serve falar à desgraça, discutir com a dor? Dez horas no relógio rouco e no
fundo a loja atulhada de caixões, de classe, óptimos; de classe, reles esquifes de madeira barata
pequeninos e enormes, leves como pena, pesados como chumbo... A desgraça deita-lhe as mãos,
sacode-a e transforma-a: aquele mundo não a impressiona. (...) A dor salva-a, gritar é viver:
despedaçam-se e revolvem-se dentro em nós todas as raízes; enche-nos a boca todo o fel do mundo;
os olhos todo o amargor do mar salgado mas o que no nosso ser de inútil some-se e a alma
engrandece. Só pela dor se vive. – ouviste? ouviste? ouviste?... (AF, p. 34-35, grifos nossos)
No discurso indireto livre, o drama individual do personagem e “todo o fel do mundo”, a
um tempo, torna-se também do narrador. Neste fragmento, é o drama da Sofia, grávida,
desesperada, enganada por Candidinha e Antoninho e à mercê deles, que se mistura aos dramas e
indagações do narrador, que narra na 1ª pessoa do plural, solidarizando-se e identificando-se com o
personagem. Desta forma, cada drama individual narrado é interiorizado, sentido pelo narrador e,
quase sempre, serve-lhe de pretexto para as suas digressões filosóficas ou líricas.
10
O narrador lírico é uma instância de narrativas com certa modulação lírica, notada por Rosa Maria Goulart (1997, p.
22) na escrita de Vergílio Ferreira assim como na de Raul Brandão, entre prosa poética e ensaio. Em tais obras, um
narrador-especulador filosofa sobre relatos que parecem estudos de casos de personagens, passando de uma simples
“notação do real” para uma “conotação do irreal”.
109
A mulher amada decadentista aparece simultaneamente como “figura humana irradiando
eflúvios de encantamento e lascívia, e como figura idolátrica que fatalmente prende a si e destrói,
numa atração inebriante, mas de desejo irrealizável”, como ocorre na relação de Anacleto com a
mãe de Sofia. Anacleto casa-se e logo enviúva. Mas, mesmo ausente, a mulher é alvo do seu
desejo e, ao mesmo tempo, veículo de sua perdição, primeiramente por causa do inconformismo do
personagem diante da perda, do desespero com sua morte, que o faz gritar “Ai que ma levam!”
repetidas vezes, inconformado. Perdição também por causa da posterior descoberta das traições da
esposa, que o levam à morte. Desta forma, “a mulher fatal romântica recebe novas características
que a conformam à atmosfera de hieratismo, requinte ou morbidez” (PEREIRA, 1975, p. 37-38),
na histeria e na dominação idolátrica esterilizante, como ocorre também com a Cega e com Sofia.
Sensual na juventude, ainda que não propriamente modelo de beleza, Sofia, seduzida, entrega-se
ao primo e é martirizada, punida por Antoninho e Candidinha. Da mesma forma, a esposa que
Antoninho arranja na cidade, bela, alvo do desejo de muitos, é praticamente empurrada para os
braços do chefe de Antoninho, numa trama mal sucedida do marido e da sogra para obter lucros. É
também punida e martirizada depois, ficando cega de tanto chorar. Martirizadas, tornam-se alvo de
adoração popular, santificadas e idolatradas pelos pobres e pelo narrador, mas tornam-se estéreis.
O amor transita, portanto, entre o místico e o sensual, ora contemplativo, ora pervertido,
como se observa na relação de Anacleto e da irmã de Candidinha, mãe de Sofia, fruto duma
vibração sensual imediatista e mórbida, da abulia, da nevropatia, da ansiedade frenética,
misturadas ao esforço de desprendimento da sensualidade, que resultam naquilo que Seabra chama
de “hedonismo contemplativo” (PEREIRA, 1975, p. 40). A relação é, muitas vezes, distante ou
“agônica e insatisfeita, na atração obsessiva do medonho” (PEREIRA, 1975, p. 42), com
envolvimento intenso e curto, quase sempre marcado pela destruição e/ou pela morte, como se
observa nas relações de Anacleto-mãe de Sofia, Antoninho-Sofia, Antoninho-Cega e como a da
Candidinha, abandonada quando estava grávida de Antoninho.
O aviltamento decadentista e expressionista da beleza é evidente na obra de Brandão, na
esteira do “culto romântico da beleza medúsea ou horrenda”, que é grotesca, ao avesso dos padrões
vigentes, como na descrição da jovem Sofia de A Farsa, das velhas e de Joana.
A artificialidade nas relações, a “orgia da anormalidade erótica”, a “vida de luxúria e
pecado”, “o sentimento de lasciva e dourada degeneração”, “a banalidade do quotidiano”, também
“marcas prevalentes da fealdade”, conduzem a uma “depravação e reconstrução satânica do
mundo”, recorrente nas obras de Brandão, representantes da recusa decadentista tanto ao idealismo
amoroso romântico como ao “Naturalismo mecanicista” (PEREIRA, 1975, p. 45-51), incapazes de
abarcar a totalidade dos fenômenos envolvidos na constituição do homem e de suas relações.
110
4.3- O meio social e a relativização do Naturalismo
Questionando embora de maneira determinada a estética naturalista,
Sampaio Bruno não a rejeita no entanto completamente. É que, para ele, o
naturalismo não serve, mas apenas porque é uma concepção estética incompleta.
AFONSO MOREIRA ROCHA
Sampaio Bruno e a evolução estética de Raul Brandão
O Expressionismo, forte tendência na obra de Brandão, “sem deixar de ser expoente de
uma novidade deste século emergindo numa Europa em crise e numa exuberante e diversificada
experimentação artística, deve muito à experiência naturalista, com seus exageros, deformações,
insólitos...” (SEIXO, 2000, p. 17)
A experiência naturalista é revisitada também por Sampaio Bruno, filósofo e político
republicano portuense do fim do século XIX, largamente mencionado nos livros de Memórias de
Brandão, o qual exerce forte influência sobre as concepções estéticas brandonianas, segundo
Rocha, na epigrafe. Ao argumentar sobre tal ponto de vista, comentando um dos aspectos do
pensamento de Bruno afinado com o de Brandão, o estudioso mostra-se convicto de que o
Naturalismo não seria de todo incoerente ou desprezível, mas incompleto. Este fato inconteste
remete à latente herança naturalista na ficção brandoniana que, relativizada, convive com inúmeros
traços de outras concepções estéticas.
Na esteira do Naturalismo, o meio aparece em A Farsa como o promotor de condicionamentos e
de deformações no Homem. Mas o meio não será o único determinante das existências, da
condição humana e das sociedades. O problema torna-se bem mais complexo à luz da Sociologia,
da Psicologia, da Psicanálise nascente, estudos do ser, da sociedade e da condição humana, que
atestam a enorme variedade e imprevisibilidade de fatores que podem interferir na constituição do
ser e nas relações por ele travadas.
Todos os personagens sofrem condicionamentos sociais, mas estes são recebidos de maneira
diversa, dependendo da especificidade psicológica de cada sujeito, o que faz com que personagens
como Joana e Candidinha, ambas pobres e sujeitas aos mesmos tipos de mazelas, tenham reações
diametralmente opostas, uma resignada e a outra revoltada.
Para além dos objetivos estéticos da obra, nota-se a ideologia burguesa, difundida desde o início do
século XIX, com o advento do Liberalismo, num “mundo de crescente influência da classe média”,
segundo Gay (1999. p. 23-24), que aparece entre os principais agentes sociais de deformação em A
Farsa, transformando personagens em mercadorias e/ou em mercenários: do que eu (Antoninho)
seria capaz! De tudo! Que força eu tenho para ser empregado por um homem de gênio, para
completar outro homem. Sinto o gênio da intriga. Nunca recuo, não tenho preconceitos... Quem me
quer comprar?” (AF, p. 77) e “estoire embora o planeta com os seus risos e as suas lágrimas, que,
111
se num caco ficar de a vila perdida e submersa entre os vagalhões da serraele continua sem
sobressalto nem pasmo a vender os mesmos esquifes, com a mesma cara de estanho”. (AF, p. 20)
Os personagens podem ser exploradores e explorados, segundo ainda a velha divisão social entre
senhores e escravos. O grupo de exploradores conta, sobretudo, com a burguesia e com o clero, ou
o que restou dele. Enquanto isso, o inchado grupo dos explorados conta com trabalhadores, a
aristocracia decadente e com grande parte dos integrantes do grupo explorador, que em algum
momento – ou em vários – também é explorado.
Os sonhos materialistas são disseminados na sociedade, mas interditados aos pobres: “Se ele é
rico! Os ricos podem tudo, filho. Neste mundo tudo é mentira,o dinheiro é que é verdade” (AF,
p.48). Os que possuem mais dinheiro e poder se impõem e exploram os mais pobres, que são
acuados e ameaçados para que suportem, acomodem-se e se conformem:
(...) Cale-se! Para que é que se lhe mata a fome? Não seja desagradecida. (...) A
senhora é pobre, não é? Pois então seja humilde que a humildade fica bem para quem não
tem um pataco de seu (...) Para que é que eu sou rico? É para a aturar à senhora?... E vá, de
pequenino, habituando seu filho a sofrer; crie-o para o que ele tem de vir a ser... (AF, p. 27)
O pobre é zoomorfizado, rebaixado à condição de animal, deixando de ter acesso até à
satisfação das necessidades primárias e perdendo suas características humanas, como acontece na
fala de um habitante da vila, espectador das momices da velha Candidinha, como moeda de troca
para conseguir côdeas para o sustento seu e do Antoninho: “Lá vai enchendo o papo!...” (AF, p.
26), ou como nesta observação do narrador sobre a vila e seus habitantes: “E tudo aquilo, mar de
uivos, treva, archotes, homens, fêmeas, urros e clarões, jorro desordenado e imenso, se engolfa nas
ruas estreitas, numa interminável e ensurdecedora bicha” (AF, p. 38).
Aqueles que não possuem bens materiais são considerados indignos de ter qualquer
benefício, mesmo saúde ou alimentação. Os ricos consideram-se donos de todos os direitos e
imputam aos pobres todos os deveres, defeitos, males; gostariam mesmo de impor aos personagens
a doença que não têm, como se nota na fala da beata Felícia: “esta gente pobre nunca está doente.
Não se lhes pega nada, nem uma dor de barriga! A coisa ruim não acontece desastre! eu
ando com os meus padecimentos tantos anos!... muito que conheço esta Candidinha e nunca
a vi se queixar senão de fome” (AF, p. 27).
É curioso notar a diferença que existe entre a forma de a velha rica encarar as suas próprias
mazelas e a miséria alheia. A própria desgraça é sempre superestimada, soando fútil e sem
qualquer importância, enquanto a miséria alheia, apesar de mais escabrosa, é amenizada pela beata
rica, com o objetivo de sugerir que o outro sofre menos do que aparenta.
As mazelas dos explorados são usadas como paliativos para as próprias aflições. A
insensibilidade e o egoísmo fazem com que a desgraça alheia sirva de alento: “A sua miséria, a sua
abjeção, a sua fome consolam-nos das nossas próprias desgraças” (AF, p. 25) e “Ter, de quando
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em quando, diante dos olhos aquela velha caricata e rota, sentir piedade, rir da abjecção é mais
que útil, é necessário. Conforta. A infâmia dos outros consola das nossas próprias infâmias” (AF,
p.29).
A falta de compaixão e a violência contra o outro perpetuam e agravam a desigualdade
social, criando rancor cada vez maior entre as classes menos favorecidas e as classes abastadas. Ao
mesmo tempo em que cresce o ódio contra o mais afortunado, cresce o desejo de fartura, que
parece o mesmo desejo de “cocanha” medieval (FRANCO JÚNIOR, 1998) e a vontade de tomar o
lugar do outro, em alguns personagens (como Candidinha e Antoninho). Aliás, o desejo de
“cocanha” da Candidinha distingue-se da utopia medieval, primeiramente por ser um sonho
individual e egoísta, pautado no desejo individualista de fartura pela acumulação de capital e de
bens para a ostentação, enquanto a utopia medieval consistia num sonho coletivo, não num sonho
individual, de chegar a um lugar mítico de fartura e de bonança para o deleite coletivo e imediato,
sem hierarquizações nem favorecimentos de alguns em detrimento de outros.
Aliado a esse desejo de fartura e de ostentação, um revanchismo e uma necessidade de
vingança fazem com que o oprimido, derrubando o opressor, também oprima, talvez com um
requinte de crueldade ainda maior. São episódios muitas vezes recorrentes na história da
humanidade: grupos explorados assumem o poder e passam a explorar também, como ocorreu com
a burguesia, oprimida e explorada no início do século XIX, e que, uma vez estabelecida no poder,
assumiu o posto de opressor e de explorador. Tal é o desejo de Candidinha, o de tornar-se patroa
para poder oprimir: “Quem me dera ter uma criada... (...) Pra quê? Pra isto: para mandar à minha
vontade. E não tinha contemplações! Oh quem me dera poder dizer: -Faça! vá! ande! rua!...” (AF,
p.68) ou como no fragmento a seguir em que ela prefere se humilhar a ter que trabalhar: “Há regras
indispensáveis a que Candidinha se adapta: não pode ser criada porque enquanto mantém certa
aparência embora viva de esmolas, embora se sustente de sobejos a Candidinha pertence à
sociedade como as outras: não é uma pessoa ordinária” (AF, p. 57). São esses os valores,
ideologias, filosofias e sistemas que vão formatar os personagens de A Farsa, que serão o molde
da próxima geração, pois a sociedade é condicionada e condiciona também.
Os poderosos, como Anacleto, no início da obra, e as velhas são representantes do “poder
disciplinar”, de que fala Foucault (1983), impondo moldes e regras e exigindo disciplina, para que
os pobres continuem sob controle, dóceis, conformados, passivos diante da dominação e, com isso,
não ameacem os dominadores e os mecanismos e sistemas de dominação. São representantes dos
“valores materialistas e do egoísmo burguês, dominantes” (VIÇOSO, 1999, p. 89).
Aos que não cumprem tais imposições, não se comportam como o esperado ou não se
conformam com sua condição de oprimidos, são impingidas punições, para eliminar o incômodo e
para servir de exemplo aos demais. Essas punições vão desde o escárnio e a execração pública aos
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comportamentos diferentes do padrão e à fome aos que não se sujeitam e não servem aos ricos; até
a morte e a loucura, em casos de persistência na transgressão. É o caso de Candidinha,
enlouquecida pela exposição constante ao escárnio, pela humilhação e pela frustração.
A Candidinha pode representar uma aristocracia decadente, que até o século XIX ditou o
conjunto de normas sociais, mas foi perdendo o poder financeiro e o status social, empobrecendo e
tornando-se dominada e humilhada pelo emergente burguês, representado por Anacleto e pelas
velhas, vampirescos responsáveis por ditames, normas e punições aos que não se sujeitam aos seus
desígnios, regozijando-se com a desgraça e a subjugação dos miseráveis (GAY, 1999, p. 73-74).
Ela tem dupla representação. Ao mesmo tempo em que integra a classe pobre, diz que teve
infância rica, integrando uma elite aristocrática em decadência e, por isso, teria sido criada para ser
dama e patroa. Assim, representa o opressor que caiu para o posto do oprimido e que, por isso,
sente-se injustiçado e deseja retomar a posição que julga seu direito de sangue.
Vê-se que a utopia liberalista burguesa ou “a perspectiva romântica de uma renovação do
mundo” com a ascensão da burguesia, “estimulada pelos esquemas grandiosos de uma nova era
industrial” (GAY, 1999, p. 73-74), propostos em Portugal por Herculano (SARAIVA, 1977) e seus
contemporâneos, transformou-se na frustração. O sentimento de decepção acentua-se com a
constatação de que a derrocada aristocrática e a ascensão da burguesia não garantiram condições
de vida melhores aos trabalhadores (GAY, 1999, p. 16), que permanece explorada e miserável.
Os seres humanos são, portanto, divididos em duas classes: ricos e pobres, seres de primeira
e de segunda classe, que seguem paradigmas sociais específicos e sofrem condicionamentos
distintos, de maneira que na vida e até na morte existem diferenças e privilégios para uns: “a loja
atulhada de caixões, de classe ricos, óptimos; de classe, reles esquifes, de madeira barata
pequeninos e enormes, leves como penas, pesados como chumbo...” (AF, p. 34)
Desde o começo do século XIX, com o Liberalismo, que classes subalternas concorrem
com a aristocracia, em busca de status e de poder, melhores condições de vida, melhores
colocações sociais e aspiram à democracia. Candidinha é condicionada pelo desejo de dinheiro e
de poder. Desgraça sua vida e a vida do filho, deformado pela cobiça e pela ira da mãe e pela
humilhação a que a sociedade o expõe: “O meu filho alimentei-o com ódio criei-o à custa de
desgraça. Preguei-lhe todos os rancores, todos os exasperos, tudo que sofri. Disse-lhe, é certo, que
nesta vida só o dinheiro vale, e que pobres são sempre desprezados e calcados” (AF, p. 96).
Sofia, ao contrário do Antoninho, nasceu e cresceu na abastança, mimada e superprotegida
pela família, tornou-se alienada e fútil. Condicionada pelo padrão de beleza da sociedade,
angustia-se pela sua feiúra. Fragilizada por todos esses fatores, torna-se presa fácil para o golpe de
Candidinha: “porque é que eu sou feia? – pronta para cair nas mãos da primeira pessoa que lhe fale
114
com ternura” (AF, p.22) e “Sofia está grávida. (...) Aos dezoito anos começa a amargar a vida”
(AF, p. 32)
(...) fizera um cálculo feroz: casar Sofia com o filho. E não desperdiça um minuto, uma
ocasião, um pormenor. (...)
- Tu sim que estás uma flor! Quem te há-de gozar!... (...)
– Se tu ouviste filha como ele fala de ti... Não pensa noutra coisa, mas é pobre... (AF, p.
30-31)
Felícia, as outras beatas e o padre, condicionados pelos dogmas da igreja, tornam-se cruéis,
inescrupulosos, intolerantes e hipócritas, que cometem em pensamentos, ainda que os
dissimulem, muitos dos pecados que combatem:
(...) É (Patrícia) a melhor amiga da Felícia. Juntas são temíveis. Nenhum doente lhes
escapa. Esperam, espiam, compram os criados, intrigam e caem-lhes em cima, à hora da
morte, pregando-lhes Deus, o inferno e as labaredas eternas. (...)
A Felícia persegue até à última, com furioso rancor, os heréticos, seus inimigos
pessoais. Chegara a odiar o próprio filho por ser ateu e a expulsá-lo de casa. Nunca lhe
perdoara nem à hora da morte, a sua irreligião. (...)
As velhas sabem tudo que se passa na vila. (...)
- Ai não morro sem ver outra vez a Santa Inquisição!
(...) Ao daquela dor sincera toma maior relevo a secura e a banalidade dessas
mulheres, que só temem a Religião e, sobretudo, o Inferno. (...) (AF, p.15-18)
Odeiam, controlam, vigiam, oprimem, castigam, obrigam outros a seguirem a religião, que
seguem por tradição, mas não se tornam esclarecidas; temem o castigo e a religião, não acreditam
nela e nem a praticam com sinceridade. Reproduzem aquilo de que, voluntariamente ou não, são
vítimas também, uma vez que também não compreendem a religião. Praticam-na por costume;
logo, por mais que oprimam, odeiem, vigiem para garantir o cumprimento de dogmas que não
compreendem bem, são também vigiadas e controladas. Portanto, o desamor, a opressão, a
punição, a incompreensão, o castigo e o controle são perpetuados ciclicamente no Catolicismo que
praticam.
Anacleto e Belisário reproduzem um ideal liberal (e capitalista) de enriquecimento. São os
vampirescos burgueses enriquecidos à custa do trabalho alheio, da exploração, do ludíbrio e
subjugação dos pobres, mantendo-se ricos enquanto empreendedores capazes de conduzir os
negócios com calculismo e oportunismo:
(...) é o Belisário escrivãofinura e crápula, vestidas de negro. Resfolga. Enriqueceu à
custa de penhoras e desgraças.almas assim, sempre ocupadas por esta mira – o oiro. Todo
ele por dentro é papelada e ronha. Está habituado a processos, que, mesmo sem necessidade
cisma em tranquibérnias. Apertar alguém, esmagá-lo, reduzi-lo pouco e pouco à última
angústia, à pior extremidade, é para ele um gozo estranho. Sente uma enorme satisfação em
perder os que caem nas unhas, em os levar por complicadas fórmulas à máxima pobreza,
metido na sombra (...) (AF, p. 15)
(...) Anacleto, estancada a dor, preso ao balcão, sentado e quieto como o piloto duma
frota macabra, a vender os caixões que lhe atravancam a loja.
- Caixões para mortos? Há-os de todos os preços... (AF, p. 19-20)
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Belisário mantém-se sempre rico, porque insensível, desprovido de sentimentalismo e
inabalável, com fito direto, único e exclusivo no capital e ocupado apenas com os negócios. Mas,
Anacleto, que inicia a narrativa como um bem-sucedido “agente funerário” ou gato-pingado por
profissão, arruína-se por não ter dominado bem os sentimentos, esmorecendo pouco a pouco,
primeiramente pela paixão e pela morte da mãe de Sofia, também pela descoberta da infidelidade
da esposa e do fato de Sofia não ser sua filha. Essas revelações bombásticas feitas pela
Candidinha, após o fracasso de seu golpe para enriquecer, funcionam como golpe fatal no
Anacleto, que termina destruído sentimental e materialmente: “Estou pobre. Tudo me tem corrido
torto. Estou talvez em vésperas de falência. A minha filha que volte. Vamos mudar desta casa”.
(AF, p. 39-40)
(...) Dá-lhe à pressa todo o dinheiro que traz consigo, mas a outra (miserável) não diz
nada... Não é dinheiro que ela quer. Agora entende tudo... Volta atrás, aperta-a com desespero
nos braços, beija-a na testa e foge a chorar como um doido. agora compreende, porque
sofre, e toda a extensão da desgraça... Lá vai no escuro, com os braços erguidos, a clamar:
- Filha! Minha filha!...
Entra assim na escuridão cerrada, sob o aguaceiro que desaba do céu. Tropeça, cai de
borco com os braços para diante e estatela-se na lama, que lhe bebe as últimas lágrimas. (AF,
p. 43-44)
Esse burguês arruína-se por causa dos sentimentos, que aniquilam seu empreendedorismo, sua
atenção nos negócios, sua ganância, seu calculismo, sua frieza e até sua lucidez e sua esperteza, tão
necessários para salvar o seu negócio, para pensar e pôr em prática soluções contra a falência.
Os personagens, em princípio, não passam de tipos: Anacleto e Belizário são burgueses
exploradores; Felícia, beata hipócrita; Sofia, menina mimada, romântica e tola; Joana, trabalhadora
humilde e acomodada; Candidinha, aristocrata decadente e ávida por recuperar sua posição;
Antoninho, ambicioso medíocre. Mas, descritos em tons expressionistas, ganham complexidade,
serão problematizados e terão suas intimidades devassadas, apresentando-nos “um mundo de
loucura e de pesadelo” (FERREIRA, 1975, p. 249), a partir do qual “oferece[m]-nos, em diálogos
de modo algum essencialmente necessários à condução da narrativa, os mais alarmantes problemas
e interrogações”. Desta forma, “sua grande descoberta é a profunda interrogação sobre os valores
num mundo que se anunciava com a destruição deles” (FERREIRA, 1975, p. 239), aproximando-
se muito do que Vergílio Ferreira depois veio a chamar romance-problema, na esteira
Dostoievskiana: “génio do romance moderno”, “mais no século XX que no XIX” (FERREIRA,
1975, p. 239-240), ocupado com a existência complexa e com a indagação, muito mais
desestabilizando a nova ordem social do que nela instaurando-se.
A narrativa de Brandão se propõe a interrogar-se, pondo em xeque o caos exterior e abrindo
espaço para a problematização do mundo interior de seus personagens, não se limitando ou
contentando-se com a mera descrição de aparências ou das relações sociais. Antes, apresenta-os
116
através de narradores mundividentes e inquietos e de personagens incomuns e nada esquemáticos,
como Candidinha e Antoninho de A Farsa, ou o Gabiru de Húmus e de Os Pobres.
Ainda que não se trate de “antinaturalismo”, lembrando a influência de Sampaio Bruno
sobre Raul Brandão, referida na epígrafe, pode-se pensar numa relativização do Naturalismo,
“incompleto”, diante da intimidade misteriosa e imprevisível, do “drama espiritual do homem
decadentista pelo seu individualismo extremo” (PEREIRA, 1975, p. 43).
Assim, A Farsa conduz à instabilidade e à inquietação provoca-nos a interrogação, muitas
vezes sem resposta, perturbando o homem diante do insondável, do insolúvel e do inexplicável, em
que se vê mergulhado.
4.4- Paisagem pintada em claro-escuro pesadelo
O estigma decadentista-simbolista, que caracteriza a sua prosa, aproxima-se de
um expressionismo grotesco, freqüentemente carregado de tonalidades
apocalípticas. VÍTOR VIÇOSO
Simbolismo e expressionismo na ficção brandoniana
Da primeira fase impressionista da carreira de Van Gogh, ávido por “uma arte de homens”,
oposta à pintura clássica com “gente que não trabalha” (PESSANHA, 1980, p. 211), nasce a
violência expressionista, aprofundada na sua segunda fase, em que Pessanha conclui que: “A
miséria não tem fim” (PESSANHA, 1980, p. 213).
Também em Brandão, as descrições de paisagens, cenas, seres e relações interpessoais,
emitidas pelo narrador de A Farsa, compõem violentas telas expressionistas, distorcidas e
atravessadas pelo grito de pavor do narrador diante da desrazão humana, miserável e trágica, como
num quadro da fase mais “furiosa e produtiva” de Van Gogh (Ver Anexos): “Eu quero a luz que
vem de dentro, quero que as cores representem as emoções”, diz-nos Pessanha (1980, p. 213).
Intensas emoções são expressas, portanto, sem nenhuma preocupação com o padrão de beleza
tradicional. A vida é focalizada com pessimismo, angústia e dor, como nos quadros Os Comedores
de Batatas, Mulher cozinhando ao fogão, Retrato do Doutor Gachet, Retrato de um homem ou
Retrato de Armand Roulin (Anexos 11, 13 e 14), que bem poderiam representar personagens de A
Farsa, como Joana, Candidinha, Anacleto ou Antoninho, caracterizando a inadequação do eu à
realidade, traço, aliás, comum a expressionistas, a decadentistas e a simbolistas, em maior ou
menor grau:
(...) São criaturas egoístas e secas que se cumprimentam e odeiam: a Candidinha
embrulhada no trapo, calada e hirta, com o filho, o Antoninho, ao lado; o Anacleto sem dizer
palavra; a figura caricata da criada; e a rapariguinha inocente, feia e triste. E quase as mesmas
palavras, os mesmos ditos, a mesma bisca que um dia a morte interrompeu jogadas sobre
o porão onde os caixões esperam como bocas abertas na velha casa incrustada na Sé, batida da
ventania, sob os frígidos aguaceiros, que descem da serra, corda atrás de corda.
117
Mas ocasiões na vida em que as figuras humanas adquirem uma expressão
extraordinária. Basta que outra luz as ilumine diferente daquela em que estamos habituados a
vê-las (...) (AF, p.23)
O grotesco, o exagero, a caricatura, carregada nas tintas, que gera figuras escandalosas,
violentas e tenebrosas como as que são descritas na passagem acima, são traços expressionistas
apontados por Vítor Viçoso (1999), no capítulo “A gênese da máscara: o nefelibatismo e o
grotesco expressionista” de A máscara e o Sonho; e antes por Cintra, no prefácio à obra A Farsa:
O resultado foi, no caso de A Farsa, muito semelhante ao que se passa nos filmes
expressionistas alemães, por exemplo: os contornos vincam-se, as personagens são como
caricaturas de si próprias, estando em realce precisamente aquelas linhas habitualmente
dissolvidas nas demais, e tudo se torna lúcido, nítido, implacável. As sombras, gigantes, são
como aquela parte terrível de nós mesmos, que aumenta sempre, sem a podermos dominar (o
Antoninho?), e que por ser gigante um dia nos mostra a que ponto éramos minúsculos. (...)
(CINTRA, 1984, p.10)
A condição humana fica, portanto, problematizada e questionada através dessas deploráveis
existências ficcionais que se apresentam diante do leitor d’A Farsa, de maneira sempre inquietante
e deprimente. No leitor, a obra provoca inquietação e interrogações muito mais do que respostas,
reforçando seu distanciamento do romance burguês e sua identificação com o futuro romance-
problema, formulado mais tarde por Vergílio Ferreira.
Esta tendência ao exagero e ao grotesco do expressionismo, bem como a exploração de
contrastes, é herdada da pintura barroca, como relembra o narrador de A Farsa, citando
Rembrandt:
(...) nos quadros de Rembrandt, deformando os tipos, exagerando-lhes as papeiras e os
gadanhos, avolumando-lhes as barrigas inchadas, os seios engelhados e todas as deformidades
com ferocidade e grotesco, até ao ponto de nos mostrar a nu almas trágicas de monotonia e
rancores até ao ponto de vermos remexer no fundo do poço animais gelatinosos que
vivem na água esverdeada sonhando na pesa e remoendo sempre o sumidouro das bocas
horríveis e frias como as dos cadáveres. A sombra é um grande pintor. (AF, p.23-24)
Aliás, nota-se na obra de Brandão não apenas a exploração dos contrastes e a expressão de
deformidades, mas também a associação de imagens desconexas, a ativação de sistemas
inconscientes, irracionais e do sonho, como no fragmento a seguir:
Esta noite, à luz do candeeiro, a sala afigura-se-me um aquário com bichos disformes
pousados no fundo. Pelas paredes a sombra alastra e sobe pelo tecto como braços de algas
monstruosas e encova-lhes os olhos sem expressão tornando-os maiores e mais fixos; suas
bocas enormes remoem como ventosas e a cara empedrada do Anacleto torna-se mais dura e
mais impenetrável como a dum ídolo que presidisse àquela reunião de bichos temerosos. (...)
(AF, p.23)
O grotesco dos cenários lembra o apocalipse bíblico, com figuras “disformes” e
“temerosas” e “bocas enormes como ventosas” que remetem às pestes e fome apocalípticas,
referidas por Viçoso na epígrafe. Nas telas expressionistas ou nelas diluídas, encontram-se as
sensações, suas impressões subjetivas e deformadoras das paisagens, obscurantistas,
118
transfiguradoras e as indagações do narrador, na tentativa de “acordar o silêncio”, combatendo o
conformismo instaurado no romance burguês e apresentando uma indagação existencial: “como se
aquela época se estivesse a afundar. Como se a única hipótese de a salvar fosse descrever o
naufrágio antes, para ele nunca chegar a acontecer. Pois alguém a pegaria nesse esboço, para
escrever, pintar, sentir o resto” (CINTRA, 1984, P. 10).
Narrador e paisagem fundem-se na expressão gravada no papel, numa hipálage, originando
uma linguagem que revela a manifestação do mundo interior, numa clara influência expressionista.
Aliás, se não se fundem também narrador e leitor: o “alguém” que pega e “nesse esboço”, ao
menos se unem nas indagações esboçadas por aquele e retomadas por este “para escrever, sentir o
resto” (CINTRA, 1984, p. 10).
No fragmento não é a descrição nítida do personagem o que importa, mas a sensação que a
simples visão causa no narrador, a expressão incrível que transfigura o objeto. É o que ocorre
também na passagem a seguir, em que a expressão do narrador transfigura gradativamente o objeto
descrito, através da comparação, do símile (“ela parece-se com aquela fraga”), da metáfora (“É um
penedo”) e da hipálage (“o sonho das pedras é infinito”), figuras de linguagem que relacionam
imagens através de um elo subjetivo. No fragmento abaixo, Joana e pedra, aos poucos, se fundem
na descrição do narrador:
(...) Feia, rugosa, inútil, ela (Joana) parece-se com aquela fraga que sustenta e
ampara a cabana. É um penedo a que nem uma raiz se apega. Sobre ele desabaram em vão
os invernos, as levadas, os clamores. (...) A fraga extasiada concentrou-se, dorida e feliz: a
fraga sentiu-se mãe. Passaram-se mais anos dobaram-se os séculos. O tempo não
importa o sonho das pedras é infinito e uma mealha de sonho alimenta-as uma
eternidade. O tempo passou mas a pedra, apesar de sua imobilidade, existia, por baixo
daquela casca rugosa e dura latejava a vida. (...) Era a água que escavava a rocha. Até
que um dia, depois de séculos de obstinação e esforço, chegou à superfície para rasgar as
pedras. (AF, p. 113, grifos nossos).
Joana, empregada da família de Anacleto e protetora de Sofia, é comparada à Fraga, à Serra
em que reside. Metaforicamente, fraga e mulher se misturam e se convertem numa visão
imprecisa, subjetiva e transfiguradora do objeto, em que a afetividade convive com a violência
expressionista: “casca rugosa e dura”.
Os elementos sensoriais e pictóricos: imagens, cores (“esvaído, negrume), movimento
(“tomba”, “embate”), sensações táteis (“chega a sentir-se o embate do desespero”, “sufocação”,
“aflição”) em dados momentos da narrativa se sobrepõem à diegese e à cena em foco, revelando
mais do que sensações (sinestésicas) do narrador (“chega a sentir-se”), mas as suas reflexões e
opiniões:
O velho (Anacleto) tomba esvaído, e tal é a dor que chega a sentir-se o embate do
desespero sob a capa enteiriça de pedra. uma sufocação naquela alma: a princípio é o
nada – como uma árvore a que cortassem de golpe todas as suas raízes. Um negrume pior que
a aflição, pior que a dor. A morte. (AF, p. 41, grifos nossos)
119
Nessas impressões prenhes de expressionismo (“desespero”, “dor” e “sufocação”) revelam-
se também reflexões ou ponderações do narrador (“a princípio é o nada”) acerca da postura do
personagem Anacleto, antes e depois da notícia de que sua esposa o traíra e de que sua filha era
bastarda. A segurança e a arrogância do Anacleto burguês (“capa enteiriça de pedra”), dono do seu
negócio, aparentemente sólido e rentável, que lhe garantia status social, a admiração e a inveja da
Candidinha, suscitam ao narrador a impressão de uma árvore, forte, sólida, inabalável para os
séculos. Após alguns golpes, como a morte da esposa e a revelação da Candidinha sobre a gravidez
de Sofia, a árvore demonstra os primeiros sinais de ruína. Anacleto, então, revela sua falência e
Candidinha se encarrega de terminar de derrubá-lo. Revelando a traição da esposa e a bastardia de
Sofia, Candidinha as “machadadas” fatais, que arrancam definitivamente a árvore Anacleto do
chão. O homem, sem motivação, nem vontade, nem condições financeiras e emocionais para se
reerguer, imprime nas retinas do narrador ou suscita-lhe a impressão de um tronco sem raízes, sem
sustentação, tombado para o chão, onde em breve vai se deteriorar e sumir.
Nesse processo de análise, enquanto o narrador revela o objeto analisado, revela também
um pouco de si próprio, da sua própria intimidade, seus pontos de vista, opiniões, indagações e
concepções morais e éticas, lamentando algumas posturas assumidas, exaltando outras,
imprimindo feição negativa a umas e positiva a outras, indignando-se diante de algumas cenas e
emocionando-se diante de outras, mas comovendo-se sempre, como nessas impressões e reflexões
que emite diante de uma passagem em que Sofia e a Cega são mantidas pela Candidinha em
cárcere privado, sob maus tratos:
As palavras vêm às golfadas, arrancadas como gritos de alguém a quem sucedeu
desgraça. Traga-as a escuridão, arrasta-as a lufada e assim se distanciam como os últimos
roucos dum afogado.
(...) Há a desgraça e a dor. A dor, às vezes, salva: passa como um cataclismo e redime;
a desgraça não, a desgraça pega-se e transe. (...) (AF, p.94, grifos nossos)
A desgraçada Sofia, os seus lamentos e as suas palavras estão fadados a não encontrar
quem as ouça, muito menos quem lhe atenda. Durante essa violenta cena expressionista, o narrador
alude à sua sensação de uma “lufada”, que arrasta a mulher e as suas (dela) palavras para a
escuridão (desamparo, mar), onde, tragadas pela correnteza (“desgraça”, mar), silenciam, mortas as
palavras e/ou a mulher (morta em vida), afogadas em desgraça, sufocadas, sem espaço, sem
autonomia, afônicas de tão roucas.
Logo em seguida à sucessão de cenas expressionistas reveladoras da situação em que se
encontra Sofia, o narrador começa a refletir, a analisar, a comparar “a desgraça e a dor”, vista
como possível fonte de aprendizagem e redenção, capaz de tornar-se construtiva, enquanto a
desgraça seria a danação e a condenação, estéril e esterilizadora, pois não traz aprendizagem nem
120
crescimento, degradação e destruição. Da cena que envolve Sofia, o narrador logo se lança à
análise da existência da moça, seguindo daí para a análise da existência humana com seus dilemas
e para a indagação da “condição humana”, que move o narrador nessa como em muitas outras
longas pausas para reflexão e indagação:
A desgraça é uma treva condenada, onde a mão que busca amparar-se encontra o
vácuo. Grita-se? a desgraça nos ouve. um frio característico, interior, de morte o frio
da desgraça. Usa e gasta. Quem mora com a desgraça, dia a dia perde certa afeição individual:
e daí vem que todos os desgraçados se parecem. A catástrofe, às vezes, enrija, ao contrário da
desgraça que amolece. É talvez um hábito; mas quando se diz de alguém que tem o hábito da
desgraça, esse está afundado e perdido. A desgraça a resignação. Pode derrocar-se o
planeta embora que o derrocado não protesta: por fim pode aceitar com resignação a esmola
daquele que foi seu melhor amigo e até acha certo gosto ao amargor das lágrimas... (AF,
p.94-95)
A crítica à sociedade, aos valores burgueses e ao individualismo crescente ganha uma
desgostosa tonalidade trágica. A tragicidade, entretanto, é atravessada de uma profunda ternura e
condescendência para com os humildes, vítimas maiores da sociedade, explorados, espoliados e
resignados, conformados ou enrijecidos e, apesar de tudo, muitas vezes redimidos pela dor.
Pinta, assim, o narrador um quadro recorrente, mas de forma nenhuma simplista e
previsível, que nessa recorrência é ressaltada a variedade de manifestações possíveis: “a dor, às
vezes, salva e redime”, “a desgraça amolece” e “dá resignação”, “alguém que tem o hábito da
desgraça, esse está afundado e perdido”, “a catástrofe, às vezes, enrija”. Os modalizadores (“às
vezes”) certificam que não vai haver reducionismo ou generalização, mas uma abertura para
diferentes nuances nos quadros de desgraça possíveis.
As cenas em que desgraçados ora se auxiliam, ora se ignoram, ora se destroem uns aos
outros acentuam a multiplicidade de nuances possíveis dos quadros em que se pinta a desgraça, da
dor e da catástrofe na narrativa, revezando momentos de poética da afetividade com outros de
estética do horror, como aqueles em que a Sofia e a Cega se amparam ou como nesse fragmento
em que Candidinha, após sucessivas noites e dias de maus tratos e humilhações impostas à Cega,
pensa em assassiná-la:
(...) Um momento parece que tudo pára no mundo, e o silêncio fecha-se à volta como
uma abóbada e ela sente um contacto que desliza sobre o lençol. Tão devagar! tão
devagar!... passa uma hora ou um século? A mão – é a da Velha? – estaca e depois continua a
marcha como uma aranha monstruosa, de patas moles, que caminha, hesita, que volta atrás – e
que aí torna direita a ela. Passou uma hora ou um século? (AF, p.108)
Alguns momentos capturados (“Um momento parece que tudo pára no mundo”) pelo
narrador, portanto, são quadros únicos, telas que jamais poderão ser repintadas, ou porque nenhum
dos seus elementos constitutivos se repetirá, ou por ser impossível a mesma sincronia, ou a
reincidência do ponto de vista do artista.
121
A relativização e a análise minuciosa do subconsciente e até do inconsciente dos
personagens, através de símbolos, abstrações, associações subjetivas e sonhos, são marcas típicas
da literatura expressionista, que serão herdadas pela surrealista (PIRES, 2005): “Desde pequena
que sinto isto aqui a remoer-me sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um veneno que me
tem azedado toda a existência” (AF, p. 96). Diferentemente dos “processos psíquicos
inconscientes, que escapam à memória e à consciência” do sujeito, o “subconsciente conta com o
conjunto de processos psíquicos que estão latentes no indivíduo e podem influenciar aflorar a
qualquer momento e influenciar o comportamento do sujeito” (FREUD, 1975) e podem ser
observados no fragmento em que se observa a auto-análise do personagem.
A denúncia de problemas sociais aparece como uma tendência herdada do Realismo-
Naturalismo (SARAIVA, 1989, p. 927-974), recorrente entre decadentistas e expressionistas, com
especificidades e motivos diferentes. Enquanto no Naturalismo o narrador, como um cientista,
analisa a deformação social com frieza, minúcia e objetividade, no Expressionismo a crítica ao
meio social se pela inadequação do artista à realidade, de forma que, prevalecendo a
subjetividade, o próprio artista promove a deformação, a decomposição e a reconstrução da
realidade em suas telas (FURNESS, 1990): “Não! Essa mulher apupada não é a Candidinha, é o
meu sonho (...) Uma vida inteira passada a sonhar e no fim encontra-se a gente com o sonho
derrocado!” (AF, p. 140); “E a canalha apupa-a (a canalha apupa sempre o sonho)” (AF, p. 141); Já
em pequena trazia este mesmo xale, este mesmo trapo, que foi crescendo comigo. E não creio
nunca cri em Deus, no Deus dos pobres que recomenda a desgraça, a humilhação, a esmola, no
Deus que aconselha a resignação e a fome (...) (AF, p. 96)
Os cenários de A Farsa são grotescas telas expressionistas, coloridas com as tintas da
emoção, nas quais cada pincelada é uma reação ao convencionalismo, numa estética do horror,
bem ao estilo de O Grito, de Munch.
“O gosto do exótico no tempo e no espaço é constante, como uma das várias formas
tomadas pela evasão” (PEREIRA, 1975, p. 51), assim, aparecem variados cenários pitorescos
descritos nas narrativas de Raul Brandão, nunca banalizados, ainda que mesquinhos e deteriorados,
como o da serra, precário, humilde, mas revitalizador pelo contato mais caridoso, afetuoso e
respeitoso entre os homens e com a natureza; o da vila e o da cidade, com relações menos
afetuosas.
Outro elemento, apreciado pelos simbolistas, que aparece muito nas obras brandonianas,
ganhando nuances expressionistas, é o sonho, a “quimera”, que preenche o imaginário de muitos
personagens. O sonho é encarado por personagens e narradores de Brandão como mais importante
do que a própria “realidade” ou, por vezes, substituto da ação, da vida, como ocorre com a
Candidinha, que vive seu sonho, seu projeto de grandeza, por vezes adiando a ação para o futuro.
122
Por outro lado, o pesadelo envolve cenários e ambientes, conferindo um tom trágico e
fantasmagórico à realidade, à vida e à ação dos personagens:
A realidade é o nada temeroso. A vida somos nós que a construímos à custa de
quimeras, de gritos, de ternura: o mundo pertence-nos: a árvore, a água, o que te rodeia de
simples, de belo ou de trágico, o que te faz viver e o que nos faz viver tiraste-o da tua
própria alma. A realidade é o negrume, o abismo donde sai o silêncio. O sol foste tu que o
criaste – porque a realidade é a treva: a luz nasce aos borbotões do teu ser. (AF, p.141-142)
Nota-se que o que vale à pena na vida é o sonho, mas o sonho anula a realidade, pois
incapacita o sonhador para a ação, tornando-o mero idealizador. As tintas em que são pintados os
sonhos são claras e as que colorem o pesadelo são escuras na obra de Brandão. Por causa da
dureza da vida, optam pelo sonho. É a dureza da realidade que, portanto, paralisa a vida. Na obra,
vale à pena o sonho, todo o movimento é inútil porque conduz à morte. Candidinha idealiza e
sonha com o momento em que irá matar a Cega, mas nunca mata, não é capaz de concretizar o
sonho: “Em pensamento a matou assim muitas vezes; conhece todos os pormenores do crime.
Nenhum lhe escapa e dir-se-ia que na palma da mão retém a humidade dos seus dentes e o hálito
da sua boca. Mas na realidade não se atreve” (AF, p.110). Candidinha não tem coragem, vigor nem
ousadia suficientes para praticar um crime. Mesmo quando envolveu Sofia com seu filho, tentando
concretizar seu sonho de riqueza, usou ardis e empurrou o filho para a ação, usando-o, uma vez
que se mostra incapaz de ousar. Planeja, legisla e leva o filho a executar, no máximo colaborando
com manobras e simulações.
A realidade aparece na narrativa misturada ao fingimento, ou ainda, o real é um somatório
de meias-verdades, uma farsa: “Na tua idade, flor, o meu homem pôs-me na rua como quem
escorraça um cão. (Era mentira, mas a Candidinha começava a fazer drama, a misturá-lo à
realidade, para se engrandecer)” (AF, p.69). Aliás, outra nuance do claro-escuro: real-mentira.
Assim, a realidade é igualada à mentira e tanto a possibilidade do sonho como a da mentira levam
Candidinha a se afastar da ação. consegue algo em sonhos, sustentados no íntimo, ou em
mentiras, ostentadas para os outros, nada concreto.
A morte aparece como um descanso da vida inútil, da mentira e do sonho irrealizável, o
alívio final, através do nada definitivo, como deseja a Cega ao fim da narrativa: “Que maior
felicidade posso esperar nesta vida do que a morte?” (AF, p. 145). Morte e vida aparecem como
mais um binômio opositivo ou outra nuance do claro-escuro, como realidade-sonho.
A realidade é um vale de lágrimas que deve ser transcendido. A mentira, o fingimento, o
sonho, a religiosidade, a lenda e o mito são algumas das fugas possíveis e necessárias até que, na
escapada final e fatal, a morte se encarregue de cessar definitivamente a dor: “Fez-se a lenda.
Começou a rezar-se de milagres, e as pobres mulheres do povo, fartas de trabalho e de lágrimas,
afizeram-se a vir ajoelhar nas aflições da sua vida naquele cerro de montanha, pedindo às santas (a
123
Cega e Sofia) que lhes valessem”. (AF, p.145, grifos nossos). As “santas” desejaram a morte como
alívio para o sofrimento e “as pobres mulheres do povo”, também cansadas de sofrer, buscam
alívio para suas dores na religiosidade, na imaginação, na beatificação de outras “pobres mulheres
do povo”, o que as faz encontrar razão para suportar o sofrimento, crendo que serão, mais tarde,
reconhecidas ou até recompensadas pela sua dor do presente, como “as santas”.
A Cega deseja a morte como descanso, alívio para seus sofrimentos carnais, despedindo-se
do “vale de lágrimas”. Por outro lado, “as pobres mulheres do povo, fartas de trabalho e de
lágrimas”, representando aqueles que sofrem, buscam alento nas religiões, na em que haverá
após a morte alguma recompensa por seus sofrimentos terrenos, buscando alguma força superior
que as auxilie nas dificuldades, que as socorra, que as tire do sofrimento, buscando algum
propósito para a vida terrena aparentemente despropositada e/ou para ter alguns momentos
distraídos do sofrimento e do trabalho. Criam-se, assim, lendas ou mitos, produtos culturais
coletivos, que distraem, alentam e/ou dão sentido à vida e aos sofrimentos terrenos, como nesta
passagem das santas Sofia e Cega, flagrada pelo narrador no momento de sua origem, de sua
concepção pelo povo.
Para se entender melhor a passagem das “santas”, cabe uma reflexão sobre os conceitos de
lenda e de mito, que, segundo Câmara Cascudo (2000), têm sua distinção pautada justamente no
“fator tempo-espaço”.
O mito, para Eliade (1986, p. 12-13), é:
(...) uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e
interpretada em perspectivas múltiplas e complementares (...) conta uma história sagrada,
relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos
(...) conta, graças aos feitos dos seres sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, quer
seja uma realidade tetal, o Cosmos, quer apenas um fragmento, uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, é sempre portanto uma narração de uma criação,
descreve-se como uma coisa foi produzida, como começou a existir.
O mito consiste na narração de uma representação coletiva que não se pauta na lógica
racional, mas na imaginação, e remonta a uma realidade primeva, a fim de explicar o mundo, o
homem ou a complexidade da vida, abrindo-se a muitas possibilidades interpretativas, e
satisfazendo a necessidades religiosas, a aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem
social e mesmo a exigências práticas, muitas vezes exprimindo ou codificando crenças;
resguardando ou impondo princípios morais; garantindo a eficácia de um ritual ou, ainda,
oferecendo regras práticas para a orientação do homem. Assim, mito não é uma mera fabulação, é
uma realidade à qual se recorre incessantemente; sem ser uma teoria abstrata ou uma fantasia
artística, mas uma “verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática”.
Segundo Ana Maria Lopes, os mitos podem dividir-se em diferentes tipos: teológicos
(“narrativas sobre deuses” e santos), cosmogônicos (“sobre a criação do mundo”), escatológicos
124
(“visões do fim do mundo e do Além”), soteriológicos (“rituais de iniciação e/ou magia”) e
culturais: “quando se centram sobre as actividades dos heróis que, tal como Prometeu, quiseram
melhorar as condições de vida dos homens” (LOPES, 2005). As três penitentes de A Farsa situam-
se entre o mito teológico e o cultural, ainda que não possam ser chamadas exatamente de heroínas,
como nenhum personagem das obras de Raul Brandão, sempre mais problemáticos e/ou
mesquinhos, ainda que muitas vezes martirizados, como no caso das três. Por um lado, elas
representam a redenção e são beatificadas pelo povo. Por outro lado, são ficcionais essas três que
buscaram melhorar as condições de vida do próximo com sua ajuda humanitária.
O narrador sugere que a história das “santas” é uma construção coletiva (“me contaram
essa história de duas santas”), invadida pela imaginação, que satisfaz uma necessidade religiosa
(“fez-se a lenda, começou a rezar-se de milagres”) e gera um objeto de devoção, consolação e
orientação popular, uma religação com o sagrado, uma “religião primitiva ou sabedoria prática”:
“afizeram-se a vir ajoelhar nas aflições a pedir às santas que lhes valessem” (AF, p. 145),
mitificando as personagens.
Lenda, originária da palavra latina legenda ou “coisas que devem ser lidas”, segundo Lúcia
Pimentel Góes, “originalmente designava histórias de santos, mas o sentido estendeu-se para
significar uma história ou tradição oriunda de tempos imemoriais e popularmente aceite como
verdade” e/ou “histórias fantasiosas ligadas a pessoas verdadeiras, acontecimentos ou lugares que
vivem na imaginação popular, sustentadas oralmente ou cantadas e posteriormente escritas”
(GÓES, 2005). No fragmento anterior de A Farsa, o termo lenda foi empregado em sua
significação original, que designa, na obra de ficção, uma história de santas (Cega e Sofia)
concebida pelo povo, iniciando seu processo de difusão, transmissão oral e popularização.
Por isso, o que Brandão denomina na ficção de lenda, talvez para trazer verossimilhança à
passagem das “santas”, trata-se de uma mitificação de personagens, que “o mito [pode] vira[r]
lenda e a lenda [pode] vira[r] conto”, segundo GUESSE & VOLOBUEF (2008). Além disso,
Câmara Cascudo (2000) ensina que “a lenda tem por origem fatos que impressionaram o
imaginário popular e é localizável no tempo e no espaço”, “um ponto imóvel de referência”, “de
ação remota”; enquanto “o mito está acima do tempo e do espaço: o mito é universal” e é “uma
narrativa de ação constante” (CASCUDO, 1984). Trata-se de mitificação a passagem das “santas”,
que não consiste em história de tempos imemoriais sustentada oralmente, mas de uma história
(ficcional) que se tornará lenda, segundo o narrador, que se comporta como um profeta ou um
visionário.
Aliás, mitificar os pobres parece uma tendência na obra de Brandão, sempre convicta na
defesa de que “ser despedaçado, oprimido, calcado, torna quase sempre o homem grande, porque
abala e acorda vozes adormecidas” (OP, p. 107), sustentando que a pobreza engrandece o ser e o
125
religa ao sagrado ou à “realidade primeva”, arquetípica e/ou intuitiva (“vozes adormecidas”), como
se nota também no conto O mistério da árvore, nos “dois mendigos vindos de países lendários”:
“Sorriam-se os mendigos cheios de terra e erva, e, enlevados, olharam um para o outro, ignorando
o que se passava em volta olhos nos olhos, mãos nas mãos” (OMA, p. 249-258). No fragmento,
também o emprego do termo lenda na passagem sobre os mendigos mitificados. Nesse caso,
para ressaltar a escassez de amor e de afeto nas relações interpessoais, encontrados apenas em
lendas, no tempo presente da ficção, marcada pela solidão e pela perversidade.
A morte na obra não aparece apenas como símbolo da extinção da vida; muitas vezes
aparece também como entrada numa nova vida espiritual, desejada pela Cega:
- Vou morrer.
E como Sofia irrompesse em pranto:
- Chiu, baixinho... Temos chorado tanto!... Deus ouviu, enfim, as minhas súplicas (...)
(AF, p.145)
Sociedade e meio aparecem, quase sempre, como entorno sombrio que fere e atormenta
narradores e personagens, alargando o abismo entre o indivíduo e o espaço do real e gerando
incompatibilidade com a existência carnal, na obra de Brandão, ocupado em “auscultar seu próprio
mistério interior amorosa e languidamente” e “ferido por tudo que o contorna” (PEREIRA, 1975,
p. 33-35).
Assim, nessa narrativa, estabelecem-se oposições entre o espaço-tempo do real e o da
imaginação, que são coloridos em tons de claro-escuro. O “real”, vivido pelos personagens, pinta-
se em tons escuros; é o espaço sombrio do pesadelo, que horroriza o narrador. O “espaço-tempo”
luminoso é o da imaginação, do sonho (e da metafísica), que abriga as “santas” e as pobres
mulheres do povo, fartas de trabalho e de lágrimas”, representando os pobres que sofrem, por
quem o narrador demonstra profunda afetividade.
4.5- Tempo onírico: uma alternativa contra a mesmice
O surrealismo desejou revolucionar a vida através da arte, aceitando e
alimentando as manifestações do inconsciente, da loucura, do desregramento
dos sentidos, da anulação de fronteiras entre o sonho e a realidade.
MARIA DA NATIVIDADE PIRES
O tempo se manifesta de diferentes formas na narrativa. O tempo psicológico deriva para o
onírico, talvez o menos comum à época de Brandão, apenas mencionado por Coelho (1976-a, p.
221), que trabalha fundamentalmente na diluição das fronteiras entre realidade e sonho/pesadelo,
entre realidade e delírio, entre realidade e loucura, dentro duma noção variável de tempo, “que
126
admite dois ritmos, segundo se toma como ponto de mira o individual, que não se repete, ou o
cósmico repetitivo” (COELHO, 1976-a, p. 222-223).
Na narrativa, verifica-se, por um lado, um caráter cíclico na perpetuação das injustiças e
das divisões sociais entre ricos e pobres, explorados e exploradores. A mesmice aparece nos gestos
repetitivos, na pouca mobilidade social, sentida pelos personagens. O tempo onírico aparece como
um abrigo contra o absurdo do mundo e da incapacidade de lidar com a vida, como uma
possibilidade de reinventá-la, de torná-la menos absurda e sofrida.
Percebe-se uma mesmice “nos quadros insistentemente recuperados” em A Farsa, “é a
imagem de imobilidade dos seres e das coisas, do tempo e do espaço, que vinca o absurdo da vida”
(SÁ, 2000, p. 389). Candidinha sempre a pedir e a se ridicularizar, as velhas sempre a jogar e
fofocar, os pobres sempre a sofrer e a se desesperar, os ricos a humilhar e a se regozijar.
No tempo da diegese, observa-se a permanência da injustiça social, do imobilismo,
marcados tanto nos espaços físicos, nas casas despedaçadas e no cenário enegrecido, como nos
personagens degradados, quanto nos sociais:
(...) São criaturas egoístas e secas que se cumprimentam e odeiam: a Candidinha
embrulhada no trapo, calada e hirta, com o filho, o Antoninho, ao lado; o Anacleto sem dizer
palavra; a figura caricata da criada; e a rapariguinha inocente, feia e triste. E quase as mesmas
palavras, os mesmos ditos, a mesma bisca – que um dia a morte interrompeu – jogadas sobre
o porão onde os caixões esperam como bocas abertas na velha casa incrustada na Sé, batida
da ventania, sob os frígidos aguaceiros, que descem da serra, corda atrás de corda. (AF, p.23)
A imobilidade da serra e da bisca é a mesma que caracteriza a vida dos personagens, que
repetem sempre a mesma inutilidade de esforços até a morte: Candidinha odeia reprimida e
inutilmente; as velhas jogando a bisca de sempre; todos repetindo frases semelhantes, que na maior
parte das vezes não correspondem a suas opiniões e sentimentos íntimos, estes menos
convencionais. A repetição de gestos exteriores estereotipados e de convenções sociais não
significa que todas as criaturas sejam de fato iguais, mas indica que obedecem às mesmas regras e
convenções que as reprimem, tornando-lhes a vida inautêntica, transformando essas criaturas num
arremedo delas mesmas. Isso não significa de forma alguma que sejam iguais do ponto de vista
psicológico, mas que as máscaras que ocultam suas faces e os gestos exteriorizados são repetitivos
e correspondem à expectativa das instituições. Mas, quando o narrador desvela intimidades e
revela o que está sob as máscaras, vê-se-lhes a grande complexidade interior.
O que, sem dúvida, mostra-se invariável é a organização social, sempre dividida entre
pobres e ricos, dominados e dominadores: “Aquele casebre de granito enegrecido pelo tempo,
muitos anos que abriga os mesmos dramas” (AF, p. 24); “nesta vida o dinheiro vale, e que
pobres são sempre desprezados e calcados” (AF, p. 96). Ainda que haja relativa mobilidade social,
de forma que algum rico sempre pode perder sua condição e se tornar pobre, como ocorre com o
127
Anacleto falido que “some entre a multidão”, essa estrutura se repete no tempo, de forma cíclica.
Repetem-se desgraças, embora mudem os que essa desgraça vitimizam, mas a estrutura social fica
inalterada. A mudança, em face disso, torna-se quase insignificante, diante da perpetuação da
ordem física, econômica e social. A sociedade mantém a mesma organização, ainda que mudem os
sujeitos e as técnicas da dominação, assim como as faces e as dores dos dominados. O espaço
ocupado pelo pobre, mesmo que tenha sido rico, é quase sempre a margem: o casebre, a
periferia, a miséria, a mendicância, enquanto o rico tem melhores condições e mais opções de
escolha.
Essa repetição de convenções e de posições sociais através dos séculos, histórica, cultural
ou politicamente perpetuada, pode ser observada na casa da Joana, na serra, que abrigou gerações
de pobres antes dela, e que abrigou, depois dela, a Cega e Sofia: “Aquele casebre de granito
enegrecido pelo tempo, muitos anos que abriga os mesmos dramas” (AF, p. 24). Cada pobre
habitante do casebre tem seu drama particular, mas viver dramas é o destino comum. E o que
vivem é a miséria material e o sofrimento. Isto faz com que muitos personagens não esperem
mudanças significativas, não as busquem e, conseqüentemente, imobilizem-se. Se o tempo passa
em ciclos, gerações e gerações de homens experimentarão a mesmice, a morosidade e, por vezes, a
abulia existencial, que se intensificará em Húmus, a propósito do qual Maria Alzira Seixo ressalta
“a repetitividade humana dos anseios e desesperanças através da circularidade cósmica de
alterações sazonais de renovação e emurchecer cíclicos” (SEIXO, 2000, p. 22). Essa repetitividade
se verifica em A Farsa, embora sem o caráter telúrico que adquirirá em Húmus. A frustração
incondicional de Anacleto, da Candidinha, de Sofia, da Cega e do Antoninho, que desejaram algo
da vida com ardor e angustiadamente, como se observa desde o início e durante toda a narrativa,
são exemplos desse emurchecer cíclico, que se encerra com sucessivas decepções, com uma série
de mortes, com a deflagração da loucura a da Candidinha e a da Felícia e com
desaparecimentos, como o de Sofia.
Diante de tudo isso, viver parece perda de tempo para muitos personagens; por isso a Cega
e a Sofia passam grande parte da narrativa imóveis, internadas na serra, aguardando a morte; e por
isso a bisca, com que, na narrativa, se busca “matar o tempo” perpetua-se. O trecho a seguir
ratifica o que se acaba de afirmar: “O tempo passou sem vestígios: hoje como dez anos atrás, a
sala é a mesma, as velhas as mesmas, idênticos ódios – e o tédio idêntico. Parece que séculos se
conservam cruzadas sobre as cartas sebentas” (AF, p. 31, grifo nosso).
Paralelamente a essa cíclica perda do tempo, porém, o tempo onírico atravessa a narrativa.
Aquele para o qual Candidinha se desvia, como forma de se alienar, de fugir da vida e do mundo
insatisfatórios. O tempo onírico é usado como arma contra a neutralização do desejo. No sonho
desreprimem-se muitos desejos, o personagem não enfrenta as interdições que sofre no dia-a-dia
128
de sua vida, no tempo da mesmice. Por outro lado, também não propõe mudança alguma, mas
confirma a imobilidade. Ou, ainda, propõe uma mudança para o personagem sonhador, mas não
passa de uma mudança virtual, que muitas vezes o sonho anula o ato e o fato, em A Farsa. Ou
melhor, o sonho, como desejo de obter algo ou de fazer algo, revela a inexistência do fato ou do
objeto desejado. A Candidinha, quando transforma o desejo em ação de busca, empreende uma
busca perversa.
Os pobres seguidores das “santas” buscam numa quimera a neutralização do tempo
perdido, pedindo e esperando milagres, soluções mágicas ou abrigos para uma desgraça que se
perpetua ciclicamente, sem perspectiva de reversibilidade. Da mesma forma, o primeiro refúgio da
miserável Candidinha contra a miséria são o sonho e a mentira, que conta insistentemente aos
habitantes da vila, enquanto no íntimo alimenta e agiganta sonhos de riqueza, reconhecimento,
prestígio, poder e fartura. Esse tempo do sonho se sobrepõe e, por vezes, anula seu tempo de
existência material.
A loucura de Candidinha, ao fim da narrativa, parece a última resistência contra a perda de
todos os sonhos, ameaça concretizada na morte do filho. É a última resistência à queda numa
realidade inaceitável ou a persistência da aposta do personagem no tempo onírico, em que ela
escolhe viver para continuar existindo.
A realidade parece pesadelo e o sonho parece a realidade da Candidinha ou o sonho é a
realidade íntima do personagem. O sonho ou delírio de Candidinha parece que brevemente
resgatará seu lugar, desbancando a usurpadora realidade que lhe solapou esse lugar. A
desagradável realidade exterior e a intimidade do personagem parecem se desafiar a todo tempo na
narrativa, colorida com tonalidades berrantes. Para além dos contrastes, misturam-se realidade e
sonho, realidade e pesadelo, pesadelo e sonho, delírio e fato real, sanidade e loucura.
No tempo psicológico ou nas digressões do narrador, uma prática parece simular a “escrita
automática” ou o “pensamento falado”: a da exteriorização de “pensamentos não controlados pela
lógica e pela razão”, semelhante ao que ocorre já em algumas partes dos monólogos de Candidinha
e Antoninho e em algumas digressões do narrador, sem preocupação com a coesão e às vezes
também com a coerência tradicional, como também ocorre nas falas do Gabiru de Os Pobres. O
objetivo dessa escrita automática, em Brandão, “era o de demolir as convenções da escrita
tradicional” (CEIA, 2005): “No sonho não asperezas, nem contrariedades o sonho é como
um rio imenso que corre e transborda. Não se lhe opõem diques: não força que lhe resista. A
realidade é cheia de intransigências mesquinhas, de ásperos ângulos, de mínimos e resistentes
pormenores”. Em seqüência, numa livre associação de idéias, sem nenhum elemento de coesão,
lê-se: “Cada ser tem sua atmosfera própria, cada criatura vive rodeada duma auréola de sonho
129
Todas as almas segregam sonho. Como todas as flores exalam perfume. É uma irradiação”. (AF,
p. 126, grifos nossos)
A citação parece ou quer levar a crer que seja uma “escrita que resulta da inspiração do momento, sem
preparação prévia nem esquema de trabalho previsto, e que se assume ser imediata, espontânea e incontrolada”, como
que num “estado de alucinação ou hipnose”, que se interpõe ou que se impõe à narração dos eventos. Além disso, os
elementos associados no fragmento são desconexos e pertencentes a universos distintos, como nos quadros de Dali.
Percebe-se que concorrem com o tempo real, ou a ele se misturam, o mito, o sonho-pesadelo, o delírio e/ou a
mentira, originando o tempo onírico, que ameniza o horror do tempo real e, ao mesmo tempo, contrasta com ele,
intensificando-lhe o lado terrível. Logo, a estética do horror se aplica tanto à paisagem quanto ao tempo exterior
sombrios, que contrastam com o tempo onírico, mais suportável, pintado em tons mais claros.
Assim, os dois tempos paralelos da narrativa são perdidos em muitos sentidos. O onírico é
perdido porque é uma subversão do tempo, porque assegura a manifestação do desejo. É perdido
porque no sonho tudo se encerra, não se transforma em ação, o que indica a força do tempo da
realidade, da repetição, da mesmice. A vida é sentida por muitos como perda de tempo, inutilidade,
porque não conseguem encontrar o rumo desejável para a satisfação do ser; e porque não resulta
em transformação, em mobilidade, em felicidade, mas em perpetuação da desigualdade, da dor,
da falsidade. Deste modo, ambos são perdidos, pois não representam mudança; são irrecuperáveis
e conduzem inevitavelmente à morte. E tudo isso alimenta a circularidade do tempo perdido e a
perda cíclica de tempo na obra.
4.6- Eu-profundo e intimidades devassadas: os farsantes e o narrador abismado
O “espanto”, verdadeira tônica dos textos mais fundos e mais belos de
Raul Brandão, antecipa a “náusea” de Sartre, brusca tomada de consciência do
existir, do estar na vida sem razão, cercado de incógnitas e de uma fundamental
angústia. URBANO TAVARES RODRIGUES
Raul Brandão existencialista “avant-la-lettre”
Para além do objetivo estético da obra, sem dúvida, prioritário, causa maior da escrita de
Brandão, o narrador acaba dando relevo e voz a personagens marginalizados pela miséria e pela
exclusão social. Entretanto, ainda que essa liderança comovida do narrador selecione e eleja
desgraçados para a eles delegar voz e poder de enunciação, persiste “sempre em primeiro lugar o
olhar que os vê, o pensamento que os revê”, que pinta telas carregadas nas tintas e “se interessa
pelo homem e pela sua situação no mundo” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 91), sobre eles
refletindo, ponderando, pensando, lançando suas indagações e problematizações e se pasmando.
Se farsante é o personagem de uma farsa, neste sentido os personagens de uma obra
chamada A Farsa bem poderiam ser chamados de farsantes. O termo farsante também pode se
130
referir a qualquer personagem pouco confiável e/ou fingido (FERREIRA, 1999), sentido em que o
termo também poderia ser aplicado a um grande número de personagens da obra. Nos dois
sentidos, os personagens que mais perseguem sonhos materialistas ou de poder, tornam-se mais
farsantes, usando ardis e simulações para atingir seus objetivos. Por outro lado, aqueles que mais
se desligam da demanda de poder e de prestígio, mais se afastam também desse rótulo de farsante,
como ocorre com Joana, a Cega e Sofia, depois da falência do pai. Ambos comovem e abismam o
narrador.
O narrador de A Farsa deambula discursivamente, solitário, pensativo e estupefato, entre a
“canalha” (AF, p. 141), constituída de figuras sombrias ou claras, de existências hediondas ou
belas, numa clara extensão da estética expressionista do claro-escuro pesadelo. Exemplo desses
extremos são a Joana e a Candidinha, como observou Pedro Eiras: “A Joana é de origem divina.
A Candidinha é de origem demoníaca” (EIRAS, p. 59). Candidinha e Joana são opostas em muitos
sentidos, inclusive nas tonalidades em que são pintadas. De um lado, a luz emana de Joana; do
outro, a sombra se projeta na Candidinha. São dois extremos, se for considerada a “escala” de
cores em que são pintadas, segundo a técnica do claro-escuro. O narrador debruça-se comovido
sobre essas figuras. Focalizadas com afetividade, perambulam e contrastam entre si e/ou com o
cenário medonho. Solitários e quase todos perdidos, os personagens confirmam que “a urdidura
discursiva de índole expressionista e os tons apocalípticos ligam a perda do eu à da comunidade
em que se inserem”.
O pasmo diante das variadas situações, passadas pelos personagens, faz com que o narrador
se espante e se indague sobre a condição humana. Essas revelações e indagações, suscitadas pelo
“pasmo” ou pelo “espanto” do narrador, levam-no a abismar-se. Abismo, segundo o dicionário, é
“abertura ou sulco de fundo quase vertical, praticamente insondável” e abismar-se é “lançar-se
sobre abismo, assombrar-se, admirar-se, cair em profunda concentração” (FERREIRA, 1999, p. 5).
Ao lançar-se em abismo, o narrador deparara-se, quase sempre, com a trágica condição humana de
ser para a desgraça, ou com aquilo que é “praticamente insondável”, questões para as quais não
resposta. A própria consciência do narrador é a comprovação da trágica condição humana, que
ele sabe da desgraça certa e não pode contra ela lutar, muito menos evitá-la, sequer dela se desviar.
Esse “espanto” decorre da tomada de consciência da “condição humana, surgida no
narrador ou num personagem ao deparar-se com algum evento que leva o sujeito a pensar a
existência, a morte, a decepção e a frustração dos sonhos, mencionados por Urbano Tavares
Rodrigues, chamado de “grito”, “sentir agudo de epifanias” (SEIXO, 2000, p. 22) ou ontofania”,
visto o caráter ontológico de tais epifanias. (VERÍSSIMO, 2000, p. 83-92)
131
Em oposição à máscara, que representa tipos sociais, em A Farsa, revela-se o eu-profundo,
a intimidade por trás da máscara: “Numa, na mulher, a capa de matéria cobre uma quimera
desmedida.” (AF, p.74)
Sucumbe e fica dias e dias sem sair da trapeira, a cismar; depois, abaixa-se, curva-se,
finge-se idiota; seu riso soa mais falso e volta à casa da irmã e das velhas, pedinchando a
côdea. Esconde o ódio; vive fechada com seu sonho enorme, por fora uma velha pelintra, por
dentro um horror sem limites. (AF, p.51)
Esse eu-profundo, essa interioridade reprimida é revelada e analisada ora pelo narrador, ora
pela própria protagonista, em seus monólogos interiores: “Candidinha no sótão monologa: Desde
pequena que sinto isto aqui a remoer-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A inveja é um
veneno” (AF, p.96); “A Candidinha do avesso: O céu é de todos e este mundo de quem mais
apanha!” (AF, p. 67) e “Notas dum ambicioso: Este homem o mundo em verde. É ambicioso e
capaz de tudo para conseguir seus fins mas em imaginação” (AF, p. 74). Esses monólogos
assemelham-se a consultas a analistas ou psicólogos, em que Candidinha e Antoninho, como
pacientes, revelam alguns de seus vícios, revoltas e motivos, para que um analista os tente
desvendar, como numa operação de desvelamento do processo de degradação do sujeito.
A preocupação prioritária, não só nos monólogos, mas em toda narrativa, é desvendar o que
as coisas são, os substratos eternos e imutáveis por trás das máscaras sociais. Tais reflexões
existenciais remetem à angústia, à solidão, à finitude humana e a questões sobre Deus e a vida de
cada ser: “Se a rajada levasse o que a cova leva e desfaz a matéria e ficasse de o que é
eterno, talvez recuássemos de espanto diante de tipos desconhecidos, de sentimentos
desconhecidos, de almas nuas na sua beleza ou na sua esplêndida hediondez”. (AF, p.24)
Esse narrador, refletindo sobre tudo o que observa, vagando e divagando, “goza do
incomparável privilégio de ser, à sua vontade, ele mesmo e outrem”, com “o gosto do disfarce e da
máscara” (BAUDELAIRE, 1995, p. 289), multifacetado e versátil. Assim, o narrador, por vezes,
coloca-se no lugar de alguns personagens, como Candidinha e Antoninho, que em primeira pessoa
devassam suas intimidades em capítulos destinados a seus monólogos:
A Candidinha no Sótão monologa:
“Desde pequena que sinto isto aqui a remoer-me, sem descanso, dia e noite, sempre. A
inveja é um veneno que me tem azedado (...)
Mas nem piedade nem esmola caiam em saco roto: transformava-as imediatamente em
ódio (...) (AF, p.95-97)
Notas dum ambicioso
(...) Falo pouco, é certo, mas dentro em mim referve o desespero. (...)
E, no entanto, do que eu seria capaz! De tudo! (...) Quem me quer comprar? (AF, p.74-
77)
Cedendo-lhes voz, colocando-se no lugar deles ou, simplesmente, abrindo-lhes espaço na
narrativa para monologarem, o narrador trabalha para compreender melhor suas existências
132
complexas e problemáticas, o que seria quase impossível apenas observando-lhes o
comportamento mascarado.
Mas o narrador de A Farsa, ainda que quase sempre revele suas impressões, reflita,
comente, emita opiniões sobre os personagens, cenas e acontecimentos e/ou se indague sobre a
“condição humana”, algumas vezes procura manter-se mais neutro, imparcial, nos momentos em
que pretende trazer maior credibilidade e veracidade ao relato, restringindo-se aos fatos, como
ocorre nos citados monólogos de Antoninho e de Candidinha, em que o narrador deixa que o
próprio personagem se coloque em páginas de monólogos. O narrador tenta compreender os
mecanismos psicológicos que interferem nas ações dos personagens, seus sentimentos e
pensamentos, para sensibilizar o leitor para com os dramas e os motivos particulares dessas
figuras, demonstrando, por vezes, condescendência com os humildes e disposição para tentar
compreender os motivos do outro ou dando seu testemunho, como no capítulo “Carta da Serra”:
“Esta gente que me rodeia, pobres, cavadores, pastores, homens que se parecem um pouco com as
árvores pela sua simplicidade e grandeza (...) são criaturas diferentes da que tu conheces” (AF, p.
143)
As três figuras femininas “mariais”
11
são relacionadas à serra, onde passam a residir durante
o martírio, num romântico “regresso a um ruralismo mítico” (VIÇOSO, 1999, p. 79). Neste
fragmento, o narrador usa a epístola
12
, no capítulo “Carta da Serra”, para dar um testemunho
comovido sobre a vida dos moradores da serra, expressando-se na primeira pessoa do singular.
Errante, passa-se por um dos transeuntes da serra, lugarejo dormitório de parte dos personagens
pobres da obra como a Cega, a Sofia depois de perder o pai, e a trabalhadora Joana relatando
deambulações ou se misturando à turba, como nos trechos a seguir: A vida somos nós que a
construímos à custa de quimeras, de gritos, de ternura: o mundo pertence-nos: a árvore, a água, o
que te rodeia de simples, de belo ou de trágico, o que te faz viver e o que nos faz viver” (AF,
p.141-142) e “Teatro para nós mesmos, onde não máscaras, e que criamos a custa de sangue,
de nervos, dum perpétuo e obscuro labor deslumbrante ou cômico é na verdade a nossa alma.
És tu.” (AF, p.55)
Como faz na epístola, também nos fragmentos acima se dirige ao interlocutor (leitor),
envolvendo-o nas reflexões e indagações, esperando dele senão que acompanhe os passos da
deambulação, ao menos postura crítica e inquietação, o que se torna mais direto e explícito nos
últimos capítulos, quando o narrador não se contenta em sugerir e revela ao leitor o significado de
Candidinha, produto do sonho do narrador: “Não! Essa mulher apupada não é a Candidinha, é o
11
O termo marial será usado para designar figuras femininas pobres e martirizadas, focalizadas em A Farsa, na esteira
do paradigma cristão do comportamento feminino: Maria, que revela uma “imagética mística e pietista” e um
“comunitarismo evangélico”, segundo Viçoso (1999, p. 13).
12
A epístola é recurso recorrente entre as narrativas do século XIX.
133
meu sonho (...) Uma vida inteira passada a sonhar e no fim encontra-se a gente com o sonho
derrocado!” (AF, p.140)
Assim, A Farsa debruçar-se-á, com muito afinco, sobre o que está por trás e para além da
existência humana, sem deixar de suscitar reflexões sobre questões relacionadas à ambição de ter,
que sufoca o ser; o individualismo, que inviabiliza cada vez mais a convivência comunitária; o
mascaramento e os papéis sociais do cidadão; as relações de poder e exploração, numa sociedade
em que se destacam as relações de submissão, de dominados por dominadores. Nesta narrativa, o
exterior não é apenas problematizado, criticado e contestado, como também pretexto para
incursões ao interior, a fim de indagar sobre o que está por trás das aparências, oculto em tudo e
em cada ser.
Percebe-se que importa sempre mais, em Brandão, o confronto entre a aparência e a
essência, entre o eu-profundo e a máscara, priorizando mais o problema contido no espetáculo, nos
seres que o integram, nas relações e nos sentimentos do que o espetáculo em si. Assim, n’A Farsa
o espetáculo é mais uma forma de penetrar e de problematizar melhor o que está para além da
exterioridade, desaguando na própria condição humana.
A sociedade composta por essas figuras que pasmam o narrador se divide também em duas
classes, segundo o poder aquisitivo: ricos e pobres. A classe baixa engloba indivíduos
subalternizados e miseráveis, alguns supostamente oriundos de uma aristocracia decadente, da qual
a Candidinha se diz representante; e comerciantes falidos, como Sofia e Anacleto.
O termo burguesia, segundo Gay, “é uma dessas cestas volumosas onde cabe tudo”, deveras
abrangente, englobando desde “os barões da indústria, no limiar da nobreza” até “os profissionais
liberais e pequenos comerciantes” desde a época mercantil, ainda que haja subdivisões e “uma
hierarquia de prestígio”. Enfim, o termo burguês serve para designar todos os donos do “dinheiro
novo”, em oposição ao “dinheiro antigo” (GAY, 1999, p. 15), herdado pelos nobres, em
decadência.
Para Gay (1999, p. 16), a burguesia, desde quando era uma nascente classe intermediária
entre a nobreza e os pobres, “assume todas as formas de disfarces, unindo-se e dividindo-se
conforme a ocasião, ajudando-se mutuamente nos momentos de perigo para no dia seguinte retirar
uma das outras os ganhos conquistados”, revelando que exploração, individualismo, volubilidade e
calculismo sempre estiveram entre as formas de ascender e se manter acima da pobreza.
Desta forma, em A Farsa, para muitos personagens burgueses, a vida é menos miserável
apenas no aspecto material, mas a miséria existencial acomete a todos: Belisário, Felícia e
Anacleto no início da narrativa. Todos estes são capazes de explorar, ostentar, humilhar e enganar
para se manter em sua posição abastada e confortável e dela desfrutar.
134
Ainda segundo Gay, a massa pobre, abaixo dessa classe intermediária na hierarquia social,
sempre lembrou o “pequeno burguês” da sua possibilidade de falência e de miséria material, fato
que o lança em “atitude defensiva”. É o que ocorre com o Belisário, de A Farsa, que nunca se
permite um momento de lazer ou descontração, sempre atento a negócios lucrativos para não
perder a situação econômica favorável e não se arriscar a ficar pobre.
“A miséria voluntária era um estado digno de elogio”, afirmado desde muito tempo pelo
cristianismo nas sociedades tradicionais, “enquanto a miséria por necessidade era moralmente
condenada”, segundo Geremek (1995, p. 9-10). Com o advento das cidades, “a sociedade urbana
produziu argumentos para uma valorização social da riqueza e para que esta pudesse ser tratada
como um sinal da graça de Deus”, conseqüentemente a miséria passou a constituir “a prova da
falta da ajuda divina e talvez até da sua ira”. Na prática, o pobre passou a ser tratado como
“alguém que subvertia a ordem social e era socialmente perigoso” (GEREMEK, 1995, p. 10),
marginalizou-se.
Com isso, nessas sociedades urbanas
13
, o sonho fica intimamente ligado ao status, ao
dinheiro e até ao consumo de bens e serviços. Assim, quem o detém, monopoliza não os bens
materiais, mas o lazer, o direito a uma vida digna, a consideração e o reconhecimento social.
Paralelamente, quem não tem dinheiro, não tem direito nem aos artigos de primeira
necessidade, como comida e moradia decente, quanto mais diversão. O pobre precisa trabalhar a
maior parte do seu tempo para garantir sua sobrevivência parca, não tendo tempo nem para desejar
direito, como é o caso da trabalhadora Joana: “Os pobres não podem ter vícios” (AF, p. 68). O
corpo, o amor, a sensualidade, o prazer e a satisfação pessoal, que são secundarizados pelos
novos valores burgueses, como ensina Herbert Marcuse, em “Eros e Civilização” (1981), para os
pobres parecem ainda mais negligenciados e interditados em A Farsa.
O pobre que sonha é execrado pela sociedade, como Candidinha, ainda mais o que ousa
buscar realizar-se, como fez o Antoninho. Mas, quando ele consegue sabe-se de que forma
enriquecer, como os burgueses Anacleto e Belisário, então passa a ser respeitado por muitos e
temido pelos subalternos, da mesma maneira que são respeitados aqueles que herdaram riquezas,
como a Felícia.
Percebe-se a hierarquia social encenada na obra. Na base da pirâmide, os muitos
miseráveis, que mendigam ou trabalham para subsistência. No topo, os poucos que possuem
recursos, à custa da exploração do trabalho alheio e da venda de bens e serviços.
na obra, como nas sociedades humanas, grupos de exploradores e de explorados.
Entretanto, no grupo de exploradores, os que em dado momento são explorados por outros
13
Entenda-se cidade ou urbe como localidade não agrícola e dada à atividade mercantil, industrial e/ou financeira
(FERREIRA, 1999), mesmo que em países pobres.
135
exploradores, como as beatas, exploradas pelos comerciantes. E, no grupo de explorados, há os que
sonham em ser exploradores e os que nem sonham, como a afetuosa Joana.
A imobilidade social, porém, não é total; nota-se que as classes sofrem oscilações,
observadas no caminho descendente percorrido pela Candidinha, oriunda de uma aristocracia
decadente, bem como pela ascendência social de Anacleto, burguês, explorador do comércio, ou
pela descendência de Sofia, filha de burguês falido.
Nessa turba de A Farsa, o narrador deambulador passeia solitário e pensativo e focaliza
algumas figuras, destacadas da paisagem social e usadas como mote para reflexões sobre a
existência e a “condição humana”. Os burgueses enquadram-se entre as figuras hediondas, assim
como certos pobres, como Candidinha e Antoninho, que desejam dinheiro, poder e bens. Entre os
pobres, algumas existências luminosas e belas, cujas virtudes contrastam com os vícios das
sombras hediondas.
4.6.1- Existências sombrias: figuras hediondas férteis e sonhos materialistas
(Antoninho) Falo pouco, é certo, mas dentro em mim referve o desespero.
Esta capa de frialdade encobre uma figura estranha, de histrião, uma ambição
desmedida, uma sede insaciável de mando. Isto não é pautado nem medido: não
é um método, é um desespero.
Vencer a custa seja do que for – de hipocrisias e de infâmias.
RAUL BRANDÃO
A Farsa
Fértil é “fecundo” (FERREIRA, 1999, p. 345) é aquele que tem facilidade para conceber,
no sentido reprodutivo ou inventivo. Com isso, sujeito fértil pode ser aquele que tem facilidade
para se reproduzir, para perpetuar seus “genes”; ou aquele que é inventivo ou criativo.
Justamente as figuras mais sombrias de A Farsa, que suscitam no narrador as indagações
mais abismadas, curiosamente são as que se mostram mais férteis nos dois sentidos, porque
engenhosas, criativas, capazes das mais terríveis atrocidades; e também resistentes, quase
inabaláveis, praticamente inextinguíveis, que sempre há, entre os mortais, continuadores para
suas obras e ambições materiais, ao contrário das figuras “mariais”, estéreis no sentido
reprodutivo, praticamente sem perpetuadores para suas obras redentoras e humanitárias na
narrativa. Morto o Anacleto, logo “um penhor fez uma penhora um lote de esquifes coube ao
Belisário, que os vendeu ao desbarato em praça”, “que se desfez logo da órfã (AF, p. 119)”, de
forma que outros comerciantes mercenários (“um penhor” e Belisário) e novos empreendimentos
existem para perpetuar a exploração, que o capitalista morto e seu empreendimento falido não
podem efetuar.
Na busca de uma solução estética que ponha em evidência essa estratégia do claro-escuro, o
narrador separa os indivíduos em dois grupos que serão alvo do seu olhar arguto: as almas belas e
136
as hediondas, dando maior ênfase ao segundo grupo: Se a rajada levasse o que a cova leva e
desfaz a matéria e ficasse de o que é eterno, talvez recuássemos de espanto diante de tipos
desconhecidos, de sentimentos desconhecidos, de almas nuas na sua beleza ou na sua esplêndida
hediondez” (AF, p. 24). A alma bela não deve surpreende, é arquetípica, é o que se espera do
homem. Por outro lado, a hedionda, apesar de mais corriqueira, sempre supera as expectativas,
tanto por ter o homem um lado tenebroso mais aflorado na narrativa, quanto pela capacidade que o
homem tem de sempre superar a intensidade da sua hediondez, praticando ações piores do que o
esperado.
Apesar do tempo cíclico, do espaço condicionador e do humano hediondo, que se mantêm
na narrativa, algo oculto na paisagem que nunca se repete: a singularidade da psique humana.
De sob a paisagem e das máscaras irrompe a alma humana, irredutível a padrões, ciclos,
estereótipos, condicionamentos ou qualquer outro mecanismo de padronização que o homem possa
inventar. A singularidade de cada indivíduo se oculta nos estereótipos culturais e sociais: “Cada
figura traz recalcado e oprimido sob um aspecto banal o seu sonho. a morta é pó, a criança
cresceu, as velhas recurvaram e azedaram: a pedra não mudou, nem o tempo eterno: o ódio
acumulou-se”. (AF, p.24)
Apesar de abrir alguns caminhos para a análise da condição humana, o narrador faz questão
de apontar para a vastidão de caminhos inexplorados, que jamais serão compreendidos em sua
amplidão sequer pelo eu dono da identidade, quanto mais para o outro que olha de fora,
explorando pequenas e insignificantes pistas.
(...) Curva-se sobre a irmã e fala-lhe baixinho ao ouvido.
- Hã?...
Não se ouve, mas tais palavras, que um suor de aflição obre-lhe o suor da agonia.
Senta-se e depois de a ter encarado cai para sempre, de chofre. Aquilo dera um minuto e um
século. (...) (AF, p. 18)
O leitor pode deduzir, com base no restante dos acontecimentos da narrativa, o que se
sucedeu naquele “minuto”, mas jamais terá o alcance da totalidade do que se passou naquele
“século” no íntimo da moribunda. Da mesma forma, jamais decifrará o que se encontra por trás
dos soluços e dos gritos de Sofia, durante seu desaparecimento, após a morte da Cega: “Depois,
aos soluços e gritos, internou-se na serra e nunca mais a viram. Que história a destas duas
mulheres! que drama para sempre ignorado!...” (AF, p. 145)
O abismo de ódio inútil vislumbrado por Candidinha em sua despedida abre também um
leque infinito de possibilidades para o final da trajetória do personagem.
Candidinha, nos gestos e atos, compõe uma “perfeita antífrase irônica com o seu nome”
(SEIXO, 2000, p. 20). O diminutivo de cândida, remete para alvo, ingênuo, puro, imaculado, como
também para uma doença ginecológica e para o fungo dela causador, num diminutivo a um tempo
137
pejorativo, amesquinhador e bastante sugestivo, que é o nome de uma figura humilhada, pisada,
amarga, reprimida, dissimulada e sedenta de vingança.
Ela representa o sonho materialista, manifestado em sua personalidade através dos sete
pecados capitais, que poucas vezes tem oportunidade de concretizar. Quando tem oportunidade,
manifesta-os ferozmente, oprimindo, explorando e subjugando suas poucas vítimas. Na maior
parte do tempo, porém, os desejos de pecar permanecem aprisionados por trás de sua máscara de
Momo. Em seu íntimo, alimenta sonhos e planos, sempre adiados. No episódio “O avesso da
Candidinha”, o narrador revela todos os pecados do personagem-título, exemplificando com
situações vividas ou reveladas nos monólogos interiores.
O que Candidinha realmente deseja não é apenas seu sustento ou fartura; ela quer isso e
mais: ter muito dinheiro e poder para esbanjar, despertar inveja, humilhar, pisar nos outros, enfim
ela sonha poder praticar os vícios condenados por São Tomás de Aquino, no século XIII, e
chamados de pecados capitais
14
. Estes seriam sete vícios especiais, segundo o religioso, que
lideram uma gama de outros a eles subordinados. Segundo Lauand (2001), esses vícios são
condicionamentos para agir mal, devido ao comprometimento de aspectos da conduta moral do
sujeito: 1
o
vaidade (ou soberba); 2
o
avareza; 3
o
inveja; 4
o
ira; 5
o
luxúria; 6
o
gula; 7
o
acídia (ou
preguiça).
Todos os pecados capitais derivam de impulsos naturais do homem, levados ao extremo da
obsessão. O primeiro, a soberba, termo hoje substituído por vaidade, segundo Lauand, é
considerado um pecado supra-capital, acima de todos os outros, pois consiste no culto exacerbado
do eu, na necessidade doentia de excelência sobre todos os outros seres a equiparação a Deus.
Assim, a soberba pode ser considerada a geradora dos outros pecados capitais, inclusive o da
vaidade, que seria a manifestação da excelência pretendida pela soberba.
Candidinha mostra-se uma mulher acima de tudo soberba e vaidosa, capaz de abdicar da
vida e do mundo por não poder pisar o outro. Enquanto intimamente continua sentindo-se melhor
do que todos e aguardando o momento de poder gritar sua superioridade, julga-se mais esperta, por
ser capaz de enganar os outros, fingindo-se de parva.
(...) Antes do filho, a Candidinha só tivera uma ambição: ser rica, ter vestidos de seda,
lambarices, consideração, deslumbrar as outras mulheres da vila provinciana. A sua vaidade
era desprezível e imensa – e fora a vaidade que a perdera. Abandonara-se ao primeiro homem
rico que lhe aparecera – para ser mais que as outras. Entregara-se não por desvario, mas por
vaidade. (...) (AF, p.70)
A preguiça é apenas uma das manifestações da acídia, mal maior relacionado a uma
inquietação e aridez íntima, uma incompatibilidade do ser com a realidade, ou melhor, uma
repúdia de seu próprio ser, volúvel, insaciável e, por isso, triste, desesperado e imóvel. A acídia,
14
A palavra “capitais” foi empregada no temo com o sentido de especiais, principais.
138
segundo São Tomás de Aquino, é uma modorra fúnebre, causada pela perversão do sentido
original do ver. O objetivo primordial da visão, aprender, penetrar a verdade, converte-se em fuga
de si mesmo, em abandono ao mundo, numa demonstração de angustioso egoísmo.
Candidinha é a própria manifestação da acídia. Desencantada, tão amargurada com sua
condição miserável, com o sucesso alheio, com a realidade dos fatos e com o mundo a sua volta,
que deseja ser o que não é, ter o que não tem. Odeia tudo e todos e se retira para a imobilidade de
uma quimera, usando o que vê para povoar seus sonhos delirantes e abandonar a ação.
- Quem me dera ter uma criada...
(...) – Pra quê? Pra isto: para mandar à minha vontade. E não tinha contemplações! Oh
quem me dera poder dizer: -Faça! vá! ande! rua!... (AF, p.68)
A acídia faz com que ela perca mesmo a capacidade de agir, restando-lhe apenas a
idealização de planos nunca executados: “Em pensamento a matou assim muitas vezes; conhece
todos os pormenores do crime (...) Mas não se atreve.” (AF, p.110)
A luxúria é a incontinência e a entrega à sensualidade de maneira doentia, libertina.
Candidinha, por causa da cobiça e da vaidade, comete um ato luxurioso, que arruína sua vida.
Depois disso, a luxúria seca, murcha, assim como a sua aparência e o seu vigor físico, sobrando-
lhe apenas a incomensurável acídia.
Entretanto, a repressão da luxúria em sua vida não significa o fim dos pensamentos
libidinosos. Candidinha nutre recalque por não mais praticá-la e mágoa por ter sido a luxúria o
motivo de sua ruína. Como ocorre com a gula, a luxúria não lhe saiu da cabeça; não é o
principal sonho. Mas, no conselho à amiga, aparece sua frustração por não mais praticá-la:
- Goza a vida, filha, enquanto é tempo, e nada de aflições... Quantos te hão-de por aí
dizer que és bonita?
(...) – O que tu sofres já eu sofri, ou pior. Os homens são todos o mesmo. Neste mundo
de enganos, só há dor e vaidade, filha. E ainda tu – e aponta-lhe a cara – tens isto que nada
paga...
- Isto o quê?
- Esta frescura da mocidade. Mas deixa-te ir para velha e verás. É pior que fazer uma
pedra no coração sem se poder arrancar. Toda a gente se ri de nós (...) (AF, p.68)
A gula é uma fixação pelo ato de saborear, de deleitar-se, que não cessa, nem depois de
saciada a fome, mas exacerba-a. Em Candidinha, a gula não se resume ao alimento; estende-se aos
bens materiais e ao poder, misturando-se à avareza e à soberba. Entretanto, permanece muito mais
no plano da idealização, como uma apetência por se refestelar, como uma ambição pelo
desperdício, impossível de alcançar por causa da pobreza e da acídia, de sua incapacidade para
buscar: Era muito gulosa. (...) passava horas e horas a cismar em ninharias grotescas, em
lambarices, no café que gostaria de tomar muito forte e doce... e com a ponta da língua humedecia
os cantos da boca encortiçada”. (AF, p. 68); e “estaca de repente em frente de Sofia e diz-lhe: Olha
139
para mim! E parte outra vez do corredor para a cozinha a rir-se. Silêncio e uma gargalhada.
(...) interrompida de quando em quando por um riso baixinho de gula ou por uma risada de
escárnio” (AF, p. 87). A gula de Candidinha está a serviço da soberba, para sentir-se melhor do que
os outros, para humilhá-los. O sabor do alimento deleita menos do que o sabor do poder.
A avareza, apego exacerbado ao dinheiro, é outro traço marcante na personalidade de
Candidinha. Pode-se dizer mesmo que é um dos motes de sua existência, que deseja dinheiro
com toda a sua alma e vive em função dele, criando o filho para consegui-lo por ela e para ela.
São identificados no personagem, ainda, outros vícios subordinados à avareza, como o
engano, a fraude e a traição à Cega, que se sacrificou por eles. Em nome de uma desejada vingança
futura e de sua sobrevivência presente, finge uma resignação que não sente, enganando o povoado
para obter as côdeas. Engana também Sofia, visando ao dinheiro do Anacleto. Engana, depois, na
cidade, a nora, usando-a como isca para conseguir vantagens financeiras para o filho e para ela
mesma. Incentiva Antoninho a cometer fraudes no trabalho para conseguir promoções. E é ela
própria a representação da fraude: “Não recuses nada ao Sr. Conselheiro, filho, mulheres
muitas... Agarra a sorte pelos cabelos... – Deixe-me!” (AF, p. 65). Após usar Sofia, Candidinha trai
sua confiança, subjugando e oprimindo-a. O mesmo faz com a cega, que se sacrifica pelo marido e
por causa da sogra.
Nos poucos momentos em que consegue ninharias, a velha não as usa a serviço do próprio
bem estar, mas como ícone a ser guardado e adorado sordidamente: “Durante meses encheram-se;
a Candidinha compra um xale novo e rico mas não o quer usar. (...) Fecha-se no quarto, abre a
arca e fica horas a contemplá-lo deslumbrada. O Antoninho pede dinheiro ao Conselheiro. Mudam
de casa”. (AF, p.65) e “Tinha uma habilidade singular para remendar farrapos. Apontando a saia
dizia desvanecida: As coisas no meu corpo duram anos”. (AF, p.68)
A idolatria exacerbada das misérias que acumula é proporcional à inveja que nutre por
qualquer pessoa que possua bens.
- O que aqui está dentro! E pesa!... Não sei que impressão faz ter a gente tanto dinheiro
ao pé de si!... O que aqui está dentro! Vestidos de seda, riquezas, lambarices, coisas boas...
Ai, deve ser um regalo ter dinheiro! Até parece que dá calor! Ter dinheiro para mandar os
outros... E dizer que está aqui dentro – eu sei lá!... – tudo!... regalos, considerações, o mundo
todo...
E pousando o saco tornou a suspirar:
- Ai, deve ser muito bom ter dinheiro!... (AF, p.71)
Candidinha bajula a Felícia, ao vê-la com um saco de dinheiro, demonstrando excitação e
cobiça por ele, suspira de inveja por esse dinheiro, não mais por luxúria, admirando-se com o peso,
com os bens que ele pode comprar, com o status, a bajulação e o poder que ele possibilita.
Seus ídolos são burgueses mercenários e inescrupulosos:
140
(...) perdia-se, por exemplo, de admiração por um criado importante e estúpido, que
enriquecera a emprestar dinheiro a juros.
(...) Se não houvesse imoralidade era uma desgraça para as lojas de comércio – e o
comércio sra Candidinha é o sangue duma nação.
(...) Este homem teve uma larga e nefasta influência na vida da Candidinha. (AF, p.72-
73)
A inveja de Candidinha liga-se aos outros vícios que não pode praticar. O que ela cobiça é
o poder para praticar todos os excessos que quiser: ter dinheiro e poder para liberar sua ira e
oprimir todos aqueles que puder, alimentar sua vaidade com poder e vestidos para ter todos aos
seus pés e, se quiser, praticar a luxúria.
Muitos ricos parecem julgar que os pobres não têm direito a nada, nem aos vícios, porque
não podem pagar, como se percebe nesse trecho em que Felícia diz com severidade a Candidinha:
“pobres não podem ter vícios!...” (AF, p.68) ou em: “a sua felicidade suprema era parecer-se com a
Felícia; ter a corte das outras velhas, andar com um vestido de seda. Havia sobretudo um vestido
de vidrilho que lhe dera noites e noites de cobiça. A Candidinha era afinal uma mulher ávida de
consideração”. (AF, p.71) Mas, ao contrário do que prega Felícia, ainda que os pobres não possam
fazer mais do que sonhar, ainda assim podem ter muitos vícios, tais como a própria luxúria,
praticada pelo Antoninho; ou a avareza, praticadas pela Candidinha. E, ainda que os pobres
sonhem em praticar mais abertamente certos vícios, não se pode afirmar que o fariam ao ter a
oportunidade, que a própria Candidinha quando melhora de situação, enquanto o Antoninho
trabalha na cidade, continua avarenta e esfarrapada, não demonstrando mínimo interesse em ter
mais conforto ou melhorar a aparência naquele momento.
A ira é conseqüência da opressão e da impossibilidade de realizar excessos, de acordo com
o seu desejo. Mas, diante dos que representam a classe dominante, refreia o ódio que manifesta
na solidão, depois de viver uma situação humilhante: “A Candidinha tinha entranhado o hábito
da esmola. depois se enfurecia, mais tarde se enraivava...” (AF, p.74) ou “A cólera ergue-se
dentro em mim e por pouco que não berro: Coitada de quê! Cuspo na vossa piedade! Mas todo
esse jacto que me subia à boca, tinha de recalcá-lo logo escondendo-o” (AF, p.97).
Os que ela consegue arrastar para baixo na hierarquia econômica e social a cega e a Sofia
são usados como válvula de escape para o seu ódio, sua ira reprimida: “seu ódio contra a outra
não tem limites e não necessita contê-lo.” (AF, p.66); “A velha não cessa de pregar (a Sofia):
Ódio! tenho-te ódio!” (AF, p. 87). A ira da candidinha em oposição à passividade da Sofia compõe
mais uma nuance expressionista em claro-escuro da narrativa.
Antoninho também é vítima da ira da mãe, uma vez que esta não lhe deu muitas chances de
escolher seu caminho, incutido e imposto por ela, que o usa como uma espécie de extensão de si
mesma, “segunda vida” em que ela pudesse realizar aquilo que sua acídia lhe impedira na
primeira: “O meu filho alimentei-o com ódio criei-o à custa de desgraça. Preguei-lhe todos os
141
rancores, todos os exasperos, tudo que sofri. Disse-lhe, é certo, que nesta vida só o dinheiro vale, e
que pobres são sempre desprezados e calcados.” (AF, p.96) ou em:
(...) à morte, que ambos sabem ali à espera:
- (...) eu nunca vivi, tu bem sabes... E foi por tua culpa, ouviste, mãe? Tu é que me tens
dito, tens-me pregado sempre, desde pequeno – precisamos de os calcar e de fingir. Devagar
se vai ao longe... foste tu!
E aí começa ela a pregar para o iludir – e para se iludir; (...) a tolhê-lo, encharcando-o
de sonho: a enganar-se e a enganá-lo. (AF, p. 100)
Não é apenas o sonho que alimenta Candidinha, mas, sobretudo, o desejo de desrecalcar
sua ira oculta, gritá-la. A velha alimenta o sonho de ira e este, em contrapartida, como
possibilidade futura, a alimenta:
(...) Vivia em tal atmosfera de ódio e de sonho, que a realidade não existia para ela
senão como um motivo para se exasperar. Escarneciam-na e maltratavam-na. Disso se
sustentava – era o seu amparo.
(...) – Que Deus não me leve sem os ver todos desgraçados!
(...) Alimentava um oceano de ódio (...) (AF, p.71)
Entretanto, como apontara Felícia na narrativa, pobres não podem ter vícios. Por isso,
como ocorre com todos os outros vícios de Candidinha, a ira permanece no âmbito da vontade
reprimida, pois quando, finalmente, resolve materializá-la, ocorre o mesmo que acontecera com a
luxúria sua tentativa é frustrada: “o ódio que se fez sonho, o sonho que se reduziu a pó.” (AF,
p.133)
(...) A Candidinha é inofensiva; (...) uma velha estúpida. Pode rebramir à vontade: não
tem dentes e a gente ri-se-lhe na cara, dos trapos, da figura, do ódio, da ignomínia (...) Seu
desespero é enorme, sua dor atroz. Mas as velhas escancaram-se... Ao que ela chegou!
Chamam-na e dizem-lhe:
- Conta lá o ódio, Candidinha...
E Candidinha, sem nexo, clama obscenidades, injúrias, chufas: as noites de tortura:
como pensou em encher-se de regalo com as dores alheias, em se fartar de catástrofes. (...)
- Coitada! Endoideceu! (AF, p. 136)
Um castigo para Candidinha é continuar viva e forte, mas sem nada, nem seus sonhos, ao
fim da narrativa. Dona somente do seu ódio inútil, pois não é mais capaz de alimentar sequer um
sonho, após a morte de Antoninho, viverá apenas para amargurar e lamentar a desilusão, a perda da
capacidade de sonhar: “Tem os cabelos negros. Não morre. Fita um abismo de ódio inútil. Os anos
passam e ela queda-se a olhar a cara do Destino”. (AF, p.142). A morte de Antoninho constitui um
marco na vida antitética de Candidinha: antes da morte do filho, Candidinha interioriza o ódio e
sonha calada; depois, Candidinha exterioriza inutilmente seu ódio, desacreditada, e não pode
sonhar.
Assim, antes da perda do filho, Candidinha é a própria encarnação do sonho materialista,
do desejo de ter. Mas, como representante da população carente, sofre a interdição e manifesta os
efeitos negativos que este sonho interditado pode causar no ser humano, conduzindo-o para a
142
marginalidade. No caso de Candidinha, é uma marginalidade passiva, ainda que inconformada no
íntimo, ou, quase sempre, inofensiva, mas nem sempre será assim na obra de Brandão. A violência
e a criminalidade geradas pela marginalização dos pobres aparece em outras narrativas
brandonianas, como em Os Pobres.
Esses personagens sombrios da narrativa, sobretudo Candidinha e Antoninho, apresentam
uma sede destrutiva que acaba tornando-se (auto)destrutiva. Concentram-se sempre nas negativas,
nas ausências, nas carências, nas faltas e nas falhas e, não apenas dos outros, mas também as que
eles mesmos carregam. Ao mesmo tempo em que pretendem destruir o outro para se apossarem do
que ele tem e para se tornarem o que o outro é, martirizam-se durante toda a existência pelo que
não possuem e pelo que não são. Com isso, enquanto buscam a aniquilação do outro,
autodestroem-se também.
Antoninho passa por várias fases, até morrer num estágio bem diferente de todos os vividos
anteriormente:
Não, ele nunca realmente se atrevera a viver a vida esplêndida – por timidez e por
medo; nunca se atrevera a pôr em prática o que criara na alma – pelo terror estúpido da
existência. Diante do pélago azul, vivo, cheio de prodígios, o Antoninho deixara-se ficar com
joelheiras nas calças, as mãos húmidas, frio, encolhido de espanto. E agora de golpe, ao pé da
morte, vê de chofre o que perdera. Antes tivesse praticado um crime; antes tivesse
mergulhado a mão no sangue – mas vivido! É agora que adivinha a existência; é agora com a
morte a seu lado, que compreende que não cumpriu o seu destino (...) (AF, p. 101)
Espantado diante da morte, perturbado pela iminência do fim da vida, Antoninho vive um
momento de epifania (ou uma ontofania, tendo em vista o seu caráter ontológico), uma revelação e
um arrependimento, ainda que tardios e estéreis, uma vez que não mais tempo para recuperar
o tempo da existência, que se extingue na morte e que se desperdiçou na vida inautêntica, na
futilidade, na obediência a convenções, na ganância e nas trapaças.
Da mesma forma, acontecerão epifanias ou ontofanias a outros personagens, geralmente
diante da morte ou da ruína, como ocorre com Anacleto, que vai da estabilidade e do materialismo
extremo até o pasmo diante do miserável, a conscientização da miserável condição humana:
“Parece posta (uma pedinte) ali de propósito para ele compreender a vida (...). É um farrapo que se
põe a gemer baixinho (...) O senhor Anacleto que passou a vida a vender caixões para mortos, pela
primeira vez tem a compreensão da desgraça” (AF, p. 44). Comove-se diante da miserável que ele,
de alguma forma, ajudou a explorar e a degradar, mas sente que é tarde demais: “Quer dizer não
sei o que e não pode. Não sabe. A outra espera molhada até aos ossos”, “Não é dinheiro que ela
quer. Agora entende tudo... volta atrás, aperta-a com desespero nos braços, beija-a na testa e foge a
chorar como um doido. agora compreende.” (AF, p. 44). No fragmento, Anacleto tem uma
revelação, “uma manifestação de espanto, de adesão perturbada ao conhecimento, de sentir agudo
de epifania”, “um sinal do insólito e da dor” (SEIXO, 2000, p. 22), que não tem mais motivos para
143
esconder, contra a qual nem forças para lutar, uma vez que a família está perdida, como perdida
está sua estabilidade: mulher (adúltera), filha (bastarda), negócio (falido) e ele mesmo, miserável e
só, como a pedinte, ambos perdidos.
Felícia, a beata radical e repressora, acaba por revoltar-se contra Deus e contra os dogmas
católicos que tanto defende durante a vida: “Felícia interroga-se, debate, esfarrapa-se: Aqui estou
eu ao fim da vida diante da morte e do inferno e só tenho um minuto para me arrepender do que fiz
e do que não fiz. Era meu filho e eu não lhe perdoei. Mas se lhe não perdoei foi por Tua causa,
meu Deus (...) não consigo quebrar esse orgulho” (AF, p. 120, grifos nossos). Impiedosa e
hipócrita, arrepende-se, mas não consegue se redimir; orgulhosa, arruma outro culpado para o erro
que não assume, culpa Deus, mas se martiriza intimamente: “Começara sentindo uma vaga
tristeza, negrume e uma dor persistente na nuca. Deixou de falar, por penitência lambeu o das
igrejas, e uma noite viu o filho a arder nas labaredas eternas.” (AF, p. 120) Ou, antes, ostenta
martírio e até a loucura, fazendo-se de vítima, como sugere o narrador: “E o círculo de seus crimes
duplica sem cessar: ela é a autora de todo o mal que se pratica neste vale de lágrimas” (AF, p.121),
“Vens ver a Felícia que endoideceu?” (AF, p. 134).
O narrador, ao analisar os personagens, chama sempre a atenção para os vícios (“orgulho”),
as simulações (“esfarrapa-se”), os dramas de consciência (“viu o filho a arder nas labaredas
eternas”), contrapondo a intimidade problemática do ser e o exterior; os desejos do sujeito e suas
realizações; para melhor analisar a “condição humana”, o simulacro de sociedade e cada existência
ficcional, o que de autêntico e de inautêntico carrega cada sujeito. Com isso, cada passagem
analisada constitui ou desencadeia uma epifania para o narrador, como esta reflexão sobre a
hipocrisia da Felícia e sua existência inautêntica, privilegiando e seguindo convenções e dogmas
vazios e insignificantes para ela, mas que sobrepõe a tudo, inclusive ao amor e à família. Cada
epifania de um personagem corresponde a uma epifania do narrador, como também cada epifania
que um personagem, em seu dia-a-dia e relações interpessoais, deixa de ter, segundo a reflexão do
narrador, representa uma nova epifania do narrador, como as tantas que a Candidinha ou a Felícia
deixaram de experimentar durante a narrativa, fingindo e prendendo-se a bens materiais e/ou a
convenções vazias, sem perceber a inautenticidade e o mal que praticam involuntariamente contra
si mesmos e voluntariamente contra o outro. Isso aumenta a distância entre esses personagens
sombrios e as três “santas”, e aumenta também a identificação do narrador com as “santas”, que
experimentaram o maior número de epifanias através de martírios; em oposição aos viciosos, que
não têm a mesma oportunidade de experienciar a revelação, ainda que com sua insensibilidade
possibilitem epifanias ao narrador. Assim, é ressaltada a oposição entre os dois grupos e o efeito
claro-escuro que tal contraposição explora.
144
Os personagens surpreendem o tempo inteiro, de maneira que nenhuma fórmula pode haver
para resumir a existência humana, senão talvez a da imprevisibilidade do ser, da inconstância
interior e da transitoriedade, ressaltadas a todo tempo pelo narrador. Contrapondo-se, a todas as
mudanças ocorridas nos personagens anteriores, Belisário não se abala, não se modifica, muito
menos repensa seus princípios em nenhuma etapa de sua vida, nem diante da morte: “Só o
Belisário, porque tem tudo selado e autenticado, olha para a morte e para o Diabo com indiferença:
sente-se seguro neste mundo e no outro” (AF, p. 120).
Num primeiro nível de interpretação, portanto, certo maniqueísmo parece irromper da
narrativa, povoada de figuras sombrias e claras, segundo condicionamentos exteriores. Entretanto,
um mergulho na intimidade dos personagens sombrios, a perceber alguns “produtivos
paradoxos” em suas trajetórias e posturas, que levam o narrador a experimentar epifanias ou
ontofanias, revelações, desvendamentos, adaptações e readaptações de comportamento, que as
conduzem à crescente complicação psicológica, em detrimento da padronização naturalista.
A narrativa rompe definitivamente com o maniqueísmo e o condicionamento naturalista
quando personagens sombrios convertem-se em “santas”, possibilitando a redenção e contrariando
o condicionamento do meio, como ocorre com Sofia, a princípio repugnante, na percepção do
narrador, por seu comportamento de menina mimada e sua ingratidão para com Joana, mas
posteriormente martirizada.
Assim, nas existências sombrias observa-se a fertilidade, ainda que uma fertilidade
negativa e destrutiva, capaz de contaminar o meio e todos ao redor. O vício, uma doença social
endêmica, vai se propagando e contaminando cada vez mais seres, ainda que cada um manifeste o
vício de uma maneira particular, sua. Para além das ontofanias do narrador ao olhar para esses
personagens muitas vezes desprezíveis em suas relações sociais, persiste uma poética da
afetividade, uma certa piedade por causa do desespero por trás de todas as atrocidades cometidas
pelos personagens sombrios, como se observa na epígrafe sobre Antoninho.
Em contraposição às figuras “mariais”, o efeito claro-escuro expressionista se revela na
constituição dos personagens, unidade antitética: hedionda-fértil ou bela-estéril, e na oposição
entre os grupos: hediondas X belas.
4.6.2- Existências claras: ajuda humanitária de Marias estéreis
[Joana] Chorou e morreu. Viu-a infeliz e chorou: lhe podia dar
lágrimas. Viu-a desgraçada e quis sofrer com ela. Se pudesse tomaria para si o
quinhão amargo que lhe coube em sorte. E como lhe dera o leite, o amor e o
bafo – deu-lhe também a vida... não tinha mais que lhe dar. E assim enrodilhada
á porta, com as últimas lágrimas geladas na cara e a trouxinha encostada ao
peito – donde nunca se esgotou a piedade – acaba como um cão fiel.
RAUL BRANDÃO
A Farsa
145
Algumas figuras femininas pobres e martirizadas são focalizadas em A Farsa, na esteira do
paradigma cristão do comportamento feminino: Maria. Uma “imagética mística e pietista” e um
“comunitarismo evangélico” (VIÇOSO, 1999, p. 13) são também observáveis nas relações entre as
três figuras femininas caridosas da narrativa, que suscitam piedade no narrador.
Paralelamente ao caos interior e ao caos social que resulta das relações entre esses
personagens problemáticos. Destacam-se algumas figuras femininas bastante santificadas, na
esteira da Virgem: Joana, Sofia e a Cega são as três “Marias” penitentes e divinizadas da narrativa:
“Já as três mulheres têm o quer que seja de desumano. Parecem deslavadas de lágrimas” (AF,
p.82).
Essas figuras femininas “mariais”, focalizadas com ternura e admiração pelo narrador, são
representantes da ajuda humanitária, da redenção e do “Bem” maniqueísta romântico, mostram-se
estéreis, não se reproduzem e “acabam”, como a Joana, ou tornam-se mito, como as penitentes
Sofia e Cega, raras, talvez porque estejam fadadas à raridade em sociedades modernas, em que a
sobrevivência depende da esperteza e da leviandade.
Joana é obstinada, passa a vida tentando produzir coisas boas, mas recebe apenas coisas
ruins em retribuição e não consegue construir nada. Resignada, mas esperançosa, nunca desiste,
continua amando e fazendo o bem, sem se preocupar consigo mesma, num processo
autodestrutivo. Construtiva para com os outros, mas autodestrutiva. Ao contrário de Candidinha,
destrutiva para os outros, na tentativa de construir para si. Joana e Candidinha, na nulidade final,
são como forças antagônicas, como os pólos que diametralmente se opõem; por isso mesmo
neutralizam suas ações, se confrontadas.
Sofia, desgraçada por sua futilidade e mimo, como se viu, entra numa segunda fase de
penitência purificadora, transfigurando-se gradativamente numa figura “marial”:
Sofia olha transida: nunca vira a desgraça e sente-se palpada por suas mãos de ferro.
Da banalidade, dos hábitos, das palavras sobre palavras inúteis (...) A dor bate-lhe à porta. (...)
Até aí não passara de uma criaturinha inútil: vai agora alguém acompanhá-la até o túmulo.
(...) (AF, p.34)
Como pode observar-se, a dor é posta em relevo pelo narrador, em detrimento de uma
existência fútil e banalizada. Mas não é a dor que amesquinha, apequena e desumaniza o ser, como
ocorre com Candidinha. É a dor que torna o ser mais humano, eliminando os vícios trazidos pela
vontade de obter de dinheiro e poder. O ser humaniza-se nas perdas, a não ser que ele represente
uma farsa, como Candidinha:
(...) Estava em riscos de ser aquela mesma existência estúpida: horas monótonas, a
casa de granito, o Sr. Anacleto, a criada, frases repetidas, a felicidade e o asco. A dor salva-a.
146
Gritar é viver (...) o que há em nosso ser de inútil some-se e a alma engrandece. Só pela dor se
vive (...) (AF, p.34-35)
Sua transfiguração vai ocorrendo rapidamente; as perdas e o sofrimento vão martirizando
Sofia:
E com a bocarra aberta, chega a cara junto à de Sofia, que se ergue num pavor. (...)
Outro grito e Sofia, por entre lágrimas, de súbito erguer-se dum canto uma criatura
amachucada, em quem não fizera reparo e que, de braços estendidos e com o olhar extático,
intercede num arranco (AF, p.34-35)
Sofia serve também de contraponto a Candidinha. A forma de encarar a mesma miséria é
que as distingue. A velha se fixa no sonhar o mundo material, revolta-se e nutre o desejo de
levante e revanche, enquanto a sobrinha transcende o mundo carnal, cresce interior, espiritual e
humanitariamente, como se pode constatar no fragmento a seguir, em que Sofia, depois de amparar
a amiga Cega até a morte, martirizada, resignada, solitária e caridosamente, cava-lhe a sepultura:
(...) Alucinada, cavou-lhe por suas próprias mãos a sepultura dentro da cabana, para a
livrar da chuva, e ela mesma a enterrou (...) dias e dias passou sozinha chorando sobre a terra
revolvida de fresco. Depois, aos soluços e aos gritos, internou-se na serra e nunca mais a
viram (...) (AF, p.145)
Ao contrário da tia, Sofia, como a Cega e a Joana, torna-se um ser humano melhor após o
sofrimento, pelo menos na concepção do narrador, que se comove com seu drama.
A cega também é desgraçada pelo amor de um homem: Antoninho, que até parece gostar
dela, mas não é capaz de vencer a influência daninha da mãe em sua vida.
(...) Tanto chora que pouco a pouco perde a luz dos olhos. Primeiro são os ditos, os
chascos, as palavras más, os repelões. Depois exasperando-se um ao outro, acusam-na pela
sua queda, pelo dinheiro do amante. A Candidinha transtornada ameaça-a e ela, com cabelos
brancos e trêmula, encolhe-se. Não sai da cozinha. Sente um frio interior e acocora-se a um
canto, com os olhos extáticos, banhados de lágrimas (...) não recordam que foram eles que
a impeliram para a infâmia. (...) (AF, p.67)
Após se sujeitar aos desvarios gananciosos de Antoninho, a mulher sofre um processo de
martírio até que, numa passagem bastante romântica “de dor e de expiação” (SEIXO, 2000, p. 24),
o choro excessivo a cega: “A cega habituou-se. Habituou-se à escuridão, a sofrer, a estar sozinha e
calada. Apurou-se-lhe o ouvido e o tacto. Com os olhos fixos no alto” (AF, p.107).
Como Sofia, a Cega passa por expiações, com a perda da luz dos olhos e da alegria, bem
como da motivação para a vida, que conduz à transcendência, simbolizada pelo olhar para o alto
ou para o além. Entra num processo de autoflagelo, de mortificação ou morte em vida. Assim,
também pode ser vista sua cegueira emocional: “Debate-se na treva. É uma alma que se dilacera a
si própria” (AF, p.110); “os olhos brancos (...) Passa assim um mês tem os cabelos todos
brancos” (AF, p.111). Perde a visão do mundo material e ganha luz na alma, visão do íntimo.
O branco, assim como o preto, simboliza os dois extremos da cadeia de cores, ora a
ausência ora a presença de todas as cores (CHEVALIER, 2001, p. 141), como se observou no
147
estudo sobre Os Pobres. Assim, tanto pode simbolizar o nada, o niilismo, a morte iminente, como
o tudo autêntico, que é a interioridade, a espiritualidade, a transcendência, avessas ao materialismo
terreal, ao qual se prende Candidinha. Mais uma pintura do pesadelo, reforçando a tese do
expressionismo de Brandão.
Um paralelo entre a intimidade da Cega e a de Candidinha mostra que esta usou seu
sofrimento negativamente, transformando seu íntimo em um reservatório de lava incandescente,
que se revolve e aguarda o melhor momento para evadir e destruir tudo ao seu redor. Tanto um
quanto outro alimentam e também destroem o sujeito que os nutre. Em oposição, a Cega canaliza
seu sofrimento positivamente, transformando-o em húmus, que origem a bons sentimentos e ao
crescimento espiritual, como aconteceu também com Sofia. Encontra na morte o descanso final,
como prêmio pelo martírio, o que, para Candidinha, é impossível:
(...) um raio de luz que fosse para que ela pudesse ver o fantasma que a atormenta!
A Cega vê, advinha a morte (...) gritar para quê? emparedada naquele túmulo eterno? E
suspira baixinho – Ai!... (AF, p.110)
Sofia também não morre, mas recebe dádiva maior, uma espécie de beatificação através do
mito, juntamente com a Cega:
(...) O povo daqueles lugares como tornasse a primavera sem avistar as santas, foi
acima e só encontrou a cabana tosca, o lume apagado, cinzas e uma pouca de terra.
Fez-se a lenda. Começou a rezar-se de milagres (...) afizeram-se a vir ajoelhar nas
aflições a pedir às santas que lhes valessem. (AF, p. 145)
A morte de Joana neutraliza, inutiliza, anula sua existência, como se viu, mas sua missão
sobrevive em Sofia e na Cega, continuadoras de seus “votos”, de sua filosofia de vida. E até no
mito final das duas penitentes, Joana está representada através da cabana que abriga a fonte e o
corpo da cega: “O tecto abandonado de Joana serviu ainda para as cobrir”. (AF, p. 144). Essa
“fonte das suas lágrimas de dor”, segundo Seixo, remete para “a simbologia radiosa e purificadora
da água e da luz” (SEIXO, 2000, p. 20), recorrente na obra de Brandão.
Algumas figuras femininas em Raul Brandão aparecem como figuras redentoras, capazes
de tornar a sociedade menos individualista, mais comunitária, como é o caso de Joana e depois de
Sofia, demonstrando uma força positiva que vem do amor desinteressado, que seria construtiva se
a sociedade não a esterilizasse nem matasse. A morte das duas penitentes de A Farsa é associada
ao apagamento da luz da esperança, mas o nascimento do mito pode ser lido como o reacender do
lume ou, por outro lado, como a impossibilidade definitiva de esse lume, essa salvação atingir o
nível factual.
A abnegação ou a miséria material parece desconectar os seres da carnalidade (e
conseqüentemente do materialismo) e despertar o sagrado (“enlevados”) de dentro deles ou
reconectá-los a um sagrado telúrico e/ou cósmico (“uma claridade”), como se pode observar nesse
148
fragmento que se segue ao enforcamento dos “dois mendigos amorosos” do conto: “A árvore onde
os dois haviam sido enforcados, mal se distinguia no escuro; mas de vinha um frêmito, a sua
agonia talvez, e uma claridade, os seus corpos decerto. (...) Toda terra parece fermentar”.
As figuras “mariais” caminham de existências independentes para a unidade, de modo que,
ao fim da narrativa, Joana, a Cega e Sofia tornam-se uma, apesar de suas mortes distintas.
(...) me contaram essa história de duas santas...
(...) Parecia que tudo lhes era indiferente. A gente habitua-se até às lágrimas. Pediam
esmola, a Cega, hirta e extática, Sofia esfarrapada e descalça. Não falavam uma com a outra –
porque já não tinham que dizer.
(...) decerto chegaram a perder a noção do tempo: eram quase irmãs da penedia
tumultuária do monte e dos troncos seculares.(...) (AF, p. 144-145)
Abnegação, caridade, amor ao próximo, sofrimento e simplicidade são marcas comuns às
três mulheres:
(...) as duas, uma em frente à outra, esvaídas, enregeladas ambas pelo mesmo frio,
se parecem. A desgraça iguala. (p.89);
(...) sua vida era tão simples, que um mendigo julgar-se-ia rico a seu lado. Eram
ambas felizes – talvez pela primeira vez na sua vida. (p. 145);
(...) De outra vez recolheu na cabana uma rapariga, que o pai, ao vê-la grávida,
expulsara de casa (...) Recolheu-a, agasalhou-a, e como estivesse gelada como as pedras,
dormiu com ela para a aquecer sob a mesma manta no frio. A Joana nunca amamentara filhos
mas a piedade é leite que não seca. Naquela alma espessa de trevas a humildade e a ternura
nasciam como a água nasce nas rochas. Por isso a comparo com a serra, e nem dela posso
separar esta imagem: a mesma aspereza, a mesma emoção que bole no coração dos fraguedos
escuros. (p. 81-82)
Nos fragmentos acima, observa-se claramente uma tendência do narrador para apiedar-se
diante da situação dessas mulheres e diante do seu “comunitarismo evangélico” (VIÇOSO, 1999,
p.13), do agrupamento solidário e (re)humanizador ou revitalizador do humano, tão raro na obra.
Poderiam mesmo aproximar-se de Maria, mas dela distanciam-se porque: 1º) as três são
incapazes para conceber filhos; 2º) são figuras grotescas: esfarrapadas, desajeitadas e feias até a
cega, em princípio bela, tem sua aparência lentamente “degenerada” pelo sofrimento, fatos que as
tornam até mais penitentes do que a santa: “A menina lembra quando fazia escárnio de mim por eu
ser feia? Mas eu não me importo... Aqui me tem ao seu lado, sou tão sua amiga!...” (AF, p. 89);
“Pareciam velhas ambas (Sofia e a cega), e ambas se tinham posto grosseiras e feias dessa
fealdade áspera e negra da gente bruta da serra” (AF, p. 145).
(...) Grandeza e fealdade: monótona, esfarrapada e denegrida como os montes, humilde
e imensa (...) calada e rústica, vestida de estamenha escura, os braços cascosos, as mãos
grosseiras de cavar e os olhos duma tristeza quase desumana! Dentro dessa fealdade havia
uma ternura inesgotável (...) bondade (...) sacrifício e piedade. (AF, p.82)
Ambas, a Sofia e a Cega são desgraçadas, mas resignadas e capazes de serem felizes a
partir das coisas escassas e simples que obtêm: “sua vida era tão simples, que um mendigo julgar-
se-ia rico a seu lado. Eram ambas felizes – talvez pela primeira vez na vida” (AF, p.145).
149
As três não sonham, nem com filhos. No caso de Joana, não os ter é o motivo de sua
frustração. Satisfaz-se em cuidar dos filhos dos outros, em viver sua vida medíocre, ser humilhada,
dar amor em troca de desprezo. Sofia e a Cega contentam-se em ter uma à outra.
Até a errância da mãe de Cristo, judia fugitiva, aparece nessas três mulheres. Joana sai da
serra moça para trabalhar na vila e segue a vida de casa em casa, de emprego em emprego e, mais
tarde, atrás de Sofia. A cega e Sofia vagam por causa do desamparo, da miséria: “Foi com lágrimas
que se arrancou à serra para ir servir na vila (...) Até a serra a enjeitava!” (AF, p.82); “Ninguém
sabe a sua vida. Apareceram um dia na serra, uma cega, extática, rota, a outra alta, magra,
guiando-a, como expulsas do mundo. Tinham decerto sofrido muito” (AF, p. 144); “Aos tropeços,
sequiosa de dor, a Joana resolve-se a ir de novo procurar Sofia. Não pode passar sem ela. Por que
eu não fui sua mãe?” (AF, p.88).
Elas são a luz, no efeito claro-escuro da obra, cuidado, calor, fonte infinita de energia e
bons sentimentos, esperança de uma humanidade menos cruel e mais caridosa. Mas, são estéreis,
resignadas, submissas e incapazes de transpor a barreira da dominação: vem uma luzinha no
monte! Tudo negro eaquela faúlha luta contra a ventania e a escuridão cerrada (...)na sua
alma um pensamento obstinado a menina que ajudou a criar” (AF, p.113); “Aperta-a nos braços,
de encontro ao peito, mistura as suas lágrimas com as de Sofia. Não se farta de sofrer. Tem assim
andado pelo mundo de aflição em aflição” (AF, p.89);
A esterilidade dessas figuras aponta para sua gradativa extinção e, em conseqüência, para a
condenação da humanidade à abominação, ao desamor, ao individualismo e ao egoísmo. Percebe-
se nessas três aproximação do mito cristão da trindade (Pai, Filho e Espírito Santo), numa versão
feminina: Mãe, Filha e Cega, mártires da causa humanitária e da redenção.
Assim, as figuras “mariais” remetem à simbologia da anima, essência feminina residente
no inconsciente dos seres humanos, não desenvolvida em certas figuras femininas, como a
Candidinha, regida pelo animus, e desenvolvida em certas figuras masculinas, como o Gebo, de
Os Pobres. Enquanto o animus, essência masculina belicosa e destrutiva, rege o mundo dos
negócios e do capital, pautado nas desigualdades sociais, a anima, face atraente e unitiva dos seres
(CHEVALIER, 2001, p. 421), é o lado feminino, caridoso, construtivo, que precisa ser resgatado
para redimir a humanidade materialista, cada vez mais privada do “ser” e do “humano” em prol do
ter desumano.
Joana, Sofia e a Cega são os exemplos encontrados na narrativa de abnegação, desapego
material e redenção, que significa “resgate, expiação, libertação, reabilitação, purificação”
(FERREIRA, 1999, p. 634). Para tanto, manifestam a inversão dos pecados capitais em seus gestos
e atos. Elas constituem-se em símbolos de humanidade e de convivência comunitária, ainda que
utópica, numa espécie de contraponto à Candidinha, símbolo dos pecados capitais.
150
Joana encarna a ação humanitária, por sua condição de trabalhadora missionária, enquanto
Sofia e a Cega encarnam mais a redenção por suas condições de imobilidade e transcendência,
respectivamente, tipos de personagem redentor, segundo Seixo (2000, p. 20).
Em lugar da luxúria, encontra-se nas três uma assexualidade e infertilidade, que ambas
tiveram maridos, mas não filhos – Sofia até engravidou, mas não teve o bebê.
Joana manifesta um incomensurável instinto materno, que a faz proteger, adotar e adorar os
filhos dos outros. Cria Sofia e considera-a como filha, protegendo-a até a morte e morrendo por
ela: “Tudo negro como a pez e aquela faúlha luta contra a ventania e a escuridão cerrada (...)
há na sua alma um pensamento obstinado – a menina que ajudou a criar...” (AF, p. 113) Como mãe
de criação, demonstra ser muito melhor mãe do que Candidinha, que esta cria o filho com (e
para) o egoísta e mesquinho intento de enriquecimento e vingança, enquanto aquela cria Sofia com
(e por) puro amor.
A acídia de Candidinha dá lugar ao trabalho caridoso de Joana:
Não passa, é certo, duma criada, duma pobre sem lar. Andou sempre de casa em casa,
vestida de grossa lã e com as pernas cascosas à mostra: de seus olhos pequeninos transborda a
piedade. Afeiçoa-se, põem-na na rua. E ela vai para outra casa, calada e humilde. Nunca
teve filhos e por isso mesmo é sestro não encontra uma criança que se não deite a amá-la
patrões que a maltratam, vendo-a, velha e desleixada, apegar-se-lhes aos filhos e beijá-los.
Ninguém faz caso de Joana. Há quantos anos ela anda assim de lar em lar, de casa em casa, de
dor em dor! Sorri desdentada até para os pequeninos que encontra ao abandono na rua. (AF, p.
22)
Na cega e em Sofia, a imobilidade inconformada e revoltada de Candidinha (acídia)
lugar a uma interiorização e a uma transcendência, desprendidas do plano terreal e religadas ao
sagrado, constituindo-se no que Vítor Viçoso chamou de “tendência mítico-poética” ou “a vaga
aspiração a uma renovada religiosidade e a uma encarnação dos vetores de uma poeticidade
encantatória, feita de despojamento e nostalgia” (VIÇOSO, 2000, p. 39-4 e p. 47).
A vaidade e a soberba de Candidinha dão lugar à humilhação resignada e redentora e à
humildade autêntica das três, bem como ao amor ao próximo. A caridade de Joana e a parceria
terna com Sofia e a Cega substituem a avareza e egoísmo de Candidinha. A inveja é neutralizada
nas três pela ausência de pretensões futuras, pelo apego ao humano, em detrimento do material.
(...) Estão ali à volta dum tronco em brasa, bem palpados pelo infortúnio, três velhos –
um cavador, uma mulher, um pedinte das estradas: está ali também junto ao coração da serra,
abrigada pela pedra e o colmo – inesgotável piedade. Todos em volta do lume comem o pão
negro. Chegam-se mais uns para os outros: é que vão chorar. (...) (AF, p.85)
Joana divide o pouco pão duro que tem com a família e com os desafortunados que batem à
sua porta, em oposição à gula de Candidinha, que faz a cega e Sofia jejuarem: “(...) E lá parte outra
do corredor para a cozinha a rir-se. Silêncio e uma gargalhada. Silêncio e as duas mulheres
151
transidas e quietas (...) interrompida de quando em quando por um riso baixinho de gula ou por
uma risada de escárnio.” (AF, p. 87)
Assim, a inveja, na Candidinha, contrapõe-se, em Joana, em Sofia e a na Cega, ao impulso
de ajudar o próximo, que é visto por estas não como rival (possuidor daquilo que não possuo e
desejo possuir), mas como quem precisa de algo que se lhe pode doar, pelo bem comum.
A ira aparece em Joana, mas é aquela ira chamada por São Tomás de Aquino de “impulso
vital para a busca de um bem” (LAUAND, 2001), segundo Jean Lauand. Joana afronta
Candidinha, mas para acalentar e confortar Sofia, amenizando o mal provocado pela outra.
(...) (Candidinha) Avança. Chega as mãos à cara de Sofia:
- Ninguém te arranca das minhas mãos!
A Joana não pode. Ergue-se à outra. Mergulharam-na em dor e tiram-na para fora a
tressuar de agonia.
- Acudam! Acudam!
A velha dirige-se-lhe, deita-lhe as mãos ao pescoço e larga-a desamparada sobre a arca.
(...) (AF, p.93)
Assim, Joana e Candidinha representam dois tipos opostos de miséria: a segunda negativa e
destrutiva e a primeira positiva e construtiva (ajuda humanitária), apesar de ambas terminarem
trágica e inutilmente. A Cega e Sofia representam a miséria redentora. Logo, a tríade representa a
natureza e a serra, com sua simplicidade natural e resignação, enquanto Candidinha representa a
vila, com todos os seus pecados e injustiças sociais.
Paralelamente aos personagens sombrios na narrativa, destrutivos e autodestrutivos, os
personagens “mariais” tentam promover um processo mais construtivo e positivo de alteridade,
mas são aniquilados. Parecem abdicar de si mesmas, anulando-se voluntariamente e não
atrapalhadamente como os sombrios, de forma que, ao ajudar o outro, concentram-se nele e se
exilam ou esquecem de si mesmas. Mostram-se tão autodestrutivos como os anteriores, com a
diferença de ser a auto-aniquilação voluntária nos personagens “mariais”, enquanto nos sombrios é
involuntária e indesejada.
Assim, cada uma das “Marias” tem um início e um fim distintos, mas em comum uma
trajetória de expiação terrena, excesso de bons sentimentos, santificação e também a esterilidade
(sem filhos, sem sonhos, sem vida). Ambas demonstram-se fecundas apenas para o outro: Joana
para o semelhante; Sofia e a Cega para a outra vida, a transcendente, pós-morte. São contrárias à
Candidinha, fecunda para esta vida, tanto em filhos como em desejos e vícios, mas estéril para a
vida espiritual e para seu semelhante.
Heroínas, então? Se se pudesse chamar de heroínas três mulheres mesquinhas, que
fracassaram em tudo o que empreenderam em suas vidas ficcionais, sucumbindo pateticamente à
hostilidade, ainda que postumamente santificadas, como uma espécie de versão plebéia, decadente
e patética do “herói trágico elevado” (KOTHE, 1987). Se protagonizassem um romance romântico,
152
em outro contexto, numa trama diferente, a resposta talvez pudesse ser sim; mas onde se
encontram, definitivamente não. Talvez estejam mais para mártires de uma causa (sempre) perdida
no plano terreno ou para quixotescos “cavaleiros andantes” em demanda de um “santo graal”
espiritual, numa triste constatação de que qualquer martirização (romântica, medieval ou clássica)
por um ideal é estéril e incapaz de empreender uma transformação significativa no seio de uma
vila aviltada, provinciana, votada à mesquinharia, como esta da ficção, ainda que cause admiração
em alguns ou que desperte a comoção de muitos. Nem das trágicas heroínas possíveis da
modernidade tardia, em agônico embate com o meio, poderiam ser aproximadas, pelo tanto de
santificação que trazem, oníricas.
Mais uma vez o grito contido desses personagens desesperados: a Cega, Sofia e a Joana,
“ávida por socorrer sua menina”, mas impotentes, remete para a tela expressionista de Munch.
4.7- Considerações Finais sobre A Farsa: por trás das personas brandonianas, niilismo
Há uma posição inquietante. De pôr em causa e não tirar conclusões, como
quem diz: chegamos aqui. A esta barafunda. E agora, o que é que tudo isto
significa? E a visão que se tem é negra. É violenta. É composta de pinceladas.
De gentes pequenas, de gestos pequenos, de pormenores tão ocultos e cotidianos
que não constam sequer nos acontecimentos dos jornais. De acontecimentos tão
próximos de nós que não os conseguimos ver com nitidez. MANUEL CINTRA
Prefácio de A Farsa
O desencanto é corrente no final do século XIX. Entre os traços decadentes de Brandão,
está a sensibilidade para a crise da civilização, o materialismo, a miséria e as convenções sociais
que aprisionam e amesquinham os seres, a existência e a arte. N’A Farsa, como em toda a obra de
Brandão, é patente o niilismo. Isto se deve, segundo Jorge Peixoto Coutinho, em seu artigo Raul
Brandão: entre absurdidade e sentido, ao esvaziamento da “fé religiosa tradicional”, “posta sob
suspeita pelos mestres (Kierkgaard, Freud, Tolstoi e Dostoievski), e tornada por Nietzsche
incoerente e inconsistente”, o que faz com que “o horizonte da existência se torne fechado”. Em
face disso, “a da Igreja é posta entre parêntesis” por Raul Brandão, que “substitui o ponto final
da dogmática pelas reticências da suspensão”, “condição e princípio de uma renovada procura
da razoabilidade”. Desta forma, o pensamento de Brandão oscila entre crença e descrença na
existência dum Deus, representado de maneira “intuitiva e instintiva na voz da terra”
(COUTINHO, 2000, p. 94-95).
Do esvaziamento da religiosa tradicional e da impossibilidade de salvadores e/ou de
heróis, surge o niilismo finissecular de Raul Brandão, conseqüência da apocalíptica “destruição da
ordem do sentido político, histórico e metafísico” (BAUDRILLARD, p. 195-196), segundo
Baudrillard, “diferente da forma estética de niilismo romântico (dandismo)” antecessora e do
posterior niilismo pós-moderno desértico, aleatório, indiferente e neutro. Por outro lado, dessa
153
suspensão e procura de razoabilidade, surge a indagação, a especulação metafísica e telúrica,
interessada na intimidade complexa por trás das aparências.
Na exterioridade, a persona, “máscara em grego”, que originou as palavras pessoa e
personagem. No teatro grego, nas tragédias e comédias, persona era “a máscara que servia para dar
aos actores [o seu] personagem”, “as máscaras eram tipificadas” e escondiam sua verdadeira face.
“Na literatura em geral, a máscara é usada como símbolo da assumpção duma identidade diferente
da original ou como símbolo do esconder dessa mesma identidade” (NEVES, 2005). Em A Farsa,
obra atravessada pelo drama, pelo fingimento, com tons tragicômicos ou patéticos, os personagens
interpretam papéis no convívio social, fingindo máscaras que ocultam seus desejos, sonhos,
aflições, interiorizados e mais complexos do que o que transparece.
Ao devassar o íntimo dos personagens da narrativa, por trás de suas personas ostentadas
socialmente, o narrador acaba desvelando um pouco de si próprio, sem fazer questão de ocultar ou
negar este fato. O narrador abre ao leitor sua intimidade problemática como se, num divã,
autorizasse o leitor a analisá-lo, após ter aberto várias direções de desvendamento para alguns
personagens, símbolos dos próprios problemas existenciais do narrador e da Humanidade: “Não!
Essa mulher apupada não é a Candidinha, é o meu sonho (...) Uma vida inteira passada a sonhar e
no fim encontra-se a gente com o sonho derrocado!” (AF, p.140)
Revela algumas frustrações e dramas de consciência, uns mais explícitos, confessados com
todas as letras: “Também o meu sonho foi belo e alto, como um mármore também o meu sonho
caiu por terra escarnecido” (AF, p. 140). Entretanto, por mais explícita que seja sua confissão, não
se pode esquecer que se mistura à ficção; logo, não corresponde à integridade dos fatos. Ainda
mais seguindo uma das idéias basilares da narrativa, a de que toda realidade é composta por
máscaras e fachadas, que ocultam o verdadeiro íntimo dos seres e ocorrências.
Paralelamente aos frustres “sonhos materialistas” dos personagens pobres da obra, irrompe
nas memórias e nas outras obras certo remorso de Brandão por levar uma confortável vida
burguesa, num mundo com legiões de miseráveis, explorados e excluídos, desprovidos de poder
aquisitivo mínimo. Miseráveis como Joana, que trabalham incansavelmente por migalhas,
enquanto a bonança, a comodidade e a futilidade serão desfrutadas pela classe burguesa, da qual
não se pode retirar o eu-autor, mas apenas se envergonhar e criticar melancolicamente seu lar
confortável.
O fato de o sonho, tão ligado ao sagrado, estar contaminado pelo materialismo, aponta para
a esterilidade e neutralização do seu sentido primevo, a sua dessacralização. Paralelamente,
observa-se a crescente contaminação de todos os elementos sagrados pelo materialismo: a religião,
o ser humano e a família, o que provoca o desencanto do narrador.
154
Nota-se que A Farsa configura-se como um labirinto, por onde personagens caminham
desordenada e descompassadamente, mas ao fim chegarão ao mesmo lugar, à morte. Isso torna a
imobilidade a melhor opção. De que vale se expor ao erro ou ao acerto, preocupar-se com
comportamentos e valores, se todos caminham para a morte que os anula? Se o nada é a conclusão
de todo o ser, se a morte iguala todas as trajetórias, todos os seres, todas as ações, então anula
também todos os movimentos, todos os quereres, tudo é inútil, tudo é igual a nada.
Assim, no cerne de todas as coisas encontra-se o vazio, de onde estas vieram e para onde se
encaminham. Da mesma maneira, no íntimo do eu-autor, localiza-se um vazio existencial que o
desmotiva ou, ainda, vários vazios soluções inexistentes para questões tantas vezes indagadas
ao longo da História da Humanidade, mas jamais respondidas a contento ou definitivamente,
como: de onde venho? Para onde vou? Por que e para que existo? uma essência primordial ou
ideal? Por que o lado negativo e destrutivo do Homem anula essa essência ideal e pura? Por que
muitos seres se prendem a convenções, levando uma vida inautêntica? Por que todas as soluções
idealizadas para a Humanidade acabam desaguando no ponto zero, retornando ao caos da partida?
O sentimento de inutilidade do viver perpassa a construção de cada personagem. A trilha de
vida traçada por cada um vai se auto-invalidando com o tempo, numa amarga inversão dos versos
que Pessoa escreveu mais tarde: Nada vale a pena se a alma é pequena.
O cenário de A Farsa, como acontece também em telas expressionistas, é colorido com as
tintas da emoção, de forma que cada pincelada é uma reação subjetiva ao convencionalismo. O
espaço social árido, hostil, degradado e degradante e os personagens que nele circulam, viciosos,
abomináveis e decadentes, encaminhando-se para a morte inexorável, compõem um novo
Apocalipse, mas o castigo infernal se dá ainda em vida.
Os personagens dividem-se em dois grupos, de um lado os materialistas desalmados e, de
outro, as três afetuosas desapegadas da materialidade e da carne. Não um meio termo e nem
uma figura intelectual, nenhum artista. Esse fato exagera e intensifica o esmagamento do pobre, na
obra ficcional, e a carência da afetividade, da caridade, do amor (ao próximo), da humanidade, em
prol da exploração, da usurpação, da humilhação, da perversidade, da crueldade e da futilidade,
que desumanizam o ser e pervertem a condição humana e a existência. Quase todos estão ocupados
demais consigo mesmos e com suas próprias mesquinharias e, por isso, não notam o próximo,
senão para usá-lo, ludibriá-lo, invejá-lo, odiá-lo, golpeá-lo, explorá-lo e humilhá-lo, com raras
exceções.
O comportamento “marial” é o claro contraponto às figuras viciosas sombrias, nuances do
claro-escuro pesadelo terreal, que representam formas do sofrimento existencial e desaguam na
morte, que anula a todos; por isso, ambos comovem o narrador. A miséria é geral, entre cenários,
ambientes, personagens pobres ou ricos, tudo e todos são afetados pela desgraça humana material e
155
existencial, miséria moral, afetiva e financeira se abatem sobre cada personagem: pobre ou rico,
claro ou sombrio, dominador ou dominado. Desta forma, o que se prega, sobretudo, é a
imobilidade, que faz com que as pessoas percam o menos possível. Seja para o “Bem”, seja para o
“Mal”, ou ainda para ambos este último posicionamento mais em conformidade com a natureza
humana –, viver é sempre um desperdício de tempo e de vigor, já que não conduz a nada.
Se as respostas para a existência humana encontram-se após a extinção desta mesma
existência, então viver será sempre ininteligível para o ser e, por isso, um despropósito
desnecessário, ilógico, porque fadado à anulação ou aniquilação final, a morte.
A preocupação de focalizar comovidamente a turba de miseráveis, sem esquecer do caos
interior, demonstra a tentativa de uma focalização integral do Homem e seus problemas, sem se
comprometer a formular respostas ou a buscar soluções. Assim, A Farsa explora uma gama de
recursos, estilos, temáticas e áreas do conhecimento humano distintas, problematizando e
contrapondo o exterior e o íntimo, as existências e a sociedade, sistemas e valores, paradigmas e
comportamentos, o eu e o outro, o espaço e o tempo, a vida e a morte, a espiritualidade e a
materialidade, a sanidade e a loucura, a realidade e a mentira, a fantasia, o sonho e o delírio, em
nuances de claro-escuro expressionista.
Tanta crítica e tanta reflexão, entretanto, não conduzem à busca de transformação, mas, ao
contrário, para uma amargurada sentença de morte à esperança e à ação, decretada pela natureza
corruptora e destrutiva do Homem, que transforma a existência um pesadelo.
156
5- DO HÚMUS AO HÚMUS: DESGRAÇADOS ENTRE RUÍNAS E O PARADOXO DA
EXISTÊNCIA OU SER PARA NÃO SER
5.1- Os fragmentos do diário e o romance em fragmentos:
O tabique caiu, e contemplo a vida. Mas entre mim e mim interpõe-se
um muro. O drama não tem personagens nem gestos, nem regras, nem leis. Não
tem acção. Passa-se no silêncio, despercebido, entre mim e mim. É um debate
perpétuo. RAUL BRANDÃO
Húmus
Húmus é, no dizer de Reynaud, “um livro que se subleva contra a estrutura do romance
tradicional, introduzindo processos inovadores que o projetam muito para além do horizonte
estético do seu tempo”, prova da “vocação expressionista e antinaturalista de Raul Brandão”. Não
“por insuficiência de dotes para a construção romanesca”, como afirma João Pedro de Andrade
(2002, p. 159), mas consciente e voluntariamente esta obra “subverte as categorias genológicas,
desvalorizando os elementos convencionais da narrativa e antecipando as experiências mais
inovadoras no âmbito da narrativa contemporânea” (REYNAUD, 2000, p. 11 e 405).
A experiência estética radicalmente inovadora de Húmus, sem dúvida, consiste no ponto
culminante de uma jornada subversiva ao cânone, iniciada muito antes, em obras como Os Pobres
e A Farsa, narrativas marcadas pela interpenetração de gêneros e de estilos, que apresentam traços
novelísticos, romanescos e dramáticos, em que o trágico, o cômico, o patético, o burlesco e até o
lírico se interpenetram, numa prosa extremamente poética. Aliás, o “desejo ardente de exprimir e
criar fora dos cânones formais” é tendência corrente entre os expressionistas, como observa
Furness (1990, p. 35).
Raul Brandão reformula e reinventa o gênero romance e a escrita romanesca, propondo
uma (re)estruturação, que nem é definitiva, mas apenas uma possibilidade, que tem três versões.
Subverte, num diálogo intratextual, personagens de suas próprias narrativas anteriores, cujos
nomes são retomados em Húmus não para dar uma simples e mera continuidade, mas para alterar o
gênio. É o caso das contrastantes “Joanas” de A Farsa e de Húmus: afetuosa, maternal e estéril em
A Farsa; e sombria, em certos aspectos, em Húmus, que é negligente e omissa em relação à
filha, tiranizada por bandidos. Ambas são pintadas em nuances de “claro-escuro pesadelo”, mas a
Joana de A Farsa é composta de pinceladas mais claras, enquanto a de Húmus é mais sombria.
A obra não se compõe de uma única trama coesa, mas de fragmentos de tramas que se
justapõem anacronicamente, subordinadas, quase sempre, às incontidas e penetrantes reflexões do
narrador sobre a existência, sobre as relações sociais, interpessoais travadas na narrativa, sobre as
relações entre os personagens, sobre as figuras e sobre a morte. Húmus é marcado por um
complexo “cronótopo” (FERNANDES, 2005), binômio tempo-espaço.
157
Em Húmus, o “tempo individual” é estático e arrastado e o cíclico “tempo cósmico”
(COELHO, 1976-a, p. 222) “fica diluído no espaço” (MACHADO, 1990) e é repetitivo e
devorador, pois gasta as figuras, acelerando a morte. O húmus, representante maior do espaço
físico, mantenedor da Natureza e do ciclo da vida, é mais forte do que as apagadas e abúlicas
figuras que povoam a diegese. O húmus é devorador e progenitor, que germina vidas, sustenta-
as e se sustenta a partir de mortes. O tempo, por sua vez, é arrastado e/ou imóvel, parado e
repetitivo no interminável jogo de baralho, na mesmice da vila, das vidas e dos personagens,
duplos de outras “vidas”, em parte repetidas por causa dos paradigmas sociais que moldam
comportamentos repetitivos e, em parte, pela abulia e pelo individualismo dos personagens,
petrificados como o tempo. O espaço social e o tempo individual se mostram, portanto,
petrificados pelo marasmo em Húmus. Essas figuras, ou as esporádicas e soltas referências a elas
que compõem a fragmentária diegese, não podem ser analisadas como personagens
(ortodoxamente concebidos), justamente por nelas faltar a unidade, que em nada prejudica a
coerência, a verossimilhança interna e a profundidade da narrativa. A coerência e a profundidade
das figuras e do projeto estético da obra ganham vulto nas reflexões do narrador.
Para Pedro Eiras, em Húmus e o binômio: fragmentação do mundo”, a fragmentação da
obra não constitui uma “ausência de unidade reconhecível semântica ou formal”, “como propunha
a crítica comparando Húmus com o cânone realista”; mas são “esses aspectos criticados em
Brandão que constituem sua modernidade” e mesmo seu “proto-pós-modernismo”, através da
recusa de um modelo aristotélico-hegeliano de totalidade semântico-pragmática.” (EIRAS, 2005,
p. 75-78)
A profunda sensibilização pelos dramas dos desfavorecidos, dos explorados e dos
humilhados permanece nessa obra de Brandão, mas os personagens, às vezes caricaturais ou
tipificados em obras anteriores dão lugar, em Húmus, a figuras, que vão se sucedendo sem
preocupação com uma trama coesa e seqüencial ou com uma distribuição tradicional de papéis.
Figuras e não personagens aparecem na obra, as quais não se sujeitariam a uma rotulação
canônica ou ao que bem mais tarde Alain Robbe-Grillet chama de “esquemas tranqüilizadores e
ao mesmo tempo desesperantes – que tentam limitar os danos e atribuir uma ordem convencional à
nossa existência, a nossas paixões”, mas se justificam perfeitamente no incontestável fato de
“todos os dias encontrarmos pessoas cujo nome ignoramos e de podermos falar toda uma noite
com um desconhecido, quando na verdade não prestamos nenhuma atenção às apresentações feitas
pela dona da casa” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 93). Entre as figuras não protagonistas ou
antagonistas. As figuras não desempenham funções diegéticas tradicionais, como também não
evoluem dentro da trama. Aliás, a negação ao trabalho com o personagem e com qualquer outro
158
elemento estrutural ou categoria tradicional da narração é explícita de forma metaficcional na
própria obra, como se observa na epígrafe.
As figuras são mesquinhas e grotescas, nenhuma se destaca mais do que as outras e
nenhuma tem a relevância e a posição de destaque dada ao húmus. As figuras são desumanas ou
desumanizadas:
Se momento em que o caixão que um galego leva às costas me chama à realidade,
ao espanto, desvio logo o olhar e reentro à pressa na vida comezinha. Finjo que sorrio e
esqueço. Mas sempre não posso! Ano atrás de ano não posso! Não mais nada! Não
mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a espaço caem como
gotas de água no fundo dum subterrâneo. Outro ano ainda! Outro passo ainda para a morte!
Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é menos uma hora na minha
vida. E o tempo foge (...) (H, p. 64, grifos nossos)
Brandão chama de figura, portanto, esta deterioração do personagem tradicional,
experimentada em sua narrativa, na esteira dum Dostoievski, antecipando um dos diferenciadores
do noveau roman:
O romance dos últimos anos do século XIX e das primeiras décadas do século XX
herdou e desenvolveu a lição dostoievskiana. De Bourget a Musil e de Virginia Woolf a
Habermann Broch, esse romance não apresenta apenas personagens complicadas,
contraditórias, difíceis de apreender em fórmula ou de explicar linearmente por um esquema
de teor causalista, não se limita tão-só a devassar as profundezas e os recessos da
interioridade humana (o que, com técnicas diversas, tinham realizado muitos romancistas
anteriores): cria personagens como que descentralizadas, destituídas de coerência ética e
psicológica, instáveis e indeterminadas.
O noveau roman conduz ao seu grau extremo este processo de deterioração da
personagem. (...) A personagem vai perdendo tudo o que a identificava, lhe conferia solidez e
relevo: a genealogia, a crônica familiar, a fisionomia, a idiossincrasia bem definida...
(AGUIAR e SILVA, 1976, p. 279)
Se, por um lado, tais figuras são cada vez menos relevantes em face do espaço circundante
e do tempo devorador, diluindo-se a trama e o enredo; por outro lado, nem todas são superficiais
ou planas, como se poderia esperar, algumas ganham complexidade, na medida em que assumem o
papel de narrador de algum capítulo, não apenas servindo de ponto de partida para as digressivas
reflexões filosóficas e existenciais de um mundividente narrador, sem dúvida o elemento mais
importante da narrativa, acima do espaço-tempo, ou melhor, focalizando-o, problematizando-o e
usando-o como mote para suas especulações sobre a situação dos humildes e a condição humana,
verdadeiros gritos de pasmo ou de pavor, como na tela de Munch: O Grito (Anexo 1). Aliás, a
palavra grito aparece reiteradas vezes na narrativa, como acontece também em Os Pobres. O grito
sai não apenas da boca do narrador, mas de muitas bocas, de vivos e de mortos ou de mortos-vivos,
constituindo um coral de dor e de horror: “É um grito são muitos gritos. É o grito contido
milhares de anos, o grito dos mortos libertos.” (H, p.80-81). Para Eiras, em Húmus, “a suspensão
do tempo permite a revisitação de civilizações perdidas e de crenças espalhadas quase
universalmente, segundo as quais os mortos voltam para junto da família (muitas vezes como
mortos-vivos)”, tornando a narrativa “impregnada de atemporalidade” (EIRAS, 2005, p. 63).
159
Não sequer uma história, fragmentos de histórias justapostos, construindo uma
diegese, que tem no narrador e nas suas reflexões filosóficas o elo coesivo. Húmus é uma
superposição de quadros narrativos, sem preocupação com seqüência narrativa ou com o desfecho
da trama. A fragmentação de histórias que gradativamente se entrecruzam em Os Pobres dará
lugar a um emaranhado de pedaços de histórias de figuras que não necessariamente se cruzam.
Nota-se, na obra, uma quantidade grande de figuras, como aconteceria numa novela.
Entretanto, a densidade psicológica nelas contida é grande, como é comum nos romances.
E se as figuras grotescas descortinadas em Húmus não são tradicionais personagens no que
tange aos acontecimentos e peripécias narrativas, também não são figurantes, pelo contrário,
enquanto estes transparecem apenas em suas exterioridades, as figuras desta narrativa, que se
pretende e se impõe como romance transformador, são focalizadas sobretudo em suas intimidades,
porque é isto o que interessa ao narrador, muito mais do que suas peripécias, descontinuadas e/ou
omitidas nessa obra. É o avesso das figuras o que se explicita, o que está no interior, por trás das
fachadas, como antes foi o “avesso da Candidinha” e de outros personagens, problematizados em
A Farsa.
A inexistência de personagens tradicionais, substituídos por um aglomerado de figuras
arruinadas, poderia suscitar que nesta narrativa não “há interesse pelo homem” e nem “pela sua
situação no mundo”, no entanto a subjetividade do narrador garante “que o homem ali está
presente em cada página, cada linha, cada palavra” pois está “sempre em primeiro lugar o olhar
que os vê, o pensamento que os revê” (ROBBE-GRILLET, 1969, p. 91), sobre eles refletindo,
ponderando, pensando, lançando suas problematizações: “Chove. Cada vez vejo mais turvo (...)
Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos séculos e os seres que passam meras
sombras.” (H, p. 69).
Paralelamente à inovação nas figuras, a preocupação com a construção e o uso da
linguagem poética é intensa, como é usual na escrita brandoniana. passagens que são
verdadeiros poemas em prosa, preocupados com sonoridade e visual, usando recursos poéticos,
como na belíssima onomatopéia: “Um dia uma semana um século e o pêndulo invisível
vai e vem com a mesma regularidade implacável para a morte! para a morte! para a morte!” (H,
p.58). Primeiramente três expressões temporais marcam a passagem do tempo ("Um dia uma
semana um século"), em seguida outra expressão repetida três vezes (“para a morte! para a
morte! para a morte!”) marca o ponto culminante do tempo: a morte, o ponto final do tempo,
ambas as seqüências simulando visual e sonoramente as batidas do pêndulo de um relógio
despertador antigo.
Ao lado da linguagem poética, o lirismo é comum nas digressões do narrador e do Gabiru,
“alterego do narrador” (ANDRADE, 2002, P.157), sobre as figuras desgraçadas, retratadas na
160
narrativa, que motivam revelações e problematizações ou ilustram reflexões suas. Para tanto, essas
figuras são sujeitos arruinados e reprimidos não apenas na sociedade arruinada em que se inserem
o narrador e o Gabiru, como também representam fragmentos da condição humana
incompreendida e, por vezes, até aspectos incompreendidos e/ou reprimidos no próprio narrador
em sua complicação íntima e no Gabiru, que provocam a reflexão rumo à busca de
autoconhecimento, amplificando uma tendência expressionista a “uma corporificação dos
pensamentos do Desconhecido” ou da psique do Desconhecido” num “processo gradativo de
autoconsciência” (FURNESS, 1990, p. 13).
Muito mais importante para o narrador é “o debate perpétuo entre mim e mim” (H, p. 99)
ou suas consubstanciais digressões entrecortadas de fragmentos de narração de histórias de figuras
arruinadas. Aliás, a narrativa está fracionada justamente por que é feita por um narrador dividido
entre consciência e sonho, entre si mesmo e o alterego Gabiru, e que assim o faz para tentar se
entender ou se conhecer melhor. Divide-se para buscar sua inteireza.
Envolvendo o espaço social, o espaço físico torna-se cada vez mais ativo, sobre as figuras
participativo e fantasmagórico, degradado e degradante, numa troca de influências, como o húmus
que e recebe vida e morte, que gera e corrói, que contém a vida e a morte e que sempre
lembrará isso aos seres: “O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias” (H, p. 59). Ao mesmo
tempo em que é devastado pela ação do homem, o espaço assombra as figuras e colabora para a
degradação delas.
Entretanto, diferentemente do espaço naturalista que determina física, social e até
psicologicamente os personagens, este espaço de Húmus se impõe como o responsável pelo ciclo
vital. Funciona como uma espécie de personagem central, de instância superior entre as figuras,
assombrando e fazendo o narrador lembrar, a todo o momento, o destino final da matéria a
morte, como nessa passagem de “Céu e Inferno”: “tudo isto caminhava para um fim, tudo foi
desviado ao mesmo tempo desse fim; tudo isto se alimentava de certas regras” (H, p. 191). A
morte é uma das poucas certezas da condição humana, ainda que as figuras se distraiam de sua
condição mortal através das convenções sociais: “a primavera toca neste charco lodo e azul:
tinge-o e revolve-o. Mas o hábito de tal forma entranhou na vida que coabitam com o espanto e
continuam a ir à repartição” (H, p. 83, grifos nossos).
O húmus não se apresenta como o exclusivo responsável pelo condicionamento dos seres e
de seus comportamentos, em parte influenciados pelo hábito, pelas convenções, pela tradição,
pelas relações interpessoais e até pelo acaso: “Seres e coisas criam o mesmo bolor como uma
vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sítio húmido” (H, p. 62, grifos nossos); “Se não
Deus, a vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemo-la para satisfazer instintos e
paixões. Se Deus não existe não força que me detenha” (H, p. 102). Desta forma, de um lado
161
observa-se o acaso agindo sobre a natureza ou na natureza; de outro a tradição ou as convenções
sociais regrando e ordenando a sociedade. Deus, representante da tradição de uma cultura cristã,
funciona como “aquela força” que detém os homens, com um conjunto de paradigmas que pautam
o comportamento humano, trazendo o hábito de determinadas posturas convencionadas.
Como acontece em Os Pobres, o espaço-tempo ou cronótopo húmus é representante do
ciclo da Natureza e, muitas vezes, é materializado ou corporificado na vila-vida de Húmus. Em
suma, é o húmus a figura central da narrativa, mais forte e poderosa do que qualquer uma das
figuras humanas, as quais não deixam de ser meros fragmentos transitórios de húmus que, uma vez
arruinados e aniquilados pela erosão do tempo-espaço, reintegrarão o húmus.
Nos cenários, espaços físicos e sociais, percebe-se, ainda, uma perda dos contornos bem
delineados, de maneira que aparecem ora envoltos por uma névoa; ora deformados por violentas
descrições; ou até, outras vezes, transfigurados por desconexões; e sempre embebidos de uma
vasta simbologia. Assim, a obra reúne cenários que parecem pinturas expressionistas:
(...) E falo mais alto porque a ouço mexer... Todos suportam o drama de todos os dias,
o cinzento de todos os dias, as aflições e a usura que tornam as figuras ridículas e coçadas.
Todos suportam os tratos que envelhecem e preparam para a cova, os pequenos interesses, a
inveja, a ambição, a dor física. Todos os dias a Hermengarda amarga os brasões da
Biblioteca, a Bisbórria todos os dias cisma na sua respeitabilidade, e aturam o azedo que
pouco e pouco se deposita nas almas e com isto uma coisa desconforme, que se levanta e
deita conosco, não se tira do nosso lado, em quem ninguém fala e com quem temos por força
de coabitar (...) (H, p. 67)
São imagens que, “invocadas a primeira vez como metáfora”, voltam a aparecer
“persistentemente, tanto como apresentação quanto como representação”, tornando-se “símbolos
ou parte de um sistema simbólico (ou mítico)” (FURNESS, 1990, p. 35). O cinza simboliza a
repetição e a rotina entediante. A cova simboliza a morte que retorna a matéria orgânica ao húmus.
O azedo simboliza o sofrimento, a amargura causada pela repressão, pelo hábito.
uma clara diluição das fronteiras entre tempo e espaço, pelo menos nessa forte figura
dantesca que constitui o húmus, pintado em tons de claro-escuro pesadelo, a um tempo tons
gerados pelo horror do narrador e pelo seu espanto. O húmus reúne a força e o poder do tempo e
do espaço, que tinham a Natureza e o “enxurro” de Os Pobres, mas não o dinamismo frenético
deste. Assume o posto máximo de responsável pelo ciclo da vida inteiro, desde a concepção e
progênie até a morte, passando pela sustentação, corrosão e reciclagem dos seres e da matéria
orgânica e inorgânica.
O tempo psicológico se sobrepõe em importância e em recorrência ao cronológico,
resumindo-se este às datas anacrônicas que simulam a escrita de um diário, aliás opção diarística
oportuna, justificável e compatível com a intenção de sobrepor o lirismo e as especulações
filosóficas à narração. Cabe ressaltar que esse tempo psicológico é invadido pelo sonho-delírio e
162
ganha tonalidades oníricas, em maior escala do que aquele observado em A Farsa: “A vila é
tumular e encardida, mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme. Talvez
desconexo, mas desconforme. O sonho é dele: a própria casa de granito revê sonho. O Gabiru
mistura, revolve, extrai sonho do sonho” (H, p. 71, grifos nossos). Associam-se elementos
desconexos (“granito” e “sonho”), o onírico se apodera de espaços e tempos delirantes e tornam-se
insistentes mesmo as idéias de sonho e de desconexão.
Caminha, o narrador lírico, em seu “lirismo moderno”, do “conteúdo explicitamente social”
para o intimismo e vice-versa, “resultado de uma integração entre a emoção e o desejo de
interpretar o mundo; integração responsável pelo nascimento de uma significação que, ao revelar o
mundo, revela o sujeito que o considera poeticamente, unindo-se, mais nitidamente, o emocional e
o reflexivo” (SOARES, 2001, p. 27).
Paira na narrativa, um ambiente decadentista, inegavelmente, até por causa da sombra, da
dúvida e da falta de respostas e saídas que assolam o narrador, especulador, mas descrente de
soluções ou saídas para a miséria da condição humana. Isso, aliás, notara Pedro Eiras, em sua
obra Esquecer Fausto, durante a explanação sobre “a fragmentação do sujeito em Raul Brandão”,
quando observa que “Húmus parece não aceitar qualquer solução (revolução)” (20005, p. 68) ou
que A Farsa, Os Pobres ou Húmus nunca alcançam uma reordenação do mundo”, mas, pelo
contrário, “assinalam uma morte de Deus, de que não podem fazer o trabalho de luto completo, e,
conseqüentemente, uma morte do homem, sem o horizonte de qualquer nietzschiana super-
humanidade”. (EIRAS, 2005, p. 59).
Servindo como mote ou recurso ao narrador digressivo, aparecem passagens com traços
dramáticos, como diálogos, monólogos ou falas soltas, usados para as reflexões existenciais e
filosóficas do narrador:
– É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos.
É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. (...) É uma
parte do meu ser que abomino (...) Se quero ser prático, gesticula dentro do casaco arrepiado:
A alma! A alma! Singular filósofo! É capaz de desejar a morte para ver o que
dentro (...) (H, p. 69)
Como se viu em obras anteriores, como A Farsa, capítulos inteiros de monólogos
líricos do narrador ou de diálogos deste com seu alterego Gabiru, sua alma ou seu lado sonho.
também passagens em que se dirige ao leitor, fazendo-o de interlocutor, como se pode observar
nos trechos a seguir: “Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar
no fundo de mim próprio” (H, p. 69, grifos nossos), “Agora ninguém o arranca a infindáveis
monólogos caóticos: - A morte! a morte! a morte! Incongruência, obscuridade e dor também”
(H, p. 71, grifos nossos). Assim, o narrador e o Gabiru, indubitavelmente um alterego do próprio
narrador-lírico, prolongam-se em digressões ou monólogos sobre morte, vida, filosofia e
existência.
163
A teatralidade também aparece no plano da diegese, que todas as figuras apresentam
máscaras, personas, e representam uns diante dos outros, o que parece homogeneizar certos
comportamentos pautados em convenções e oculta a intimidade dos seres. Com isso, na obra,
equivalem o mundo e a vida a um enorme palco onde mundo e vida se fazem representar:
(...) Estamos enterrados em convenções até o pescoço: usamos as mesmas palavras,
fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. dias em que
não distingo estes seres da minha própria alma. dias em que através das máscaras vejo
outras fisionomias e, sob a impassibilidade, dor; dias em que o céu e o inferno esperam e
desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração. (H, p. 69,
grifos nossos)
Nesta reflexão do narrador uma crítica e uma condenação à artificialidade dos
comportamentos imposta pela sociedade. Como acontecera aos personagens de A Farsa, as
figuras mascaradas de Húmus desfilam fachadas sociais ou situacionais. Aliás, o próprio narrador
assim se mostra cindido entre duas figuras, narrador e Gabiru, razão e sonho. As interioridades são
reprimidas e enoveladas por trás das máscaras, talvez por assim se encontrar aquele que narra. Até
a pessoa verbal demonstra a cisão pessoal da instância narradora, ora em 3ª, ora em 1ª, ora no
plural, ora no singular. Essa cisão mostra também a agonia de perder-se numa sociedade em que o
sonho é interditado, em que a esperança faliu e em que as convenções sociais falseiam as relações
interpessoais e reprimem os seres, muitas vezes roubando-lhes a humanidade e gerando sociedades
desumanas e perversas, regidas pela conveniência e pelo calculismo. Isso decreta a degradação e a
ruína do ser ou dos seres e da sociedade em que se inserem na obra, ciclicamente. Obscurecida e
misteriosa é essa enovelada interioridade dos seres, oculta através das máscaras sociais, feitas de
hipocrisias e de sombrios sentimentos reprimidos. Sombria é essa intimidade enigmática,
incompreensível aos seres: “Formam-se assim lentamente crostas: dentro de cada ser, como dentro
das casas de granito salitroso, as paixões tecem na escuridão e no silêncio, teias de escuridão e de
silêncio”. (H, p. 63, grifos nossos)
O verdadeiro responsável pelos comportamentos, constante objeto de observação e reflexão
do narrador, estaria oculto e seriam os enovelamentos interiores de cada figura, ocultos sob a
máscara social de formalidades, tornando cada ser único e inexplicável, apesar das semelhantes
máscaras e dos mesmos gestos reprimidos: “É a custo que me separo deste ser com quem coabitei
sempre. (...) está aqui o escárnio e o rancor” (H, p. 191). Aliás, a exterioridade quase sempre é
fachada, mas às vezes revela certas manias, transtornos e compulsões. Assim, como num jogo de
cartas, os gestos são ora blefes, ora armações, ora autênticas revelações da intimidade do ser.
A representação das máscaras e das convenções sociais pelas figuras de Húmus serve para
o narrador apontar certa náusea diante da tradição e dessa sociedade estranha que vive “um
pesadelo, um demonismo carnavalesco ou um apocalipse sem Deus”, para Vítor Viçoso (1999, p.
164
40). Ao mesmo tempo, a intimidade de tais figuras e a do próprio narrador revelam um anseio em
focalizar figuras de exceção, apontando para o fato de ser cada existência única, mesmo num palco
de representações:
Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o
desespero. Anda o instinto feroz. Atrás disto andam as enxurradas de sóis e de pedras, e os
mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atrás do tabique e das palavras anda a
Vida e a Morte e outras figuras tremendas. Atrás das palavras com que te iludes, de que te
sustentas, das palavras mágicas, sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a
mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas. (H, p. 67, grifos nossos)
No trecho, o narrador explora uma série de abstrações, que representam o vertiginoso
abismo e o mistério existente na intimidade do ser, apenas aparentemente “insignificante”. Essas
abstrações revelam o quanto a interioridade é difícil de decifrar, se não for indecifrável. Na
tentativa de demonstrar um pouco da complexidade e da grandiosidade da psique humana, que está
no interior da matéria e da fachada ostentada socialmente, o narrador associa uma série de
elementos aparentemente desconexos, como “vagalhões”, “céus” e “mundos”, que remetem ao
infinito e/ou ao que ainda não foi dominado pelo homem, sequer tocado ou explicado. O
inexplicável, ou ainda inexplicado, compreende não apenas elementos naturais, como os citados
“céus” e “mundos”, mas também os “vagalhões doirados”, “a Vida e a Morte e outras figuras
tremendas”, que remetem a mistérios que não são apenas de ordem natural ou material, cuja
explicação está para além “das palavras” e da capacidade de compreensão humana.
A palavra é usada pelo narrador como representante do conhecimento acumulado pelo
Homem, do explicável ou do explicado, que traz ao Homem a confortável e ilusória sensação de
sabedoria, de poder e de superioridade em relação à natureza. Assim, o Homem prende-se ao que
sabe, satisfaz-se com as respostas que possui e ignora, não busca ou não problematiza essa “coisa
descabelada e frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas”, que lhe
revelariam a limitação da condição e do conhecimento humano e que lhe abalariam a ilusão de
sabedoria como abalaram a do narrador. Este, ao contrário dos que se satisfazem com as
aparências, com as “insignificâncias”, ou dos que se iludem com “as palavras mágicas”, desespera-
se, como no tão mencionado O Grito de Munch (Anexo 1); e abisma-se diante do que “olha em
volta” e que as palavras não explicam, como La Clowness de Toulouse-Lautrec (Anexo 8); ou
Retrato do Doutor Gachet, de Van Gogh (Anexo 11). Cabe chamar atenção para a paralisia dessas
figuras e de seus olhares desencantados, em oposição ao mundo circundante em movimento. Mas,
diferentemente da postura melancólica, passiva e resignada destes dois últimos, o narrador de
Húmus inquieta-se, manifesta sua insatisfação, suas frustrações, e busca o inexplicável ou o
inexplicado, o incomum e o estranho, exatamente como Furness diz fazerem os expressionistas:
165
(...) um movimento rumo à abstração, à cor e a metáforas autônomas, para longe da
plausibilidade e da imitação; desejo ardente de exprimir e criar fora dos cânones formais; um
interesse pelo típico e pelo essencial mais do que pelo puramente pessoal e individual; na
predileção pelo êxtase e pela desesperança e, por conseguinte, uma tendência ao inflado e
ao grotesco; um elemento místico, religioso mesmo, com freqüentes sugestões
apocalípticas; um senso urgente do aqui e agora, a cidade e a máquina consideradas não a
partir de algum ponto de vista naturalista mas sub specie aeternitatis; um desejo de revolta
contra a tradição e um anseio pelo novo e pelo estranho (...) O Expressionismo terá em si
muita coisa do Barroco (seu impulso dinâmico e seu desassossego, bem como seu memento
mori), muito mais do gótico (a distorção, a abstração e o êxtase místico) (...) No
expressionismo existe uma tendência inegável a fugir do natural, do plausível e do normal
rumo ao primitivo, ao abstrato, ao apaixonado ao estridente; (...) (FURNESS, 1990, p. 35-
36, grifos nossos)
A insignificância humana e a limitação das palavras, bem como a artificialidade nas
relações sociais em contraposição com uma Natureza animizada, forte e progenitora de seres,
reveladas pelo narrador de Húmus, demonstram certo desprezo pela civilização, com suas
convenções e urbanização sombrias que, juntamente com muitos dos traços vistos nesse capítulo,
apontam para o amadurecimento e o aprofundamento da tendência expressionista corrente nessa
segunda fase brandoniana do claro-escuro pesadelo.
Assim, em Húmus, um avanço ainda maior na experiência inovadora, em relação à sua
própria obra e ao que se produziu na transição entre os séculos XIX e XX, de forma que o projeto
de representação expressionista observado na obra finissecular Os Pobres e a aposta num
expressionismo de A Farsa consolidam-se na narrativa Húmus, que, ainda através da contraposição
de nuances antitéticas, aponta alguns paradoxos da civilização e da condição humana, enquanto se
comove com os dramas enfrentados pelos humildes, devassa e problematiza eus-profundos.
Além disso, para muito além da mera interpenetração genológica e estilística, propõe uma
abertura e a renovação do gênero romance, que nem se pretende definitiva, mas inquieta e em
constante transformação, que Húmus é repintado por Brandão em três versões (ou subversões ou
perversões) concorrentes, como os quadros do pintor impressionista Monet, feitos em múltiplas
versões para um mesmo recorte em diferentes nuances e diferentes momentos, com suas diferentes
visões para a mesma paisagem ou objeto, que com clara tendência à deformação e subjetivação
no enfoque. Esse Expressionismo não raramente deságua num veio inconsciente.
5.2- Húmus - um composto de ruínas: o cronótopo gritante em tons de claro-escuro
pesadelo
(...) Não, o fim lógico da vida não é morrer, é viver sempre, é ascender
sempre. Até onde? Até Deus. Vou ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los! E em eles
se pondo a caminho vais ver doirado. A vida toma novo impulso.
Desaparecendo a morte é que tu abranges a vida. Vais ver a cor que toma o
mundo, as tintas que o mundo escorre, as flores que as árvores criam... Vou
ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los!
A terra remexe. Sinto um esforço e revive o suor da desgraça; um arranco
na profundidade, e todas as primaveras dispersas não tardam, uma atrás da
166
outra a reflorir. sepulcros até ao fundo do globo. De mais longe vem um
ímpeto – são outros mortos ainda. RAUL BRANDÃO
Húmus
O húmus é a principal figura da diegese, acima de todas as figuras, comparável apenas ao
narrador em força e em importância na narrativa. É o único ser coeso, completo, forte, senhor de si
e do mundo, diferentemente do efêmero e frágil ser humano, suscetível à morte a qualquer minuto.
O único verdadeiramente capaz de unificar em si a ruína observada em tudo: cenários, espaços e
figuras. É o progenitor do ciclo da vida, o “tempo cósmico” (COELHO, 1976-a, p. 222) e o espaço
reunidos na mesma instância, cronótopo detentor dos mistérios do ser e do não-ser. É, portanto, o
único capaz de encerrar em si muitas das respostas buscadas pelo narrador para os mistérios da
vida e da morte, da transitoriedade e da Natureza, como também da intimidade do ser e do sonho,
que o húmus é composto também de sonhos e de essências, na narrativa, que serão “recicladas”
e darão origem aos novos sonhos contidos nas novas matérias geradas do húmus.
O solo progenitor ou o húmus reúne em si o tempo e o espaço fragmentados, estes últimos
que refletem, segundo Pedro Eiras, “o despedaçamento ou a redução em fragmentos daquilo que
nunca pré-existiu (real ou idealmente) como conjunto”, revelando, portanto, “a degenerescência de
uma totalidade original” (EIRAS, 2005, p. 42-43).
O húmus é um composto de tempo e de espaço, ou seja, que representa a Natureza-mãe e a
transitoriedade cíclica, que recria e sustenta a vida e os vivos através da matéria morta. O húmus
controla e contém todas as vidas e todas as mortes: “a vida não é senão uma constante absorção da
morte (...) Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro” (H, p. 79), como se observa também nesta
passagem em que mortos parecem murmurar de entre as carnes dos vivos, no capítulo Primavera
Eterna”:
(...) O que nos mantém neste inferno é o facto de não nos vermos tal qual somos,
baseados numa convenção que julgamos indestrutível. De não nos vermos a nós e de não os
vermos a eles. Porque o homem por dentro é desconforme. É ele e todos os mortos. É a
sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. (...)
Ouve-los? Ouve-los? Passaram séculos e séculos no fundo da terra. Levaram séculos a
compreender que foram iludidos. Redobraram séculos de desespero no interior das covas, até
se compenetrarem de que todo o sacrifício foi inútil (H, p. 171-172)
Dentro da matéria viva, a matéria morta, que foi reciclada pela natureza na composição dos
novos viventes. Dentro dos vivos os sonhos e convenções sociais, que foram herdados dos mortos.
Dentro dos vivos a morte, portanto, que os gerou e que os aguarda no ciclo da vida.
Como num quadro cubista, a Natureza através do húmus realiza um trabalho de
decomposição e recomposição de matéria orgânica. Lembra também o trabalho do pintor cubista
essa busca de ver num ser “a vastidão do universo”, a infinitude de pontos de vista, tornando-o
“desconforme” e deformado, querendo puxar para a superfície da tela todas as facetas possíveis
até as mais ocultas (“É ele e todos os mortos”), pintando um inteiro composto de fragmentos e de
167
todos os seus ângulos possíveis, como é o húmus, uma massa fértil composta de fragmentos de
todas as existências passadas, e como serão também todas as criaturas geradas por ele, as
existências futuras arruinadas. Aliás, nesta tentativa de abarcar muitos pontos de vista ou de
revelar por completo o objeto, que acaba deformando-o, as telas cubistas e expressionistas
encontram-se ou conjugam-se essas duas tendências.
O ciclo da vida é percebido também nas estações da Natureza, marcadas pelas datas da
escrita em diário e sinalizadas ao longo da narrativa, como observou Maria Alzira Seixo:
“primavera e inverno, o jorrar da vida e o apodrecer dos organismos” (SEIXO, 2000, p. 21-22). A
“época primeva” é o tempo de fertilidade, de reprodução e de concepção, início do ciclo da vida
ou dos ciclos e das vidas, enquanto o inverno é o tempo de perecer, de morrer, o fim do ciclo da
vida ou dos ciclos e das vidas, que servirão de matéria prima para os novos ciclos e os novos seres
vindouros, como se observa na passagem de “18 de Dezembro”, final do outono e quase inverno
no hemisfério norte (21 de dezembro), no capítulo “A Vila e o Sonho”:
Em lugar do uso de palavras fazia isto melhor com o emprego de dois tons cinzento
e oiro: uma nódoa que se entranha noutra nódoa. O sonho turva a vila como a primavera
toca neste charco lodo e azul: tinge-o e revolve-o. Mas o hábito de tal forma entranhou na
vida que coabitam com o espanto e continuam a ir à repartição. Horas na torre. Mais silêncio.
A morte roda aqui por perto, alguém fala: - Então como passou? passou bem? O hábito
tem profundidades de légua. (H, p. 83, grifos nossos)
A Primavera aparece como o início luminoso, na passagem. Por outro lado, o outono é “a
morte que roda aqui por perto”, o processo de degradação do ser, mergulhado nos hábitos e
distante dos seus sonhos, como se observa na vida desses seres na vila. Esse processo de
degradação terá seu ponto culminante na “morte” ou no inverno que simboliza o fim.
São estações pintadas em tons de claro e escuro, que metaforizam a autenticidade e a
decadência, sonho e vila, nascimento e morte, ouro e cinzento, respectivamente, que são
largamente repetidas ao longo da narrativa e ganham autonomia simbólica, como menciona
Furness. Desta maneira, a cinzenta vila é a um tempo a vida e a morte lenta ou morte em vida,
uma danação causada pelo banimento do sonho.
Na vila que é a vida metaforizada, misturam-se o tempo e o espaço repetitivos, em que
“não morrer é continuar a jogar o gamão pela eternidade”. A vila ou a vida é entendida como um
pesadelo ou um lento, diário e doloroso caminhar para a morte, marcado por convenções e hábitos
repetitivos, em que “a outra existência falsa acabou por os dominar”, tornando “um dia a outro dia
inútil. Sempre...” (H, p. 83)
Quanto mais obscurecido, sombrio, entranhado de hábitos e convenções se apresenta o ser,
mais próximo da morte está. Enquanto isso, os mais distantes da morte seriam os mais radiantes e
luminosos, escassos na narrativa, mais ligados ao sonho dourado, aliás como tudo na natureza e
168
nas vidas que povoam a narrativa. Esse contraponto é percebido muito mais como ausência
sentida pelo narrador e pelo Gabiru do que observado nos espaços. Assim, o pesadelo se faz
presente nos tons escuros dos espaços, na perversidade dos seres, nas convenções da sociedade,
representantes da vida inautêntica, enquanto os tons claros são escassos e desejáveis, mas estão
pervertidos e/ou aprisionados por convenções no íntimo dos seres mesquinhos.
Esse pesadelo terreno ou esse “caos”, observado também por Pascoaes, não apenas em
Húmus, como em A Farsa e em Os Pobres, “nunca alcança uma reordenação do mundo, pelo
contrário, assinala uma morte de Deus” (EIRAS, 2005, p. 59). O homem brandoniano está,
portanto, condenado a viver o caos terreno, sem a certeza consoladora da existência de Deus e sem
a esperança de uma cura reordenadora para o pesadelo terreal. E o narrador é o mais desgraçado
de todos os seres, pois é dotado de consciência. É o mais condenado de todos, por ser obrigado a
existir no mundo caótico e a pensar sobre o caos, sem qualquer perspectiva de cura.
Mas, por entre o pesadelo e o caos terreal, o sonho e o ouro persistem ainda que abafados
pelas convenções e hábitos, e são os representantes da vida autêntica, tanto que quando “pouco e
pouco o sonho se dissolve, quando a nódoa de ouro se alastra”, mexe com “o subterrâneo, acorda
os mortos, desenterra o sonho submerso” (H, p. 83). É o sonho que vida aos mortos, logo os
que perderam o sonho estão mais próximos da morte do que da vida ou estão mortos em vida.
Porém, ciclicamente, da mesma forma que o sonho vida autêntica e primordial, a vila a
tira e a morte aos seres, mergulhando-os no hábito e na rotina até a morte, que “regula a vida”
na obra. Por um lado, o sonho “mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila”,
mas também “o sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos
dentes afiados que se transformaram em sorrisos” (H, p. 84). A vila é, para Eiras, “a desordem do
presente (caos, morte de Deus, ausência de ética como fragmentação do sentido)”, que contrasta
com “uma idealizada ordem do passado (sistema de totalidade de um sentido)” (EIRAS, 2005, p.
62), evidenciando a impossibilidade de resgate dessa unidade perdida para a humanidade.
Da mesma maneira que o sonho se liga à vida, as convenções estão associadas à morte.
Lutar contra as convenções e hábitos humanos, contra as regras sociais torna-se, assim, tão estéril
quanto lutar contra a morte ou contra a vida, inerentes à condição do homem: “É que a morte
regula a vida. Está sempre ao nosso lado, exerce uma influência oculta em todas as nossas ações.
Entranha-se de tal maneira na existência, que é metade do nosso ser” (H, p. 84).
Todos os seres são compostos de morte e de vida, de sonhos e de convenções, e contêm em
si o claro e o escuro, em maior ou menor escala. Aliás, quanto mais se aproximam do sonho e do
primordial pintam-se em tons mais claros e quanto mais se aproximam da morte e das regras são
pintados em tons mais sombrios.
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Mas, a “Primavera Eterna” continua a fazer o seu trabalho, em detrimento das convenções
sociais e humanas que precipitam a morte, libertando o sonho, a luz e o inconsciente, o lado
primordial e arquetípico do ser, como acontece neste trecho de “5 de Abril”:
(...) É escusado lutar. Enquanto era a razão que me guiava, andava às apalpadelas:
agora é o inconsciente e cessaram de todo as dúvidas. Tudo se ilumina a outra claridade.
Tudo me é permitido. Respiro de outra maneira (...) Os sonhos estão de para mil anos e
um dia. – Ouve-los? (...) (H, p. 172)
É na primavera (“1 de Fevereiro”, “Chega a Primavera”) que “as rãs, de barriga no lodo,
coaxam de satisfação, pegajosas e moles como a erva verde e húmida. E dum dia para o outro,
crescem à tona da poça azul, encostada na terra negra, fios de erva a reluzir” (H, p. 117). Todos os
entes da Natureza parecem brotar do húmus (“terra negra”), rãs ou ervas, seres do reino animal ou
vegetal, racionais ou irracionais. Nada parece impedir o trabalho do húmus e da Natureza. E é
nessa eterna Primavera reconstrutora, nesse futuro sempre por vir que estaria, para Eiras, a aposta
de Brandão ou do narrador de Húmus, “capaz de investimento emocional na utopia que conferiria
um último sentido ao devir” (EIRAS, 2005, p. 62).
O verde das “ervas” e das “rãs” remete à juventude do novo ser concebido pelo húmus e
para a renovação da vida no ciclo interminável. A palavra “reluzir”, além de confirmar a
juventude e a renovação, aponta para a luminosidade, a esperança e a pureza dessas criaturas que
contrastam com o “negro” e sobretudo com a civilização e com os seres humanos sombrios da
obra.
A árvore é símbolo da gestação da natureza, como que engravidando do húmus com “a
seiva a inchar os botões túmidos das árvores” (H, p. 117). Assim como em Ramos de amendoeira
em flor (Anexo 18), toda a Natureza se reproduz e produz vida, luz, esperança e cores na
Primavera de Húmus:
A primavera atingiu o seu auge nos vivos e nos mortos. Tinta sobre tinta, dor sobre
dor. Ressuscitam todas as primaveras, as primaveras sucessivas, as primeiras primaveras,
em que a ternura se confunde com a fealdade e a fealdade é ternura, outras primaveras, e
outras oiro e verde, em que a tinta escorre do negrume. O que custou à árvore a
transformar-se em sonho, à árvore dorida com a flor recalcada, até se desentranhar em
emoção!... (H, p. 173, grifos nossos)
A árvore é também, na obra, símbolo de ser primordial e natural, composto de ternura e
fealdade, de ouro e verde. O ouro e o verde são tonalidades da vida primeva nos domínios do
inconsciente, da intuição, da emoção, da ternura e do sonho ou da vida autêntica e não tocada
pelas regras (“flor recalcada”). O ouro mais ligado ao intangível e o verde mais ligado à natureza,
à matéria vivaz e à esperança.
A Natureza “simboliza a moralidade transcendente”, enquanto a sociedade humana “está
aquém da natureza sublime e transcendente”, sendo o homem “síntese da animalidade e da
humanidade, terreneidade e divindade”, para Eiras (2005, p. 65-66). Esta “dicotomia irredutível”
170
aponta para o claro-escuro na composição da paisagem social e das figuras humanas na narrativa,
que estão sempre entre a animalidade e a humanidade, entre a sociedade e a natureza, entre “os
binômios moralidade/imoralidade, interrogação/ignorância, culpa/inocência” (EIRAS, 2005, p.
70), apresentando traços ora sombrios, ora mais luminosos.
A primavera concorre sempre com o inverno, tentando resgatar a luz obscurecida nos
cenários e seres. A luz, o sonho, a emoção e o inconsciente dividem sempre o espaço com a morte
através das convenções, o inconsciente e a razão medem força o tempo inteiro no ser e um até
predomina sobre o outro, quase sempre, mas um não pode eliminar totalmente o outro e o
paradoxo vai sempre residir no ser, composto de contrários quase sempre insolúveis: claro-escuro.
A primavera tenta tocar as vidas convencionais renovando-as também, mas não as pode
renovar tão bem como faz com a matéria morta, que renasce, renovação mais perfeita e maior.
Além disso, nem sempre consegue o mesmo êxito em sua tarefa, oscila em eficácia, em êxito e em
intensidade: “Mais outras primaveras frenéticas, mais outras tímidas e delicadas, mais outras que
não chegam a abrir, cobrem os vivos e os mortos”. (H, p. 173, grifos nossos).
Como a morte invernosa tem as convenções e a razão como auxiliares na tarefa de corroer
e degradar os seres, a primavera tem o sonho e o inconsciente como auxiliares na tarefa de
reavivar o ser. A Natureza-mãe é contenedora das estações, quem concebe, à luz, a Vida e
sustentação aos filhos: “A terra remexe. Sinto um esforço e revive o suor da desgraça; um arranco
na profundidade, e todas as primaveras dispersas não tardam” (H, p. 80). Esses filhos ou entes
naturais serão com o tempo (“um segundo como um século”) devorados pela morte: “Para ela [a
morte] tanto vale um segundo como um século, carrega um ser inútil ou um ser delicado com a
mesma indiferença para o túmulo” (H, p. 79):
Um remexer da treva, que até agora pudemos recalcar, soltou-se da escuridão e pôs-se
a caminho. não esforços que a contenham... Um borrão trágico avança outro borrão
informe prepara-se. Os mortos empurram os vivos – desde profundidades desconhecidas...
Passa no mundo a estranha ventania: é a morte que custa a separar da vida. O rasto
que fica atrás, a perspectiva que fica adiante cortada. A morte está aqui dum lado, está do
outro a vida. (...) (H, p.80-81)
O sonho, os anseios, os gritos, as dúvidas e as aspirações, que ficam presos nas
intimidades, também são parte do húmus e se desprendem das “almas [que] acordam num
sobressalto”, retornando à superfície: “Passa no mundo a doida ventania das nossas aspirações
secretas, das nossas dúvidas, dos nossos desesperos. É uma voz – são muitas vozes. É um grito
são muitos gritos. É o grito contido milhares de anos, o grito dos mortos libertos”. (H,
p.80-81, grifos nossos). O sonho, que também faz parte do húmus, vai e volta, morre e renasce:
Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa de oiro alastra. Vai mexer com o
subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso dois mil anos, sobressalta o
instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta à
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existência do avesso, deita o muro abaixo. Por ora é uma idéia, mas sai-nos de cima do
mundo... Mexe em tudo, revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O sonho cai na
regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se
transformam em sorrisos, na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem
tece uma teia. (...) Certas existências são crepusculares. Em certas existências são os mortos
que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no sepulcro. (...) (H, p.83-84)
O húmus traz consigo os sonhos, as almas das gerações passadas, o peso da tradição dos
mortos, que não é capaz de apagar ou transformar e voltará a regular os vivos, seus sonhos, vidas e
relações:
(...) Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz estranho. Eu não sou quem falo. A
meu lado, atrás de mim, vem um cortejo de fantasmas, uma cauda disforme que me conduz e
empurra, e adiante de mim há uma projecção de vida até os confins dos séculos.
É que a morte regula a vida. Está sempre ao nosso lado. Exerce uma influência oculta
em todas as nossas ações. Entranha-se de tal maneira na existência, que é metade do nosso
ser. (...) (H, p.84)
E o húmus contém tudo, as estações, a matéria e os sonhos e mesmo espreita os vivos.
Contém a Natureza e o Tempo, a Vida e a Morte: “Todo o universo se concentrou para gerar a
vida, todo o universo se concentra para a destruir. (...) A primavera é um fenômeno elétrico (...)
que revolve os vivos e os mortos” (H, p. 119). Assim como é natural e bela a vida, a luz e o
nascimento, também é natural e tem a sua importância e até a sua beleza a morte, como parte
necessária à manutenção da vida e do ciclo vital.
O húmus é cíclico, portanto. Tanto o tempo, quanto o espaço são cíclicos, renovam-se e
sucedem-se infinitamente, manifestando “a repetitividade humana dos anseios e desesperanças
através da circularidade cósmica de alterações sazonais de renovação e emurchecer cíclicos”
(SEIXO, 2000, p. 22), como se observa no fragmento em epígrafe: Não, o fim lógico da vida não
é morrer, é viver sempre” (H, p.80).
É um ciclo que se sustenta da morte, porém. A ênfase está no nada, na morte, tornando a
vida um vale de lágrimas, um caminho para a morte. A vida é o nada que é tudo, ou melhor, o
tudo que não passa de nada:
(...) A vida é quase nada. Tudo que custou tanto desespero, tudo sumido num buraco
para sempre. Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os gritos, as lágrimas, subir,
trepar, chegar ao topo do calvário? Para todo o sempre! Bem sei: aquilo, aquela manhã de
chuva em que nos molhamos juntos. (e ainda me sinto molhado) e se não repete; é o minuto
que nos escorre das mãos como fio de água, mas doira-o o sol, e é esse mesmo minuto
translúcido que quero tornar a viver, sem a sombra da morte a meu lado. É a essa ninharia
que é a vida, a que deito as mãos com desespero. A vida é nada é esta cor, esta tinta, esta
desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os meus mortos e os meus vivos. (...) Agarro-me
como um náufrago, agarro-me com uma saudade, que vem não de mim, mas de muito
mais longe, da base mesmo da vida. Para sempre! para todo o sempre! E, com um suspiro
mais fundo, repete: – Suprimi a morte, vou ressuscitá-los! (H, p. 77-78)
O cronótopo húmus, parceria tempo-espaço, é responsável pelo ciclo vital, portanto, pela
manutenção da matéria, através da vida e da morte que se revezam: para que haja matéria viva é
necessária a matéria morta, que nutre o húmus gerador de vida, alimentando a matéria viva, e vice-
172
versa. Por isso, o tempo e o espaço investem contra os seres com seus sonhos, contra a matéria
com o que quer que nela se hospede, através das armas de que dispõem: a erosão, o desgaste, o
envelhecimento, para gerar a matéria morta ou matéria-prima do húmus, a própria vida que
(re)nasce e, conseqüentemente, gerir o ciclo da vida. Assim, as atribuições do húmus são gerar e
gerir o ciclo, agregando a matéria morta e desagregando a vida: “o tempo mói: mói a ambição e o
fel e torna as figuras grotescas” (H, p. 58). As ações do tempo costumam ser atribuídas ao próprio
Deus, que segundo o narrador foi "criado pelos homens para ser criador dos homens".
Como o húmus, a terra, a Natureza é a mãe e o sepulcro dos seres na narrativa. O tempo é
constantemente aproximado também da água, um dos componentes do húmus e da carne: “aquela
manhã de chuva em que nos molhamos juntos. (e ainda me sinto molhado) e se não repete; é o
minuto que nos escorre das mãos como fio de água” (H, p. 77). O tempo se esvai como a água,
corrói, promove erosão e destrói como a água, como a Clepsidra, um relógio d’água:
Um dia – uma semana – um século – e só o pêndulo invisível vai e vem com a mesma
regularidade implacável – pra a morte! pra a morte! pra a morte!
Passou um minuto ou um século? Sobre o granito salitroso assenta outra camada
denegrida, e as horas caem sobre a vila como gotas de água duma clepsidra. De tanto ver as
pedras não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguém ouve seus passos.
(...) (H, p. 58)
(...) Não mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a
espaço caem como gotas de água no fundo dum subterrâneo. Outro ano ainda! Outro
passo ainda para a morte! Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é
menos uma hora na minha vida. E o tempo foge (...) (H, p. 64, grifos nossos)
Tanto o húmus como a vida, que dele deriva, são compostos de matéria e de água. O
húmus é um composto de matéria (morta) e umidade. O corpo humano é composto de matéria
(viva) e água. A vida é composta, portanto, de carne e de tempo, ou melhor, de uma carne que
vive por um determinado tempo. Assim, o tempo cronológico esvazia-se (“Para ela [a morte] tanto
vale um segundo como um século”), perde força em função do psicológico, que ganha densidade,
predominando na narrativa através das reflexivas digressões.
Tanto o fantasma da morte acomete o ser vivo, quanto os fantasmas dos hábitos passados
de geração a geração, que compõem o Senso Comum, a tradição e o superego dos seres humanos,
regrando gerações passadas, presentes e até as futuras, como se pode observar nas palavras do
alterego Gabiru e na seguinte reflexão do narrador, duplos com palavras duplicadas:
Essa alma, essa alma disforme, que vai de mundo a mundo, e que em cada ser
realiza uma primavera, é que é tudo. O resto insignificância. É ela que nos devora e faz da
morte a vida e da vida a morte...
Dum lado a muralha de dentes arreganhados para o céu, do outro o sórdido
pardieiro, no alto a noite de luar como uma camélia gelada. Dentro disto sonho. (H, p.71,
grifos nossos)
173
“Essa alma disforme, que vai de mundo a mundo”, mencionada pelo Gabiru, tanto pode
remeter a uma alma imortal, espiritual e misteriosa, quanto ao hábito, à tradição que passa de
geração a geração, “de mundo a mundo”, atravessando o tempo, como um legado sinistro de regras
para a humanidade. Da mesma forma, nas palavras do narrador, “a muralha de dentes arreganhados
para o céu” tanto pode remeter à condição mortal do homem, ao pasmo diante da natureza ainda
misteriosa, como também a essa herança cristã, a essa tradição que convenciona o céu como lugar
de reencontro com o sagrado, ou lugar de onde viemos e para onde iremos após a morte, cultuado
por gerações e gerações de homens. Mas o “luar como uma camélia gelada” pode representar a
indiferença dos céus para com a platéia sinistra na “noite” da miséria e da ignorância, contrariando
os ensinamentos dessa tradição. “O sórdido pardieiro”, nas palavras do narrador, duplica “a
insignificância” do “resto” ou do mundo material que rodeia a alma disforme, que representa a
parte imortal: espiritual ou cultural, representada pelo hábito ou pela tradição. Assim, a cultura
(“essa alma disforme que vai de mundo a mundo” ou “a muralha de dentes arreganhados para o
céu”) seria responsável pela melhor e pela pior parte da existência, “que é tudo” e
“insignificância”: o sórdido pardieiro e a primavera, o sonho e a regra, que “faz[em] da morte a
vida e da vida morte”, que “em cada ser realiza[m] uma primavera” e que “nos devora[m]”.
No fragmento, tanto para o Gabiru quanto para o narrador, portanto, a condição humana
revela-se paradoxal, entre o sonho e o pesadelo, entre o claro e o escuro, entre a matéria e a alma,
entre o “êxtase místico” e o grotesco da materialidade, distorcida pelo olhar do observador (seja
ele o Gabiru, seja o narrador), problematizando a tradição, fugindo do natural e do plausível para o
abstrato e o primitivo, de maneira desassossegada e extasiada, mas desesperançosa, exatamente
como Furness (1990, p. 35-36) apresenta os expressionistas.
Esse lado fantasmagórico confirma-se também na cor sombria do húmus, que representa a
ausência de cor, o ponto-de-partida, o início de tudo ou o nada essencial, de onde brota tudo, de
onde nascem todos os seres, coisas e cores. Negra é, portanto, a cor do solo nutritivo, do húmus
nutrido de tudo, das ruínas de todas as coisas e de todas as cores. Sombrio e misterioso é também
tudo quanto integra o húmus, relacionado ao primordial, ao primitivo ou ao mistério da vida,
somente intuído pelos seres. Aliás, o Húmus, como afirmou Dalila Costa, “surge como a tentativa
de dar forma pelo verbo a um mistério, o da ressurreição da Natureza” (1999, p. 349) ou o do ciclo
da vida, na “união entre vivos e mortos”, “unindo imanência e transcendência” (COSTA, 1999, p.
850-851).
Obscuro é o silêncio, que lembra a morte, e o burburinho de todas as fantasmáticas vozes
das existências e dos seres passados, que representam a tradição. Sombria é, deste modo, na
narrativa, a cor do “nada que é tudo”, o nada de onde se vêm e para onde se vai voltar, a morte, o
sono eterno, o “estágio pós-morte”, o estado de dormência ou a morte em vida, noites em vida ou
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fora dela. Obscura é a noite e são os fantasmas, sonâmbulos habitantes do húmus (composto de
vozes e matéria morta) e da noite eterna, enquanto aguardam para (re)integrar a vida.
Obscuras são também as criaturas que, como fantasmas ou mortos em vida, imobilizados
rumo à morte, na sombra, invisíveis, camufladas como predadores de tocaia, aguardam o momento
para “dar o bote”, fazendo o outro presa para, de forma vil, conseguir vantagens:
As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a
temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa as figuras não bolem. Não bolem outras
figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre – jogo;
nem o que a Adélia diz baixinho à Eleutéria, para que a velha temerosa ouça: A nossa
Teodora está cada vez mais moça!... o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor
dessas figuras imóveis (...) (H, p. 60, grifos nossos)
Da mesma maneira que a escuridão do húmus está prenhe de sentidos e sugere associações,
as cores e tons na narrativa também se derramam em possibilidades expressivas e significativas.
Assim como o húmus, que é um composto de matéria e de sonhos mortos, originadores de matéria
e de sonhos vivos; também os demais tons e cores dão ênfase à vida ou à morte, à alma, a
fantasmas ou sonhos, a máscaras ou à intimidade.
Como a sombra pode representar a imobilidade vil do predador camuflado, o cinza e o
encardido podem representar a imobilidade também em outras nuances. Um tom para a eterna
repetição, para a mesmice, encontra-se no encardido, da “vila encardida” (H, p. 57). A sociedade,
a vila ou a vida, que deveria estar limpa e saudável, permanece maculada, manchada pela sujeira,
pela perfídia, pela cobiça, pela inveja, pela falsidade e pela trapaça. Portanto, sem brilho, sem
viço, sem vigor, envelhecida por uma tradição petrificadora e hipócrita.
Os vários tons de cinza representam, muitas vezes, repetição, estagnação, superficialidade,
artificialidade, frieza, futilidade e medo, que petrifica almas, palavras e relações:
Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não
pronunciarem as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no
mundo sem ter olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos
para lidar com ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos a
alma em restos, em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionamos que a vida
se passasse segundo certas regras. Isto é a consciência isto é o infinito... Está tudo
catalogado. (...) (H, p. 63, grifos nossos)
Além disso, cinza é a cor dos restos mortais, dos resíduos da combustão, do borralho, da
cinza ou das cinzas, os quais também metaforizam o hábito, a paralisia e a morte que contaminam
ou recobrem o cenário e as figuras da narrativa: “Nos corredores as aranhas tecem imutáveis teias
de silêncio e tédio e uma cinza invisível, manias, regras, hábitos, vai lentamente soterrando
tudo”.(H, p. 57, grifos nossos).
Um tom neutro, para o narrador, o obscuro, o cinza, o encardido, a cor de mata-borrão, a do
mofo e do bolor, enfim apenas um tom neutro poderia muito bem resumir uma estagnada e
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repetitiva vida, em nada colorida, pelo menos em se tratando daquelas vidas que “desaparecem e
ressurgem sem razão aparente dum dia para o outro”, aquelas que passam em branco, nada
acrescentando à Humanidade, ao próximo, ao mundo ou, mesmo, às próprias existências,
insignificantes e descartáveis:
O sino toca a finados, ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma
cerimônia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia
a vida a um tom neutro, a um cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e
coisas criam o mesmo bolor como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso num sítio
húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem ressurgem
sem razão aparente dum dia para o outro num palmo do universo que se lhe afigura o mundo
todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência
fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a
imortalidade da alma. (H, p. 62, grifos nossos)
Esse “bicho da terra tão pequeno”, mergulhado na vida de convenções, emite de colorido
de diferente do tom neutro apenas uma “escorrência fosforescente” ou uma secreção. É capaz de
produzir de seu e de novidade ou de autêntico apenas uma substância repugnante e imprestável.
Assim mesmo, essa substância produzida é, dentre a escuridão da falta de perspectivas de
mudança, um brilho frio, que fosforescente é um corpo que brilha na obscuridade sem emitir
calor. Além disso, é involuntariamente produzido, que é supurado, como “os mesmos gases”
excretados, aqueles que o indivíduo aspirou e que foram excretados por outrem, portanto não
sendo novas produções, mas apenas recirculações no ambiente. Esse “bicho da terra tão pequeno”
é tão estéril, improdutivo, insignificante, repugnante, descartável e mesquinho quanto um fungo
ou um musgo, vegetação criptogâmica, que não floresce, nasce e se reproduz na umidade, cheira
mal, asfixia, enoja, faz mal aos outros seres. Assim, fica o cenário social de Húmus composto por
estagnadas e estagnantes existências pintadas “em tom neutro”, banais, desprezíveis e
dispensáveis, para todo o sempre.
Assim, enquanto o cinza, tom neutro, remete à inércia e à morte, contrariamente o
“fosforescente”, cor que brilha no escuro, relaciona-se com o movimento de gazes, de vícios, de
almas e de sentimentos. Além disso, enquanto o cinza colore elementos materiais, o fosforescente
dá cor ao não material.
Ambivalente também é o verde que tanto serve, em suas tonalidades luminosas, para
representar a Natureza, a Primavera, a juventude, a vida natural, oposta à artificial, como serve
para simbolizar a água e a transitoriedade do tempo, a doença, que corrói os corpos, como no
processo de erosão; ou a morte, estampadas nas faces esverdeadas:
(...) Tudo isto parece que flutua debaixo de água, que esverdeia debaixo de água.
Não sei bem se estou morto ou se estou vivo... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento
sabe bem, e o tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o
desespero aumenta não se traduz em palavras. (H, p. 57)
176
(...) Não mais do que estas figuras paradas, e as horas verdes que de espaço a
espaço caem como gotas de água no fundo dum subterrâneo. Outro ano ainda! Outro
passo ainda para a morte! Sinto uma dor sem gritos por trás da imobilidade. Cada hora é
menos uma hora na minha vida. E o tempo foge (...) (H, p. 64)
O branco e o luminoso são escassos em Húmus e remetem à branca alma primordial ou à
essência primeva dos seres, o tudo, a rara completude onde se reúnem todas as cores, que são
nadificadas pela morte e renascimento ou apagamento.
Os tons claros são raros porque a narrativa trata de uma “floresta apodrecida”, de onde
“corre e escorre o verde, o roxo e o lilás os tons violentos e os tons apagados” (H, p. 185). Em
outras palavras, composta a partir duma estética do horror, essa sociedade de seres mesquinhos,
desprezíveis e ditos civilizados de Húmus, mergulhada em regras e pautada em aparências, não
poderia colorir-se de muitos tons brancos e de luz.
Desta forma, os tons mais claros da narrativa são os dourados, prateados, lilás e roxo, que
contrastam violentamente com as nuances de cinza até o preto, cores sem dúvida mais
relacionadas com a apocalíptica civilização humana do que o branco.
O dourado ou o ouro e o prateado ou a prata também são, por um lado, a cor do dinheiro,
da cobiça, da vida materialista e fútil, uma névoa, uma bruma que envolve e cega as pessoas,
devora as existências e aniquila o sonho ou torna-o mesquinho:
Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões doirados. Anda o
desespero. Anda o instinto feroz. Atrás disto andam as enxurradas de sóis e de pedras, e os
mortos mais vivos do que quando estavam vivos. Atrás do tabique e das palavras anda a Vida
e a Morte e outras figuras tremendas. Atrás das palavras com que te iludes, de que te
sustentas, das palavras mágicas, sinto uma coisa descabelada e frenética, o espanto, a
mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas. (H, p. 67)
Pouco e pouco o sonho dissolve, a nódoa de oiro alastra. Vai mexer com o
subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso dois mil anos, sobressalta o
instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. (...) Mexe em tudo,
revolve todas as raízes que se apoderaram da vila. O sonho cai na regra, no charco de
interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos dentes afiados que se transformam em
sorrisos, na paciência de quem espera uma herança com vagares de quem tece uma teia. (...)
(H, p.83-84)
Entretanto, o dourado também aparece, em sua faceta solar, como apolíneo símbolo da
preciosa vida que brilha sob o sol. Transitória, passageira existência, mas cintilante, reluzente,
desejável e saudável. Esse luminoso tempo que se opõe à morte sombria, indesejável, débil e
atemorizante:
(...) Não, o fim lógico da vida não é morrer, é viver sempre, é ascender sempre. Até
onde? Até Deus. Vou ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los! E em eles se pondo a caminho vais
ver doirado. A vida toma novo impulso. Desaparecendo a morte é que tu abranges a vida.
Vais ver a cor que toma o mundo, as tintas que o mundo escorre as flores que as árvores
criam... Vou ressuscitá-los! Vou ressuscitá-los! (H, p.80)
(...) A vida é quase nada. Tudo que custou tanto desespero, tudo sumido num buraco
para sempre. Ouves? Para todo o sempre. De que serviram os gritos, as lágrimas, subir,
trepar, chegar ao topo do calvário? Para todo o sempre! Bem sei: aquilo, aquela manhã de
177
chuva em que nos molhamos juntos. (e ainda me sinto molhado) e se não repete; é o minuto
que nos escorre das mãos como fio de água, mas doira-o o sol, e é esse mesmo minuto
translúcido que quero tornar a viver, sem a sombra da morte a meu lado. (H, p. 77-78)
Ao fim da narrativa, as duas nuances de dourado aparecem misturadas, como que
atravessadas por um grito de dor e de incompreensão do narrador, que ao fim de toda sua reflexão
filosófica sobre a existência, dá-se por vencido.
A morte faz estremecer o mundo até a raiz. A morte não tem a mesma significação.
A morte é agora inútil e anda à solta pelo infinito, desgrenhada, dorida e doirada. Desespera-
se. Tenho medo de lhe tocar. O drama que se passa em cima é maior do que o que se passa
em baixo. É pior este tumulto de inferno, este clamor de que me não chegam as vozes, esta
força incoerente de pé – todas as forças de pé – posta a caminho para o desconhecido. É pior.
E cada grito em baixo corresponde um grito em cima. (H, p.220)
O húmus, responsável pelo ciclo da Natureza, é o tudo que é nada, ou uma mistura de toda
a matéria morta é ponto final e ponto zero, início e fim de todos os seres. Em contraponto
complementar ao húmus, surge a vida, essa luz dourada: um nada de fragilidade, de efemeridade e
de insignificância, que é tudo o que o ser conhece, deseja manter e teme perder: “A vida é nada
(...). É tudo.” (H, p. 77). A “complementaridade dos contrários: dor e alegria, morte e vida”,
observada por Dalila Costa (1999, p. 850), é fulcro central de todo o romance Húmus, pintado em
tons de claro-escuro.
Aliás, todas as cores e nuances aparecem contaminadas pela cor negra, enegrecidas como
num borrão, da mesma forma que um grito, até então contido, velado, vai dominando,
estremecendo, ensurdecendo as palavras e transtornando o narrador. É a morte que se aproxima,
enegrecendo, anoitecendo e sufocando. É a iminência do fim, da morte da narrativa, do narrador,
de seu olhar, de sua filosofia, de seu ponto de vista sobre a vida, de suas reflexões inconclusas,
inexplicáveis e irrespondíveis. A iminência do final do mundo para os que morrem e tornam ao
negrume do nada, ao húmus, cronótopo progenitor e devorador de seus filhos:
Reconheço o grito que sai da noite. São os vivos e os mortos... Mas então que
significação tem isto no universo, a dizer palavras inúteis no meio desta balbúrdia, desta
escuridão cerrada, deste doirado feroz, deste redemoinho sem nome? Para que é que eu existo
e tu existes? Para que é que eu grito e tu gritas? Isto não és tu! isto sou eu! Isto é a vida
temerosa, de que não representas senão uma insignificante partícula. Tu não és nada, a vida é
tudo. O combate é incessante entre os mortos e os vivos. Todos gritam ao mesmo tempo,
todos caminham ao mesmo tempo para o mesmo fim esplendido. Oh eu quero crer! Por
que gritas? – Fecha os olhos! fecha os olhos! – Agora sou eu quem falo! Agora são eles quem
falam!... Para onde vamos aos gritos? (H, p.220)
Para onde vamos aos gritos? Para onde vamos aos gritos?
E a cada grito em baixo corresponde um grito em cima, a cada grito um estremeção no
mundo, que se repercute de universo em universo. Um grito que acorda mais sonho e gera
novo desespero.
Outro grito, outro mundo doirado, outra forma doirada que se deita a caminho. (H,
p.221)
178
A iminência do fim encenado, a simulação possível do momento fatal é acompanhada das
trágicas perguntas inconclusivas, duma suspeita de que nem pós-morte, no nada primordial,
redemoinho e escuridão, haverá tais respostas; de que talvez nem a morte seja o descanso eterno
dessa cansativa, monótona, repetitiva e entediante vida. O fato é que respostas não são,
definitivamente, o que se obtém ao fim de tudo, mas apenas mais e sempre intermináveis questões:
“Ouves o grito? Ouve-lo mais alto, sempre mais alto e cada vez mais fundo?... É preciso matar
segunda vez os mortos.” (H, p.222)
Assim vai o narrador pintado por Raul Brandão, pintando com palavras: “gritos”, “ilusão”,
“valores”, mundos; inventando “verdades” e “mentiras”, tingidas nesse quadro para sempre
inacabado ou borrado, no fim das contas, que é Húmus: verdadeira pintura em tintas verbais:
Fui eu que dei valores e perspectiva ao quadro. Fui eu que lhe entornei ilusão. Na
verdade só existem cores como só existem gritos. Por que não hei-de acabá-lo? É talvez uma
questão de vontade. Se até para dar o primeiro passo precisamos de crer, por que não
havemos de dar o último passo? Ilusão, mentira? Mas eu é que faço a verdade e a mentira.
Dou-lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode não existir.
Com uma mentira posso forjar outro mundo. Arredemos de vez este suor frio. (H, p.78)
Desta forma, percebe-se que o espaço físico, aliado ao tempo: o húmus, é mais que
dinâmico, é vivo, quase um personagem, constituindo, na verdade, uma espécie de instância
fantasmagórica e onipresente na diegese, uma entidade mais poderosa do que qualquer figura que
possa haver na narrativa, maior até do que o narrador, curvado aos seus desígnio ao final de tudo.
Não como uma instância capaz de condicionar social, física ou psicologicamente as figuras da
narrativa, não como um manipulador de fantoches; mas como progenitor e último, fatal devorador,
origem e fim de tudo e de todos no caos que se estabelece durante o breve intervalo reservado à
ação dos seres.
O espaço social é arruinado e desagregado tanto no interior da diegese, quanto no âmbito
discursivo-narrativo, de forma que apenas entre uma digressão reflexiva e outra, o narrador vai
revelando fragmentos do cenário social, sem preocupação cronológica nenhuma.
A tradição homogeneíza por fora, por causa da “regra” que gera a repetição do gesto, como
é o caso de muitas velhas, ou empurra o indivíduo para dentro de si mesmo, para o enovelamento
interior, como é o caso do narrador. Em ambos os casos destroem-se os laços de afetividade para
com o outro, que gera desmobilização social, individualismo, egoísmo e torna mesquinho o sonho,
inviabilizando o surgimento de utopias, ideais de uma coletividade. Por isso, ganha vulto o sonho
de satisfação material e de riqueza, que gera um vampirismo nas relações, quase sempre
alimentadas por interesse e não por afetividade sincera.
Nas ruínas do cenário social, todo ser humano aparece como um desgraçado, inclusive o
narrador, atormentado, durante toda a narrativa, pela iminência da desgraça maior: a morte, pelo
179
comportamento abominável das figuras que o cercam, pela incapacidade de compreender os outros
e a si mesmo e pela falta de respostas às suas questões existenciais e filosóficas. Em maior ou em
menor grau, as figuras desgraçam-se, segundo as calamidades, desditas, infortúnios ou misérias
materiais, espirituais ou ambas, que penem. Todo ser humano, na narrativa, é desgraçado de uma
forma ou de outra, seja porque desventurado e infeliz, seja porque algoz, vil ou, como é o caso da
maioria das figuras de Húmus, porque enquadre-se em ambos os perfis: desprezível, vil, e, ao
mesmo tempo, desventurado e vítima de outros algozes.
Assim, nota-se que o único a escapar da desagregação, da ruína é, de certa forma, o húmus,
reunião do espaço físico e do tempo cósmico. Se, por um lado, em termos discursivos, o narrador
vai revelando também este elemento, o húmus, de forma anacrônica e assistemática. Por outro
lado, o que se revela é uma massa disforme e de enormes proporções, sim, mas homogênea e
confiável, pois é constante e restauradora de ruínas, que reúne e agrega, delas se encorpa e faz
germinarem entes e vidas que ao longo das existências serão novamente arruinadas e
desagregadas.
É fato também que os cenários social e físico e o tempo cronológico, marcado
anacronicamente na forma de diário, segmentam-se e perdem relevância, ou melhor, submetem-se
ao tempo psicológico, que se avoluma, problematiza e enovela, nas digressões e especulações do
narrador. Assim, tem-se a perda dos contornos “realistas” nas descrições, convertidas em
expressões do narrador sobre seres e paisagens físicas ou sociais, sempre compostas de
contradições escandalosas, muitas vezes subjetivadas, deformadas ou desconexas, como assume o
próprio narrador, abismado diante do pesadelo da existência num palco e num cenário de horrores.
Em suma, se todos esses seres, cenários e espaços pintados em cores contrastantes são a expressão
de um narrador abismado, então são todos eles gritos desse narrador ou partes de um grito de
horror lancinante que é a narrativa.
5.3- Pesadelo e Sonho: espaço social em ruínas e tempo onírico
O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Teodora,
a Adélia, a Eleutéria das Eleutérias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca
que remói, a da D. Biblioteca: os padres exaltam-na, a igreja exalta a sua
caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar três vinténs. distingo,
despegada dos crânios, as orelhas do respeitável Elias de Melo e do impoluto
Melias de Melo, lívidos como dois fantasmas. Ambos regulam a consciência
como quem corda a um relógio. Dívidas são dívidas. A D. Leocádia põe
acima de tudo o seu dever, e leva para casa uma órfã a quem sustenta e que lhe
entrapa as pernas. A luz do candeeiro ilumina-lhe as mãos ósseas e secas que
enchem a sala e o mundo todo... A D. Procópia odeia a D. Biblioteca, mas nem
ela sabe o que está por trás daquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se
habitua à vida. Matar matava-a eu, mas várias palavras me detém. Detém-me
também um nada... Chegamos todos ao ponto em que a vida se esclarece à luz
do inferno. Mas ninguém arrisca um passo definitivo. RAUL BRANDÃO
Húmus
180
Paralelamente “ao tempo cósmico e ao tempo individual”, detectados por Coelho (1976-a,
p. 221) na escrita brandoniana, sendo o primeiro aquele da Natureza eterna e da condição humana
cíclica e o segundo o intervalo de tempo de cada sujeito ou “um único minuto no rodar infinito dos
séculos” (H, p. 83), percebe-se também um espaço-tempo onírico: “o universo aparece-nos
violentamente deformado quer na dimensão do espaço quer na dimensão do tempo. A vila do
Húmus é uma paisagem subjetiva, onírica” (COELHO, 1976-a, p. 221, grifos nossos).
Diante da tomada de consciência da condição humana, o narrador se espanta com o fato de
que dela o Homem tenha sempre fugido, evitando pensar sobre ela e se subjugar a ela, por isso, na
concepção do narrador, para “poder com isso”, o homem inventou a civilização, com a “honra” e a
“insignificância”, o “dever” e até as religiões, convenções que abismam também o narrador, entre
indignado, horrorizado e interrogativo:
(...) Para não morrer de espanto, para poder com isto, para não ficar e o doido, é
que inventei a insignificância, a honra, o dever, a consciência e o inferno.
E ainda o que nos vale são as palavras para termos a que nos agarrar.
É então um mundo de fórmulas a que eu obedeço e tu obedeces? Sem ele não
poderíamos existir. Se víssemos o que está por trás não podíamos existir. O nosso mundo não
é real: vivemos num mundo como peixes num aquário. E sentindo que há outra vida ao nosso
lado, vamos até à cova sem dar por ela. (...) Estamos aqui a representar. Estamos todos aqui
ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca de três. Estamos aqui a matar o tempo. (...)
Decerto não passamos de ecos. Submeto-me, subjugas-me. (...) Se me alheio um momento
dou um grito de dor. (H, p. 64-65)
O absurdo da civilização do Homem funciona como um complicador da condição humana,
tornando-a ainda mais espantosa para o narrador, um pesadelo: “O mundo é um grito. (...) é um
sonho sem nenhum segundo de paz. A dor gera dor num desespero sem limites”. (H, p. 213)
Para mostrar o absurdo da civilização, do espaço e do tempo humanos (re)inventados pelo
Homem, o narrador compõe um cronótopo desconexo, entre a representação, as “fórmulas”, “a
bisca de três” e os “ecos” de “peixes num aquário”. Não apenas usa elementos desconexos, como
quer mostrar a desconexão absurda desse espaço-tempo, feito de solidão, falsidade, futilidade e
dominação. Um desconcerto que contrasta com o concerto da Natureza, complexa, mas
harmoniosa e concertada entre o claro e o sombrio, o dia e a noite, a vida e a morte. Esse é um dos
quadros da civilização, em Húmus, que extrapola a estética do horror e chega a um absurdo
desconexo, pintado pelo narrador entre abismado e hipnotizado em “pensamento falado” ou
simulando uma “escrita automática” (CEIA, 2005), como também ocorre em:
(...) Eu não sou quem falo. A meu lado, atrás de mim, vem um cortejo de fantasmas,
uma cauda disforme que me conduz e empurra, e adiante de mim há uma projeção de vida até
aos confins dos séculos. (...)
E, através da pedra destas fisionomias, transparecem outras fisionomias: as velhas,
como uma roda de aranhas de penante na cabeça, apertam o círculo em volta da majestosa
Teodora. São anos de paciência, de inveja e de fel – são anos de tragédia. (...) O tempo passa,
181
e com o tempo esta luta entre o inferno e o sonho revestiu-se de cimento e de grandeza. (H, p.
84-85)
A sociedade é uma colossal e absurda justaposição de elementos desconexos e estranhos
uns aos outros. Elementos de categorias naturais e até não-naturais se relacionam: minerais
(“pedra”, “cimento”), humanos (“velhas”, “Teodora”) e animais irracionais (“aranhas”) e objetos
(“penante”) e espaços oníricos (“o inferno e o sonho”) se mesclam, como se integrassem um
mesmo grupo desagregado e absurdo, com isso provocando o efeito de solidão, indiferença,
fingimento (“pedra dessas fisionomias”), frieza, calculismo (“anos de paciência, de inveja e de
fel”) e amargura que acometem as figuras, sem falar no efeito de imobilidade entre as figuras e de
transe delirante no narrador.
Os limites entre mentira e verdade, realidade e pesadelo, visão e alucinação ficam diluídos
em cada fragmento, tamanho é o espanto do narrador diante da sombria civilização e da tradição,
vista como uma “cauda disforme” que empurra o homem (“cortejo de fantasmas”), controlando-o e
mantendo-o inconsciente, como morto-vivo. Exime-se o narrador da dormência (“não sou quem
falo”), por causa de sua índole inquieta, mas não da participação no absurdo da vida (“que me
conduz e empurra”), contra o qual não tem armas para combater, apenas suas palavras na narrativa
que não encontram ecos, salvo na voz do Gabiru. Todas as demais figuras são ecos da tradição.
Como a luz e a sombra, a vida e a morte contrastam no húmus, o sonho e o pesadelo
rivalizam em Húmus, como aconteceu já em A Farsa. Mas, enquanto o húmus concilia o tempo e o
espaço da Natureza, reunindo em si propriedades sombrias e luminosas, concebendo vidas e se
alimentando de morte; por outro lado a sociedade humana não promove conciliação, banindo o
sonho bom e transformando vida e espaço social num pesadelo ou na faceta sombria do sonho.
O espaço social que é um pesadelo ou um sonho sombrio e aflitivo que angustia o
narrador, composto de uma sociedade desconexa de seres desagregados –, contrasta com o tempo
psicológico e com a intimidade dos seres, guardiã do sonho luminoso reprimido e dos demais elos
luminosos e perdidos com a humanidade, como a intuição, o “inconsciente” e até a “loucura”,
sufocados pela civilização. Em ambos os casos uma diluição ou mesmo uma surreal “anulação
de fronteiras entre sonho e realidade” (PIRES, 2005).
Assim como o cronótopo húmus, que é pintado com cores contrastantes, o tempo
psicológico também explora contrastes e o onírico, impondo-se como o espaço interior do sonho
reprimido, tanto em se tratando de figuras, quando têm seu íntimo devassado pelo narrador, quanto
em se tratando do Gabiru, lado sonho do narrador.
O espaço social e a sociedade se tornam um pesadelo encenado pelas figuras de Húmus. O
espaço se apresenta desagregado na narrativa desde a forma como o narrador o vai construindo,
como se viu, pontuando fragmentos de acontecimentos, de figuras e de espaços físicos e sociais
182
repicados e intercalados na obra pelos seus comentários. Desta maneira, o espaço social, como
todos os outros elementos da narrativa, vai se compondo bastante lenta, fragmentária e
espaçadamente.
A sociedade em que desfilam as figuras de Húmus, com seus dramas íntimos e suas
fachadas, constitui um espaço caótico ou apocalíptico, para usar um termo corrente entre os
expressionistas. Os relacionamentos interpessoais revelam-se quase sempre superficiais ou
interesseiros e constituem processos de alteridade destrutivos:
O sonho cai na regra, no charco de interesses, na hipocrisia que se não atreve, nos
dentes afiados que se transformam em sorrisos, na paciência de quem espera uma
herança com vagares de quem tece uma teia. Certas existências são formidáveis outras são
como alcovas onde nunca entrou a luz. (...) certas existências são crepusculares. Em certas
existências são os mortos que ordenam, muito mais vivos e imperiosos depois que estão no
sepulcro. Nunca se atreveram e agora perguntam-se: Sou eu? sou eu? (H, p.83-84, grifos
nossos)
Essa sociedade que se delineia é marcada pelo individualismo e pela conveniência, que
aceleram o processo de degradação do ser, solitário, carente e distraído dos seus sonho e desejos
particulares, em parte por conta do peso da tradição, que exige uma postura racional, convencional
e homogênea ou homogeneizadora: "metade do nosso ser é convenção".
A repetitiva máscara social é uma espécie de superego, que reprime o sonho e leva o ser a
falsear a existência, ou melhor, leva-o a abdicar de sua individualidade em prol de valores e
concepções, impostas pela sociedade, de fora para dentro do sujeito, em favor de uma convivência
social que é nociva ao sonho, ao próprio ser e impede uma vida autêntica:
Aqui estou eu que finjo que sorrio, e acabo por fingir a vida toda. A minha vontade
era anular-te e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a boca por se habituar à mentira, a
ponto de já não saber discernir o meu ser, do ser artificial que criei, peça a peça. – Pois sim...
pois sim... (...) Eu não sei quem sou e até o meu metal de voz estranho. Eu não sou quem
falo. A meu lado, atrás de mim, vem um cortejo de fantasmas, uma cauda disforme que me
conduz e empurra, e adiante de mim há uma projecção de vida até os confins dos séculos.
É que a morte regula a vida. Está sempre ao nosso lado. Exerce uma influência oculta
em todas as nossas ações. Entranha-se de tal maneira na existência, que é metade do nosso
ser. (...) (H, p.84)
A convenção e os valores sociais parecem agir em favor da morte, da anulação do ser, do
medo e do horror terreno, vampirizando as relações de interesse, reprimindo o gesto calculado ou
calculista, atormentando e acautelando o ser, mas não são capazes de homogeneizar todos os seres
em seus íntimos, ainda que trabalhem para isso. Por mais que os gestos sejam reprimidos e
(co)medidos em todos, que o jogo carteado seja lento, tedioso e lentas cada vez mais as pessoas
entediadas ao jogá-lo, o mundo interior dessas figuras é frenético, cheio de desejos reprimidos mas
não extintos. Esses seres são limitados por fora e ilimitados ou inexplicáveis por dentro, ou
melhor, o exterior, a matéria e a sociedade são as limitações do interior, do ser, como pode
observar-se nos trechos a seguir: velhas a quem restam palavras, presas, alimentadas,
183
encarniçadas, como um doido sobre uma coroa de lata que lhe enche o mundo todo” (H, p. 59-60);
“Foi por dentro que crescemos, e por dentro nos era lícito crescer, cada vez mais alto até a
morte intervir”. (H, p. 171)
Esse universo interior de cada um é “o doido”, o sonho, o irrealizável, contra o qual se luta,
o qual se busca em vão eliminar, mas que se pode reprimir, nunca extinguir ou extirpar. Assim
funciona o Gabiru em relação ao narrador. Por mais que “o doido”, o sonho pareça derrotado,
morto, neutralizado, sempre reaparece, porque, na verdade, permanece latente: pelo menos
dois seres neste homem que toda a gente conhece, pautado, metódico. Ele e o doido morto por
fazer esgares. Ele e o doido que só consegue comprimir à força de pontualidade” (H, p. 66).
Ainda que a primeira opção dessa tese seja a análise estética, alguns comentários de ordem
psicanalítica serão tecidos, até porque no expressionismo, como observa Furness, “a
investigação de estados psicológicos extremos” (1990, p. 12). O Gabiru é uma espécie de Id
(FREUD, 1978), lado impulsivo, inconsciente e inconseqüente do ser, responsável por todos os
desejos, sonhos e ligado aos ímpetos mais primordiais e naturais do ser, que são constantemente
reprimidos pelo meio, pelos valores e convenções sociais em Húmus e, em Os Pobres, até pelas
autoridades, pela polícia:
– É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos.
É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos
magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte do meu ser que
me interessa. Às vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos espero. Chamo-o, não
comparece. (...) Meses inteiros ninguém lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar
no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades práticas. Na árvore a alma da
árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha destinge sonho...
(H, p. 69-70, grifos nossos)
O meio social, que limita e reprime o Gabiru ou o lado “desmedido” que coabita cada um,
em parte determina as pessoas, sim, em maior ou menor grau: os ladrões, as velhas ou a filha da
Joana. Mas algo na intimidade de cada ser humano, com seus sentimentos, ímpetos e anseios,
que é responsável pelas diferenças de comportamentos que despontam apesar das forças sociais
homogeneizadoras. diferenças que persistem e, por vezes, se manifestam, fazendo com que
cada velha seja diferente uma da outra, ainda que quase todas sombrias; e com que Joana,
contrariando todas as expectativas, não se torne como as outras velhas vampirescas. algo
inexplicável, portanto, por trás das relações sociais, nas individualidades, que independe da ação
do meio, que também é parte preponderante na construção dos seres e de seus caracteres, não
sendo tão somente o meio social e/ou familiar e as experiências, os responsáveis pela determinação
de suas atitudes e personalidade, como pretendiam certos naturalistas.
As velhas com o tempo adquiriram a mesma expressão, com o tempo chegaram a
temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa as figuras não bolem. Não bolem outras
figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras do padre – jogo;
184
nem o que a Adélia diz baixinho à Eleutéria, para que a velha temerosa ouça: A nossa
Teodora está cada vez mais moça!... o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor
dessas figuras imóveis (...) (H, p. 60, grifos nossos)
Inegável na narrativa é que as figuras humanas são sempre “a mesma enferma”, detentoras
de uma falsidade imobilizadora:
A vila petrifica-se, a vila abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificância e até
à insignificância o tempo imprime carácter. Moram na viela íngreme e cascosa, que revê
humidade em pleno verão, velhas a quem restam palavras, presas, alimentadas,
encarniçadas, como um doido sobre uma coroa de lata que lhe enche o mundo todo. Mora
dum lado o espanto, do outro o absurdo. E todos à uma afastam e repelem de si a vida. (...)
(H, p. 60)
Se algo que diferencia, de fato, as pessoas, certamente não é o gesto estereotipado, a
aparência homogeneizada, a exterioridade fingida, igual, pura dissimulação, a mesma máscara de
cordialidade, petrificada, embolorada, estagnada e insignificante, que enfraquece os seres, que
abafa e aniquila o que neles de melhor, os sonhos, os anseios, as ousadias. Um homem sem
sonhos é insignificante, não tem objetivos nem motivos nem esperanças; por isso não é capaz de
empreender qualquer aventura em busca da realização desses sonhos e anseios; não tem vida,
portanto.
Se diferenças entre os seres que habitam a vila, estas estão no mundo interior dos
indivíduos, nos sonhos, no “doido” que habita a intimidade de cada um, e que a sociedade não
pode ver. Assim, não revoluciona, não transforma. E nem é no fato de ter um doido em si, de ter
um universo interior aprisionado sob a máscara social, que reside a diferença entre as figuras,
porque isso é possível existir em muitos, senão em todos os seres.
Nota-se uma ausência de utopia, entendida como sonho social, anseio coletivo, que o
sonho está banido e o ser não o pode revelar, muito menos se reunir em grupos que alimentem
sonhos semelhantes em face do individualismo e da solidão reinantes na narrativa. Com isso, nota-
se uma forte desmobilização e uma descrença em qualquer revolução, em qualquer forma de
engajamento, que a sociedade está sustentada pelo conformismo, por uma mesquinhez, que
instaura um ciclo vicioso de imobilidade.
que Húmus se ocupa muito mais em perscrutar o que se passa no mundo interior dos
indivíduos do que em meramente desenhar as máscaras sociais. Cada sonho, “cada doido”, cada
dilema íntimo, cada hipocrisia será ao menos problematizada aos olhos do leitor. Aliás, por trás
desta anunciada intenção, aparece também a problematização da vida social e política, embora as
relações de afeição, de amizade, as familiares e até políticas sejam superficiais ou inexistentes,
mascaradas, artificiais e estéreis, e não colaborem para nenhum tipo de parceria.
185
Os objetivos das figuras, aqueles que subsistem ou que persistem, são de caráter individual,
mesquinhos, fúteis, pérfidos e imobilizadores. Almeja-se a egoísta troca de papéis na hierarquia
social, mas nunca uma transformação da sociedade e dos papéis sociais dos atores.
Em Húmus, revela-se a diferença na igualdade e a igualdade na diferença, com toda a carga
negativa que estas palavras e estes pares possam carregar, através da oposição entre a igualdade de
aparências/máscaras, e a diversidade de individualidades/psiques, ainda que essas diferenças
habitem apenas a intimidade dos seres ou das coisas. Cada figura é, ao mesmo tempo, um sujeito
único, ainda que arruinado e não inteiro, mas apenas desigual e irrepetível, ao mesmo tempo em
que parte integrante de uma sociedade que se define pela repetição. Do mesmo modo, fará e fez
parte do húmus homogeneizador que originará diferentes seres fadados ao uso de máscaras e
papéis sócias destrutivos e à morte que o relançará ao húmus e assim sucessivamente.
O reconhecimento da alteridade, por parte das figuras de Húmus, quase sempre tem a
finalidade de usar o outro em benefício próprio e/ou de neutralizar qualquer ameaça que esse não-
eu possa representar ao sujeito: “As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos
habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza,
e um ruído sobreleva, o da morte, que tem diante de si o tempo ilimitado para roer” (H, p.58).
No exemplo, o sujeito é como uma aranha, que tece sua teia e aguarda a vítima, para tirar dela seu
sustento ou neutralizar qualquer ameaça que possa representar. A teia, friamente arquitetada ou
calculada e construída (“as paixões dormem”), funciona como uma armadilha para capturar prezas
ou neutralizar/imobilizar entes que possam representar ameaça. O calculismo e o fingimento (“o
riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos”) são os
fios dessa teia que as figuras constroem para envolver suas prezas ou neutralizar as ameaças que as
outras figuras poderiam representar.
Para o narrador, é doloroso constatar a existência desta alteridade destrutiva, das máscaras,
da hipocrisia, da falta de coesão e de inteireza ao ser humano, da repressão ao sonho e ao doido
que habita cada ser, e não poder fazer nada com o conhecimento que tem, apenas saber e
amargurá-lo. É como saber em meio a selvagens ignorantes. É como ver num mundo de cegos.
Observe-se, ainda, que não é o espaço social, mas o tempo que imprime caráter ao ser,
mesmo que depois o anule através da morte. O espaço social e as convenções estereotipam e
roubam gradativamente a individualidade, enquanto o tempo individualiza (“até à insignificância o
tempo imprime carácter”) através da seqüência única de experiências que proporciona a cada ser e
a morte anula a vida. O tempo, os momentos ou a sucessão dos anos, com todas as vivências e
aprendizagens que trazem ao ser, permitem que se desenvolvam, nos subterrâneos da mente ou no
íntimo, as particularidades de cada um, ocultas por trás das máscaras convencionais e
estereotipadas ou do “riso postiço” e das “mãos [que] habituaram-se a fazer todos os dias os
186
mesmos gestos”. Ainda que muitas vezes as experiências sejam usadas para melhor tecer “teias” de
fingimento e calculismo, cada ser as tecerá à sua maneira e para alcançar objetivos particulares,
íntimos e distintos.
A identidade una e coesa é vista, na narrativa, como apenas uma máscara, uma fantasia,
que todos os seres têm seus problemas, de perto todas as figuras são arruinadas e desfilam um
conglomerado de máscaras, que cada ser veste de acordo com a situação, com as exigências do
momento. Com esta impossibilidade de coesão e de unidade ao ser dividido entre sua face externa
e a interna, surge a dificuldade senão a impossibilidade de participar de um processo construtivo
de alteridade, surgem as relações como simulacros de afeto, de respeito e de amparo, constituídos
para tentar alcançar ou satisfazer os desejos particulares, ocultos, reprimidos, mas inextinguíveis,
num Id mascarado pelo Superego, mas não extinto.
O somatório desses seres arruinados é a “vila abjecta” que “petrifica-se” e “cria o mesmo
bolor”. Não é um espaço, evidentemente, a que se possa chamar dinâmico, que a estagnação, a
morosidade é a sua marca. Contudo, este espaço aliado ao tempo promove uma erosão que age
lenta porém decisivamente sobre as figuras. A ação da “humidade em pleno verão”, da “viela
íngreme e cascosa”, das “enxurradas de sois e de pedras” (H, p.67), do “trabalho persistente do
caruncho que rói séculos na madeira e nas almas” (H, p. 57), com o passar do tempo vai
desgastando, ressecando, matando, como anuncia já o primeiro parágrafo do livro: “Ouço sempre o
mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste...”
A civilização auxilia a Natureza no processo de erosão aos humanos, no desgaste e no
envelhecimento dos seres, afligindo-os e mergulhando-os na “regra”. Trata-se de um auxílio
involuntário, o que as convenções civilizatórias prestam à Natureza, que não foi para isso que o
homem as criou. Mas, com isso, nota-se que o homem não escapa da Natureza, insere-se no ciclo
da vida, ainda que o Homem tenha concebido a civilização para fugir da condição humana,
segundo o narrador, como se viu no início desse capítulo. Desta forma, o Homem não escapa da
sua condição, nem da Natureza e do húmus, mesmo que tente insubordinar-se, criando sistemas
mirabolantes e verdades, segundo o narrador: “Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade
pode não existir.” (H, p. 78).
Não adianta fugir, mas as figuras fogem: “estátuas de granito a que o tempo corroera as
feições” (H, p. 57 ); “Não há anos, há séculos que dura esta bisca de três – e os gestos são cada vez
mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesa de jogo” (H, p.
59). Prendem-se a mesquinharias e vícios e tentam “matar o tempo”, por comodidade ou hábito ou
para não pensar, não temer, não buscar e não se cansar. Cada um tem seu motivo ou vários
motivos, o fato é que a abulia imobiliza-os a todos na “bisca”, como no quadro de Cézanne Os
jogadores de cartas (Anexo 10), mergulhados em convenções e práticas imobilizadoras ou
187
“divididos entre os imperativos do hábito e o pavor do abismo”, como observou Viçoso (1999, p.
47) a respeito das figuras de Húmus.
A convivência social, o espaço das relações sociais, ainda que extremamente sugestivo e
significativo, perde propositalmente relevo e espaço nesta narrativa de Brandão, comparada a
narrativas anteriores, se pensar-se no quão resumida ou reduzida em termos de trama e diegese. O
narrador prefere a especulação filosófica sobre o ser e sua intimidade à retratação social, que fica
breve e resumida, servindo de ponto de partida para os mergulhos na intimidade dos seres, das
relações e de tudo, discursivamente fragmentada em partes de convívio espalhados
anacronicamente pela narrativa, sem preocupação com a construção de enredo coeso, e falseada é a
convivência social, em face do universo de complicação interior de cada figura e do próprio
narrador.
Enquanto em Os Pobres e em A Farsa a trama e a configuração dos personagens eram
atravessadas de digressões filosóficas do narrador, Húmus incha mais as digressões que são
cortadas de pequenos fragmentos de acontecimentos e de descrições de figuras.
O narrador gasta bem menos passagens relatando o contato social do que gasta tentando
desfiar os enovelamentos interiores das figuras, as íntimas ocorrências, incessantes e inesgotáveis,
como observa Jorge Vicente Valentim (2004). A trama e o enredo estilhaçam-se. A ruptura com o
tradicional fio narrativo e com a coesão seqüencial reforçam o isolamento e o individualismo das
figuras, muito mais enoveladas para seus interiores do que envoltas em relações afetivas. As
relações são, quando muito, sociais, mas esvaziadas, frias, monótonas, falsas sim, mas sem
maiores esforços para forjar grandes afetos, sem maiores sorrisos.
Um conglomerado desses seres insignificantes compõe uma sociedade insignificante e
inerte, como a refletida em Húmus, revelando o quanto a transformação depende não apenas da
ação, mas sobretudo da busca de um sonho, tanto em termos individuais como em termos sociais e
políticos. Mas se sonho, mobilização, ação, força, empenho e transformação são itens escassos
na narrativa, que dirá a combinação de todos eles: “Só a insignificância nos permite viver. Sem ela
o doido que em nós prega tinha tomado conta do mundo. A insignificância comprime uma força
desabalada”. (H, p. 68).
Como um duplo da fragmentação observada na estrutura narrativa, o espaço social vai se
mostrando desagregado e arruinado também.
Fazendo fundo às figuras devassadas e delas composto, observa-se um espaço social com
figuras desconexas, solitárias, destrutivas, assustadoras e assustadas, como num pesadelo, de onde
o sonho, seu contraponto luminoso, foi banido e trancado na profundidade do ser. Aliás, todos os
atributos humanos que não fazem parte do conjunto de heranças socialmente legadas ao ser
humano, a saber: valores, convenções e papéis sociais, parecem banidos e aprisionados na
188
intimidade, não sendo mais exteriorizados ou expressados livremente, como a intuição, o sonho, os
desejos e os sentimentos, prejudicando as relações interpessoais, amargurando os seres e fazendo
com que aqueles que expressem tais atributos sejam tachados de loucos, como ocorre com o
Gabiru ou lado sonhador do narrador.
Sem dúvida, Brandão “aceita e alimenta as manifestações do inconsciente, da loucura, do
desregramento dos sentidos, da anulação de fronteiras entre o sonho e a realidade” (PIRES, 2005),
sobretudo em Húmus, em que a cisão do narrador lugar ao Gabiru com sua escrita espontânea e
incontrolada, simulando uma escrita automática, motivada pela libertação do sonho, da intuição e
de todos os sentimentos, como se estivesse num estado de transe ou alucinação, técnica apreciada e
largamente aplicada pelos expressionistas.
Desta forma, a luz rivaliza com a sombra em Húmus, o sonho com o pesadelo, a
interioridade reprimida com a exterioridade repressora, o tempo onírico com o espaço social
dantesco. O luminoso tempo onírico, representante da individualidade, de todos os sonhos
reprimidos e de toda a intimidade, contrasta com a exterioridade, com o espaço social horrível e
desconexo, um pesadelo composto de ruínas de seres, relações interpessoais fingidas e alteridades
destrutivas.
A civilização e a sociedade levam à ruína, porque desconectam o ser de suas propriedades
humanas, tornando-o desumano, mascarado, perverso e inautêntico, neste sentido “sente a cidade e
o progresso como um mal” e a Natureza como refúgio com seu “ritmo lento” (COELHO, 1976-a,
p. 225). Tudo que está imerso na sociedade e na civilização está arruinado, ainda que num primeiro
olhar para a máscara e para as aparências pareça íntegro. De perto e analisado minuciosamente, por
trás das aparências e das máscaras, tudo ganha complexidade e horror, abismando o narrador.
Enfim, tudo parece arruinado na obra, menos o que aponta para o lado primordial do ser
humano, que são as interioridades ou psiques humanas e o húmus. A psique porque guarda os elos
mais naturais com o humano e com a busca do prazer e o impulso para a vida. O húmus que e
mantém a vida e o ciclo da Natureza, reservando a morte apenas para o fim de cada ciclo.
5.5- O narrador abismado e algumas figuras desgraçadas: o paradoxal sentido da existência
Reparo melhor na vida secreta e na vida subterrânea. Compreendo
como é difícil viver todos os dias e todas as horas, como através de tudo é
forçoso seguir um fio invisível e seres reles e sorrir. Gasta-me uma força
superior, e com todas as chagas e todos os vícios, com a vida mesquinha e a
vida quotidiana, o nada, o penante usado, o fel e o vinagre, tenho de arcar com
uma coisa imensa de que me separa apenas um tabique. Tudo o que faço é
apenas um arremedo. Está ali outra coisa quando falo, quando me calo, quando
me rio. E falo mais alto porque a ouço mexer... (...)
Atrás da insignificância andam os céus, os mundos, os vagalhões
doirados. Anda o desespero. Anda o instinto feroz. RAUL BRANDÃO
Húmus
189
Para além do projeto estético brandoniano e aprofundando uma tendência expressionista de
criar figuras que, como “o mendigo, a mulher e o louco, representam aspectos da psique do
Desconhecido, a se moverem diante dele (o narrador) durante a sua autodescoberta” (FURNESS,
1990, p. 13), Húmus se ocupa prioritariamente do eu-profundo do narrador e dos outros “eus” ou
figuras, mergulhando ainda mais na investigação existencial, empreendida em menor escala em
obras como A Farsa e Os Pobres, como propõe a passagem da própria obra: “vai mexer com o
subterrâneo, acorda os mortos, desenterra o sonho submerso dois mil anos, sobressalta o
instinto, bole com todas as almas sobrepostas até ao fundo da vida. Transforma, volta a
existência do avesso” (H, p. 83-84, grifos nossos). Esse eu-profundo se identifica com o sonho,
portanto, em oposição ao “eu-social (a máscara)”, identificado, segundo Viçoso, com “a imposição
do ser para consumo social (o domínio do parecer)”, que se opõe reiteradamente “à vertigem do ser
autêntico, uma latência obscura, apenas revelável socialmente em momentos de crise” (1999, p.
42).
O narrador e o Gabiru, seu lado sonho, parecem ser os únicos que não fogem de pensar e de
interrogar. Contrariamente, as figuras retratadas parecem mergulhadas em vícios e convenções
sociais e não pensam, provocando mais espanto no narrador abismado e agravando sua
incapacidade de se alegrar: “Mesmo quando estou só o meu riso é idiota” (H, p. 64).
Por isso, o narrador se agarra às palavras, inquieto, buscando respostas, “para não morrer
de espanto”, “para não ficar e o doido”: “E ainda o que nos vale são as palavras, para termos a
que nos agarrar”, porque se reconhece também, muitas vezes, como as figuras, preso a
“insignificâncias, às palavras, à honra, ao dever, à consciência e ao inferno” (H, p. 64-65) da
civilização que tanto o indigna e abisma, causando-lhe um misto de horror e piedade:
“Desapareceu a morte e eis-me aqui preso a esta criatura de olhos tristes fitos em mim. Para
sempre! Até as coisas mais belas se transformam em absurdo e me pesam como chumbo.” (H, 92).
Trechos como estes demonstram o desencanto do narrador e “uma reiterada interrogação sobre o
sentido de um mundo espiritualmente à deriva e em acentuado processo de dessacralização”, de
que nos fala Vítor Viçoso (1999, p. 39). Por outro lado, se ele sempre se inquieta é porque não
foge da vida material e nem de pensar sobre ela, de aprender com as existências que observa e de
tentar decifrar seus mistérios (da existência e das figuras). Desta forma, Brandão faz de cada
fragmento de sua escrita “um possível segundo de iluminação, tal seu conhecimento possui a
marca do fulgurante e do indizível”, porque “aceita e conta do Mistério, de um intangível ao
pensamento humano, como cerne do mundo” (COSTA, 1999, p. 345).
190
O narrador não consegue se furtar de ver e de pensar a condição humana, ainda que sofra
com isso, atento às figuras em suas existências mesquinhas e viciosas, distraídas daquilo que é o
essencialmente humano para o narrador:
Remoem hoje, amanhã, sempre, as mesmas palavras vulgares, para não pronunciarem
as palavras definitivas. Toda a gente fala no céu, mas quantos passaram no mundo sem ter
olhado o céu na sua profunda, na sua temerosa realidade? O nome basta-nos para lidar com
ele. Nenhum de nós repara no que está por trás de cada sílaba: afundamos a alma em restos,
em palavras, em cinza. Construímos cenários e convencionamos que a vida se passasse
segundo certas regras. Isto é a consciência isto é o infinito... Está tudo catalogado. (...). (H,
p. 63)
As figuras focalizadas em Húmus são motes para as perguntas que o narrador deseja fazer,
aspectos da situação humana sobre os quais quer refletir, vícios e posturas que quer problematizar
e discutir, desgraças e misérias alheias e suas próprias que lhe causam espanto e que tenta entender
para entender-se melhor ou para melhor entender a condição humana. Constitui uma espécie de
projeto de ser e de vida do narrador: reparar o mundo, o outro, as relações e a si mesmo,
problematizar, pensar e se reformular, que nem sempre pode reformular o outro, o mundo e as
relações humanas.
Para reparar o mundo, como acontecia em narrativas anteriores, o narrador se abisma
com os vícios das figuras diante de seus olhos: “A inveja também sustenta, o fel também
sustenta”; calcula, calcula, cheia de fome o tempo que a majestosa Teodora pode durar”; “a
mentira tem razão de ser”; “elas estavam era sepultadas num vasto cemitério do tamanho da vila”
(H, p. 106-107, grifos nossos). Indigna-se sobre a inveja, o ódio e a ira contidos, o calculismo, a
avareza, o fingimento, a acídia e a ignorância, enfim a miséria humana tolerada pela maioria, mas
intolerável ao narrador: “A pobreza e a humildade não se toleram para sempre” (H, p. 92).
Por outro lado, constata também que a capacidade de se apiedar não se extingue por
completo e que o ser nunca é de todo ruim; por isso não odeia, mas se apieda do homem
mesquinho e ignorante: “As velhas, por exemplo, não são más, mas têm atrás de si séculos de ruína
e de destroços. (...) boca amarga, ilusões desfeitas, ilusões intactas, desejos irrealizados (H, p. 88)”.
É, sobretudo, a capacidade humana de sempre se superar nas formas e técnicas de tiranizar e
vilipendiar o semelhante que abismam o narrador: “O único juiz sou eu. O fim da minha vida não é
dominar-me, é dominar-te. (...) Todos temos de matar. Todos temos de destruir, todos temos de
deitar abaixo. (...) o que está vivo é a ferocidade, a paciência e a mentira e tudo espera a ocasião.
Espera e desespera” (H, p. 105).
Espanta o narrador essa capacidade de buscar sempre novas maneiras de dominar e usar o
outro, contrastando com a incapacidade de buscar o conhecimento sobre a vida e sobre si mesmo:
“A parte de dentro é que está viva e reclama de e de ferro a sua vez.” (H, p. 105); “É um erro
supor que o homem ocupa um espaço limitado no universo: cada homem vai até o interior da terra
191
e até ao âmago do céu” (H, p. 88). O narrador lamenta que poucos percebam a limitação do
exterior e da matéria e o quão ilimitado é a intimidade do ser humano e lamenta também que
poucos se importem em olhar para dentro de si e dos semelhantes, como faz o Gabiru e ele
(narrador): “o que resta da alma é um poço sem fundo” (H, p. 88) .
O narrador parece querer superar a insensibilidade e a pasmaceira instauradas a sua volta,
convocando o leitor virtual para se inquietar ao seu lado, para tanto inicia várias passagens com o
verbo reparar, como na epígrafe e na seguinte passagem:
Reparem, vê-se daqui a vila toda... Lá está a Adélia, o Pires e a Pires como figuras de
cera. Ninguém mexe. Num canto mais escuro a prima Angélica não levanta a cabeça de
sobre a meia. Tanta inveja ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e
apega-se logo à mesma meia, a que mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas, para
que ela, mal se erga, recomece a tarefa. Um dia uma semana um século e o pêndulo
invisível vai e vem com a mesma regularidade implacável para a morte! para a morte! para
a morte! (H, p.58)
Observa-se mais do que um chamado ao interlocutor, como importante parte nesta escrita
que é dialógica, uma convocação do interlocutor para entrar com a sua participação ativa,
minuciosa e crítica em relação ao que lê. Não seria desprezível observar, ainda, que o verbo
reparar, mais do que seus sinônimos olhar ou ver, reivindica atenção redobrada, um exame
minucioso, como comprovariam bem mais tarde as palavras de Saramago na epígrafe do seu
Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” A polissemia do vocábulo
remete também para uma espécie de censura ao que se vê, de advertência a quem vê, também pode
suscitar a necessidade de restauração ou reparação e mesmo o pedido de providências: “reparem”,
consertem ou façam algo.
O primeiro olhar do narrador para a vila denuncia a petrificação rotineira, o marasmo, o
desânimo, a preguiça, a acídia das figuras, entre deprimentes e patéticas: “Não há anos, séculos
que dura esta bisca de três e os gestos são cada vez mais lentos” (H, p. 59), revelando o
primeiro dos vícios e mais comum na narrativa. A acídia acomete quase todas as figuras, mesmo a
Joana, homônima da figura mais apaixonada e forte de A Farsa, movida pelo amor. Esta Joana de
Húmus move-se sem vigor, emprega a força que possui sem motivação. Não poderia, como as
demais figuras, ser personagem, mas apenas espectro, sombra, figura inerte e estéril.
A soberba se sobressai em muitas figuras que se sentem inigualáveis, parte de uma elite
aristocrática (“a Adélia”, “a majestosa Teodora”); intelectual (“D. Biblioteca”); religiosa (“o
padre”); burguesa, rica (o “respeitável Elias de Melo” e o “impoluto Melias de Melo”); estética,
que prioriza a aparência exterior, a beleza (“a Eleutéria das Eleutérias”). Muitos dos quais sentem-
se parte de mais de uma dessas elites senão de todas e, por isso, julgam-se melhores do que os
pobres, do que aqueles que não tiveram as mesmas oportunidades:
192
(...) O candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Teodora, a
Adélia, a Eleutéria das Eleutérias, o padre. Salienta-se do escuro uma boca que remói, a da
D. Biblioteca: os padres exaltam-na, a igreja exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça
para lhe dar três vinténs. distingo, despegada dos crânios, as orelhas do respeitável Elias
de Melo e do impoluto Melias de Melo, lívidos como dois fantasmas. Ambos regulam a
consciência como quem dá corda a um relógio. Dívidas são dívidas. (...) (H, p. 59-60)
Nunca param para pensar nas conseqüências de seus gestos e palavras soberbas, opressoras,
sobre os outros. São fúteis, avarentos, egocêntricos e egoístas, pensam exclusivamente em si, em
“status” e em imagem, esquecendo-se de quem está a sua volta. Todas essas figuras evidenciam a
“perspectiva crítica relativamente aos valores materialistas e ao egoísmo burguês dominantes na
sociedade do seu (de Raul Brandão) tempo”, de que nos fala Vítor Viçoso (1999, p. 39).
outro tipo de vaidade ou de orgulho, não menos daninho ao outro, mas diferente por
causar um dano maior ao próprio sujeito, como ocorre a figuras como a D. Leocádia que “põe
acima de tudo o seu dever, e leva para casa uma órfã a quem sustenta e que lhe entrapa as pernas.
A luz do candeeiro ilumina-lhe as mãos ósseas e secas que enchem a sala toda e o mundo todo...”
(H, p. 59). Para criar e sustentar uma falsa e vaidosa imagem de caridosa e religiosa, torna infernal
sua própria vida, no sentido financeiro e no afetivo, e inferniza a vida da filha adotiva, a quem usa
sórdida e desmedidamente, como instrumento para atingir seu intento: aceitação, afirmação e
status.
O ódio, a ira reprimida, prolifera entre as figuras e ganha proporções assustadoras mas,
uma vez contido, vira-se, muitas vezes, contra o próprio indivíduo que, na impossibilidade de
despejar no outro a sua raiva ou de destruí-lo, assim vai aniquilando-se a si próprio lentamente,
como “a prima Angélica” e a D. Procópia. Aniquilam-se, anulam-se, à medida que remoem,
tramam, empreendem pequenos atos mesquinhos ou sonham com vinganças ou revanches sórdidas
de grandes proporções:
(...) A D. Procópia odeia a D. Biblioteca, mas nem ela sabe o que está por trás
daquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua à vida. Matar matava-a eu, mas
várias palavras me detêm. Detém-me também um nada... Chegamos todos ao ponto em que a
vida se esclarece à luz do inferno. Mas ninguém arrisca um passo definitivo. (H, p. 60, grifos
nossos)
São contidas, mas sequer sabem, e nem o narrador pode saber e nem parece interessar-se
em saber, que está preocupado com a dor que massacra essas “figuras imóveis” –, por que
odeiam e por que contêm o ódio. Talvez o “hábito e a regra”, o senso comum, a religiosidade ou
alguma natural e intrínseca força instintiva, talvez todas em conjunto, talvez em cada caso haja
uma dessas causas ou muitas delas:
(...) o que me interessa não são as palavras do padre jogo nem o que a Adélia diz
baixinho à Eleutéria, para que a velha temerosa ouça: - A nossa Teodora está cada vez mais
moça!... – o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor dessas figuras imóveis, e sobre
elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o desenlace. (H, p. 60)
193
O fato é que as máscaras se sustentam sobre as faces de todas as figuras, mesmo a Joana
finge diante dos Ladrões, em sua casa. As exceções são os descompromissados com o mundo, "os
doidos", como o Gabiru. Essas máscaras destoam de suas vontades e sentimentos íntimos e
reprimidos, transformados em hipocrisia que, por vezes, revela-se nos gestos do padre
ironicamente viciado em jogo, contrário aos dogmas da religiosidade que se orgulha de liderar, e
da Adélia falida e ostentadora do que não tem:
(...) Que me importa a Adélia, um dia de inveja, um dia de aquiescência, um sorriso,
baba, mesura atrás de mesura? Outra velha mexe por trás desta velha mesquinha. As letras
protestadas deste ser absorto, o exagero minúsculo, têm outra significação. A realidade é a
manha, a astúcia que cada um põe em jogo. Não velhas com cartas na mão; orgulho,
soberba, inveja, paciente. Há intuitos, cautela de quem caminha na ponta dos pés. Há forças
e experiências, avareza e astúcia. (...) (H, p. 66, grifos nossos)
No trecho, nota-se que a inveja é outro dos males que acomete muitas figuras e que
também conduz à imobilidade; é um desejo estéril, passivo, improdutivo e, pior, corrosivo, que não
demanda nada, só lamenta passivamente uma falta.
A acídia e a inveja acometem quase todas as velhas, segundo o narrador: “Desde que o
mundo é mundo que as velhas se curvam sobre a mesa do jogo. O jogo banal é a bisca o jogo da
morte...” (H, p. 59). Todas curvam-se, sujeitam-se, conformam-se, rendem-se. Praticam e sofrem
ações destrutivas. Banalizam-se, banalizando suas vidas. Anulam-se e anulam suas vidas,
envelhecem-se por nada e morrem sendo nada: “a sombra rói as fisionomias” (H, p. 59).
Nadificam-se, voluntariamente, pelo hábito e inconscientemente, pois não se dão conta nem
pensam sobre sua condição, diferentemente do narrador que, por refletir, tem posturas e atitudes
diferentes dos demais.
A energia que se emprega na inveja destrói o próprio ser, que anseia por algo, mas não tem
forças ou energia para buscar, para se consumir com essa ausência, como ocorre com a prima
Angélica que, invejosa e covarde, prefere manter-se à margem da vida, à sombra do mundo,
substituindo qualquer ousadia arriscada, qualquer busca de novidade pela segurança da repetição
estéril, da morte em vida, nadificando-se ou coisificando-se, construindo de desconstruindo uma
meia, como Penélope, que à espera de nada ou da morte, matando o tempo e deixando de
construir uma vida, uma família ou laços de afeto. Assim como as velhas armam e desarmam
jogos, montam e desmontam jogadas inúteis, a prima Angélica destrói a meia diariamente, da
mesma forma que destrói sua própria vida diariamente, deixando de nela investir para cultivar
torpes sentimentos. Prefere o desserviço fácil a uma ocupação produtiva para si mesma. Mantém-
se uma sombra ou à sombra até de si mesma, alheia enquanto enovela e desenovela a para não
precisar desenovelar sua própria intimidade e tentar resolver-se ou entender-se, como faz o
narrador.
194
São sombras mesmo, criaturas que não têm luz própria e invejam a luz alheia: “O
candeeiro ilumina e a sombra rói as fisionomias”, não possuem alegria, esclarecimento,
curiosidade e, por isso, não têm conhecimento, nem o livresco-escolarizado, nem o “saber de
experiências feito”, muito menos autoconhecimento, não buscam o conhecimento, logo não
conhecem as pessoas a sua volta e nem a si mesmos.
também aquelas figuras humildes que, contrastando com as vaidosas e soberbas,
comovem muito mais o narrador, provavelmente incompatibilizadas para a convivência com essas
figuras vaidosas, exilam-se na vida doméstica, como o último refúgio, retirando-se do convívio
social, isolando-se, ressentidas da vida, tentando não perder de todo a esperança, como a Teles,
“que passa a vida a limpar os móveis, e fechada com os móveis reluzentes, talvez resto dum
sonho a que se apega com desespero” (H, p. 60).
Encontram-se em Húmus, também, figuras que abrem mão da aceitação social e se
marginalizam voluntariamente, os que não se preocupam com a marginalidade ou os que dela nem
se dão conta, como o “Santo”, que “de quando em quando sai no torpor e clama: - O inferno! O
inferno!” (H, p. 61) ou o “Gabiru e o seu sonho”, figura muito mais complexa, recorrente e
expressiva na narrativa do que a primeira.
Ainda no grupo dos humildes que comovem mais o narrador, figuras que, resignadas,
buscando aceitação, companhia e convivência social a qualquer custo, cada qual de uma maneira
diferente, humilham-se, aceitam qualquer papel que se lhes imponha, como a conformada D.
Restituta, “sempre a acenar que sim à vida” e a Úrsula, “cuja missão no mundo é fazer rir os
outros” (H, p. 61). Aliás, a Úrsula, como a Teles, nem possuem o título de D., que poderia
constituir um mínimo de respeito ou consideração social. Aliás, no caso da D. Restituta,
ironicamente, o título Dona relacionado a poder, prestígio, altivez e força contrasta com a
resignação sugerida pelo nome e demonstrada nos gestos da figura.
São mencionadas também, ao longo do livro, inúmeras figuras sobre as quais muito pouco
se sabe, como a D. Hermengarda ou somente Hermengarda, a invejosa (ex-)patroa de Joana, como
a Bisbórria, que também não são tratadas por D.: “Todos os dias a Hermengarda amarga os
brasões da D. Biblioteca, a Bisbórria todos os dias cisma na sua respeitabilidade, e aturam o
azedo que pouco e pouco se deposita nas almas” (H, p. 67).
Sobre os brasões e o saber que D. Biblioteca representa, é interessante pensar que, se por
um lado algumas figuras humildes invejam o status social que essa representante do saber
escolarizado e da cultura dominante encarna; por outro lado, não buscam sabedoria nem
conhecimento e nem demonstram interesse por cultura na obra, por poder e status. Aliás, o
saber pela Biblioteca representado é um saber teórico e não prático nem crítico, que nem faz dela
mais admirável e menos miserável, em termos de existência, do que as demais figuras aos olhos do
195
narrador, que seu saber não conduz ao autoconhecimento e muito menos a uma melhoria da
qualidade do seu ser e de seu viver.
Existem até aquelas figuras que, quase sempre e na medida do seu possível, desejam e
fazem, sincera e desinteressadamente, bem a outros, abnegam e não desistem de levar a vida sem
vaidade, sem ódio, sem ira, sem inveja, sem acídia, sem luxúria e sem gula, como acontece com a
Joana, discrepando do cenário circundante e surpreendendo o narrador:
(...) Cabe aqui uma velha criada, que se não tira diante dos meus olhos. Obsidia-me.
Carrega. Obedece. Serve as outras velhas todas. A Joana é uma velha estúpida.
Serviu primeiro na vila depois na cidade. Serviu com uma saia rota, as mãos sujas de
lavar louça, uma camisa, os usos e seis mil reis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal.
Serviu o tropel, a miséria, o riso, que caminha para a morte com um vestido de aparato e um
chapéu de plumas na cabeça. Para contar fio a fio a sua história bastava dizer como as suas
mãos se lhe foram deformando e criando ranhuras, nodosidades, côdeas, como as mãos se
foram parecendo com a casca de uma árvore. O frio gretou-lhas (...) é inocente e útil e não
ocupa lugar. A vida gasta-a, corroem-na as lágrimas, e ela está aqui tal qual como quando
entrou para a casa da D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. (...) Por dentro a Joana é
ternura, por fora a Joana é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também
as árvores. (H, p. 61)
Não é idealizada, nem santificada, apenas uma figura grotesca, miserável, misteriosamente
bondosa ou resignadamente dominada e estúpida. A bondade da Joana parece muito mais causada
ou forjada pelo “hábito”, pela resignação e pela ignorância, do que por afeto ou desejo de fazer o
bem ao próximo, que se sacrifica mais pela patroa do que pela própria filha: “vê mais
naturalmente a desgraça da filha do que a pobreza da D. Hermengarda. É a sua senhora. Limpa-lhe
a baba e cata-lhe o piolho (...) e nos seus olhos de cão uma inexpugnável serenidade. (...) a
Joana agora rouba” (H, p. 201). É mais digna de piedade do que a Joana santificada de A Farsa,
porque imperfeita, é mais dominada pelas convenções sociais do que por uma bondade
incondicional, tem seu lado luminoso e o sombrio.
Joana constitui uma das figuras de exceção, uma forma de receber os condicionamentos,
mais uma confirmação da imprevisibilidade do ser e da existência. Cada um reage de um jeito
diante das convenções e paradigmas sociais: as velhas reagem de um jeito, os ladrões de outro, a
Joana de um jeito e a filha de outro. Ela é a materialização da possibilidade até de uma existência
que usa grande parte de sua energia para o outro, menos destrutiva do que as demais figuras,
mesmo que para a família não tenha sido construtiva. Sua existência não se demonstra menos
inútil, estéril, transitória e insignificante que as outras. Parece menos perversa do que as velhas,
mas é omissa, passiva, incapaz ou insuficiente para fazer a diferença no cenário social, porque é
isolada, solitária, esporádica, dominada, ainda que insistente, e ignorante, que, diferentemente
do narrador, não compreende e nem sequer pensa sobre as razões ou finalidades de ser como é ou
de agir como age.
196
De qualquer modo, Joana é uma figura controvertida, porém mais luminosa ou menos
sombria na narrativa, comparada com a Leocádia ou a Hermengarda, ainda que todas sejam dignas
de piedade em ao menos um aspecto, desgraçadas em ao menos um sentido, mesmo que causem a
desgraça de outros. Por mais fatalista que seja Brandão e por mais que a Joana de Húmus seja
“desmarializada
15
comparada com a de A Farsa, esta figura feminina se configura senão como
esperança nem possibilidade de (re)humanização, pelo menos como uma figura menos destrutiva,
mesmo que nem sempre consiga trazer ou fazer o bem, como no caso da filha, ou que nem saiba
porque faz o bem, destacando-se positivamente das demais figuras. Joana, ainda que estéril e
neutralizada diante dos ladrões, não servindo para tornar o mundo menos torpe e até ressaltando-
lhe o lado desprezível, labiríntico, deprimente aos olhos do narrador e acentuando-lhe o
"desconcerto", significa ao menos que sempre haverá figuras que pensam no outro e que buscam o
bem, mesmo discrepando do cenário ou que mesmo a figura mais mesquinha pode ter um lado
luminoso, como até Deus tem seu lado sombrio, de invenção humana ou de superego que ilude os
homens: “Todos os heróis são mártires, todos os santos foram iludidos até à morte.” (H, p. 190).
Deus é uma das figuras problematizadas em Húmus, sobre a qual o narrador faz inúmeras
especulações, interrogações, críticas e questionamentos: “eu é que faço a verdade e a mentira.
Dou-lhes o meu bafo. Deus cria-me a mim, eu crio Deus. Uma verdade pode não existir” (H, p.
78). Deus aparece como parte das regras sociais, criadas para conter os ímpetos mais primitivos e
animalescos dos seres humanos: “Continham-na arames enferrujados, o medo da morte, o hábito
de crer em Deus (sabendo bem que Deus não existia), fantasmas, cacos (...) Descobrir que não
há Deus que alegria! Põe a gente à vontade.” (H, p. 90).
Deus ora é contestado, ora posto em dúvida, ora insultado, ora querido, como em: “Debalde
grito não quem me ouça. Debalde sofro ninguém o detém. Tanto faz viver como morrer.
Deus tu és monstruoso!” (H, p. 144); “Acuso-te de teres comprometido a minha situação no
universo. (...) Acuso-te de não me deixares ser bicho.” (H, p. 145); ou em:
A questão suprema é esta e esta: Deus existe ou Deus não existe. Se não Deus, a
vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitemo-la para satisfazer instintos e
paixões. Se Deus não existe não há força que me detenha. (...)
Se Deus existe eu sou um homem, - se Deus não existe eu sou outro homem
completamente diferente. (H, p. 102).
O narrador, entre descrente e crente ou entre assustado com a possibilidade de não existir
um Deus, mas desejoso de que haja ou “na crença que nasceu da maior das dúvidas” (COSTA,
1999, p. 850), acusa “Deus”, fala com e para ele, como na esperança de receber uma prova da Sua
existência. Por outro lado, se a prova não vier, também não virá castigo. Mostra-se decepcionado
com a possibilidade de não haver vida pós-morte e desejoso de que haja e de que a prova surja,
15
Não apresente traços da Maria bíblica.
197
“desejoso dessa plenitude suprema, que excede a compreensão humana” (COSTA, 1999, p. 850).
Sente-se desamparado por não ter a prova e injustiçado por ter cumprido um código de ética inútil,
mas preponderante no mundo: “Forçaste-me a criar outro mundo, a olhar para cima e a clamar no
vácuo. (...) Estive anos a rezar a uma cômoda (...) Fui grotesco e tu não existias.” (H, p. 145-146);
“tu não existes! E não mãos mais cruéis que as tuas. (...) E queira ou não queira estou nas tuas
mãos. tu existes no mundo.” (H, p. 187); “ditador moral, que extirpe sem piedade o pecado da
terra” (H, p. 147).
Outra figura misteriosa e investigada pelo narrador é a consciência, que se mistura com a
figura de Deus, uma espécie de superego que limita as possibilidades existenciais do ser: Não
existindo tu, consciência, o que tu te intrometes na minha vida! E tanto faz analisar-te, discutir-te,
negar-te, incomodas-me sempre. Estás morta – estás viva. (...) Vens de muito fundo!” (H, p. 102).
Em suma, a incerteza quanto à finitude da existência e do ser faz com que o homem limite e
reprima a sua existência por causa do medo da eternidade depois da morte, do ajuste de contas e do
castigo ou recompensa pregado por quase todas as religiões: medo da minha alma em frente da
minha alma, medo de aparecer nu e com pústulas diante do que é eterno. Carreguei-te como um
fardo inútil” (H, p. 103).
Esse superego, que é a consciência, “apegado a velhas palavras e a uma moral sem curso”,
“palavras convencionais”, a “regra” e também Deus, limita o sonho ou o Gabiru, uma espécie de
“id”, “o outro que detesto e arrasta-me para uma vida feroz”, “livre”, impulso para o prazer e
desejos reprimidos: “E esta luta é de todos os instantes. Estes dois seres não têm nada um com o
outro (...) um não sabe o que quer, o outro sabe perfeitamente o que quer. (...) eu digo as palavras
convencionais e o outro murmura baixinho: Livre! Livre!”. (H, p. 96).
Como acontece em outras narrativas de Brandão, Gabiru, ironicamente o "doido" da
narrativa, o “id”, a personificação do sonho, é aquele que se demonstra mais "lúcido" em relação
ao "desconcerto do mundo", à transitoriedade, à inutilidade de tudo, aos enganos, desenganos e aos
dilemas presentes em tudo, no ser, nos gestos. É o único desapegado da carne, irreprimível e, por
isso, isento de máscaras, de repressões, justamente por não ter compromisso algum com a
materialidade, com o transitório plano carnal. É mais inteiro porque desligado da tradição, é mais
coeso, pois não se reprime por causa das exigências sociais. É mais coeso, por não precisar de
máscaras, de fingimentos, de convenções. Buscou sua coerência própria sem tentar enquadrar-se
na coerência do Senso Comum, exigida pela tradição e, na maior parte das vezes, em choque com
as necessidades do ser, com a sua intimidade, seus anseios, seus desejos, o que torna a existência
dilemática, senão paradoxal. A aparente desrazão do Gabiru, que simula a escrita automática, é
justamente o que o conduz à preservação do seu sonho e à sua autopreservação, por não deixar que
as convenções desmembrem-no em máscaras e que ele se deslumbre com os sonhos materialistas
198
das outras figuras: status, poder, aparência. A razão, contrariamente, leva as demais figuras ao
dilema e à ruína do ser diante de todas as concessões que precisam fazer para viver ou estar em
sociedade, o que não é conviver em sociedade.
Mas a libertação do sonho, da intuição, do pensamento e dos sentimentos mais profundos e
reprimidos do ser em Húmus não se restringe à exploração da escrita automática do Gabiru que
evoca o “real do pensamento, na ausência de qualquer vigilância exercida pela razão, para além de
qualquer preocupação estética ou moral”, que a obra funciona como “instrumento de
Conhecimento, tendo em vista a emancipação do homem” (PIRES, 2005), num sentido existencial,
buscando a inteireza e a integridade do ser – ou, pelo menos, do narrador e do seu lado sonhador, o
Gabiru –, ao que a sociedade com seus valores e convenções se mostra um empecilho.
Ao narrador, interessa sempre mais a intimidade do ser, das relações, da vida, do mundo e
até de um Deus e da criação do homem. Interessa o que está por trás e acima: essência ou
interiores e especulação sobre o sagrado, sobre Deus. O verdadeiro responsável pelos
comportamentos estaria oculto, sendo constante objeto de observação e reflexão do narrador, e
seriam os enovelamentos interiores de cada figura, ocultos sob a máscara social de formalidades,
tornando cada ser único e inexplicável, apesar das semelhantes máscaras e dos mesmos gestos
reprimidos.
Nenhuma figura ou postura parece louvável, todas têm suas restrições, na narrativa.
Mergulhar na própria interioridade e isolar-se do mundo, como o Gabiru; mergulhar na alteridade e
esquecer-se de si mesmo, como a Joana; dividir-se entre a própria interioridade e o mundo exterior,
num processo destrutivo a si e ao outro, como a maioria das figuras, cada qual ao seu modo e cada
qual de um jeito diferente; ou tentar todas elas através da escrita ficcional, como faz o narrador.
Nenhuma dessas possibilidades se mostra eficaz, nem a do narrador, ainda que se mostre mais
lúcido e crítico do que todas as figuras que focaliza em Húmus: “Cada vez me sinto mais abjecto e
mais transido cada vez me sinto maior e mais capaz de tudo. Não me posso olhar nos olhos com
medo de ver o que nunca vi em todo o seu horror e em toda a sua nudez. Grito.” (H, p. 91).
O narrador, ao especular e problematizar as existências das figuras focalizadas na narrativa,
busca conhecer-se a si próprio, dono de muitos dos vícios e hesitações observados nas figuras, de
máscaras, de desejos reprimidos, mergulhado também na “regra”, reproduzindo também
paradigmas, amarrado também a essa “poeira trágica” que é a paradoxal condição humana, “poeira
dos mortos e poeira dos vivos” (H, p. 91), matéria e “convenção”, corpo e pensamento: “Mais
poeira ainda, que vem dos confins, toda a poeira dispersa, que foi ternura e desgraça, poeira
desaparecida que foi sonho, poeira inútil que foi dor” (H, p. 91).
Se uma complexidade, uma intimidade é difícil de ser resolvida, sequer compreendida,
imagine-se um conglomerado dessas intimidades complexas e alheias, como estas de Húmus.
199
Ainda mais com a visão parcial, em todos os sentidos: externa e incompleta, que se têm de fora,
que se têm como outro. Nunca se poderá saber nada ao certo sobre um outro, sobre suas vontades,
sobre o seu ser, sobre seus medos, traumas, desejos, como reconhece o próprio narrador: “se nunca
saberei quase nada ao certo nem mesmo sobre o meu próprio ser em constante mudança”, até
porque, internamente, estão em movimento, em atividade, em mudança, ainda que por fora não
pareçam ou não transpareçam.
Assim, o narrador divide-se para tentar melhor entender-se a si mesmo: narrador e Gabiru.
Divide a grande interrogação sobre o mistério da vida em várias indagações para tentar entender,
senão todas, pelo menos algumas das partes-aspectos problematizadas e questionadas. E se, como
tudo no mundo, é ele próprio (narrador) um composto de húmus, um novo ser composto de ruínas
ou pedaços dos mesmos sonhos e matéria velha, uma diferente composição de iguais pedacinhos
de matéria, como num trabalho de análise combinatória, então entender as figuras que vai
apresentando é entender melhor a matéria de que é compostos e a civilização em que está inserido
irremediavelmente. Entender algumas existências, nas suas diferentes combinações, pode facilitar
a compreensão dos seus próprios componentes.
Pode-se dizer que a narrativa, portanto, consiste num exercício de autoconhecimento
através do olhar para o outro, este encarado não como espelho do eu ou como não-eu apenas,
segundo os ensinamentos de um dos discípulos de Freud, Lacan (1998), mas como prisma que
fornece algumas chaves para uma melhor compreensão da “condição humana”, que pode facilitar o
conhecimento do “eu” e do outro também, é claro. Assim, o narrador está em busca de
autoconhecimento e de (ou através de) conhecimento do outro, num construtivo exercício de
alteridade, numa busca de melhor compreensão do eu e do outro ou do eu no outro e da condição
humana, num interminável e dialético interrogatório, em que mais importante que respostas, é o
questionário sobre o ser, sua intimidade e a essência em tudo, nas relações e reações, no mundo e
na existência, nunca se contentando com “as puras reações exteriores” e nunca se instaurando no
absurdo, mas denunciando-o dolorosamente, como faria também o “romance-problema”
(FERREIRA, 1975, p. 225-272) depois.
Paradoxal, portanto, é o sentido da vida, que ruma direto para a morte: viver para morrer,
ser para não-ser. Paradoxal é a condição humana, já que “sou ridículo e construí o mundo”, “sonho
e acabo reduzido a pó”, “sou capaz de tudo e um nada me abate”, “sou sórdido e fútil e não tenho
limites” (H, p. 91). O ser é constituído mesmo de luz e sombra, de vida e de morte, inspira horror e
piedade a um tempo, é “bicho” mas é “da terra tão pequeno”.
E o narrador que observa, analisa, problematiza e julga tudo entre comovido e abismado,
não se pode retirar do paradoxo, não se pode regozijar de nada, humano e desgraçado como todas
as figuras ou mais, por ter a faculdade do pensar e não poder entender o mistério da vida, perguntar
200
sem ter respostas nem quem responda. O narrador se torna até mais desgraçado do que as figuras
que focaliza e questiona, em face da consciência crítica que o torna sensível e abismado diante do
espetáculo macabro, do qual as figuras participam, mas sem atinar para a bizarria do que fazem
e/ou sofrem, dormentes, parte da “massa cega”.
Assim, a abordagem de todas essas questões existenciais, sem referência a anos na
narrativa, localidades específicas ou menção de quaisquer nacionalidades, torna a narrativa o
resultado de um olhar universal e atemporal para a condição humana, ainda mais porque Húmus,
assim como O mistério da árvore, Os Pobres e A Farsa, abordam questões sobre o ser, a
exploração do homem pelo homem, que tanto se aplicam à nacionalidade portuguesa como a toda
a humanidade.
5.5- Considerações Finais sobre o Húmus: desagregação, indagação e abismo
Oh minha alma, pois eras tu! Agora te reconheço! Capaz de tudo, capaz
de baixezas e capaz de sacrifícios. Tão pequena! tão transida! Não vales nada e
pudeste tanto! Oh minha alma, pois eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o
universo, olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão, a tinta do céu, o
sonho errático das vastas florestas. Eras tu! Eras tu! Tem-me custado a dar
contigo, tão mesquinha e capaz de povoares o céu de estrelas e o mundo de
sonho. Atreveste-te a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre dorida, sempre
ansiosa, nunca satisfeita, e coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me a
vida amarga. Encheste-me de ridículo. Atiraste-me aos encontrões contra a
massa cega e compacta, levaste-me como restos de folhas nesta procela de
sonho. Foste a melhor e a pior parte do meu ser. RAUL BRANDÃO
Húmus
Nota-se que o único a escapar da desagregação é, de certa forma, o Húmus, tempo e espaço
físico da diegese. O narrador de forma anacrônica e assistemática vai revelando o húmus, como
uma massa disforme e de enormes proporções, mas homogênea, constantemente
(re)homogeneizada e homogeneizadora de ruínas desagregadas, que as reúne e delas se encorpa.
Ao mesmo tempo em que agrega e a vida em cores, recebe os mortos e ruínas, concebe
cenários, espaços e seres coloridos e aguarda cadáveres, cacos e sombras, que foram se degradando
ao longo da existência miserável.
Os cenários social e físico e o tempo cronológico, pintados em tons de claro-escuro
pesadelo e marcados anacronicamente na forma de diário, perdem relevância, segmentam-se e
submetem-se ao tempo psicológico, que se avoluma, problematiza-se e se enovela, nas digressões
e especulações do narrador. Com isso, tem-se a perda dos contornos “realistas” nas descrições,
convertidas em impressões ou expressões do narrador sobre seres e paisagens físicas ou sociais,
muitas vezes subjetivadas, deformadas ou desconexas, como assume o próprio narrador.
uma fértil galeria de figuras, as mais diversas e inusitadas, em Húmus, todas
invariavelmente são desgraçadas e donas de existências miserandas, nem os humildes, alguns dos
201
quais santificados em obras anteriores de Brandão, deixam de apresentar restrições, fracos, facetas
menos louváveis. Isso para simular e sugerir a infinidade de existências e de personalidades
possíveis, constituídas por uma soma de fatores psicológicos, sociais e situacionais, que resultarão
na impossibilidade de igualdade ou de previsibilidade do ser, de suas maneiras, de seus
relacionamentos, de seus comportamentos. Os seres serão sempre irrepetíveis e surpreendentes,
apesar das pressões homogeneizadoras exercidas pelo meio, pela tradição, que em parte pode ser
repelida, alterada ou adaptada pela imprevisível interioridade humana, que a toda expectativa
desestabiliza, como ocorre com o Gabiru, sobretudo.
Esse universo interior existente em cada ser, chamado na narrativa de “o doido”, que habita
em cada um, como o Gabiru para o narrador, constituído de sonho quase sempre irrealizável,
contra o qual se luta, o qual se busca em vão eliminar, mas que no máximo reprime-se, nunca se
consegue extinguir ou extirpar. “O doido”, o sonho sempre reaparece, ainda que pareça derrotado,
morto, neutralizado, porque, na verdade, permanece latente sempre.
A prioridade do narrador é perseguir e desfiar os enovelamentos interiores das figuras ou as
ocorrências íntimas incessantes e inesgotáveis, bem como os seus próprios. Prefere problematizar
existências e tentar entendê-las e entender-se do que narrar propriamente uma trama, um enredo
coeso e coerente. Prefere investigar, especular, buscar, problematizar a coerência, a unidade e a
coesão nos e dos seres, das e nas suas relações, da e na sociedade, na e da existência, enfim prefere
especular sobre as intimidades por trás das aparências, muito mais do que relatar os mascarados
acontecimentos. Prefere refletir sobre a solidão, o individualismo, o isolamento em que mergulham
as figuras, a carência de fortes laços interpessoais, a inexistência de “verdadeiras” relações
afetivas, esvaziadas, frias, monótonas, meramente formais, sociais, falsas. Ao narrador, interessa a
complexa, misteriosa e indecifrada ou talvez indecifrável essência do ser, das relações, da vida, do
mundo, de tudo e até de um Deus, criador ou criação do homem. Interessa o que está por trás e
acima das aparências.
Desta maneira, aparece como ficção, como impossibilidade a identidade una e coesa, como
apenas uma fantasia, uma máscara, ou melhor, como um conglomerado de máscaras, que cada ser
veste de acordo com a situação e com as exigências do momento.
A alteridade também aparece como um processo destrutivo ou falso, entre as figuras, as
relações surgem como simulacros de afeto, de respeito e de amparo para tentar alcançar ou
satisfazer aos desejos particulares, ocultos, reprimidos.
Apenas para o narrador, a alteridade parece representar um exercício doloroso, mas
construtivo, como busca de compreensão do outro e de si mesmo, ou de si mesmo no (através do)
outro e do outro através de si mesmo.
202
A vida e os vivos são componentes de um pesadelo assustador que contrasta com o sonho e
a mentira agradáveis e luminosos aos seres. Semelhante é a sensação de horror do narrador diante
da civilização, de seres mascarados encenando vidas grotescas e sociedades humanas medonhas,
em oposição à natureza luminosa e arquetípica e ao inconsciente humano que guarda
reminiscências desse ser humano primordial, capaz de viver em comunhão com a natureza.
Assim, Húmus demonstra-se a obra da ruína por excelência em muitos sentidos, tanto pela
sua fragmentação estrutural, pela simulação da escrita diarística, pela reformulação dos elementos
estruturais da narrativa, quanto pela ruína dos seres e das relações interpessoais, familiares e
sociais, pelo individualismo e a desmobilização social, pelo húmus, que é coeso, mas se alimenta
de ruínas de toda a matéria morta. Desta forma, o húmus garante, ainda, na narrativa, a nulidade, a
inutilidade de tudo, de todo gesto e da própria narrativa, do ser, sujeito à morte inexorável, fim e
princípio em si. Da mesma forma como nasce e se torna complexo o ser, também morre e, através
da anulação, desintegra-se, simplifica-se, para depois originar e integrar novas outras
complexidades, em parte novas e em parte o velho mistério da vida.
Como narrativas brandonianas anteriores o faziam, Húmus, através de diferentes figuras
e de diferentes digressões especulativas, problematiza inúmeras questões acerca da existência
humana, como a perda do sonho, a futilidade, o materialismo, a desmobilização social, o
mascaramento e os papéis sociais exigidos do cidadão pela tradição e a exploração de uns pelos
outros, sem falar nas problemáticas filosóficas e teológicas levantadas, como a existência (factual
ou simbólica) de Deus, de onde se vem e para onde se vai, o pré e o pós-morte, para e porque
existe o ser. Sempre de maneira inquieta e buscando a essência por trás das aparências, dos gestos,
das ações e reações, usando o espetáculo a serviço do problema em seu romance, como diria
Vergílio Ferreira.
Atrás das máscaras, dos “arremedos”, do fingimento, estão os verdadeiros sentimentos,
mesquinhos, desgraçados, os quais verdadeiramente interessam ao narrador, conforme se observa
na epígrafe. No íntimo as pessoas são torpes ou desesperadas, vis ou coitadas, ou ambos. É claro
que, aliado a isso, também uma forte comoção para com o outro, num exemplo de alteridade
positiva, lamentando e solidarizando a desgraça sua e a alheia.
Assim, diferentes e as mais inusitadas figuras possíveis em Húmus, justamente para
denotar e simular uma infinita galeria de figuras possíveis, construídas por uma soma de fatores
psicológicos, sociais e situacionais, que nunca resultarão num produto igual e nem sequer
previsível, como pretendiam alguns Naturalistas. Por mais que um indivíduo possa se assemelhar a
outro em limitados aspectos, também pode, contrariando a toda e qualquer probabilidade,
estatística e condicionante, por maior forte que seja, ser completamente distinto. E mais, ainda que
possam ser as exterioridades enormemente semelhantes ou os gestos estereotipados, a intimidade é
203
constituída por uma caótica e surpreendente quantidade de possibilidades combinatórias
irrepetíveis. Por fim, até as maneiras de se relacionar com o mundo, com o meio, com a sociedade,
com o outro e consigo mesmo vão irremediavelmente variar, ainda que, em algum aspecto, possam
identificar-se e por mais que, no fim das contas, seja inútil toda e qualquer ação, pensamento,
movimento, existência, "ser-no-mundo", que tudo e todos convergem no "ser-para-a-morte"
(HEIDEGGER, 2002) e no apagamento final e fatal em meio ao Húmus.
Torna-se a obra um complexo olhar não apenas para a situação dos humildes como para
toda a humanidade e o ser humano, com sua condição trágica e paradoxal.
204
6- UMA CONCLUSÃO SEM PONTO FINAL: PERMANECEM AS INTERROGAÇÕES
Querer combater a idéia de tragédia já é sucumbir a ela.
ALLAIN ROBBE-GRILLET
Por um Novo Romance
É a essa ninharia que é a vida, que deito as mãos com desespero. A vida é
nada é essa cor, essa tinta, esta desgraça. É saudade e ternura. É tudo. É os
meus mortos e os meus vivos. Levo pena de tudo, até da fealdade. Agarro-me a
tudo, tudo me prende, o sonho que não existe, as horas inúteis, o possível e o
impossível. RAUL BRANDÃO
Húmus
As obras de Brandão não apresentam respostas conclusivas, mas indagações que sempre se
renovam nas inquietações dos que as relêem e repensam. Assim também se pretende a reflexão
dessa tese sobre a perene interrogação brandoniana, aberta sempre às novas inquietações que a
repensem, apenas mais uma conclusão sem ponto final, entre as que se fizeram e as que se farão.
A situação dos humildes é uma ferida na condição humana sempre remexida por Brandão.
Da miséria que atinge os pobres, chega-se à tragédia maior da humanidade, a de viver e não poder
escapar da desgraça.
Não se trata de lutar contra a tragédia da condição humana, mas de a indagar, abismar-se e
inquietar-se diante dela, bem como questionar a postura de algumas figuras, distraídas de sua
condição de mortais. A literatura de Raul Brandão está longe de ser combativa, mas também não é
acomodada, não se conforma diante do absurdo, antes problematiza-o e manifesta seu pasmo
diante do absurdo insolúvel a que a condição humana está invariavelmente presa: querer-se eterno
e morrer.
Como Grillet e Vergílio Ferreira, o predecessor Raul Brandão não pretende fazer arte
engajada nem transformadora da sociedade, mas arte reflexiva sobre ser humano e sua situação no
mundo e na vida. Por outro lado, assim como Vergílio Ferreira e diferentemente de Grillet,
Brandão também não instala sua arte no absurdo, não se conforma em apenas “retratar o
espetáculo do mundo”, mas problematiza-o sempre, incomodando-se com ele, como mencionou
o existencialista português Vergílio Ferreira ao criticar a obra de seu predecessor Raul Brandão.
Com isso, as obras de Brandão são universais e atemporais, inclusive muitas nem
mencionam nacionalidades, localidades específicas e anos ou séculos determinados, como as
quatro narrativas que aqui nesta tese são analisadas, aplicando-se muito bem a quaisquer
nacionalidades e épocas em que a civilização humana se divida entre ricos e pobres.
O experimentalismo em Brandão é evidente, numa inquietação inovadora, que lançou bases
para o moderno romance português, revelando traços de estéticas diferentes, aproveitando e
transformando muito das correntes do século XIX, mesmo as antagônicas, interpenetrando-as sem
205
nenhuma preocupação de solver-lhes as contraposições, por vezes confrontando mesmo essas
contradições, favoráveis às problematizações promovidas na obra.
Aliás, a contradição está mesmo no cerne das obras da segunda fase da produção narrativa
de Brandão, presente em quase tudo, desde a construção dos cenários e personagens até a
concepção de tempo e da própria condição humana paradoxal.
A civilização contrasta com a Natureza. Tudo que é tocado pelo homem e sua fúria
empreendedora parece arruinado e obscurecido. A obra humana é sombria e medonha. a
Natureza é capaz de obras luminosas, coesas e perfeitas. Quanto mais tocado ou encantado pela
civilização, mais arruinado é o ser ou o espaço, quanto mais materialista mais desgraçado.
As paisagens dos romances são marcadas por uma estética do horror em nuances de claro-
escuro pesadelo, que evoca a cena barroca, comum entre expressionistas, com cores gritantes e
tonalidades contrastantes nos espaços. Em O mistério da árvore, o cenário é desértico, pintado
com tons de cinza e negro, quebrados apenas pela passagem de dois mendigos amorosos, que vão
deixando um rastro colorido e luminoso por onde passam, pelo menos até serem eliminados pelo
vampiresco rei. Em Os Pobres, o enxurro humano é mais frenético, mas não menos arruinado com
seus tons sombrios, com figuras tenebrosas e agônicas, como se morressem em vida. Em Húmus, a
vila é arruinada e arruinadora de seres, enquanto a terra escura é a amorosa mãe que concebe vidas,
fornece o sustento e que transforma mortes em vidas e alimento. Os espaços e as vidas humanas se
arrastam numa espécie de pintura em degradê, que vai do claro ao sombrio, da concepção à ruína,
do nascimento à morte.
Os personagens e figuras podem também ser sombrios ou luminosos, ora comovendo ora
horrorizando o narrador, com gestos ora caridosos ora perversos nas narrativas da fase do claro-
escuro pesadelo. O sombrio e solitário rei que, como um vampiro, isolava-se na cripta de seu
castelo, morto em vida, em sentimentos e em gestos, contrasta com os mendigos vivazes, que se
amam e se arriscam pela terra, afetuosos, ingênuos, mesmo que sua aparência denuncie e
miserabilidade de seu estado. Os ladrões e prostitutas arruinados de Os Pobres, em diferentes
nuances de sombra sempre clareadas com pinceladas da caridade ou do martírio, invariavelmente
presos aos vícios e à luta por sobrevivência material, contrastam com o Gabiru e o Astrônomo,
presos ao pensamento e ao sonho ou ao universo impalpável. A Candidinha e o Antoninho
contrastam com as figuras “mariais” de Joana, Sofia e Cega, nA Farsa. E as velhas de Húmus
servem de contraponto e de mote para as divagações do Gabiru e do narrador. Ambos inspiram
piedade nos narradores brandonianos, todos esses desgraçados mortais, viciosos ou decrépitos.
Todos os personagens são, via de regra, desprovidos de heroísmo e marcados pela
perversidade, sofrida e/ou praticada na luta pela sobrevivência entre os pobres, nas narrativas
brandonianas. A perversidade é praticada tanto pelos ricos contra os pobres, explorados e
206
humilhados, quanto pelos seus próprios pares, como as ricas velhas de Húmus e os burgueses
Anacleto e Belisário de A Farsa, que se exploram e/ou ludibriam uns aos outros, ou como as
prostitutas e os ladrões de Os Pobres que se espoliam uns aos outros, muitas vezes. As aparências
dos personagens pobres são arruinadas e grotescas, duplos dos cenários e espaços em que habitam,
fantasmagóricos e obscurecidos, também arruinados pelo mal tempo, pela umidade e/ou pelas
ações destrutivas de outros personagens. Os ricos, a fim de se manterem em suas posições
privilegiadas e delas usufruírem, são quase sempre os mais perversos, explorando como vampiros,
ostentando poder, exigindo obediência e/ou trapaceando.
Raros são os personagens que não praticam perversidades nas narrativas. Estes, embora
pareçam estar envoltos numa aura de claridade, são quase sempre vampirizados por personagens
sombrios, como a tríade feminina de A Farsa, vítima da perversidade de Candidinha; o mesmo
ocorre com alguns personagens abúlicos de Os Pobres, como o falido Gebo e a prostituída Sofia,
usados sordidamente por muitos personagens. também os que não praticam perversidades
porque estão em outro plano, como os pensativos narradores brandonianos, que relatam ou
assistem indignados ao espetáculo macabro da vida; e como também o sonhador Gabiru, sempre
envolvido em demandas metafísicas, seja em Os Pobres ou em Húmus. Aliás, todos os narradores
da obra de Raul Brandão deambulam discursivamente pela turba de pobres, narrando pasmos e
comovidos com os dramas dos miseráveis, gritando de pavor diante do vale de lágrimas terreno ou
do tempo que se esvai irreversivelmente e divagando em digressões filosóficas e interrogativas
sobre a condição humana, de forma que nem Deus escapa às suas críticas e questionamentos.
Não tão raros são os personagens exclusivamente perversos, encerrados em sombras, como
o vampiresco rei de O mistério da árvore, o burguês Belisário de A Farsa e várias velhas de
Húmus. No entanto, muitos dos personagens perversos demonstram, ao menos uma vez, um
mínimo de generosidade, entremeando sua personalidade sombria com pinceladas claras, por
menores que sejam seus gestos nobres, como ocorre até ao cruel ladrão Velho de Os Pobres, que
se solidariza na morte da Mouca, após maltratar prostitutas e molestar a filha da Luísa; ou a
Candidinha de A Farsa, que por mais egoísta que seja, nutre afeto em relação ao filho, ainda que
lhe sugue a energia vital, como que vampirizando-o, por outro lado.
O maior número de personagens encontrados na obra brandoniana é, sem dúvida, o
daqueles que sofrem e praticam perversidades, os que se vitimam uns aos outros, como os ladrões
e prostitutas de Os Pobres. Estas, vitimadas pelos ladrões, procuram em quem descontar suas
dores, como no Gabiru. Se não encontram a quem vitimar, atacam-se umas às outras; e aqueles
vampirizam as prostitutas para descontar suas dores e humilhações.
O amor é construtivo, luminoso e faz a diferença em O mistério da árvore, configurando-se
como sonho em oposição ao cenário sombrio de pesadelo, até ser mais uma vez e sempre
207
eliminado pelo rei. Em Os Pobres, o amor também é um sonho, praticado apenas no Natal ou
revelado na natureza primaveril, e torna-se sempre pesadelo quando demandado pelas prostitutas,
exploradas e violentadas. Em A Farsa, o amor é praticado pelas três figuras femininas a que
chamamos “mariais”. Entretanto, essas figuras femininas são estéreis e sofrem até sucumbirem à
dor. O amor é quase inexistente em Húmus, que se constrói entre figuras solitárias, individualistas
e isoladas.
O amor e a sensualidade sadia parecem quase extintos nas personagens e figuras, mal
amadas e solitárias, na obra brandoniana dessa segunda fase. a natureza concentra em si uma
sensualidade luminosa e a possibilidade de uma reprodução saudável, em oposição à esterilidade
da maioria das figuras humanas ou à luxúria doentia que praticam outras. Entre as narrativas
analisadas, apenas a mendiga do conto O mistério da árvore demonstra sensualidade saudável e
luminosa, mas alheia à civilização, representada pelo Rei, parece mais ligada à natureza.
Todas as demais figuras femininas observadas em Os Pobres, A Farsa e Húmus, praticam a
luxúria, perversões, descontando frustrações e por medo de envolvimento emocional e sofrimento,
ou optam pela castidade, quase sempre decepcionados com relacionamentos passados, como
ocorre com Sofia e a Cega em A Farsa, devastadas por Antoninho, e mesmo com Candidinha,
abandonada pelo pai de Antoninho, ou com Luísa de Os Pobres, escorraçada pelo ex-patrão e
amante.
As prostitutas de Os Pobres praticam a luxúria não apenas como forma de sobrevivência,
mas também para se proteger do amor, que lhes foi devastador, quase sempre. Tornam-se
arremedos de femmes fatales, simulando insensibilidade e usando a luxúria como profissão e
substituto para o amor que lhes foi negado e que é quase inexistente não apenas em Os Pobres
como também em Húmus e em A Farsa, expurgado do mundo pelo materialismo, pelo egoísmo
e/ou pela tirania, como foi tirado ao mundo o casal de mendigos de O mistério da árvore.
Os arremedos, entretanto, são máscaras que escondem por trás das aparências, universos
interiores complexos, inconscientes, sonhos e desejos reprimidos, que muito mais encantam e
atraem os narradores especuladores brandonianos do que o palco dos acontecimentos terrenos
fingidos, pautados em regras e convenções vazias. Aliás, o confronto entre máscaras e interiores,
compondo as problemáticas existências dos personagens é que interessam ao narrador
“existencialista” avant la lettre. Enquanto esses inconscientes e sonhos vão sendo observados
pelos narradores e confrontados com as máscaras dos personagens, sonho, mentira e realidade ora
rivalizam ora se misturam compondo telas surrealistas avant la lettre.
Assim, o projeto estético expressionista brandoniano vai ganhando feições ora surrealistas
ora existencialistas avant la lettre. Personagens vão se convertendo nas figuras de Húmus. Os seres
humanos vão ganhando máscaras rasas e previsíveis que escondem avalanches interiores de lava
208
incandescente, revolvendo-se, prestes a qualquer momento a entrar em erupção. Os personagens
vão sendo revirados pelo avesso e seus sonhos e desejos reprimidos vão sendo focalizados. O
narrador repara que, apesar de serem mais importantes para os personagens, quase sempre, os
sonhos permanecem trancados na interioridade. O horror vai se apoderando do narrador até que ele
não pode mais se conter e os seus gritos reverberam em digressões pelas narrativas. Ele sofre
revelações ontológicas e epifanias cada vez mais agudas diante dos acontecimentos e existências
narradas. As reflexões do narrador sobre a condição humana a partir dos eventos narrados,
observadas em Os Pobres, tornam-se mais freqüentes em A Farsa, e predominam em Húmus, em
detrimento mesmo dos elementos estruturais da narrativa tradicional. As narrativas ganham, com
isso, cada vez mais inserções interrogativas até tornarem-se um emaranhado de indagações
entremeadas por pequenos quadros narrativos em Húmus. Sobram indagações e faltam respostas.
Fartam problemas e escasseiam cada vez mais as soluções. Muitas são as figuras e gestos, mas
nenhum heroísmo, muito menos heróis. Muito individualismo e quase nenhum amor. Mais ruínas
do que integridade, mais morte do que vida, morte ao fim da vida e morte em vida. Não é à toa que
o narrador diante disso não para de se indagar.
E continuam sem respostas muitas das inquietantes interrogações brandonianas. Como
respondê-las? O que esperar nesse e desse vale de lágrimas terreno? Como amenizar os danos que
a civilização com suas regras, paradigmas, materialismos e tradições traz ao ser? E como amenizar
os danos que a civilização traz à natureza? Como acabar com o horror da miséria ou, ao menos,
amenizá-lo? Como estreitar o abismo entre ricos e pobres, entre o eu e o outro? Como conviver
melhor? Como ampliar a compreensão dos semelhantes e de si mesmo? Como aproveitar melhor o
breve intervalo da existência? Como libertar os sonhos, os desejos conscientes ou não, que se
escondem atrás das máscaras? Como se livrar da dor e da morte? um Deus? A existência se
extingue com a morte? Como enfrentar o lado sombrio da existência? Como aproveitar e ampliar o
que há de luminoso na existência? Como desvendar o mistério da vida? Como aceitar e entender a
paradoxal condição humana de ser para não-ser ou viver para morrer? Por que ter a faculdade de
pensar e perguntar se muitas vezes são vedadas ao ser respostas e compreensões?
Assim, a narrativa de Brandão, como um produto da modernidade, demonstra inquietação e
explora a interrogação, incessantemente produzida pelos narradores das obras analisadas.
O estudo da maneira moderna como se comporta o narrador brandoniano, inquieto e
indagador, ou abismado diante do que narra, é uma das contribuições que essa tese busca deixar
para os estudos da Literatura do final do século XIX e início do século XX.
Outra contribuição que essa tese pretende deixar para o estudo da Literatura é a análise da
maneira como são compostas as paisagens, nas narrativas de Brandão, pintadas em cores berrantes
e em tonalidades contrastantes recursos que não raramente exageram e até distorcem os objetos
209
focalizados e que constituem práticas comuns entre os pintores expressionistas. Essas práticas
expressionistas são evidenciadas nas quatro obras brandonianas analisadas nessa tese, num
crescente que tem seu ponto culminante ou consolidação em Húmus, partindo de um proto-
expressionismo notado no conto O mistério da árvore para o projeto de representação
expressionista de Os Pobres e a realização expressionista de A Farsa. São esses espaços arruinados
das obras, em que desfilam figuras hediondas, que causam o espanto e motivam as indagações dos
narradores.
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VILHENA, Antônio Mateus & MANO, Maria Emília Marques. Correspondência: Raul Brandão
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231
ANEXOS
232
Anexo 1: Quadro O Grito, de Edvard Munch (1893)
Anexo 2: Quadro Arlequim, de Paul Cézanne (1888)
233
Anexo 3: Quadro Yvette Guilbert, de Henri de Toulouse-Lautrec (1894)
Anexo 4: Quadro Mulher deitada, de Toulouse-Lautrec (1896)
234
Anexo 5: Quadro Os Comedores de Batatas, de Van Gogh (1885)
Anexo 6: Quadro Mulher cozinhando ao fogão, de Van Gogh (1885)
235
Anexo 7: Quadro Prostitutas em torno de uma mesa de jantar, de Toulouse-Lautrec (1893)
Anexo 8: Quadro La Clowness olha em volta, de Toulouse-Lautrec
236
Anexo 9: Quadro A Ronda dos Prisioneiros, de Van Gogh (1890)
Anexo 10: Quadro Os jogadores de cartas, Cézanne (1890)
237
Anexo 11: Quadro Retrato do Doutor Gachet, de Van Gogh
Anexo 12: Quadro A Tempestade, de Vincent Van Gogh
238
Anexo 13: Quadro Retrato de um homem (1889-1890), de Van Gogh
Anexo 14: Quadro Retrato do Armand Roulin (1888), de Van Gogh
239
Anexo 15: Quadro Pirâmide de crânios (1898-1900), de Cézanne
Anexo 16: Quadro Natureza morta com flores, de Van Gogh
240
Anexo 17: Quadro A Amoreira, de Van Gogh (1889)
Anexo 18: Quadro Ramos de amendoeira em flor, de Van Gogh (1890)
241
Anexo 19: Quadro Noite Estrelada, de Van Gogh (1889)
Anexo 20: Quadro Natureza morta com maçãs e laranjas, de Cézanne
242
Anexo 21: Conto O mistério da árvore, de Raul Brandão
In: A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore. Porto: Publicações Anagrama, 1981, p. 99-102.
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