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Otávio Rios Portela
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE RAUL BRANDÃO
Variantes textuais e Construção narrativa em Húmus
Volume único
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas (Literatura Portuguesa), Faculdade
de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Letras Vernáculas (Literatura
Portuguesa).
Orientadora: Professora Doutora Luci Ruas Pereira
Co-orientadora: Professora Doutora Ceila Ferreira Martins
Rio de Janeiro
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Esta pesquisa foi financiada com recursos do Governo Federal, via Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e está em consonância com as
normas de formatação do Manual para elaboração e normalização de Dissertações e
Teses da UFRJ (2004).
E-mail do autor:
Rios, Otávio.
R817hro A experiência estética de Raul Brandão: Variantes textuais e
Construção narrativa em Húmus / Otávio Rios Portela. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2007.
144 f.; il.
Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas – Literatura Portuguesa) –
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2007.
Bibliografia: f 122-129.
Orientadora: Luci Ruas
Co-Orientadora: Ceila Ferreira Martins
1. Brandão, Raul, 1867-1930. HúmusCrítica e Interpretação. 2. Romance
Português - Séc. XIX-XX – História e Crítica. 3. Romance - Técnica. 4. Teoria
Literária. I. Pereira, Luci Ruas. II. Martins, Ceila Ferreira. III. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. IV. Título.
CDD: 869.369
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EXAME DE DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa)
Otávio Rios Portela
A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE RAUL BRANDÃO
Variantes textuais e Construção narrativa em Húmus
Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 2007.
CONCEITO:
______________________________________________________
Luci Ruas Pereira, Doutor, UFRJ
______________________________________________________
Ceila Maria Ferreira Batista Rodrigues Martins, Doutor, UFF
______________________________________________________
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Livre Docente, UFRJ/PUC-Rio
______________________________________________________
Edson Rosa da Silva, Doutor, UFRJ
______________________________________________________
Monica do Nascimento Figueiredo, Doutor, UFRJ
______________________________________________________
Dalva Maria Calvão da Silva, Doutor, UFF
Aos amigos, que tornaram a estada no Rio de Janeiro uma experiência de
sabor e de saber;
ao Valter e à Terezinha, amigos que (re)encontrei nesta Cidade
Maravilhosa;
à Camile Tesche, Héllen Dutra, Janaína Silva e Luiz Fernando pela
amizade e pelos bons momentos que passamos juntos;
à Renata Moreira pelas trocas intelectuais, pela leitura criteriosa, pelo
apoio incondicional em todos os momentos e pela compreensão, mesmo
à distância;
ao Rodrigo Borba, um grande amigo que encontrei onde menos esperava,
em homenagem a nossas andanças e conversas pelas ruas do Flamengo;
ao Mário, pela divergência natural e salutar, pelo apoio em todas as
horas, pelo carinho cotidiano;
à Silvana, minha irmã, e à minha mãe, pelo incentivo entremeado de
lágrimas;
A meu pai (in memoriam), que certamente teria embarcado comigo nesta
aventura carioca,
OFEREÇO E DEDICO.
A todos que contribuíram com esta Dissertação de Mestrado;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de vel Superior (Capes),
pelo fomento tão necessário;
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas e à Cátedra Jorge de
Sena (UFRJ);
À Coema Escórcio e à Edna Carlos, professoras da Universidade Estadual do
Ceará, que em mim despertaram o interesse pela Literatura Portuguesa e me
iniciaram no mundo da pesquisa;
Ao professor Jorge Valentim, da Universidade Federal de São Carlos, pelas
palavras de incentivo nos momentos mais difíceis e pelo envio de seus artigos,
que foram bastante importantes para minha investigação;
Ao professor Paulo Motta, da Universidade de São Paulo, pelas sugestões
expostas durante encontros acadêmicos;
Aos professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que em mim
acreditaram e me apoiaram nesta jornada de dois anos;
Aos professores Carlos Reis, Edson Rosa, Gilda Santos, Mônica Figueiredo e
Sheila Hue, pelo muito que me ensinaram, nas aulas da pós-graduação, e
contribuíram com meu crescimento intelectual;
À professora Cleonice Berardinelli, orientadora de minha orientadora, que certo
dia me relatou seu desejo de folhear estas páginas, matando as saudades das
leituras de Raul Brandão na juventude; obrigado por me honrar com sua
presença na composição da banca examinadora deste trabalho;
À professora Ceila Ferreira Martins, da Universidade Federal Fluminense, que
com empolgação co-orientou esta pesquisa e me conduziu pelos caminhos da
Crítica Textual;
Especialmente, à professora Luci Ruas, ser humano cheio de ternura e
investigadora sagaz que tenho o orgulho de ter como orientadora, pelo diálogo
perene, pela abertura e pela confiança continuamente em mim depositada
desde o primeiro contato,
AGRADEÇO.
Mas não é necessário usar expressões
artificiais, falar de ‘dialogue interieur’ ou
aludir a Joyce. Na realidade, trata-se de uma
coisa inteiramente diferente. O princípio
estilístico do livro é a montagem.
(BENJAMIN, 1994, p. 56)
RESUMO
RIOS, Otávio. A experiência estética de Raul Brandão Variantes textuais e Construção
narrativa em Húmus. Rio de Janeiro, 2007. 144f. Dissertação (Mestrado em Literatura
Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
A reescrita constante dos textos e a consciência do fazer literário são marcas da
escritura de Raul Brandão, autor português do final do século XIX e primeiras décadas
do XX. Esta investigação tem como objetivo central perscrutar a modernidade de
Húmus, a partir da perspectiva de uma ruptura com a tradição do romance realista e da
experienciação de novas possibilidades estéticas de construção narrativa. Coloca-se
em pauta a problemática da narração, da crise da escrita da história e do romance,
nesse que é, nas palavras de Vergílio Ferreira, o mais atual escritor do meio-século
lusitano.
ABSTRACT
RIOS, Otávio. A experiência estética de Raul Brandão Variantes textuais e Construção
narrativa em Húmus. Rio de Janeiro, 2007. 144f. Dissertação (Mestrado em Literatura
Portuguesa) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
The frequent texts’ rewriting and the awareness of the literary making are important
aspects in Raul Brandão’s work, Portuguese author who published his texts between the
end of the 19th century and the beginning of the 20th century. This study aims at
investigating the modernity traits in Húmus. It is based on a perspective of a dissociation
from the realist novel tradition and the experimenting with new aesthetic possibilities of
narrative construction. Under scrutiny here are issues of narration, of the literary writing
and the history crisis, in the work of this author who is, according to Vergílio Ferreira, the
most modern lusitan writer of the mid-century.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO
.................................................................................... 10
2
VARIANTES TEXTUAIS
..................................................................... 22
2.1 Ponderações sobre a recepção do texto ......................................... 24
2.2 Os meandros genéticos .................................................................... 28
2.3 As versões da obra e a escolha do texto-base ................................ 46
3 ENTRE RUÍNAS
.................................................................................. 50
3.1 História e Narração ........................................................................... 51
3.2 Sob o signo da desordem ................................................................. 64
3.3 Metamorfose do romance e o texto de Raul Brandão ...................... 67
......................................................... 78
4.1 Os sentidos do Húmus: leitura crítica do romance ...........................
78
4.1.1 Micronarrativas do texto literário ............................................... 91
4.2 Um pouco mais do texto ...................................................................
4.3 Húmus e Signo sinal: escrituras em diálogo.....................................
106
110
5 A EXPERIÊNCIA ESTÉ
TICA DE RAUL BRANDÃO
......................................
(Considerações Finais)
116
REFERÊNCIAS
...................................................................................... 122
ANDICE
-
EXERCÍCIO DE EDIÇÃO CRÍTICA
................................. 130
ANEXO
................................................................................................... 142
10
1 INTRODUÇÃO
1
Uma redondilha de Camões e uma pesquisa acadêmica podem ter muito em
comum. E não somente quando o vate é objeto de estudo e o texto investigativo fica
embebido de sua lírica. A pesquisa utiliza-se de uma estrutura usual em poemas
camonianos e de outros cultivadores da medida velha: o mote e a glosa. Esta
Dissertação, em certa medida, é uma glosa ao mote dado por análises anteriores, que
deixaram em aberto temas sobre os quais nos debruçamos.
Passeando pela escritura de Raul Brandão, prosador português cujos textos são
coloridos com matizes decadentistas, o leitor deste trabalho se confrontará com uma
investigação cujo corpus de análise é o livro mus, publicado, inicialmente, em 1917.
O escritor, apreciador das temáticas crepusculares (cf. VIÇOSO, 1999, p. 57), figurou
como uma das mais importantes personalidades das letras e da cultura portuguesas
das primeiras décadas do século passado. Sua obra é significativa não apenas pela
quantidade de títulos publicados (que atinge cerca de duas dezenas, sem contar os
textos em períodicos)
2
, mas, sobretudo, pela diversidade de gêneros literários em que
se constrói.
Raul Brandão experimentou da crônica jornalística ao livro de memórias, com
destaque para sua atuação como teatrólogo (podendo ser incluído entre os grandes
expoentes do teatro português da primeira metade do século XX) e na produção de
intrigantes romances, dos quais destacamos, além da obra aqui estudada, A Farsa
1
Uma primeira versão desta Introdução foi apresentada oralmente no IV Seminário de Teses e
Dissertações em Andamento do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, em novembro de
2006.
2
A obra brandoniana abarca romances, teatro, narrativas de viagens, narrativas de fundo histórico,
narrativas ficcionais, correspondências, diários e poemas, além de textos de critica literária, quase nunca
lembrados.
11
(1903) e Os Pobres (1906). Intrigantes porque reúnem em suas páginas toda a
diversidade literária do escritor, gerando, freqüentemente, problemas de ordem
genológica
3
. Não bastasse o vigor do texto, Brandão agregou ao seu redor verdadeira
casa de pensadores na década de 1920, o que contribuiu para o prolongamento da
influência brandoniana na literatura portuguesa até a década de oitenta, ao menos.
A escolha de Húmus não é aleatória. Dentre os romances de Raul Brandão, ocupa
um lugar de destaque, tanto pela controvérsia que gerou na crítica portuguesa ao longo
do culo, quanto pela potencialidade do texto, misto de reflexões íntimas, comentários
acerca da existência e da condição humanas e, de acordo com certa crítica
4
, de uma
narrativa falhada
5
, sobretudo em decorrência da fragmentação do tempo narrativo. No
romance, estão presentes duas temáticas que se sobrepõem, como afirma Vergílio
Ferreira em “No limiar de um mundo, Raul Brandão” (1977): a existencial-metafísica e a
sócio-econômica
6
. E ambas estão ligadas pelos efeitos de um tempo de crise, de caos
social que extrapola as fronteiras do indivíduo e da sociedade e penetra a estrutura do
romance.
Considerado por Jacinto do Prado Coelho (1996) e por Óscar Lopes (1969)
7
a
obra-prima de seu autor, Húmus continua pouco divulgado, lido e apreciado pelos
leitores lusófonos dos dois lados do Atlântico e é por isso que esta Dissertação acolhe o
3
Numa perspectiva da Teoria dos Gêneros e da Narratologia, tentaremos problematizar, no âmbito de
Húmus, no segundo capítulo desta Dissertação, a pergunta já lançada em texto apresentado no X
Congresso Internacional da ABRALIC: “se o romance tradicional entrava em crise e desestruturava-se, é
coerente continuar denominando essas produções de romance?” (PORTELA, 2006, p. 4)
4
Será explicitada no corpo da pesquisa.
5
Sobre a narrativa de Raul Brandão, ver segundo e terceiro capítulos.
6
Temática igualmente apontada por Jacinto do Prado Coelho, em seu texto “O Húmus de Raul Brandão”
(1996): “No mus, o problema social e o problema metafísico interpenetram-se, conjugam-se.” (p. 237).
7
Diz o crítico: “Húmus, a obra-prima de Raul Brandão, é, como se sabe, um tecido de fragmentos de dois
monólogos – o do ‘outro’ [...] e o dum filósofo lunático, transido a que se cola um nome grotesco: Gabiru”
(p. 235).
12
desejo de contribuir para o resgate da obra de Raul Brandão; se não para fazê-la brilhar
em meio ao cânone literário da nossa língua portuguesa, ao menos para repensá-la,
tentando minimizar-lhe a alcunha de escrita deficiente.
Esta pesquisa tem como ponto de partida a glosa ao comentário esboçado por
Maria João Reynaud em Metamorfoses da Escrita
8
(2000a), Tese de Doutoramento
defendida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que se constitui texto
basilar para quem se encarrega, na alvorada deste novo século, de estudar Raul
Brandão e sua vasta obra. A mesma reflexão, em texto compilado, é inserida pela
pesquisadora na “Introdução” (2000b) à edição crítica de Húmus, publicada pela editora
Campo das Letras. Eis o valioso mote:
Sua obra [...] [tem] sido frequentemente interpretada como o reflexo de uma
deficiência estrutural, e não como um inequívoco sinal de modernidade.
Segundo certa crítica, trata-se mesmo de uma absoluta incapacidade de
construção narrativa, argumento que tem servido para aferir sua grandeza por
defeito. (p. 12)
É imperioso observar que Húmus não é propriamente um romance; mas três
textos diversos. Não é uma trilogia, mas um texto que conheceu três versões autorais,
todas impressas sob a supervisão do escritor, nos anos de 1917, 1921 e 1926. Quando
pensamos a respeito dessa profusão de versões, acreditamos que as palavras de Maria
João Reynaud apontam para um juízo mais confiável. A reescrita de mus não foi um
caso isolado, ilhado: o autor tinha por prática refundir seus textos, repensá-los
constantemente; e isso pode ser verificado de forma peremptória, tendo por base de
sustentação a correspondência privada de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes,
8
Tese defendida em 1997 e publicada, após revisão da autora, em 2000, pela editora Campo das Letras,
em Portugal.
13
analisada nesta investigação. Acreditamos que, não sendo a refundição do texto
brandoniano um ato esvaziado de reflexão acerca da construção narrativa, as
constantes alterações no corpo da obra, com a manutenção de uma estrutura
fragmentada e dissolvida, possibilitam refutarmos o julgamento de que seja um
romance inacabado ou incompleto. Ao contrário, nenhum outro livro de Brandão foi tão
pensado e até mesmo debatido com outros escritores da época, num exemplo bastante
profícuo de sociabilidade intelectual
9
. Sendo fruto de uma intelectualização, não se
pode dizer que Raul Brandão não tenha querido imprimir ao texto o caráter falhado que
foi motivo, durante tantas décadas, de um julgamento enviesado. Contudo, essa
característica de Húmus também pode refletir, até certo ponto, as circunstâncias
históricas em que foi produzido, e que serão aprofundadas no segundo capítulo.
A ruptura com o modelo canônico de romance vigente no século XIX confere à
narrativa uma aparência de desorganização, de inadequação. É uma consciente marca
de modernidade na concepção do texto literário da qual Raul Brandão, ao lado de Mário
de -Carneiro, com A Confissão de Lúcio, ambos na prosa, é o grande arauto, o que
nos leva a considerar o primeiro como o responsável capital pela instauração do
romance moderno em Portugal (Cf. PORTELA, 2006, p. 4 et seq). Valiosas e
sintetizadoras são as palavras de Vergílio Ferreira acerca da construção desse novo
tipo de romance
10
. Ao lê-las, podemos estabelecer, imediatamente, relação com
Húmus: “a ‘desorganização’ da novelística moderna é milimetricamente organizada; e
que o grande mestre dessa novelística seja um engenheiro, é quase simbólico” (1977,
9
O conceito de sociabilidade nos foi apresentado durante disciplina ministrada, no primeiro semestre de
2006, pelas professoras Gilda Santos e Sheila Hue, no Programa de Pós-Graduação em Letras
Vernáculas, UFRJ. Nesta pesquisa não iremos esboçar definições e teorizações sobre o tema.
10
Aprofundaremos um estudo sobre o romance moderno no segundo capítulo desta Dissertação.
14
p. 218).
O tônus desta investigação, por conseguinte, é esquadrinhar aspectos de
modernidade subjacentes à narrativa brandoniana. É preciso adiantar que Álvaro
Manuel Machado, no ensaio Raul Brandão: entre o romantismo e o modernismo (1984),
o autor de Húmus, em virtude de sua própria contemporaneidade em relação ao
movimento de Orpheu, como um modernista. Entretanto, preferimos pensar que
Brandão não se engajou em mobilizações deflagradamente inovadoras, mas criou seu
próprio círculo literário, em parte, paralelo ao grupo de 1915 e de existência
cronologicamente mais duradoura
11
.
Importante sublinhar que a concepção de moderno/modernidade que norteia esta
pesquisa é assentada, sobretudo, em três idéias nucleares: 1. uma ruptura com a
tradição (neste caso específico, os modelos literários do século XIX), 2. a consciência
da ruptura (ou seja, pensar e refletir sobre o texto em busca de uma inovação, o que
nem sempre implica obter um resultado final definido previamente), e 3. a crise da
experiência original, deflagrada com a industrialização e a urbanização, sobretudo a
partir do culo XIX (sobre a qual nos deteremos no segundo capítulo), como
argumentam, respectivamente, Octavio Paz, em Os Filhos do Barro (1984), Henri
Lefebvre em Introdução à Modernidade (1969) e Walter Benjamin nos diversos ensaios
que são articulados nesta pesquisa, além de A modernidade e os modernos (1975).
Destarte, a modernidade é uma marca que não está circunscrita ao culo XX ou a
determinados grupos intelectuais, ao contrário do modernismo, que se sustenta a partir
11
Saliente-se que não se trata de uma durabilidade como sinal de influências e heranças literárias, mas
de tempo de existência (cronológico), estritamente. Lembremos de que a revista Orpheu teve apenas
dois números.
15
desses preceitos
12
. Cada momento moderno funda uma nova tradição e nessa
perspectiva a modernidade é uma marca, um valor imbricado na inovação.
Vergílio Ferreira percebeu que Raul Brandão não pode ser estudado como parte
integrante de um conjunto literário, mas é preciso ser observado individualmente, como
caso sui generis na literatura portuguesa, em decorrência de sua precocidade e da
inovação de sua arte. Quando dizemos precocidade é porque em 1903, com a
publicação d’A Farsa, o autor lança as bases de sua silenciosa revolução na construção
do texto. Não foi ao acaso que Vergílio Ferreira publicou, em sua coletânea Espaço do
Invisível, uma série de ensaios em que se detém na literatura brandoniana ou faz-lhe
referência, entre os quais sublinhamos o texto “Raul Brandão e a novelística
contemporânea” (1987).
Entretanto, nem Álvaro Machado nem Vergílio Ferreira se aprofundaram numa
análise da modernidade de Raul Brandão sob o viés da estrutura de um texto que toma
forma em um momento de crise, que se avoluma como um romance surgido em tempos
em que “a impossibilidade de contar e de cantar” (cf. SILVA, 2004)
13
impede a narração
de grandes histórias, fatos e feitos
14
.
a Tese de Maria João Reynaud (2000a), apesar de tomar a modernidade da
narrativa brandoniana como fato inquestionável, não envereda por uma análise da
estrutura da obra a partir de suas categorias formais: detém-se no cotejamento das três
12
Para um esclarecimento sucinto acerca dos conceitos de moderno, modernismo e modernidade,
consultar:
COELHO, Jacinto do Prado (org.). Dicionário de literatura brasileira, portuguesa e galega. Porto:
Figueirinhas, 1987.
13
Tomamos por empréstimo parte do título de artigo publicado por Edson Rosa da Silva, na revista
Semear, da Cátedra Padre António Vieira, PUC - Rio.
14
Impossibilidade sugerida pelo filósofo alemão Walter Benjamin em alguns de seus mais célebres
textos: “Experiência e pobreza” (1994) e “O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”
16
versões de Húmus, o que faz detidamente linha a linha, sem aprofundar a discussão
em uma teoria narratológica do romance
15
. Também não associa essa “metamorfose”
(REYNAUD, 2000a) por que passa a narrativa de Raul Brandão às modificações
enfrentadas pela própria concepção de tempo e de história nesse período finissecular,
época de mudança, que ilustramos com o seguinte trecho do próprio autor em estudo,
publicado em A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore (1981):
Singulares criaturas devem nascer por este fim de século, em que a metafísica
de novo predomina e a asa do Sonho outra vez toca os espíritos, deixando-os
alheados e absortos. A necessidade do desconhecido de novo se estabelece.
A ciência, que por vezes arrastara a humanidade, que a supunha capaz de ir
até ao fim bateu num grande muro e parou. Que importam o princípio e o
fim? (p. 43-44)
Como requer uma pesquisa, Reynaud (2000a) teve que delimitar seu campo de
estudo e, por isso, sua Tese aborda esses assuntos de forma tangencial, en passant,
sobre os quais nos propomos a trabalhar. Após o debate sobre a reescrita da obra e de
seu processo genético, privilegia-se a análise da concepção de tempo e de história
forjadas no decurso da virada para o século XX. Na perspectiva do autor da obra, como
buscamos demonstrar ao longo desta investigação, esse é o leitmotiv da
desestabilização da estrutura canônica do romance; que se apresenta no texto
brandoniano, que será analisado ao final desta pesquisa, como um modelo caótico, e
que seria visto na França somente anos após a publicação princeps da grande obra de
Brandão.
(1994); bem como por Theodor Adorno, em seu ensaio “Posição do narrador no romance
contemporâneo" (2003).
15
Ao confrontar as versões de Húmus, Reynaud (2000a) tenta evidenciar que Raul Brandão empreendeu
a refundição da obra, por duas vezes, na busca por uma melhoria do ritmo do texto (p. 107 et seq.).
17
Dessa forma, acreditamos ter introduzido, em linhas gerais, os dois grandes eixos
desta Dissertação de Mestrado, que se harmonizam para que se atinja o objetivo:
evidenciar a modernidade da narrativa brandoniana. Modernidade que pode ser
vislumbrada na intelectualização do texto, quando Raul Brandão reflete sobre sua
própria escrita e a refunde por duas vezes; modernidade que vem à tona, também,
quando o autor implode a estrutura do romance tradicional para ver nascer dos
destroços do modelo narrativo vigente no século do positivismo, um novo romance, um
precursor do nouveau roman francês.
Se a modernidade de Húmus foi apontada em outros estudos, inclusive tendo
sido objeto de investigações de Mestrado e Doutorado em Universidades portuguesas e
brasileiras
16
, ainda não foi vista sob o viés de uma teoria da narração e sob o olhar de
16
A seguir, relacionamos os títulos que tivemos a oportunidade de ler e consultar na Faculdade de Letras
da UFRJ, bem como as Dissertações e Teses defendidas no Brasil que estudam a obra de Raul Brandão,
segundo informações do Banco de Teses da Capes, em 28 de maio de 2007:
IVORRA FILHO, Fermin Vanó. O Teatro Trans-Ibérico: Raul Brandão e Valle - Inclán. 2006. 244p.
Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Línguas Portuguesa), USP, São Paulo.
Orientador: José Horácio de Almeida Nascimento Costa. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=2006633002010168P8.
MATOS, Bernardino Paiva. Os Maias e Húmus: subjacência e adjacência de discursos, rumo à
modernidade. 2006. 122p. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas), UFRJ, Rio de Janeiro.
Orientador: Luci Ruas Pereira. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=200635831001017070P6.
GONÇALVES, Ângela. mus: um sinal entre as luzes do crepúsculo. 2002. 129p. Dissertação
(Mestrado em Letras Vernáculas), UFRJ, Rio de Janeiro. Orientador: Luci Ruas Pereira. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=200216631001017070P6.
TOFALINI, Luzia Aparecida Berloffa. O romance lírico de Raul Brandão. 2001. 281p. Tese (Doutorado em
Letras), UNESP, Assis. Orientador: Odil José de Oliveira Filha. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=200123233004048019P1.
MARTINELLI, Creud Pereira Santos. O palhaço em “A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore”, de Raul
Brandão. 1999. 153p. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa), USP, São Paulo.
Orientador: Álvaro Cardoso Gomes. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=19994933002010111P6.
18
uma nova concepção de tempo e de história. Acrescente-se que os trabalhos
desenvolvidos no Brasil, talvez em decorrência da dificuldade de acesso à obra, que se
encontrava praticamente esgotada até a publicação da edição crítica de Maria João
Reynaud, quase não fazem menção à existência de mais de uma versão do texto e,
portanto, não levam essa informação em questão em suas investigações e reflexões.
Outrossim, não faremos uma abordagem filosófica, metafísica ou existencial,
tarefa levada a cabo por Vítor Viçoso em A máscara e o sonho: vozes, imagens e
símbolos na ficção de Raul Brandão (1999), Tese de Doutoramento defendida na
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
17
. Fixamo-nos, como explicitado, na
análise do percurso genético, desvelado pela existência das três versões, e, em
paralelo, à estrutura desse novo romance, resultante das novas concepções nascidas
na virada do século, analisando-o, por fim. É nisto que se funda a originalidade desta
investigação.
Os escritos de Walter Benjamin ganham lugar de relevo nesta pesquisa, sobretudo
Origem do drama barroco alemão (1984), “A crise do romance. Sobre Alexanderplatz,
de Döblin” , “Experiência e pobreza”, “O narrador. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov” e as teses “Sobre o conceito de história (1994). Destaque-se, de toda a
obra do filósofo alemão consultada, a tese 9, cujo conteúdo está em profunda sintonia
com o texto brandoniano, que nos aponta imagens desestabilizadoras da ruína e da
TOFALINI, Luzia Aparecida Berloffa. O absoluto e o relativo em Húmus. 1997. 99p. Dissertação
(Mestrado em Letras), UEL, Londrina. Orientador: Virgínia Maria Gonçalves. Resumo em:
http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=19973740002012012P8.
RICCI, Claudinette Gabarron. Palavra, Grito e Silêncio - análise de “Os Pobres” de Raul Brandão. 1997.
81p. Dissertação (Mestrado em Letras), UEL, Londrina. Orientador: Virgínia Maria Gonçalves. Resumo
em: http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=19973340002012012P8.
17
A Tese, apresentada em 1987, encontra-se publicada pelas Edições Cosmos.
19
catástrofe. É justamente a visão da erosão do tempo, da história e da sociedade,
claramente em oposição aos valores positivistas do oitocentos, que, acreditamos, dão
substância, ou melhor, ressubstanciam o romance como gênero literário. O pensamento
de Walter Benjamin, deste modo, encontra o de Raul Brandão na medida em que os
dois compartilham da idéia da desordem, da quebra da linearidade, da dissolução das
armações da escrita.
Esta Dissertação desenvolve-se em três capítulos distintos e complementares. O
primeiro envereda por questões pontuais de Crítica Textual Moderna, com sua
componente genética intrínseca, analisando a produção do texto a partir de
comentários e indícios delineados na correspondência privada trocada entre Raul
Brandão (1994) e Teixeira de Pascoaes, que totaliza 238 peças, entre cartas e cartões-
postais. Passa-se ao largo do diálogo epistolar travado com outras figuras de relevo da
intelectualidade portuguesa da época, em decorrência da necessidade de se
estabelecer um recorte de investigação. Para o desenvolvimento do capítulo, recorre-se
a textos de Andrée Rocha (1985), Luiz Fagundes Duarte (2005) e António Mateus
Vilhena (2000), que auxiliam a refletir sobre o trabalho investigativo com epitextos
privados
18
; Ivo Castro (1990) e Ceila Ferreira Martins (2007) para leituras que nos
possibilitam uma fundamentação em Crítica Textual.
Também nessa seção se define o texto-base utilizado na análise literária (terceiro
capítulo) e e sob escrutínio os motivos que levaram a tal eleição. Essa parte da
Dissertação, em sintonia com o comentário de Reynaud esboçado em sua Tese, tenta
18
Estamos chamando-os aqui de epitextos privados, tendo em vista que a feitura das missivas (embora
sejam fontes de informação sobre a obra) não tinha como objetivo, ao menos imediato, a sua publicação.
Gérard Genette (1987), entretanto, prefere denominar as cartas trocadas entre escritores de l’épitexte
publique”, uma vez que esse material pode servir a uma reconstituição histórica da obra.
20
jogar por terra uma suposta deficiência na escrita de Raul Brandão a fim de abrir
caminho para uma discussão sobre o novo modelo de romance proposto pelo escritor
português.
O segundo capítulo constrói-se sobre uma discussão teórica de âmbito
narratológico, em que se põe em evidência o debate das novas idéias de que falamos
anteriormente. É difícil, portanto, não considerar que é no princípio do culo XX que a
necessidade de se ter uma disciplina da História alicerçada na subjetividade aflora e
que seus teóricos adquirem consciência de que suas produções são narrativas, sujeitas
a variações e interpretações do historiador-narrador. Essa visão de uma história-
narrativa marca que a verdade absoluta se perdeu. É esse mesmo sentimento de perda
que sentimos na estrutura de Húmus. Entre os apoios basilares dessa seção,
destacam-se Carlos Reis (2003), Jeanne Marie Gagnebin (2004), Roger Chartier
(1994), Theodor Adorno (2003), Vergílio Ferreira (1965a,1965b e 1977) e Walter
Benjamin (1984 e 1994).
Sugerir uma leitura da obra, cotejando-a, sempre que possível, com outros textos
escritos pelo autor, bem como assinalar as principais marcas da modernidade de sua
escritura é a meta do terceiro capítulo. Quando necessário, recorremos aos textos de
Vergílio Ferreira (1965a, 1965b, 1977 e 1987), David Mourão-Ferreira (1992), Álvaro
Machado (1984 e 2000), Maria João Reynaud (2000a, 2000b), Dalva Calvão Verani
(2001), Jorge Valentim (2004 e 2006) e Guilherme de Castilho (2006), assim como
outros estudos que não serão explicitados aqui para não alongar em demasia esta
Introdução. O capítulo se encerra com uma comparação entre os romances Húmus e
Signo sinal, na perspectiva de que Vergílio Ferreira foi, além de estudioso da obra
brandoniana, um herdeiro literário desta (cf. VERANI, 2001, p. 62).
21
Traçado, portanto, o esboço desta pesquisa de Mestrado, esperamos ter
esclarecido, por via indireta, o próprio subtítulo que lhe atribuímos: “Variantes textuais e
Construção narrativa em Húmus”, em que se vislumbram os dois grandes eixos em que
se desdobram os três capítulos. Mote dado e glosa por vir, que a musa e o poeta
inspirem este trabalho, dotando-o do engenho e da arte necessários à sua feitura.
22
2 VARIANTES TEXTUAIS
19
Cada estação da vida é uma edição, que corrige a
anterior, e que será corrigida também, até a
edição definitiva, que o editor dá de graça aos
vermes.
(ASSIS, 1977, p. 151)
Ao refletir sobre a literatura brandoniana, surge em nosso pensamento a imagem
do autor. Não uma idealização qualquer, mas a tela produzida por Columbano Bordalo
Pinheiro, em que este traduz em luz e sombras a forte marca impressionista que
permeia a escritura do prosador. Entre o claro e o escuro, a luminosidade e a
penumbra, surge o pouco conhecido quadro Raul Brandão
20
. O artista plástico
costumava pintar grupos de intelectuais, como, por exemplo, os membros da Seara
Nova, da qual o escritor em estudo fez parte, mas também se debruçava em retratar
isoladamente alguns nomes da cultura portuguesa, como é o caso da célebre pintura
de Antero de Quental. Na tela que agora evocamos, e que está reproduzida no anexo
(Imagem 1) desta Dissertação, Raul Brandão aparece sozinho, em posição de escrita
com o aparato gráfico na o. Estaria mais uma vez mexendo em seus textos? É uma
possibilidade bastante plausível
21
É sabido que todos os livros de Brandão, à exceção d'O Pobre de Pedir e do
terceiro volume de suas Memórias (Vale de Josafat) publicados postumamente em
1931 e 1933, respectivamente –, passaram por um intenso processo de refundição. As
modificações realizadas pelo autor em suas obras resultaram, quase na totalidade dos
19
Uma versão parcial deste primeiro capítulo foi apresentado oralmente no I Encontro Norte-Nordeste de
Professores-Pesquisadores de Literatura Portuguesa, em 2006.
20
Atualmente, integra o acervo do Museu do Chiado. Não localizamos a data de produção da tela.
21
Sem nos determos em uma problematização acerca do real e da representação pictórica.
23
casos, na produção de variações tão severas que poderíamos, efetivamente,
considerá-las textos de obras díspares. Além de ter sido alvo, por duas vezes, do
trabalho de refundição do autor, Húmus também foi objeto de projetos de tradução, a
maioria realizada, nas línguas espanhola, francesa e italiana
22
.
A escrita da “obra-prima” de Raul Brandão
23
foi um processo bastante complexo,
que nos legou as versões aludidas e decorre daí o nosso interesse em estudá-la,
especialmente pelo desejo de conhecer os meandros do processo genético do livro
24
,
assim como pela necessidade de adotar um único texto-base
25
para esta investigação,
tendo em vista as grandes diferenças entre as versões autorais, como é evidenciado no
exercício de Crítica Textual apenso ao texto principal deste trabalho. Para tanto,
22
A seguir, disponibilizamos a lista de edições de obras de Raul Brandão traduzidas para línguas
estrangeiras. Os dados foram obtidos após consulta ao site da Biblioteca Nacional de Lisboa (www.bn.pt,
acesso em 29 de maio de 2007) e a livros de crítica especializada, manipulados no decorrer desta
pesquisa de Mestrado:
BRANDÃO, Raul. Die fischer. Trad. Astrid Schoregge, Sven Limbeck. Heidelberg: Elfenbein, 2001 [Título
original: Os Pescadores].
________. Humus. Traduction Du portugais et préface de Françoise Laye. Paris: Flammarion, 1992.
________. Humos. Traduction Du portugais et préface de Fraçoise Laye. Paris: Fondation Calouste
Gulbenkian/Centre Culturel Portugais. Presses Universitaires de France, 1981.
________. Húmus. Tradução del português por Ribero I Rovira. Barcelona: Editorial Cervantes, s/d
[1925?].
________. La farsa. Trad. del português Valentín de Pedro. Madrid: Tip. Renovación/Calpe, 1922.
BRANDÃO, Raul. Los pobres (novela). Trad. de Valentín de Pedro. Madrid: Calpe, 1921.
Como veremos mais adiante, algumas traduções, embora tenham sido efetivadas, como é o caso da
versão francesa de Mademoiselle Suzanne Jeusse e Teixeira de Pascoaes, de 1930, nunca chegaram à
publicação.
23
De Guerra Junqueiro, passando por José Régio, Jorge de Sena, Vergílio Ferreira e David Mourão-
Ferreira, aos dias de hoje, a quase totalidade dos críticos julga o Húmus como opus magnum do escritor.
24
Desta forma, nossa Dissertação também passa pelo campo da Crítica Textual (ou Filologia, se
preferirmos), conforme elucidam as palavras do professor Ivo Castro, em seu ensaio Enquanto os
escritores escreverem... (Situação da crítica textual moderna), com que oportunamente travamos contato
durante disciplina ministrada pelos professores Doutores Ceila Ferreira Martins e Carlos Reis, na
Universidade Federal Fluminense. Diz Castro (1990): “[...] a filologia, definida como ciência que estuda a
gênese e a escrita dos textos, a sua difusão e a transformação dos textos no decurso de sua
transmissão, as características materiais e o modo de conservação dos suportes textuais, o modo de
editar [...], pode continuar o seu percurso, evoluindo e aperfeiçoando-se por meio de um constante
debate interno quanto aos seus princípios teóricos e aos seus métodos.” (p. 46–47, Grifo nosso).
25
Cf. as páginas finais deste capítulo.
24
analisamos a correspondência trocada entre o autor de Húmus e Teixeira de Pascoaes,
grande amigo e parceiro intelectual de Brandão.
Ler as três versões do texto brandoniano é aceitar o convite para refazer o
percurso genético de sua escrita, é reviver a criação literária, é uma segunda gênese.
Acreditamos que é indispensável o conhecimento das distintas versões do Húmus de
Raul Brandão para a realização de um estudo mais profundo e apropriado do texto.
2.1 Ponderações sobre a recepção do texto brandoniano
Húmus despertou interesse expressivo nas casas editoriais e muitos foram os
intelectuais que sobre ele desenvolveram estudos e comentários críticos em periódicos
de grande relevância em Portugal à época, como A Águia, A Manhã, Diário de Notícias
e Seara Nova, bem como em livros de crítica literária (Os Poetas Lusíadas, de Teixeira
de Pascoaes, por exemplo). A principal obra de Brandão chamou a atenção da elite
portuguesa durante a década de 1920 e seu autor ganhou destaque como figura
pública: participou da fundação da Seara Nova e integrou a diretoria do periódico até
abril de 1923; foi sondado pelo governo português para compor a missão diplomática
enviada à Exposição do Centenário da Independência do Brasil e esteve à frente do
movimento pró-Columbano de 1929
26
. Além de uma intensa atividade no palco da
sociedade portuguesa, manteve, nos bastidores, um contínuo diálogo epistolar com
outros escritores e intelectuais lusitanos, com destaque para Câmara Reis, Guerra
Junqueiro, Jaime Cortesão, Raul Proença, Teixeira de Pascoaes e Vitorino Nemésio.
26
Movimento que exigia a permanência de Columbano Bordalo Pinheiro, amigo pessoal do escritor, no
cargo de diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea, mesmo após o jubilamento do artista, em
25
Como sabemos, as atividades de cunho social, cultural e político eram
freqüentemente exercitadas por Brandão, alçando-o a um lugar de grande relevância
na sociedade lusitana. Entretanto, sua produção literária, apesar de ter atingido um alto
grau de notoriedade no primeiro quartel do século XX, caiu no esquecimento do público
leitor. Maria João Reynaud (2000b), em introdução à edição crítica de Húmus,
referida, esclarece que uma das causas para a negligência da historiografia e crítica
literárias em relação às obras brandonianas deve-se à interpretação errônea de que o
escritor do Douro não produzia textos inseridos no modelo canônico de romance
oitocentista por ser inábil para a literatura em prosa, peculiaridade da escrita do autor
interpretada como imperícia para a escrita eo como proposição de uma nova técnica
de construção narrativa. É, em parte, em decorrência dessa suposta inaptidão que,
ainda hoje, parte da crítica insiste em ver Raul Brandão como poeta em prosa, não
como romancista. Entre os que partilham essa idéia, destacamos o próprio Guerra
Junqueiro (que no prefácio do romance Os Pobres, de 1906, afirma: “O poeta dos
Pobres não é um romancista”, 1925, p. 15), incluindo também José Régio, Gaspar
Simões e Aquilino Ribeiro, além de críticos da atualidade como Fernando Guimarães
em “Raul Brandão e os ‘poetas em prosa” (2000).
Foi somente após a visibilidade dada ao nouveau roman francês e à publicação de
estudos que aclamavam a genialidade desse novo modelo que a literatura de Raul
Brandão pôde ser vista como detentora de uma originalidade ímpar e configuradora de
um novo padrão de narrativa para a ficção portuguesa do século que se delineava.
decorrência da avançada idade, em 1929. Neste mesmo ano, o artista plástico falece. Para maiores
informações, consultar MENDES, Manuel. Raul Brandão & Columbano. Lisboa: Jornal do Fôro, 1959.
26
Curioso é que, como pontuamos na Introdução, apesar de toda a influência que
exerceu sobre a arte literária do último século, Raul Brandão seja um escritor ainda
bastante desconhecido do público, da grande massa de leitores. Duas hipóteses (que
se complementam) poderiam explicar, em certa medida, o esquecimento de sua obra
pela crítica portuguesa: o brilhantismo de Eça de Queirós (ofuscando os escritores
decadentistas; seguido da genialidade de Fernando Pessoa), e a retomada do realismo
em novos moldes durante as décadas de 1930 e 1940. A literatura neo-realista foi ao
encontro dos anseios da sociedade que se debatia em meio à ditadura de Oliveira
Salazar, momento que carecia de uma arte engajada politicamente. Passado o período
de apogeu vivido pelo neo-realismo, a literatura portuguesa voltou-se para uma
escritura nos moldes existenciais, alinhando-se com os modelos advindos do
estrangeiro. E, por muitos anos, o lugar precursor de Raul Brandão foi-lhe subtraído.
Se A Farsa e Húmus careceram de um sucesso perante o público leitor (que só via
em Raul Brandão o escritor de livros de descrições de paisagens luminosas, como Os
Pescadores e As ilhas desconhecidas)
27
, não se pode afirmar que as suas duas
principais obras não tenham encontrado no círculo literário português um campo para
frutificação. Húmus reverbera em muitas das obras publicadas na segunda metade do
século passado, quando a febre neo-realista havia arrefecido
28
e a literatura se volta
27
Vários críticos apontam a existência de dois los na escrita de Raul Brandão, um claro, outro escuro.
É por seu lado apolíneo que ele ficou conhecido em Portugal, por suas descrições de paisagens. Mas é o
outro lado da sua produção, dito dionisíaco, que mais o atraía, e também o atormentava, conforme se
verifica em sua correspondência privada com Teixeira de Pascoaes. Maria João Reynaud, em
Metamorfoses da Escrita (2000a), compartilha dessa dicotomia, proposta, inicialmente, por Aquilino
Ribeiro, em 1949. Curioso observar que semelhante classificação é proposta pelo crítico António Sérgio
para a obra do poeta Antero de Quental, também um caso bastante peculiar de gênio criativo e
personalidade pública.
28
Também é possível dizer que houve uma dissidência entre escritores e não uma diminuição pelo
interesse neste estilo.
27
para os questionamentos existenciais do homem, como afirma Álvaro Manuel Machado
(1984) em seu longo ensaio:
De facto, parece-me até que nenhum escritor português revelado em finais do
século XIX e prolongando decisivamente uma influência geral na ficção
portuguesa até à atualidade, isto é, até finais do século XX, levou a um tal
extremo de férteis contradições o processo de transitoriedade da escrita como
Raul Brandão. (p. 11).
É a partir da publicação dos textos “No limiar de um mundo, Raul Brandão” e
“Releitura do Húmus”, inicialmente em 1967, por Vergílio Ferreira e David Mourão-
Ferreira, respectivamente, que se inicia o processo de substituição da crítica que
taxava Brandão de incapacitado para a escrita de narrativas em prosa em favor de uma
que aproximava sua literatura do nouveau roman francês: “o Húmus bem pode ser
considerado um precursor do 'novo romance' ou mesmo um 'novo romance' avant la
lettre, [...] uma obra-prima em qualquer literatura” (MOURÃO-FERREIRA,1992, p. 184).
Contudo, a obra brandoniana não passou a gozar de maior prestígio e
reconhecimento em Portugal e no Brasil, sendo possível considerar o movimento que
reuniu estudiosos de sua literatura em junho 1967, em Guimarães, como um momento
pontual, decorrente da comemoração do centenário de nascimento do escritor e do
cinqüentenário de publicação da primeira versão de Húmus. No entanto, a semente que
disseminou o interesse em pesquisar a obra do escritor português foi plantada: João
Pedro de Andrade, Guilherme de Castilho, Álvaro Manuel Machado, Vítor Viçoso, Maria
João Reynaud e Luci Ruas Pereira
29
são, além dos citados autores dos dois ensaios
divisores de águas, alguns dos que passaram a se debruçar sobre o corpus literário
29
Os nomes estão elencados seguindo a ordem cronológica de publicação dos textos principais de cada
um dos estudiosos.
28
brandoniano e a formar grupos de pesquisadores interessados em rediscutir a obra
desse autor.
Ainda acerca do malogro da recepção do texto brandoniano, Reynaud (2000a) o
associa à incapacidade da crítica de uma época em perceber o “excedente de força”
trazido por uma obra, como se observa no trecho a seguir:
A estética da recepção, na diversidade das suas orientações, veio permitir que
se avaliasse o texto literário em função do potencial de efeito estético que ele
contém. Sabemos que um grande número de obras subvalorizadas acabam
mais tarde ou mais cedo por revelar um excedente de força que era
incomportável para a época em que surgiram;e, também, que as interpretações
normativas produzidas [...] prestam, às vezes, um péssimo serviço à
posteridade. As leituras estabilizadoras, que dominam o processo de
transmissão tradicional, tendem a eliminar o que lhes resiste. (p. 81)
O comentário acima encontra eco nas idéias de Maria Alzira Seixo acerca da recepção
do romance de 1917, em que diz que “um livro como Húmus propõe novos códigos
narrativos que a metade deste século [XX] poderá substancialmente experienciar”
(2000, p. 16). É, possivelmente, pelo excesso a que alude Maria João Reynaud e à
capacidade desestabilizadora de sua escrita que Raul Brandão permaneceu, durante
muito tempo, na obscuridade crítica e à margem dos estudos em história da literatura.
2.2 Os meandros genéticos de Húmus
M. J. Reynaud afirma que “a escassez de materiais genéticos disponíveis não
permite uma reconstituição fidedigna das etapas de elaboração da obra” (2000b, p. 16);
e acrescenta que “a consulta da correspondência que integra o espólio
30
do escritor
30
De acordo com a classificação de Ivo Castro (1990, p. 13), sublinho que se trata de um espólio misto
quanto à origem, pois parte do material é advindo de cessão feita pela viúva de Brandão (passivo),
Angelina Brandão, e outra parte é fruto de colecionamento de terceiros (artificial). Embora Reynaud tenha
29
permitiu [...] chegar ao conhecimento de alguns detalhes relativos à data de conclusão
da primeira versão e às circunstâncias que presidiram à refundição do livro para
segunda edição(p. 16).
Utilizando-se de epitextos privados trocados entre Raul Brandão e Teixeira de
Pascoaes, reunidos por António Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano, em
1994, a ilustre pesquisadora portuense buscou subsídios para um estudo mais
aprofundado sobre a escrita de mus, material que também elegemos para integrar o
corpus inicial de nossa pesquisa acerca da gênese do texto
31
. Selecionamos
fragmentos, a partir da leitura das peças que compõem o livro Correspondência (1994),
que fazem alusão direta ou indireta às versões de Húmus, sejam comentários pessoais
do interlocutor de Raul Brandão ou do próprio autor, sejam referências a textos
publicados em periódicos portugueses (comentários críticos e cartas ainda inéditas).
Discorrendo sobre a importância da carta como material de investigação, a
estudiosa Andrée Rocha, no conhecido estudo A epistolografia em Portugal (1985),
destaca o valor das missivas para a compreensão da personalidade do autor, da obra e
das relações com o círculo intelectual:
[...] o que primeiro ressalta da leitura das cartas é a prodigiosa soma de
pormenores concretos e de parcelas ideológicas que ficam a enriquecer, duma
forma pitoresca e positiva, o nosso conhecimento íntimo dos escritores
portugueses. (p. 379)
Andrée Rocha (1985, p. 24) acrescenta que, quando nos deparamos com um
material epistolográfico escrito sem pretensão de publicação, ou seja, escrito
travado contato com o arquivo do escritor, este ficou pronto em setembro de 2007, segundo Fátima
Lopes, responsável pelos materiais, na Biblioteca Nacional de Lisboa.
30
unicamente para a comunicação entre os signatários, estamos diante de textos que nos
podem fornecer uma dimensão sem fingimento literário, escritos embebidos de
confidências. Rocha (1985) acredita que, ao se debruçar sobre epitextos privados
32
, o
investigador encontrará pistas significativas e verdadeiras para uma análise da vida e
da obra do escritor que estiver inquirindo.
De maneira oposta, talvez por seu posicionamento mais distanciado (embora
reconheça nas cartas um valoroso material de estudo), Maria João Reynaud, no artigo
“Reflexões sobre uma carta inédita de Raul Brandão a Teixeira de Pascoaes”,
publicado na revista Colóquio-Letras, edição dupla 129/130, adota uma postura
questionadora diante da sinceridade dos epitextos privados apontada por Rocha
(1985):
A correspondência privada entre escritores nem sempre dá garantias quanto à
sinceridade dos sentimentos e dos juízos formulados, surgindo com
freqüência o perigo de se poder tomar por verdade o que é pura afectação
mundana. (REYNAUD, 1993, p. 127).
As palavras de Reynaud vão de encontro à crítica de impressões, biográfica. Ao
colocar em xeque a correspondência privada entre escritores como material confiável
de investigação, a pesquisadora não descarta seu uso, mas rejeita trabalhos que, por
acreditarem que os epitextos são depositários da verdade do autor, das confidências
sinceras por onde os estudos se devem guiar, tentam justificar a obra literária pelos
dados biográficos coletados nessas fontes. Reynaud (1993, p. 127 et seq.) sugere que
31
Embora Reynaud também trabalhe com a correspondência do escritor, chegamos a conclusões
distintas, pois trilhamos caminhos e estabelecemos objetivos diferentes.
32
Ver nota de rodapé n. 18. Rocha (1985) concebe as cartas trocadas entre escritores como um material
que integra a esfera do individual, o que, de certa forma, difere do uso de G. Genette em Seuils (1987). O
31
o pesquisador, ao se deparar com esse tipo de material, inicie sua investigação
duvidando de sua autenticidade e sinceridade: cada trecho analisado deve ser posto
em prova.
Flagrante é o caso de João Pedro de Andrade, que, publicando o livro Raul
Brandão – a obra e o homem (2002), cuja primeira edição é da Arcádia Editora, sempre
encontra uma forma de encaixar anotações de Brandão, constantes nas Memórias
33
,
em sua análise. O erro de Andrade o reside na escolha de epitextos para embasar
seu estudo, mas em distorcê-los a fim de moldá-los às suas necessidades de
argumentação. O resultado é o amontoado de informações que compõem o grande
painel biográfico traçado por J. P. de Andrade, porém com vários trechos de
confiabilidade duvidosa
34
.
Claudia Atanazio Valentim, em sua Tese de Doutoramento O romance epistolar na
literatura portuguesa da segunda metade do século XX, defendida na Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz uma compilação das idéias de
Andrée Rocha (1985), apresentadas quando os dois signatários são escritores, e
aponta os principais temas abordados nesse tipo de missiva:
Pedidos de colaboração para revistas e/ou jornais são formulados; fazem-se
agradecimentos pela oferta de livros alheios; quando trocadas entre
signatários de idades diferentes, pedem-se (ou dão-se) conselhos;
fato de corroborarmos o uso exposto por Rocha, não implica em ratificar a visão de um epitexto privado
como testemunho verdadeiro, sem fingimento.
33
Conjunto composto por três volumes e publicados nos anos de 1919, 1925 e 1933, um volume por vez.
34
no início de seu livro, Andrade (2002) afirma: “A vida simples dum artista projecta-se, em
intensidade, na sua obra e por isso deixa de ser simples. É o caso em que vida e obra se acham
indissoluvelmente ligados. É o caso de Raul Brandão. Por isso, da sua vida pouco teremos a dizer que
ele o tivesse dito. Renunciámos a minuciosas investigações, que nos conduziriam apenas à secura
enumerativa de algumas datas e de alguns factos meramente incidentais. Tudo que está de importante
na vida do escritor está limpidamente descrito na sua prosa emotiva” (p. 20). Por diversas vezes, o crítico
associa pessoas com quem Brandão viveu na infância (e que são evocadas nas Memórias) às
personagens que aparecem em Húmus (a Joana, a velha, os ladrões etc.).
32
confidenciam sobre as obras em curso ou ainda aferem para terceiros valores
das obras de colegas das letras (VALENTIM, C. A., 2006, p. 55).
Como permite inferir o comentário, a troca de correspondências é uma prática
corriqueira entre escritores. Mais importantes que algum pormenor da vida pessoal dos
autores desnudado pelas missivas, parecem ser as informações acerca da teia de
sociabilidade em que poetas e prosadores estão envolvidos e que, em muitas vezes,
resultam em parcerias para a produção de novas obras, revistas literárias e
movimentos sociais e políticos, bem como o processo de feitura das obras em si.
As cartas são textos pouco privilegiados pela historiografia literária e pela crítica
portuguesas, talvez tanto quanto as obras de Raul Brandão. Sendo, costumeiramente,
textos à margem do cânone literário, recebem destaque quando são de autoria de
escritores renomados
35
, passando, então, a integrar o cânone de nossa língua não
por suas qualidades intrínsecas, mas por uma simples questão de pertencimento.
Enquanto isso, correspondências privadas que possuem, muitas vezes, elevado valor
estético ou expressivo valor investigativo são esquecidas por nossa tradição
historiográfica literária. Observe-se o que diz o pesquisador Luiz Fagundes Duarte em
seu estudo intitulado “A edição da correspondência: questões de crítica textual”,
publicado no livro Correspondências: usos da carta no século XVIII:
[...] a tradição literária ocidental habituou-se a integrar no seu none as
correspondências privadas de autores consagrados sempre que
disponíveis, e independentemente do interesse de cada peça em si -, que em
certos casos ficam a ombrear, em dignidade bibliográfica, com as obras
literárias de ficção, de poesia, de teatro, de ensaio ou de correspondência
“pública” – do mesmo autor. (2005, p. 18, grifo nosso).
35
Há, contudo, exceções, como as Cartas Portuguesas.
33
A escolha da correspondência brandoniana como material de investigação deste
capítulo, centrado na gênese de Húmus e nos percalços de sua elaboração, fica,
portanto, esclarecida, pensando-se a carta como um gênero à margem do cânone
literário
36
, rico material de análise acerca da teia de sociabilidade estabelecida entre
Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes. As missivas trocadas pelos escritores entre os
anos de 1914 e 1930 são provas testemunhais da rede de relações de Brandão com
outros expoentes das artes portuguesas.
Queremos alertar que não se trata de um estudo acerca da recepção do livro
empreitada que pensamos trilhar numa pesquisa de Doutorado, com o auxílio do
arquivo literário de Raul Brandão, depositado na Biblioteca Nacional de Lisboa
37
e em
“fase de transferência para a Sociedade Martins Sarmento, [em decorrência de] [...]
decisão judicial, que determinou a sua entrega aos herdeiros do escritor, considerados
legítimos proprietários do espólio” (DUARTE, 2007, p. 127) –, mas da observação de
como a leitura realizada pelos amigos mais próximos do autor dialoga com o processo
contínuo de reelaboração do texto, a partir da análise da correspondência organizada
por Vilhena & Mano.
Discorrendo sobre a importância do epistolário brandoniano, António Vilhena, no
artigo “Subsídios para uma abordagem do diálogo epistolar entre Raul Brandão e
algumas figuras de relevo da vida portuguesa”, publicado nas Actas do Colóquio Ao
Encontro de Raul Brandão (2000), assevera:
Na multifacetada correspondência em estudo, cuja importância não reside, de
modo algum, na qualidade estética, mas no valor testemunhal e informativo
36
Outra discussão que poderíamos acalentar é se a epistolografia é realmente um gênero literário.
37
1161 documentos, em 17 caixas, depositados, em 1982, por Bertha Mendes. BN, Esp. D2.
34
que encerra, desfila uma variadíssima gama de assuntos, a saber: afirmações
e provas da mais viva consideração, amizade e admiração, às vezes
entrecortadas por alguns melindres ou mal-entendimentos; pequenas e
grandes alegrias; problemas de saúde e desgostos pessoais; meditações
sobre a vida e interrogações acerca da morte; realização e promessa de
visitas; passeios e viagens; pedidos de recomendação e empenho;
homenagens e efemérides; opiniões e desabafos, quase sempre
desencantados e amargos, motivados pela instável vida portuguesa; reflexões
atinentes ao mundo das artes plásticas (com realce para a pintura) e da
literatura (pedidos de colaboração em jornais e revistas, oferta, agradecimento
e apreciação de livros; elaboração, publicação, reedição e tradução de obras;
insatisfação artística e tormento inerente à criação literária). (p. 400–401)
Corroboramos as idéias de Vilhena (2000) quando afirma que a correspondência
trocada possui pouco valor estético, sobretudo quando se têm em mente as cartas de
autoria brandoniana, marcados por uma brevidade quase telegráfica (que se contrapõe
a certa prolixidade de sua produção literária) e pelo uso de uma linguagem bastante
corriqueira. Aliás, o cotidiano do casal Raul Brandão e Maria Angelina ocupa um lugar
de relevo dentre os temas levantados, com destaque para notas que tratam da saúde
frágil do escritor do Douro.
mais elaboradas são as missivas remetidas por Teixeira de Pascoaes, em que
se podem ler textos de mais valor literário, nos quais o autor de Marânus e Bailado
ensaia vôos mais altos, freqüentemente caindo em digressões e ponderações. Não é
de admirar, portanto, que suas cartas sejam as mais longas e que quase sempre por
meio delas é que se obtenham informações acerca das obras de Raul Brandão e das
relações deste com a intelectualidade portuguesa.
Se os comentários eventualmente esboçados pelos amigos-escritores
38
nortearam
a refundição de Húmus, não é possível emitir juízos categóricos. O relevante é que o
38
De certa forma, esses amigos exercem a função de escritores-críticos, para usarmos o conceito
exposto por Leyla Perrone-Moisés, em Altas Literaturas (1998). A partir de agora, passaremos a trabalhar
com as cartas trocadas entre os autores e, freqüentemente, aludiremos à ordem de edição estabelecida
por Vilhena & Mano (BRANDÃO, 1994).
35
autor d’A Farsa e de Húmus encontrou em Teixeira de Pascoaes e Guerra Junqueiro os
leitores perspicazes para seus textos, cabendo a este, inclusive, escrever a carta-
prefácio d’Os Pobres (1906), a pedido de Raul Brandão.
A literatura brandoniana requer uma atenção apurada e uma sensibilidade que
muitas vezes foge ao leitor comum. Ora, essa peculiaridade do texto bem pode ter sido
um fator agravante para o insucesso de Húmus perante a grande massa de leitores,
que não compreendeu toda a grandiosidade dessa obra-prima. Até mesmo para o leitor
experiente e dado às letras como Teixeira de Pascoaes, o livro requeria um novo
encontro, como se verifica neste trecho datado de 14 de janeiro de 1918:
Venho agradecer muito penhorado a generosa oferta do seu ultimo livro
extraordinário. Simplesmente extraordinário, como A Farsa e o El-Rei Junot, os
livros que eu melhor conheço. agora concluí a leitura do Húmus. Tem [sic]
muito que pensar e meditar. Vou tornar a lê-lo. É um livro que infinitamente
me seduz! (BRANDÃO, 1994, p. 53, grifo nosso).
A análise do fragmento da carta de número onze (ordem estabelecida por António
Mateus Vilhena e Maria Emília Marques Mano, seguindo a cronologia), permite verificar
que a relação que se estabeleceu entre os dois escritores ia além da mera amizade,
abrindo caminho para uma parceria intelectual. A missiva de 1918, quatro anos após a
troca das primeiras cartas, evidencia que Pascoaes tinha intimidade com a obra do
amigo, proximidade que culminaria na publicação da peça teatral Jesus Cristo em
Lisboa, em 1926, sobre a qual falaremos mais adiante. Vejamos um trecho da carta 116
em que Pascoaes, escrevendo a Brandão, deixa transparecer o conhecimento que
tinha das obras do parceiro, ao estabelecer uma comparação entre Joana e
Candidinha, respectivamente personagens de Húmus e d’A Farsa:
36
[...] Recebi a sua estimadíssima carta e os seus livros. Ando a relê-los com o
maior entusiasmo. A Joana e a Candidinha são duas criações sublimes. Duas
almas saídas das mãos dum Deus diabólico, dum Deus autor do Céu e do
Inferno. A Joana é de origem divina. A Candidinha é de origem demoníaca. A
Farsa é uma Divina Comédia. Toda a sua obra é a Divina Comédia do
nosso tempo. Ando agora a reler o Húmus. o é brincadeira arrostar com
tantas páginas de tal grandeza dramática! Sinto-me esmagado e deslumbrado!
(BRANDÃO, p. 141, grifo nosso).
39
Além de se perceber a familiaridade que Teixeira de Pascoaes mantinha com a obra
brandoniana, também avulta a relação que faz entre o romance de Raul Brandão e a
Divina Comédia, equiparando-os em qualidade estética e valor cultural e literário e
demonstrando o seu deslumbramento com a arte do escritor da Foz do Douro.
Uma questão sempre problemática quando se trata da gênese de Húmus é
precisar quando a primeira versão começou a ser escrita e quando foi concluída,
especialmente se se levar em consideração que apenas três cartas fazem alusão ao
processo de elaboração do texto de 1917. Ao verificar a data presente na última página
da edição da Renascença Portuguesa, o leitor depara-se com a indicação de 25 de
dezembro de 1916. É pautado nessa informação que Guilherme de Castilho, autor de
Vida e Obra de Raul Brandão, sente-se à vontade para afirmar que o formato diarístico
que aparece na obra é indicativo do período em que foi escrita: entre 13 de novembro
de 1915 e 20 de dezembro de 1916 (cf. CASTILHO, 2006, p. 243).
Entretanto, essa afirmação é facilmente refutada após consulta à correspondência
enviada por Teixeira de Pascoaes ao autor de Húmus, em que afirma, em carta datada
de 9 de novembro de 1914: “Já sei que o mus é admirável! Muito e muito o felicito,
39
Correspondência datada de 27 de abril de 1926. Todas as marcações em itálico no corpo das
correspondências citadas são, com freqüência, referências a livros e foram inseridas pelos editores no
momento da compilação.
37
cheio de orgulho por ver que o Povo a que pertenço, possui, para além de todas as
suas misérias presentes, um homem como Raul Brandão!” (BRANDÃO, 1994, p. 49)
40
.
A leitura da correspondência pistas de que o livro teria começado a ser escrito
bem antes do que a crítica julgava até ao final da década de 1990. Outro dado que
chama a atenção é a data de término da impressão que se estampou na primeira
versão do livro: 22 de dezembro de 1917.
Ora, não se pode aceitar pacificamente a data proposta por Castilho (2006) a partir
da observação das marcações cronológicas no corpo da obra como definitiva (término
em 20 de dezembro de 1916), pois confrontando-a com a data que aparece na edição
da Renascença Portuguesa, depara-se com um lapso de tempo de mais de um ano. A
leitura de trecho da carta de número nove, enviada por Brandão a Pascoaes em 1° de
março de 1917, refuta qualquer possibilidade do romance ter sido finalizado ainda no
ano de 1916: “Cá ando às voltas com o Húmus(BRANDÃO, 1994, p. 51). E mais: por
conter um capítulo que parece fazer alusão à Revolução Russa de 1917 (intitulado
“Vêm os desgraçados”)
41
, acreditamos que o livro deve ter sido concluído após a
primeira das revoluções socialistas, que ocorreu naquele ano, ou seja, após o mês de
fevereiro.
Assim, se se quiser enquadrar o período de escrita da primeira versão da obra, é
necessário trabalhar com o intervalo de tempo entre 9 de novembro de 1914 (embora
se saiba que o projeto de elaboração estava em andamento quando Teixeira de
Pascoaes remeteu a carta) e 22 de dezembro de 1917, data em que se acabaram de
40
Missiva de número 11.
41
Embora no ano de 1917 a Europa ainda vivesse a Grande Guerra, alguns indícios do texto
brandoniano, como um caráter de revolução alavancada pelos pobres, leva-nos a pensar que se trata,
também, de uma referência tácita à revolução comunista. Ver terceiro capítulo para mais informações.
38
imprimir os últimos exemplares na tipografia. Se antes tínhamos uma obra escrita em
um tempo relativamente curto, agora é possível afirmar que escrever mus foi um
processo muito mais lento do que se imaginava, e isso se deve, em parte, à constante
insatisfação de Raul Brandão com seus textos, conforme evidencia a décima terceira
carta do epistolário, de 19 de fevereiro de 1919:
Muito obrigado pela sua carta e por se ter lembrado de mim nas suas
conferências, e duma maneira que não mereço. De todas as minhas
tentativas resultam esboços. A minha vida dá-me a impressão de ser um
corredor donde não tardo a sair, e onde deixo alguns riscos a carvão na
parede. Mais nada. (BRANDÃO, 1994, p. 55, grifo nosso).
Enquanto esperava o término do trabalho na gráfica, o autor brindou leitores e
amigos com a publicação do primeiro capítulo de Húmus “A Vila” no número duplo
de setembro-outubro (de 1917) da revista A Águia, dedicando-o a seu amigo e iniciador
nas artes plásticas, Columbano Bordalo Pinheiro, assim como o fez com a totalidade do
romance, como nos lembra Jorge Valentim (2004, p. 40). Sempre atuante em revistas
literárias, essa não foi a primeira vez que Raul Brandão publicou em periódico partes de
textos que viriam a tornar-se livros
42
, ação também costumeira entre escritores do
século XIX e primeiras décadas do século passado. E não apenas de veículo para
difusão dos escritos de Brandão serviram jornais e revistas: em carta de 29 de maio de
1914
43
, Teixeira de Pascoaes, após a leitura do drama El-Rei Junot (publicado em
1912), comunica ao escritor do Douro que está produzindo um artigo para ser publicado
n’A Águia, em que ressalta o valor literário da obra. O texto foi efetivamente publicado
42
Consultar a seção “Principais jornais e revistas em que Raul Brandão colaborou”, em Vida e Obra de
Raul Brandão (CASTILHO, 2006).
43
Missiva registrada sob o número 2.
39
no número correspondente ao mês de julho de 1914 e nele podemos ler as judiciosas
palavras do mestre amarantino:
Eis o Verbo em delírio! E eis a Tragédia, e nova tragédia e profundamente
lusíada! E assim, Raul Brandão deve ser colocado entre os nossos raríssimos
gênios criadores e representativos. É triste que esta obra, tão intensa e
profundamente dramática, tão reveladora do nosso Povo, não possa ser
compreendida, por enquanto, em Portugal, onde o gosto literário não vai
além dum certo lirismo exterior e musical...(PASCOAES, 1914, p. 31, grifo
nosso).
Nesse julgamento passional, em que nos deparamos com uma das cartas mais
exaltadas e de elevado valor literário em toda a correspondência entre os dois
escritores, Teixeira de Pascoaes, ciente da grandiosidade do texto de Raul Brandão,
lamenta que Portugal ainda não estivesse preparado, do ponto de vista da recepção
literária, para compreendê-lo enquanto estética e proposta de construção narrativa. A
seleção vocabular de Pascoaes revela uma hesitação em definir um gênero
específico para a escritura brandoniana (“Verbo”, “delírio”), mas assinala a carga
desestabilizadora de El-Rei Junot, ao qual chama “Tragédia”. Lembremos que a obra
referida é uma narrativa de fundo histórico, que retrata o período das invasões
napoleônicas, muito mais próxima, portanto, do romance enquanto gênero
estabelecido, em Portugal, no século XIX.
De Junot ao Húmus, ou melhor, desde A Farsa até ao Húmus, o que se vai
percebendo é um contínuo lapidar da proposta de construção romanesca brandoniana,
que estará, como veremos nos capítulos seguintes deste estudo, plenamente
amadurecida, como experiência, no livro de 1917. O “Verbo”, o “delírio” e a “Tragédia”
que Teixeira de Pascoaes aponta para El-Rei Junot podem, a nosso ver, referir-se,
também, ao Húmus. Chama a atenção, no artigo, a relação que Pascoaes faz entre o
40
conjunto da obra de Brandão e o contexto histórico do fim do século (o primeiro a
revelar o segundo), época intensa e dramática nas palavras do escritor de Amarante,
em que a sensação de desordem (na sociedade e na arte) deveria resultar na
supressão do texto que se pauta no “lirismo exterior e musical” e possibilitar a
instauração de um novo paradigma na literatura, do qual Brandão avultava, ao menos
para Teixeira de Pascoaes, como precursor e modelo estético.
Mesmo após a publicação de sua obra-prima, na qual trabalhou imensamente,
Raul Brandão continuou insatisfeito com o resultado da primeira versão do livro e,
acatando sugestões de Pascoaes e Junqueiro, empenhou-se na refundição do texto,
que viria a ser publicado no Brasil, com trabalho editorial de Álvaro Pinto, pela editora
Annuario do Brasil. Aliás, os anos de 1921 e 1922 foram particularmente fecundos para
o escritor nas suas relações com a ex-colônia portuguesa
44
.
Na carta dezessete, Raul Brandão alude claramente às influências junqueirianas
na segunda versão de Húmus e deixa-nos entrever que o texto de 1921 resulta de um
processo intelectivo de construção do texto. Na mesma missiva, por ocasião de uma
sondagem para tradução da obra para o espanhol por Ribera e Rovira, rejeita a edição
princeps
45
:
O convite do Ribera e Rovira me honra. Mas - pergunto - o Húmus terá seis
leitores na Espanha? Junte a isto que o Húmus está refundido para edição.
Irá daqui a tempos, com outros livros novos, Memórias e Teatro, para o Álvaro
Pinto - Brasil. Traduzir a edição acho tolice. O que posso fazer - no caso do
Ribera e Rovira querer - é ir-lhe mandando cópia do que eu mandar ao Álvaro
Pinto. O Junqueiro, que acha o Húmus o meu melhor livro, deu-me algumas
44
Referimo-nos à publicação da segunda versão de Húmus, no ano de 1921, na Cidade do Rio de
Janeiro, bem como ao convite feito pelo governo português a Raul Brandão para que este integrasse a
comitiva do 1° centenário de Independência do Brasil, já exposto no princípio deste capítulo.
45
Edição que irá, de certa forma, retomar quando, na última versão de Húmus, reaproximará o texto de
1926 da sua versão primeira.
41
indicações que eu aceitei. Quase que fiz um livro novo. (BRANDÃO, 1994, p.
58, grifo nosso).
Nesse mesmo fragmento, é interessante verificar, acerca dos projetos de tradução
de Húmus, que sua eficiência e sua utilidade são questionadas por Brandão, alegando
que a obra talvez não tivesse mais leitores no estrangeiro que nas terras portuguesas.
Esse comentário despretensioso do autor evidencia que o livro pode ter sido um
verdadeiro fracasso editorial. É significativo que a segunda versão tenha sido paga com
dinheiro do próprio autor
46
e levada a cabo na cidade do Rio de Janeiro
47
. Como
havia feito com a edição de 1917, Brandão enviou o livro a seu amigo Pascoaes para
que o lesse e comentasse: “Mando-lhe a edição de Húmus. Recebi ontem dois
exemplares do Brasil. [...] O Húmus foi muito refundido. Diga-me, se tiver paciência de
o ler, se lhe agrada assim” (BRANDÃO, 1994, p. 67)
48
.
Outra questão interessante na parceria intelectual e literária entre os dois
escritores é que Teixeira de Pascoaes assume, costumeiramente, o papel de
intermediário entre Raul Brandão e as casas editorias estrangeiras interessadas em
traduzir-lhe as obras, notadamente por ser detentor de maior prestígio frente ao
mercado editorial português e europeu. O escritor de Amarante é “indubitavelmente, o
grande divulgador da obra brandoniana [...], chamando para ela a atenção dos
46
O recibo de pagamento da segunda versão de Húmus integra o arquivo de Raul Brandão na Biblioteca
Nacional de Lisboa.
47
Paulo Motta (USP), durante encontro acadêmico realizado na Universidade Estadual de Feira de
Santana, em 2006, levantou a possibilidade de que a greve dos tipógrafos em Portugal tenha levado
Álvaro Pinto, proprietário da Renascença Portuguesa, a migrar para o Brasil, transferindo-se com ele o
pool de publicações para a Annuario Brasil. Deixa-se registrada a contribuição do professor, que talvez
venha a ser elucidada em uma consulta ao espólio brandoniano.
48
Carta número 25, de 3 de janeiro de 1921.
42
tradutores interessados na sua própria obra” (REYNAUD, 2000a, p. 73), como atesta
trecho da carta 23
49
:
A casa editorial de Madrid, Calpe, quer editar a melhor novela portuguesa
contemporânea. Se o meu querido amigo puder dispor dalgum trabalho seu
para este fim, seria magnífico. Eu sei que o Ribera y Rovira quer traduzir os
seus livros para a Editorial Cervantes; mas era bom que a Casa Calpe de
Madrid editasse algum trabalho seu, traduzido para castelhano por Valentín de
Pedro, jovem e interessante poeta argentino que vive actualmente naquela
cidade e acaba de traduzir muito bem para verso castelhano a minha Terra
Proibida que vai ser posta à venda nos primeiros dias deste mês. [...] Não
poderia ser a Farsa [sic]? (BRANDÃO, 1994, p. 64).
No excerto anterior, estava sendo negociada a tradução das peças de teatro de
Raul Brandão. Paralelamente, os editores Ribera e Rovira vertiam para o espanhol a
recém-publicada segunda versão de Húmus. Quando o projeto chegou ao fim, Brandão
enviou um exemplar ao amigo, que o avaliou prontamente, conforme observamos em
carta do dia 5 de setembro de 1922:
Já li bastante da tradução. Parece-me bem dum modo geral. De vez em
quando (raras vezes felizmente) mete uma ou outra palavra a mais. De resto,
parece-me muito bem, atendendo à imensa distância que separa as duas
Línguas, embora sejam irmãs. (BRANDÃO, 1994, p. 101)
50
Entretanto, dentre todos os projetos empenhados em traduzir Húmus para outras
línguas, um merece atenção especial, em decorrência do nível de envolvimento de
Teixeira de Pascoaes no processo. Além de exercer as habituais funções de
intermediário entre Raul Brandão e os profissionais encarregados do trabalho editorial,
Pascoaes atuou ativamente da tradução de Húmus para a língua francesa, encabeçada
49
Missiva remetida por Pascoaes a Brandão, no dia 1° de dezembro de 1920.
50
Correspondência de número 63.
43
por Mademoiselle Suzanne Jeusse, conforme evidencia a carta 221, de 15 de maio de
1930:
Todos os dias a Mademoiselle trabalha na tradução do Húmus. Quando
emperra, vem ter comigo; e as dificuldades vão-se vencendo. uma
frase que não conseguimos traduzir. Ela lhe escreverá a respeito. O Húmus,
em francês, ficará com menos alguns graus de febre, mas ainda assim
conserva uma alta temperatura. Todos os dias estamos com o Húmus e
consigo, portanto. (BRANDÃO, 1994, 224).
51
Ainda sobre a versão francesa, feita efetivamente a quatro mãos, Teixeira de
Pascoaes avalia o próprio trabalho, faz ponderações sobre o ato de traduzir e
comemora o fato de uma obra da grandiosidade de Húmus ser de autoria de um
português, num trecho da carta 223: “Traduzir o é trair; é reduzir, quando a
substância é redutível. O Húmus sofre terrível prova, e fica intacto e de pé! Por estes
dias, irá a Paris. Creio bem que os franceses hão-de sentir a pancada, - uma pancada
dada por um Português...” (BRANDÃO, 1994, p. 226-227)
52
.
A terceira e última versão com o imprimatur do autor saiu em 1926 pelas livrarias
Aillaud & Bertrand e chama a atenção o fato de apenas um bilhete-postal, datado de 25
de abril, fazer-lhe referência. Maria João Reynaud (2000b), no estudo introdutório à
edição de Húmus a que tantas vezes recorremos, afirma terem sido, na verdade, três
edições. Entretanto, sendo as duas últimas apontadas por Reynaud (2000b, p. 20)
apenas reimpressões de uma mesma matriz, preferimos falar em três tiragens do
mesmo modelo. Curioso é que Húmus de 1926 publicou três mil exemplares, em três
51
O negrito é nosso; o itálico, como de praxe, é do editor.
52
Missiva de 28 de maio de 1930.
44
levas de mil, com intervalo de alguns meses de uma para outra
53
. Para um livro que
tinha amargado dois insucessos editoriais em suas versões anteriores, parece-nos
intrigante uma vendagem tão elevada com o esgotamento sucessivo das reimpressões.
Além de Húmus, o autor reeditou outras três obras neste mesmo ano: A Farsa, A Morte
do Palhaço e o Mistério da Árvore (primeira edição em 1896) e As Ilhas Desconhecidas.
É possível que o repentino logro editorial de Húmus no ano de 1926 tenha alguma
ligação com a polêmica desencadeada pela publicação da peça Jesus Cristo em
Lisboa, encabeçada por Raul Brandão, co-autoria de Teixeira de Pascoaes:
estou agarrado à Fantasia em seis quadros
54
, apaixonado pelo assunto e
encantado com sua lembrança tão gentil! Tocou-me no mais íntimo do
coração. De resto, a Peça está concluída. O que eu lhe acrescentar, será
apenas para, dalguma maneira, justificar o meu nome ao lado do seu Nome.
(BRANDÃO, 1994, p. 154).
Diferentemente da correspondência apresentada nas páginas 38 e 39 desta
investigação, uma das primeiras trocadas entre os signatários, ainda no ano de 1914,
esta se apresenta em tom de maior tranqüilidade e menos extasiamento, talvez porque
não fosse mais novidade para Teixeira de Pascoaes a força do texto brandoniano e a
experiência estética que deflagra. A carta citada nesta página, registrada sob o número
134 e remetida no dia 28 de outubro de 1926, evoca uma memória suave (“lembrança
tão gentil”) da parceria literária entre Pascoaes e Brandão, marcada, sob a óptica do
primeiro, por uma significativa superioridade do segundo, revelada pelo jogo entre
maiúsculas e minúsculas (“meu nome” e “seu Nome”), na elaboração de Jesus Cristo
53
É essa terceira versão que Reynaud aponta como sendo terceira, quarta e quinta edições. Como não
passaram por um novo trabalho editorial, não podem ser assim denominadas, se seguirmos as definições
da Crítica Textual (cf. CAMBRAIA, 2005, p. 73-75 ou SPAGGIARI & PERUGI, 2004, passim).
45
em Lisboa. Entretanto, a peça, que quase recebeu o título de D. Sebastião em Portugal,
conforme vemos na carta 139, foi encenada no ano de 1978. Em meio ao sutil
processo de censura que sofreu (“Diz que a Peça tem um grande valor literário,
filosófico e social; mas, por causa do 4° e quadro não lhe parece que deva ser
representada...”
55
), estampou várias vezes os jornais portugueses, sobretudo o Século,
onde a chamavam O Diabo em Lisboa ou ainda Julgamento de Jesus Cristo,
insinuando que o conteúdo da obra iria contra a fé católica. É provável que a releitura
do mito sebástico e a sugestão de uma revolução popular (que, parece-nos,
acompanhava o autor de Húmus ao menos desde a primeira versão do romance, com o
capítulo “Vêm os desgraçados”) apresentadas por Brandão e Pascoaes tenha
despertado o receio dos mentores do novo regime que começava a se delinear em
Portugal, somando-se ao fato de que o autor do Douro era, como se sabe por meio da
Correspondência (1994) e de outros materiais manuseados, um defensor do regime
monárquico, tal qual outro contemporâneo seu, o poeta e prosador Fernando Pessoa.
Também é possível que a polêmica travada nos jornais acerca de Jesus Cristo em
Lisboa e a proibição de se representar a peça em um teatro do Governo (os autores
tinham preferência pelo Teatro de D. Maria II) tenham chamado a atenção do público
leitor português, ao menos momentaneamente, para a obra de Raul Brandão. No
entanto, após o sucesso meteórico de 1926, somente na década de 50 é que a peça foi
novamente impressa, devido, em parte, ao apelo de alguns estudiosos que passavam a
54
Consultando a peça em questão, verificou-se que foi publicada com um total de sete quadros. Também
é curioso que a capa da edição que manuseamos (BRANDÃO & PASCOAES, 1984), elaborada por
Mário Veiga, apresente as fotografias dos autores, colocando-os quase um de frente ao outro.
55
Carta de número 141, enviada por Pascoaes a Brandão, no dia 26 de fevereiro de 1927.
46
se debruçar sobre a obra de Raul Brandão, com destaque para Túlio Ramires Ferro, o
pioneiro, e João Pedro de Andrade, já referido neste capítulo.
2.3 As versões da obra e a escolha do texto-base
Ainda acerca do processo de releitura-reescrita
56
empreendido por Raul Brandão,
Maria João Reynaud tece, em Metamorfoses da Escrita, algumas considerações, que
achamos válido explicitar. Segundo a investigadora,
as intervenções do autor, de versão para versão, não se situam todas ao
mesmo nível: as menos numerosas dizem respeito à manifestação estilística do
conteúdo (são variações de ordem estilística, pouco significativas no cômputo
geral das alterações); aquelas que são efectivamente importantes vão no
sentido de conferir à narrativa um maior equilíbrio rítmico-semântico, ou seja, de
reorganizar ritmicamente o conteúdo, de modo a que se intensifique um efeito
de abertura, referível a uma estética heterodoxa do ‘inacabamento’. (2000a, p.
254).
A refundição do Húmus é um trabalho tensional, dual por natureza. Implica um
processo de destruição textual (decomposição) e de construção textual
(regeneração/composição). No entanto, destaque-se que o incipt da obra, que
corresponde, a nosso ver, ao fragmento 13 de novembro, não sofre alterações, à exceção
de uma única atualização na pontuação. Isso ocorre porque o trecho inicial concentra a
carga significativa do texto e, também, funciona como chave-de-leitura, indicando ao leitor
que se trata de uma mesma obra. É possível que Brandão, em meio a seu desejo de
modificar a estrutura e o conteúdo do livro, tenha tomado alguma precaução para não o
descaracterizar, como evidencia a manutenção de todo o incipt; embora seja possível,
efetivamente, trabalhar as versões como livros distintos. É justamente essa possibilidade
47
que torna patente a necessidade de definir qual delas servirá como base para nossa
análise crítica da narrativa, que se realizará no último capítulo desta Dissertação.
Húmus põe em xeque o mito da unidade da obra. Sua produção constitui um
grande mosaico, que não chega a se encaixar com perfeição, mas que nem por isso
perde em qualidade ou rito. Aliás, essa tendência para a abertura, que reflete com
mestria o conceito de obra aberta lapidado pelo crítico italiano Umberto Eco (1968),
alinha a obra de Raul Brandão à de Walter Benjamin, também considerada
“fragmentada, inacabada, às vezes hermética, freqüentemente anacrônica e, no
entanto, sempre atual” (LÖWY, 2005, p. 13).
De acordo com Maria João Reynaud (2000a, p. 112), “mais do que a procura da
realização acabada, é a impossibilidade de acabar que determina a escrita de Raul
Brandão”. Mais adiante, acrescenta:
Aquilo que as versões de Húmus nos dão a ler são diferentes retextualizações de
um livro possível aquele livro que, nas palavras de Raul Brandão, ‘está pronto e
nunca está pronto’, e de que ele se vai progressivamente aproximando através de
conturbadas etapas de um complexo processo de criação. (2000a, p. 115, grifo do
autor).
Todos os trabalhos de relevo consagrados a Húmus tomam por base a última versão
autoral, inclusive a Tese de Maria João Reynaud, em respeito a um preceito da Crítica
Textual que julga que, em se tratando de versões de um texto, a “última intenção
materializada [...], o que [se] pode chamar de texto final” (MARTINS, 2007, p. 2), é a mais
autorizada. Contudo, Reynaud tem a percepção de que, embora fazendo uma opção por
56
Parte-se do pressuposto de que para reescrever sua obra, o autor precisa relê-la e tornar-se juiz da
sua própria escrita.
48
trabalhar com H3
57
, é preciso conhecer todas as versões da obra: “Todos os trabalhos
consagrados ao Húmus que conhecemos incidem sobre a última versão, como se ela
fosse a única (REYNAUD, 2000a, p. 133, grifo nosso). No caso do romance
brandoniano, conforme exposto, estamos lidando com um título que pode ser analisado e
lido como obras efetivamente diferentes. Ao longo do terceiro capítulo, nos deteremos em
mais algumas diferenças entre H1, H2 e H3.
Ademais, se nosso interesse é debater a modernidade da narrativa de Raul Brandão
e apontá-la como uma precursora do novo romance em Portugal e livro de formação de
escritores, parece mais coerente eleger a primeira versão para esta investigação. O que
precisa ficar claro para o leitor é que o Exercício Crítico, colocado como apêndice desta
pesquisa, toma por base H1, chegando, portanto, a um produto inverso ao daquele
apresentado por Reynaud em sua edição crítica. Não se trata de um resultado melhor,
apenas textualmente diferente, porque parte de versões opostas do texto literário e
registra, em nota de pé, as variações a partir do texto de 1917.
No entanto, alguns estudiosos ainda poderiam apontar o fato de Raul Brandão ter
desautorizado a publicação da primeira versão de Húmus (cf. a carta dezessete na p. 40)
como um argumento para sustentar que essa edição não merece credibilidade para
trabalhos acadêmicos ou mesmo para o manuseio pelo leitor comum. Não é, porém, o que
explicita trecho do estudo introdutório de Reynaud (2000b, p.30), em que a estudiosa
sublinha certa recuperação de seqüências, presentes na primeira versão, por H3.
Acrescente-se a isso que, dominado por seu espírito sisífico, retornando sempre ao texto
57
A partir de agora, poderemos, quando preciso, adotar o seguinte esquema de siglas:
H1 – Húmus de 1917, Porto, editora Renascença Portuguesa, 334 p.
H2 – Húmus de 1921, Porto-Rio de Janeiro, pela Renascença Portuguesa-Annuario do Brasil, 236p.
H3 – Húmus de 1926, Paris-Lisboa, livrarias Aillaud & Bertrand, 262p.
49
literário e cinzelando-o, é provável que Raul Brandão ainda não estivesse satisfeito com o
resultado das refundições e, se a morte não o tivesse levado em 5 de dezembro de 1930,
tivesse vindo a lume uma quarta versão/edição da obra, pois sabemos que o texto final
(MARTINS, 2007) é, muitas vezes, produto ou resultado de uma fatalidade, como a morte
do seu autor.
Para encerrar este capítulo, gostaríamos de fazer uma referência importante ao
conjunto da obra de Raul Brandão, que não diz respeito exatamente ao Húmus, mas é um
indicativo do percurso do autor, num panorama mais expandido: trata-se da tentativa de
dar forma a um projeto heteronímico, a criação de K. Maurício. Raul Brandão, dotando-o
de uma autonomia significativa, o faz escrever o livro Confissão, uma autobiografia na qual
o (quase)heterônimo revela sofrer de uma doença na medula, que acaba por levá-lo à
morte. Essas páginas foram publicadas na revista Os Nefelibatas, de forte inspiração
simbolista e expressionista, surgida no Porto, em 1892, e da qual Raul Brandão, Júlio
Brandão e Justino de Montalvão, sob “a assinatura mascarada de Luís de Borja [...], um
criador coletivo” (VALENTIM, J., 2004, p. 36), eram as figuras capitais. Em 1896, o escritor
do Douro retoma o projeto, publicando História dum Palhaço
58
, cujo subtítulo é A Vida e o
Diário de K. Maurício. Junte-se, portanto, à tentativa heteronímica de Eça de Queirós, com
seu Fradique Mendes, o K. Maurício de Raul Brandão. Dois projetos artístico-intelectivos,
dois grandes escritores do final do culo XIX, que podem ter servido de modelo criativo
para Fernando Pessoa, logo a seguir, ao virar a esquina do século.
58
Reeditada, em 1926, com o título A Morte do Palhaço e O Mistério da Árvore (cf. p. 43).
50
3 ENTRE RUÍNAS
59
Aqui está a ordem e aqui está a desordem, as
palavras inúteis e a inútil burandanga, toda a
fórmula [...]. Desmoronou-se tudo, todas as
fachadas e todos os artifícios.
(BRANDÃO, 2000, p. 247–248)
Há um escrito de Walter Benjamin que forneceu o ponto de partida para as
considerações que teceremos neste capítulo. O texto a que nos referimos é o
fragmento 9 das Über den Begriff der Geschichte [teses “Sobre o conceito de história”],
publicadas, inicialmente, em 1940, em meio à disseminação da ideologia fascista de
Hitler e à guerra deslanchada por suas tropas.
“Sobre o conceito de história” é o ultimo dos textos de Benjamin (meses depois,
em setembro de 1940, o autor optou pelo suicídio a ser preso e vitimado pelo regime do
Füher
60
) e, justamente por isso, está carregado de todo o pensamento desenvolvido ao
longo de vinte e cinco anos de reflexão e produção intelectual
61
. Não bastasse o
amadurecimento natural das idéias, o pensador alemão também pode ter sido
influenciado pela sensação de terror que se espalhou pela Europa durante a guerra e
até mesmo antes dela, o que em parte justifica o caráter apocalíptico do fragmento
destacado adiante e do conjunto de sua obra. A tese 9 (e não ela) de “Sobre o
conceito de história” está embebida de um pessimismo que deixa desprender os
59
Resultados parciais deste capítulo foram publicados no número 6 da revista Artciencia
(www.artciencia.com), de fevereiro-maio de 2007.
60
Alguns estudiosos, ressalte-se, crêem na versão de assassinato.
61
Alguns dos conceitos basilares do pensamento de W. Benjamin já estão presentes em A vida dos
estudantes, de 1915.
51
vapores de uma crise social e histórica em curso desde as últimas décadas do século
XIX. Eis o fragmento em questão:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve
ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos
uma cadeia de acontecimentos, ele uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade
sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode
mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao
qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu.
Essa tempestade é o que chamamos progresso. (BENJAMIN, 1994, p. 226).
Benjamin se havia deixado impressionar pela perplexidade que emana da tela de
Klee (pintada em 1910 e que reproduzimos no Anexo Imagem 2). No fragmento
acima, o filósofo sintetiza uma concepção de história dissonante da que vigeu sob os
auspícios do positivismo e que iremos debater, tentando estabelecer uma conexão com
o romance como forma literária. Entretanto, inicialmente é necessário problematizar os
conceitos de história e de narração, o que é feito a seguir.
3.1 História e Narração
É quase improvável que não se observe certa flutuação de conceitos e idéias
quando se pensa na palavra história. Os sentidos associados ao significante em
destaque são múltiplos, provocam discussões e suscitam a produção de textos
especializados, como se evidencia no Dicionário de Narratologia (2002), de Carlos Reis
e Ana Cristina M. Lopes. Os autores lembram-nos que os formalistas russos, numa
tentativa de sistematização própria do círculo, propuseram distinções dicotômicas a fim
de dirimir problemas que afetavam os estudos de teoria e crítica literárias, ocasionados
52
pela falta de rigor terminológico então presente. Os embaraços gerados pelo caráter
plural de história chamaram a atenção desses pensadores, com destaque para
Todorov, Genette, Bremond e Chatman (cf. REIS; LOPES, 2002, p. 195–197).
Se no âmbito dos estudos literários essa indistinção gerava dúvidas, no campo da
disciplina da História não foi diferente. Com efeito, muitos dos que se mantiveram
interessados por uma reflexão sobre a linguagem (seja como realização, seja como
possibilidade) acabaram por chegar à história e à narração: nas páginas 50 e 51 desta
Dissertação, deparamo-nos com um Benjamin historiador, mas é preciso lembrar que o
mesmo pensador dedicou ensaios à sua filosofia da linguagem, entre os quais
destacamos o texto de 1916, intitulado “Sobre a Língua Geral e sobre a Língua do
Homem”, que muito pode ter contribuído para que o autor refletisse sobre as
possibilidades semântico-conceituais de “história” e “narração”. Jeanne Marie Gagnebin
(1994), no prefácio à edição brasileira do primeiro volume das Obras Escolhidas
(“Walter Benjamin ou a história aberta”), afirma que
Se nos lembrarmos que o termo “Geschichte”, como “história”, designa tanto o
processo de desenvolvimento da realidade no tempo como o estudo desse
processo ou um relato qualquer, compreenderemos que as teses “Sobre o
conceito de história” não são apenas uma especulação sobre o devir histórico
“enquanto tal”, mas uma reflexão crítica sobre nosso discurso a respeito da
história (das histórias), discurso esse inseparável de certa prática. (p. 7)
O caráter aberto (polissêmico e multimodal) da palavra história não é empecilho
para uma investigação que passe por uma teoria da disciplina; ao contrário, é a partir
de sua aceitação que este estudo se alicerça. Contudo, pode-se entrever que, se o
vocábulo aponta para significações díspares, há algo que as une: a sua natureza
53
processual ou, para usar outro termo, narrativa, como sugere a prefaciadora (cf.
GAGNEBIN, 1994, p. 9 et seq.).
Narração também é um termo afetado por relativa polissemia, sendo entendido,
mais costumeiramente, como o processo de enunciação de uma narrativa, como
resultado desse mesmo processo, ou seja, como escrita, e ainda como um tipo textual
que se opõe à descrição (cf. REIS; LOPES, 2002, p. 246). De qualquer forma, podemos
identificar, a priori, nos usos desse substantivo, um valor de movimento (ação), de
fluência temporal e verbal.
Walter Benjamin (1994), nos ensaios “Experiência e pobreza” e “O narrador.
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, identifica o decurso narrativo com o
processo de comunicar experiências, de relatá-las a outras pessoas, de transitar idéias.
Nesses textos, o filósofo alemão aprecia a narração como uma atividade
essencialmente oral, de tradição milenar:
Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada
aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de
forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como
narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que
foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar
histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras
tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em
geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará,
sequer, lidar com a juventude invocando a experiência? Não, está claro que as
ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e
1918 viveu umas das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não
seja tão estranho como parece. Na época, se podia notar que os
combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. (1994, p.114-
115).
62
62
Em “O Narrador...”, Benjamin uma reescritura ao fragmento apresentado em “Experiência e
pobreza”, o que acentua a importância da capacidade de transmitir experiências dos mais velhos aos
mais novos. Diz: “Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final
da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha o mais ricos, e sim
mais pobres em experiência comunicável.” (1994, p. 198).
54
A imagem do narrador, aquele que transmite suas experiências autênticas
[Erfahrung] aos mais novos (filhos e netos) é bastante cinzelada por Benjamin, que o
considera figura nuclear em uma sociedade que privilegia a troca de experiências,
preferencialmente, uma sociedade ainda não tocada pela modernidade trazida pelos
séculos XVIII e XIX, de caráter artesanal (não-industrial): são os artesãos que tecem os
fios da narrativa. E se pensarmos mais detidamente, o historiador mantém forte relação
com o narrador: ambos estão imbuídos de uma autoridade
63
, conferida pela
experiência, e precisam transmitir seus relatos, sejam enunciados ficcionais, sejam
enunciados históricos.
O valor narrativo está, freqüentemente, associado à poesia épica. Tanto Walter
Benjamin em “A crise do romance. Sobre Alexandersplatz, de Döblin” quanto outros
teóricos da primeira metade do século XX (Adorno e Lukács, por exemplo
64
), são
impelidos a ver na epopéia a autoridade da verdade, da totalidade da narração. Isso é
possível porque, na visão de Benjamin, o período que antecede à modernidade é
marcado por uma relação globalizante com a experiência, em oposição ao caráter
fragmentário e atomizado do período posterior. Assim, é possível comunicar as
experiências que foram saboreadas antes do advento da modernidade:
Num mundo então em vias de transformações radicais do modelo
econômico que abandonava definitivamente o artesão para incentivar a
produção industrial; da cidade cujo traçado medieval cedia o lugar ao
planejamento urbano dos grandes eixos viários; da arquitetura que descobria
novos materiais, como o ferro que iria mudar as feições das construções civis;
do pequeno comerciante, sufocado pela potência econômica dos grands
magasins; do sistema financeiro que aderia sem volta ao sistema bancário;
63
Benjamin diz: “Na origem da narrativa está essa autoridade” (1994, p. 208).
64
Theodor Adorno em “Posição do narrador no romance contemporâneo” (2003) e Georg Lukács em
“Epopéia e romance” (2000). Salientamos que outros ensaístas também refletiram sobre a poesia épica e
as relações que esta guarda com o valor narrativo: entre os textos trabalhados nesta Dissertação,
destaca-se “Situação actual do romance”, de Vergílio Ferreira (1965b).
55
enfim, da agilidade dos transportes, da invenção do trem a vapor que devia
facilitar as migrações e as trocas, tornando o centro urbano um lugar menos
estável e mais provisório, onde o operário não mais encontraria o seu
domicílio, porém o seu local de trabalho na fábrica nesse mundo, portanto,
a poesia também havia de transformar-se. (SILVA, 2004, p. 97).
A grande metrópole, local das “transformações mais violentas, onde os guindastes
e escavadeiras trabalham incessantemente, onde o solo treme com o impacto dessas
máquinas [...] e com o rugido dos trens subterrâneos”
65
(p. 57), tornou a experiência
autêntica inviável e proporcionou o aparecimento de algumas figuras icônicas da
modernidade, tão bem representadas pelo poeta cuja aura se perdeu, pelo trapeiro que
perambula pela cidade recolhendo os restos e os fragmentos que ninguém mais quer e
pelo flâneur, que contempla e vivencia essa nova forma de experiência, a experiência
vivida pelo choque [Chockerlebnis]. Maria João Cantinho (2003), em artigo estampado
na revista espanhola Espéculo, publicação virtual da Universidade Complutense de
Madrid, evidencia a fantasmagoria dessa vivência nos centros urbanos:
Nas galerias parisienses era permitido, àquele que nelas se passeava, anular o
tedium vitae perdendo-se com segurança nesses mundos em miniatura, sob os
céus transparentes de vidro, que reproduziam, artificial e fantasmagoricamente,
o céu natural. É sobretudo neste mundo envidraçado, constituído por
transparências e por espelhos, que decorre o dia-a-dia do flâneur. (2003, p.
5).
66
Aos leitores menos atentos, a experiência retratada na citação adquire um caráter
de limpidez, lucidez ou ainda totalidade. Contudo, não se pode deixar de ter em mente
que essa vivência é artificial, não pode ser experimentada por uma coletividade, que,
65
Trecho de “A crise do romance. Sobre Alexanderplatz, de Döblin” (1994).
66
O trecho citado comunica-se com a seguinte passagem do ensaio “Experiência e pobreza” (1994):
“Não é por acaso que o vidro é um material tão duro e tão liso, no qual nada se fixa. É também um
material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura. O vidro é em geral o inimigo do mistério.
É também o inimigo da propriedade”. (p. 117)
56
constituída por um grupo de indivíduos, consiga repassar e reconstruir (ou relatar) essa
experiência àqueles que ainda não a tiveram. Essa crise da comunicação da vivência,
que se via relato, reverbera na perturbação da possibilidade de contar, ou melhor,
revela uma impossibilidade de transmissão (oral), o que faz Benjamin decretar que
a experiência [...] de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras
as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que
alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se
estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável:
a faculdade de intercambiar experiências. (1994, p. 197–198)
67
Se se desintegrava
68
uma capacidade para transmitir experiências (narrar), os
reflexos seriam sentidos tanto nas narrativas ficcionais como nos relatos de
acontecimentos históricos, tendo em vista que narrador e historiador se aproximam pela
via da comunicabilidade de fatos. Aliás, a fusão entre as imagens do narrador e do
historiador parece se dar na função do cronista, aquele que trabalha o tempo e que,
para Walter Benjamin, não pode “distinguir entre os grandes e os pequenos” (1994, p
223)
69
acontecimentos, pois precisa levar “em conta a verdade de que nada do que um
dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (p. 223).
O filósofo germânico, diante de uma crise da narração tradicional, que é a escrita
de um relato (escrita como produção), identifica a possibilidade de uma manipulação,
por parte das classes dominantes, da própria escrita da história (historiografia), e
propala, então, a necessidade de não permitir que nenhuma experiência se perca no
decurso do tempo e da história. Ele teme, portanto, a história dita universal, que “não
67
Em “O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”.
68
Adorno (2003), em ensaio já referido em nota, diz: “O que se desintegrou foi a identidade da
experiência, a vida articulada e em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite.” (p. 56)
69
Na tese de número 3 de “Sobre o conceito de história”.
57
tem qualquer armação teórica”, cujo procedimento é “aditivo”: “Ela utiliza a massa dos
fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio.”
70
Aqui, é oportuno chamar a atenção para a diferença existente entre os termos
história e historiografia. Enquanto o primeiro é, de acordo com Gagnebin, o “processo
de desenvolvimento da realidade no tempo”
71
, o segundo é uma escrita dessa
realidade
72
, de colocá-la em narração, em transmissão, e que, portanto, está sujeita à
seleção conduzida pelo historiador, o que pode enviesá-la com ideologias ou torná-la
parcial. É justamente essa parcialidade que Walter Benjamin teme, pois tornaria inviável
o seu desejo de redenção da humanidade, possível quando cada coisa e cada ser tiver
seu lugar na história, sair do esquecimento imposto pelos vencedores. Assim, é preciso
“escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225), fazê-la mostrar o lado
esquecido dos acontecimentos, em que se avultam os trabalhadores, os pobres, enfim,
os dominados de que nos fala em suas teses. Combatendo o progressismo
73
e o
historicismo, Benjamin propõe uma nova concepção de história, que, por ter
consciência da incapacidade de se narrar devidamente (o que a tornaria parcial e,
portanto, suscetível “ao inimigo [que] não tem cessado de vencer” (1994, p. 225), deve
buscar uma visão não cronológica, que fuja ao caráter linear imposto por um
pensamento iluminista-positivista à ciência histórica.
Dessa forma, para o teórico, não uma linha histórica que caminhe rumo ao
progresso da civilização, que culmina com a chegada deste a todos os cantos da
70
Todas as citações deste parágrafo foram retiras da tese 17 de “Sobre o conceito de história”:
BENJAMIN, 1994, p. 231.
71
Loc. cit.
72
Tendo-se em mente que nenhuma realidade é universal e sinônimo de verdade.
73
Toma-se aqui o progressismo como uma ideologia que acredita em um futuro melhor para a
humanidade. No entanto, esse viés histórico o leva em consideração os pequenos sujeitos da história,
58
terra e com o bem-estar da humanidade
74
. O que é uma barbárie e um processo de
ruína da sociedade, cujo “anjo da história” contempla, ao mesmo tempo horrorizado,
fascinado e impotente. Para Walter Benjamin, a narração de acontecimentos
sucessivos não corresponde à verdade histórica, à História. O comentário a seguir
solapa as dúvidas remanescentes quanto ao conceito de historicismo, que
se contenta
em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história” (BENJAMIN, 1994,
p. 232), sem refletir sobre os acontecimentos:
Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele
se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que
podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso
renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um
rosário.
75
(BENJAMIN, 1994, p. 232).
De acordo com Jeanne Marie Gagnebin (2004, p. 96-98), a historiografia,
compreendida aqui como a escrita tradicional da história, sustenta-se na concepção
trivial de tempo como cronologia linear. Esta opera com dois preceitos complementares,
que, acreditamos, quase se sobrepõem: 1. a causalidade histórica, que no fato de
um acontecimento ter ocorrido após outro uma relação histórica, e 2. uma continuidade
temporal finita e regular, que apregoa a idéia de um continuísmo (ou continuum)
histórico, cujo momento último
76
sempre é superior qualitativamente ao período
imediatamente anterior. É justamente nessa concepção historiográfica tradicional que
se funda a visão histórica das classes dominantes. Gagnebin (2004, p. 98) atenta para
mas somente os grandes fatos e acontecimentos que parecem conferir à humanidade uma narrativa que
caminha para o sucesso. Está intimamente ligado ao conceito de historicismo.
74
Para um aprofundamento no tema, sugere-se a leitura de Os filhos do barro, de Octávio Paz (1984),
em que o crítico escreve sobre a noção de progresso.
75
Tese de número 19a ou apêndice 1, na edição da Editora Brasiliense.
76
Numa abordagem diacrônica.
59
o fato de que esse progressismo e esse historicismo que permeiam a escrita da história
sob o viés tradicional (iluminista-positivista) lhe conferem um caráter falsamente épico,
de uma narrativa que flui sem obstáculos para a história universal. Sabe-se que não é
assim: a história da humanidade é repleta de grandes catástrofes e de pequenos
acontecimentos comezinhos, de relações de dominação e exploração, de sofrimento e
de barbáries. Querer escrever / ler (ou ver) uma história universal de cunho épico
77
é
desprezar todas as calamidades da sociedade e querer calar a voz dos vencidos. É
justamente contra essa percepção de história que Walter Benjamin se insurge,
propondo-lhe a interrupção, uma necessidade de parar o tempo progressista para
deixar vir à baila a verdade histórica, que precisa ser resgatada por meio da
rememoração da experiência vivida pelo choque [Chockerlebnis]:
Rememorar a experiência vivida deve ser entendida, assim como o gesto
aniquilador, que leva a cabo essa desintegração necessária da unidade
imediata da organicidade das coisas, fazendo estilhaçar a sua falsa aparência
(o Schein), mas esse gesto encerra em si uma pretensão redentora, o
estabelecimento de uma (re)criação ou (re)construção que obrigue as coisas a
significar. (CANTINHO, 2003, p. 8).
Na historiografia tradicional, os vencidos são postos no limbo do esquecimento,
como se não fossem participantes de um processo histórico de dominação. É, portanto,
uma narrativa cheia de furos, de lapsos propositadamente deixados. Gagnebin (2004)
afirma que “o que a história tradicional quer apagar são os buracos da narrativa que
indicam tantas brechas possíveis no continuum da dominação” (p. 100).
As palavras de rgio Paulo Rouanet, em sua introdução ao Origem do drama
barroco alemão (1984), propiciam uma acomodação dos conceitos propostos por
77
Aqui como a história de caráter progressista e historicista.
60
Benjamin no conjunto de sua obra, ao afirmar que “a história é com efeito a sucessão
de catástrofes, que acabará culminando na catástrofe derradeira. Não é a história
humana, e sim a história da natureza” (p. 35). O pesquisador nos apresenta uma
história, em certa medida, incontrolável, que não pode ser domada pela força dos
homens. O que os historiadores podem fazer é narrá-la da forma que lhes convém. E é
esse o receio de Walter Benjamin: que a escrita da história permita os buracos do
esquecimento. Assim, somente um historiador dialético, preocupado em resgatar toda a
história, e não somente em narrar a história dos vencedores, poderá “libertar o objeto
histórico do fluxo [...] [contínuo], salvando-o sob a forma de um objeto-mônada:
fragmento de história, agora intemporal, que o olhar de Medusa do historiador
mineraliza” (ROUANET, 1984, p. 19).
Mas como capturar, num instante intemporal, o fragmento de história? Walter
Benjamin aponta para a interrupção, via conceito de cesura, que “opera uma ruptura no
desenvolvimento falsamente épico da narrativa; contra a ilusão tentadora que queira ver
no fluxo de nossas palavras a abundância da natureza” (GAGNEBIN, 2004, p 106), uma
vez que “nossa narração (em particular nossa ‘história!’) não segue por si mesma, que
ela é o resultado de decisões singulares, até arbitrárias, e não o fruto de um processo
universal e orgânico” (p. 106). A história não flui naturalmente, ela não caminha, de
modo inato, para o progresso.
Estamos diante de uma nova concepção que quer fazer “explodir o continuum da
história” (BENJAMIN, 1994, p. 232) e que tem como objetivo “fundar um outro conceito
de tempo, ‘tempo de agora’ (‘Jetztzeit’)” (GAGNEBIN, 1994, p. 8). Em substituição a um
tempo sucessivo, de cronologia linear, Walter Benjamin propõe uma eternização do
presente, em que cada momento histórico possa ser efetivamente resgatado. No
61
entanto, para que se possa redimir o passado, é necessário destruí-lo, desmontá-lo
para fazê-lo ressignificar. Não é mais possível ter dimensão da totalidade das
experiências. Esse é o método alegórico de Benjamin
78
, que implica
destruir, sim, mas não como um fito último, gesto que conhece em si mesmo o
seu termo. Em última análise, não é disso que ele nos fala quando refere as
[sic] palavras aniquilação, morte ou destruição. Trata-se, antes de arrancar as
coisas às suas correlações habituais (orgânicas), para as obrigar a penetrar,
redimindo-as, numa nova ordem ou num novo círculo: o das significações.
(CANTINHO, 2003, p. 8 e 9).
Receosa das possíveis interpretações enviesadas dessa nova concepção de
história, da qual Benjamin é um dos principais arautos, Jeanne Marie Gagnebin (2004)
destaca que
Longe de apresentar de início um outro sistema explicativo ou uma “contra
história” plena e valente, oposta e simétrica à história oficial, a reflexão do
historiador deve provocar um abalo, um choque que imobiliza o
desenvolvimento falsamente natural da narrativa.” (p. 104, grifo nosso).
E se se poderia pensar em calar (não transmitir as experiências vividas pelo
choque [Chockerlebnis]), em vez de tentar redimir o passado histórico por meio de uma
nova concepção de história, de tempo histórico e de narrativa, a estudiosa ressalta que
não contar é compactuar com a ignomínia. Diz: “Há, portanto, que obrigar-se a falar e a
escrever, como faz Primo Levi, que começa seus manuscritos no laboratório de
Auschwitz” (GAGNEBIN, 2004, p. 109).
78
Segundo Sérgio Paulo Rouanet (1984), no prefácio à edição de Origem do drama barroco alemão,
“falar alegoricamente significa, pelo uso de uma linguagem literal, acessível a todos, remeter a outro nível
de significação: dizer uma coisa para significar outra”. (p.37)
62
O pensamento histórico de Walter Benjamin está em sintonia com o de um grupo
de intelectuais franceses que, como o crítico alemão, propunham uma história total, que
deixasse de focar os grandes acontecimentos do passado, mas que procurasse
estabelecer causas e relações entre os fatos, vislumbrando-os como verdadeiros
acontecimentos históricos. Esses também se deram conta do caráter narrativo da
história, como se verifica nesta afirmação de Roger Chartier, no artigo “A História hoje:
dúvidas, desafios e propostas”:
uma razão abalou ainda mais profundamente as certezas antigas: a
conscientização dos historiadores de que seu discurso, qualquer que seja sua
forma, é sempre uma narrativa. [...] De fato, toda história, mesmo a menos
narrativa, mesmo a mais estrutural, é sempre construída a partir de fórmulas
que governam a produção das narrativas. As entidades com que os
historiadores lidam (sociedades, classes, mentalidades, etc.) são “quase
personagens”, dotadas implicitamente das propriedades dos heróis singulares
ou dos indivíduos ordinários que compõem as coletividades que essas
categorias abstratas designam. (1994, p. 3–4).
Nessa declaração, o estudioso francês corrobora as idéias de Walter Benjamin de
que a história linear rumo ao progresso, a história tradicional, é o discurso da macro-
história, a história que se preocupa com os grandes feitos e acontecimentos celebrados
por pessoas de notoriedade social, que contribui, direta ou indiretamente, para a
manutenção das esferas do poder e que se constitui em discurso oficial dessas
camadas. Chartier, ainda no mesmo artigo, estabelece uma relação entre a história e o
romance como gênero literário, ao afirmar que aquela “não traz mais nem menos um
conhecimento verdadeiro do real do que o faz um romance” (1994, p. 10), ligando-os
por serem ambos formas de escrita e de narração.
A imagem da narrativa ideal é esboçada por Walter Benjamin em seu “O narrador.
Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, ao assinalar Heródoto como o primeiro
63
narrador grego. O verdadeiro narrador é uma semente que, para sempre, conserva a
sua força germinativa. Onde for lançada, sempre gozará da capacidade de fecundar, de
transmitir experiências. Walter Benjamin, ainda no mesmo ensaio, assemelha o ato de
narrar à ação de tecer um fio, sobretudo pela peculiaridade artesanal de que ambos os
processos são dotados: a artesania (cf. 1994, p. 205). Alder Castagno (1992-1993), em
artigo publicado na revista Ensaios de Semiótica, número 26, aponta que também
Arrigucci Jr
entende a Narrativa [...] como um tecido de experiências que será trabalhado
pelo Narrador tecelão, pelo Narrador agora transformado em Aracne. A
proximidade entre o Narrador e a tecelã da lenda grega está em utilizar
artisticamente o fio – esta, o fio de lã; aquele, o fio da memória trabalhando-o
num tecido, num tapete, numa arte. (p. 178)
Se pensarmos que a nova concepção de história proposta por Benjamin e, em
paralelo, pelo círculo de intelectuais franceses que se reuniu ao redor da revista
Annales d’histoire économique et sociale, entre os anos de 1929 e 1989, é uma “reação
deliberada contra o ‘paradigma’ tradicional” (BURKE, 1992, p. 10), podemos entrever no
advento do romance moderno uma proposta semelhante, uma vez que história
(tradicional) e romance (canônico) estão ligados por serem duas formas de escrita e
dois modelos de narração. Se História e Literatura são duas formas de narrar, é
possível estabelecer uma ponte entre essas narrativas e ver na crise da escrita da
história positivista relações com a crise do romance (ou metamorfose do romance
tradicional em romance moderno), ambas existentes no período de virada do século
XIX até as primeiras décadas do século XX, período que ficou conhecido como fin-de-
siècle.
64
3.2 Sob o signo da desordem
Se o século do romantismo e do realismo se sustentou na instauração de teses e
teorias que buscavam a construção de uma sociedade estável e crente em uma ciência
positivista, os anos seguintes foram marcados por uma reviravolta no pensamento
ocidental. Os jovens escritores portugueses da década de 1870 perceberam a aura de
crise e revolução que se instalara por toda a Europa e que, aos poucos, chegava a seu
país. Era o avanço do fin-de-siècle, época ligada à decadência, ao decadentismo e à
modernidade.
A decadência a que aludimos neste estudo não corresponde àquela que se
instaurou em Portugal a partir de meados do século XVI, marcada por uma paulatina
agudização das crises financeira, social e institucional (decadência histórica), mas a um
verdadeiro sentimento pessimista, de frustração e de desilusão que se manifestou na
Europa, sobretudo nas três últimas décadas do culo XIX e que adentrou, ao menos
em duas décadas, o culo seguinte. O fin-de-siècle, portanto, não coincide com a
cronologia do século civil, mas corresponde a um período histórico marcado por certa
recusa da filosofia positivista e do mito do progresso, mito ainda bastante presente no
contexto histórico em que se insere a produção literária de Raul Brandão, apesar do
movimento de rechaçamento dos ideais realistas que se instaurou.
O profundo sentimento de angústia, de desconcerto e de descompasso do qual
está embebido o período finissecular, logo ganhou forma nas artes plásticas e na
literatura, traduzindo, em certa medida, o modo de sentir a vida nas grandes metrópoles
européias (Paris, Londres e Berlim) e, em menor intensidade, nas grandes cidades da
periferia da Europa, como Lisboa e Coimbra. Se, por um lado, os grandes centros
65
urbanos do Velho Mundo gozavam de um desenvolvimento técnico-científico pujante
como nunca havia acontecido até então, por outro, a percepção de que o progresso da
civilização não chegou uniformemente a toda a humanidade resultou em descrédito em
relação às ilusões do progresso. Vergílio Ferreira, em seu ensaio “Situação actual do
romance” (1965a), exprime que
É a evidência que se ergue de um simples interrogar-nos sobre o abalo da
Ciência, da Arte, da Filosofia, da Religião, da Técnica, das Organizações
Políticas, da Economia, das relações entre os homens, das relações familiares.
É fascinante pensar que um novo eixo cultural e humano se esboça com uma
nova e imprevisível ordenação, rendendo essoutro que nos ordenou a vida
desde a Grécia, desde o Cristianismo. Que velha ordem se encerra, que nova
ordem se abre? (p. 228)
O decadentismo revela-se uma manifestação da crise da sociedade do século XIX,
em que o caos se instala como força-motor e gera um momento de extrema dispersão e
fragmentação, já apontando para a abertura que se realizará no século posterior:
a literatura fin-de-siècle é também uma literatura avant-siècle e traz em seu bojo
a modernidade. Ao invés de procurar no passado, como o românticos, a
unidade perdida, [...] abre-se para a perspectiva moderna da fragmentação, da
renovação e do apagamento das fronteiras dos gêneros e das artes.
(CATHARINA, 2005, p. 98-99).
Com o positivismo em xeque, a história tradicional também sofreu abalos. Vozes
se elevaram para anunciar o fim de uma história linear, que era pensada como uma
ordenação cronológica de fatos e acontecimentos, vistos sob o prisma dos grandes
heróis e governantes, dos métodos e dados oficiais. Para esses novos pensadores (e
fica claro o lugar de destaque de Walter Benjamin), o mundo não estava passando por
mais uma crise que logo seria superada; ao contrário, via-se tudo como um nó, sem
66
princípio nem fim, sem previsão de futuro ou de progresso, portanto. Era preciso
desconstruir (desmontar) essa visão positivista e substituí-la por uma nova visão e
concepção de escrita / leitura do mundo.
79
A percepção da necessidade de uma rediscussão da concepção de história e de
sua escrita não é, como vimos, exclusiva de Walter Benjamin em suas teses “Sobre o
conceito de história”, embora seja ele um dos maiores representantes desse novo olhar:
é fruto da crise finissecular, da ruína do próprio pensamento do século XIX. Assim,
Benjamin, Burke e Chartier comungam quando pensam em termos de uma micro-
história, vista de baixo, polifônica e dialógica
80
. Sintetizadoras são as palavras de
Eduardo Lourenço (1993), com que faz comentários sobre uma nova história, embora
sem apontar um ou outro caminho teórico: “A nova história não é unidimensional como
era a de Voltaire, ou teológico-filosófica como a de Vico e Hegel, mas a História como
re-descoberta e conhecimento” (p. 33).
É preciso lembrar que a concepção de que a história é um discurso narrativo
começou a ser delineada à época de Raul Brandão e continuou a impactar pelas
décadas seguintes, também deixando marcas na escritura de Vergílio Ferreira, por
exemplo. Para alguns de nós, que vivemos os primeiros anos do século XXI, pode
parecer pouco significativa essa mudança na concepção histórica, que se revela
também em uma metamorfose da concepção de narração, mas para uma sociedade
que ainda vivia acorrentada ao pensamento oitocentista, pode ter funcionado como
válvula de escape e munição para revoluções, tanto no campo da História quanto na
79
Para Benjamin, essa concepção só seria possível se vista sob a óptica do historiador dialético.
80
Termos cunhados e usados largamente por Mikhail Bakhtin.
67
área da Literatura. A crise, decadentista por excelência, evoluiu para uma revolução
das formas de contar, que se manifestou, por diversas vezes, em uma impossibilidade
de narrar, como já foi explicitado no subcapítulo 3.1.
A concepção de história tradicional não parece servir para compreendermos as
idéias fulcrais da obra brandoniana. Ao contrário, é o questionamento desse tipo de
história, o que implica um alinhamento com o pensamento de Walter Benjamin, que nos
possibilita entender a inquietação constante que povoa A Farsa e, posteriormente, o
Húmus: a imagem de uma vida labiríntica, sem rumo, em que o sofrimento e a pobreza
são elementos constantes; em que os pobres, os vencidos, ganham relevo em
detrimento dos vencedores. Acreditamos que, assim como ocorreu com Benjamin, o
pensamento de Raul Brandão foi decisivamente influenciado pelas idéias marxistas
surgidas no século XIX
81
.
Após essas reflexões sobre a história, a narração e o declínio da arte de contar,
agora regida pelo signo da desordem, pela perturbação e pela contestação de uma
linearidade falsamente épica, apresentaremos ponderações sobre o romance, sua crise
(metamorfose) e sua inserção no novo cenário literário do século XX, utilizando-nos do
Húmus para exemplificações, quando necessário.
3.3 A metamorfose do romance e o texto de Raul Brandão
Como é sabido, Benjamin ultrapassa a esfera da filosofia, adentra o campo da
História e da crítica de arte literária, quando escreve, por exemplo, que o “romance,
81
Lembramos que o marxismo tem certa abertura ao progressismo, uma vez que o futuro da classe
trabalhadora, pós-revolução, como necessariamente melhor que o passado. Nessa perspectiva, diverge
dos valores da nova história.
68
cujos primórdios remontam à Antigüidade, precisou de centenas de anos para
encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis ao seu florescimento”
(1994, p. 202). Sabe-se, também, que, embora a literatura clássica dispusesse de
narrativas com intenção literária (como é o caso de Satiricon, de Petrônio e dos
romances gregos dos séculos I e II), foi somente com o romantismo, expressão literária
da burguesia ascendente de que nos lembra Walter Benjamin, que a narrativa
romanesca se firmou como importante forma literária. A mais severa modificação do
romance após seu período de consolidação ocorreu no período finissecular e instaurou
o que se chama de romance moderno. Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário
de Narratologia (2002), registram entradas distintas para os diversos tipos de romance,
reforçando a não existência de um único modelo, mas de padrões que variam conforme
as estéticas literárias.
Não é possível e nem é o nosso objetivo (uma vez que nossa proposta é proceder
a uma leitura crítica do romance que evidencie a modernidade da experiência estética
de Raul Brandão), no espaço de que dispomos para o desenvolvimento deste capítulo,
enveredar por uma teoria do romance em que pudéssemos estudar uma a uma suas
características e componentes; ou partir para uma historiografia do gênero. No entanto,
é preciso ressaltar que os críticos e teóricos da narratologia são harmônicos em
descrever o romance como uma forma literária marcada pela pluralidade e pela
simultaneidade dos núcleos narrativos. De acordo com Jacinto do Prado Coelho, em
seu Dicionário de Literatura (1994), é justamente a pluralidade e a simultaneidade
dos/nos conflitos que faz a distinção entre o gênero novelesco e o romance. Essa
pluralidade/simultaneidade de ação deixa marcas em todas outras categorias
estruturantes do romance. Esse é, em linhas gerais, o perfil do gênero literário em
69
questão, visto pelo prisma canônico, ou tradicional, se se preferir. No decorrer do século
XX, essa distinção entre novela e romance, apontada por Coelho (1994) e por outros
estudiosos, como é o caso de Massaud Moisés em A criação literária (2003), deixou de
ser fiável. Em verdade, muito que se questionar sobre as reais diferenças entre os
dois gêneros na atual conjuntura. O que se pode com relativa segurança estabelecer
são as divergências (e as convergências?) entre o romance do século XIX e esse novo
modelo de romance que se forjou ao longo do século passado.
No romance tradicional as categorias narrativas o bem definidas, delimitadas.
Isso pode ser visto como um reflexo do pensamento positivista, em que não havia muito
espaço para o subjetivo e metafísico. Assim, temos enredos sólidos e bem construídos,
um tempo lógico e que estabelece nítidas relações de causalidade, espaços bem
descritos e personagens que extrapolam a mera tipificação. É claro que nesta descrição
do romance canônico cabe certa relativização. Contudo, nossa explanação do modelo
narrativo referido parte do estabelecimento de um padrão tido como ideal para o século
XIX. Como resultado, o papel do narrador fica em segundo plano, com a tarefa de fazer
ligações ou comentários extra-diegéticos; establishment que é invertido no romance
moderno, cujo grande destaque fica por conta do narrador e, por conseqüência, da fuga
do enredo do texto literário.
Vergílio Ferreira, um dos críticos literários portugueses que mais se debruçou
sobre a problemática do romance, estabelece uma comparação entre o gênero
romanesco e a própria face do homem, afirmando que ambas sofrem mutações, sem
deixarem, por isso, de ser o que são: romance e face.
70
Quem ignora o clamor escandalizado deste ou daquele crítico que nos declara
que isto não é poesia, que isto não é teatro, que isto não é romance? E
todavia o não é como não é a nossa face envelhecida que nós vemos ao
espelho, quando a vemos com os olhos da nossa juventude. (1965b, p. 242).
Ainda Ferreira (1965b), na esteira de outros pensadores como Adorno (2003),
Benjamin (1984 e 1994) e Lukács (2000), confronta a narração épica com a narração
romanesca e é firme ao taxar que, assim como o épico se metamorfoseou em
romance
82
, o romance canônico passa por uma transformação que o aproxima do
ensaio, do fluxo de pensamentos e reflexões: o “romance é, como sabemos, o
sucedâneo do poema épico” (1965b, p. 232); “que o resultado final seja precisamente o
‘ensaio’, que o romance perca o nome que mantém – que poderá isso importar?”
(1965b, p. 269).
O crítico português define o romance canônico como “romance espetáculo”
(FERREIRA, 1965b). Esse seria a forma literária com a incumbência de retratar o real, a
sociedade, de ser verossímil. É o espelho do verdadeiro saber do século XIX, como sugere
Eduardo Lourenço em “Dois fins de século” (cf. 1993, p. 33). Seu oposto é o “romance-
problema”, no qual menos ação propriamente dita e mais exercício de linguagem e
reflexão, uma literatura mais ao gosto do século XX. Vergílio Ferreira (1965b) inclui nesta
última categoria as obras de Raul Brandão. E acrescentamos: “romance-problema” e
romance de formação
83
de gerações sucessivas de ficcionistas. Estão no rol daqueles cuja
escrita Brandão influenciou decisivamente, todos confessos mas nem por isso menos
brilhantes —, Almeida Faria, Agustina Bessa-Luís, Augusto Abelaira e o próprio Vergílio
82
Destaque-se que, embora seja a hipótese mais levantada, nem todos os críticos concordam que o
romance seja fruto da poesia épica.
83
Termo usado aqui não com o sentido de Bildungsroman, mas como uma narrativa que, por sua
importância no meio literário, torna-se modelo para escritores.
71
Ferreira, cujas aproximações com o texto de Húmus, vistas a partir de seu Signo sinal, são
comentadas na última seção do terceiro capítulo desta pesquisa.
no texto “No limiar de um mundo, Raul Brandão", o ensaísta aprofunda a
definição do que considera como romance-problema, alinhando-o a grandes nomes da
literatura ocidental, sobretudo André Malraux
84
(segundo o crítico literário, um dos
maiores escritores do século XX): “Mas assim mesmo, eu estou desviando o meu
interesse pelo romance para uma discussão especificamente intelectual e é aí que
pretendo situar a grandeza de um Malraux como romancista e como ensaísta que é
[...] fundamentalmente a mesma coisa”, p. 257:
O “romance-problema” (e eu envolvo o próprio Novo Romance) cujas
inovações, como a obra de um Joyce, implicam profundamente uma grave
questionação do mundo) o “romance-problema” dizia, ou assume a “idéia” que o
orienta, o estrutura, e se demarca como a sua “lição” final e é o caso de um
Kafka e até certo ponto de um Camus ou desenvolve uma temática contra um
fundo de narração que a não implica por força e é largamente o caso de um
Dostoievski, de um Thomas Mann, de um Malraux e mesmo de um Sartre.
(1977, p. 215).
Outro conceito que Ferreira (1965a) delineia, como insinuado na citação, é o de
romance de idéias. Não se trata da presença ou ausência de idéias no texto, mas de se
verificar qual o resultado final da leitura, aquilo que avulta ao pensamento: se o enredo,
no caso do romance espetáculo, se as idéias, os embates, as inquietações, no caso do
romance moderno. Assim, romance-problema, romance-ensaio e romance de idéias
84
Vergílio Ferreira, freqüentemente, tece comentários comparativos entre Brandão e Malraux.
Observemos mais esta citação, publicada em outro ensaio: “Curiosamente, e mais uma vez, este escritor
impressionantemente ‘inculto’ que foi Raul Brandão, encontra-se com um escritor impressionantemente
culto que é André Malraux: ‘O problema capital do fim do século será o problema religioso’ diz o escritor
francês (em Preuves, Mars, 1955); ‘singulares criaturas devem nascer por este fim de século em que a
metafísica de novo predomina’ diz o escritor português dezenas de anos antes (em A Morte do Palhaço)”
(1977, p. 204). Acerca do possível caráter inculto de Brandão sugerido por Ferreira, ver seção “A
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE RAUL BRANDÃO (ou Considerações Finais)”.
72
são variações e perspectivas de um gênero que se pode, a partir de agora, nomear,
simplesmente, de romance moderno ou novo romance (cf. FERREIRA, 1077, p. 195) e
que se delineia muito mais por oposição ao que conhecemos como romance-
espetáculo, romance tradicional ou romance canônico do que por uma caracterização
própria, uma estrutura singular e específica.
Carlos Reis (1998), no artigo “Trajectos e sentidos da ficção portuguesa
contemporânea”, descreve muito bem a transformação do romance canônico em romance
moderno, no decorrer da crise decadentista. Diz o crítico:
O que então está a acontecer ultrapassa, contudo, as estritas fórmulas do novo
romance, tal como os seus modelos franceses o haviam estabelecido. A definitiva
superação do Neo-realismo e dos valores que representara traduz-se também
numa rearticulação da narrativa e das suas categorias fundamentais: uma certa
desagregação do romance, enquanto gênero internamente coeso, combina-se
cada vez mais com o culto da dispersão discursiva com especial incidência no
plano temporal; e a personagem, ao perder a nitidez de contornos herdada do
Realismo crítico, remete, na sua fluidez, para um sujeito em acentuada crise social
e ideológica. (p. 35)
Anatol Rosenfeld, em sintonia com a citação de Vergílio Ferreira explicitada na
página 65, no livro “Reflexões sobre o romance moderno (1973), destaca que a
metamorfose pela qual passou o gênero romanesco não é uma exclusividade literária.
Ao contrário, é reflexo de uma modificação no pensamento humano, da crise positivista,
que gerou rupturas e remodelagens nas diversas formas artísticas:
Nota-se no romance do nosso século uma modificação análoga à da pintura
moderna, modificação que parece ser essencial à estrutura do modernismo. À
eliminação do espaço ou da ilusão do espaço, parece corresponder no romance
a da sucessão temporal. A cronologia, a continuidade temporal foram abaladas,
“os relógios foram destruídos”. O romance moderno nasceu no momento em
que Proust, Joyce, Gide, Faulkner começam a desfazer a ordem cronológica,
fundindo passado, presente e futuro. (ROSENFELD, 1973, p. 80)
73
O romance de Raul Brandão, de Sá-Carneiro, de Vergílio Ferreira
85
,
salvaguardadas as diferenças que há, anuncia que o gênero atingiu a sua maturidade
literária e pôs-se em movimento e em metamorfose, abrindo novas possibilidades de
realização estética. Muitas obras, por se projetarem para além do horizonte possível de
seu tempo, não puderam ser percebidas como o: o romance brandoniano é mais um
desses casos da historiografia literária em que, passadas décadas, os críticos puderam
vê-la como uma construção artística de um novo tempo, tempo adaptado a novos
homens; por isso, um novo romance.
Pensando em termos de modernidade líqüida, como sugere Bauman (2001),
parece-nos quase improvável que a arte literária do culo XX não chegasse ao ponto
de liquefazer o romance, tirar-lhe a armação e deixá-lo em idéias, em problemas,
gritando os conflitos humanos de um tempo que também aboliu as barreiras e as
sólidas configurações da sociedade do século anterior. É em decorrência dessa
descaracterização (desarmação) engendrada pelo romance moderno que muitos dos
críticos que se inclinaram sobre o texto de Húmus se indagaram quanto à sua definição
em um dos gêneros tradicionais da narrativa, como sublinha Jorge Valentim (2006, p.
80) em artigo publicado na revista Itinerários:
Desse modo, torna-se muito difícil determiná-la dentro de um gênero literário.
Romance? Ensaio? Diário? Como classificá-la? A angústia que incomoda, mas
que, igualmente, seduz e magnetiza. Devido o seu caráter inovador, para um
público recém saído [sic] das narrativas queirosianas e fialhianas, a estrutura do
Húmus [sic] está mais próxima de uma postura literária extremamente ousada,
característica das grandes obras de escritores da vanguarda de língua
portuguesa e, aqui, vale a pena citar as próprias Memórias Sentimentais de
João Miramar, de Oswald de Andrade [sic], de 1924 –, que recusam a estrutura
convencional do romance tradicional e ousam diluir e reconstruir um novo
perspectivismo narrativo.
85
Não é demais lembrar que, além de profícuo crítico, é um dos mais representativos escritores
portugueses do século XX.
74
Em diálogo com essa inquietação que consumia críticos e estudiosos e exigia uma
resposta às questões de ordem genológica do Húmus, Guilherme de Castilho (2006, p.
246) precipita-se a dizer que se trata, verdadeiramente, não de um romance, mas de
um anti-romance. Nessa esteira, Castilho não reconhece no texto brandoniano as
marcas do romance moderno, embora, mais adiante no mesmo texto, pareça
contradizer-se. Aliás, depreende-se que o crítico não compartilha da posição de um
romance que “abandona definitivamente o objectivo de mimésis fotográfica do real, para
se transformar numa representação simbólico-metafísica” (MARTINS, 2000, p 462).
Algo que também avulta no ensaio de Castilho (2006) é que, freqüentemente, utiliza
palavras que denotam sua posição de não ser mus um livro pensado, que seja fruto
de um trabalho literário consciente de ruptura, mas de ser resultado da criação de um
escritor “indisciplinado” (p. 244), cuja “inspiração ocasional” (p. 245), não tem “qualquer
propósito intencional de renovação”. A posição de Castilho é compartilhada por Álvaro
Manuel Machado (2000), no texto “Raul Brandão para além dos modelos”, em que diz
que “em Raul Brandão tudo se torna experiência fragmentada não conscientemente
estruturada, diria mesmo puramente intuitiva” (p. 265). É o oposto disso que
acreditamos e que defendemos ao longo do primeiro capítulo, mostrando, justamente,
que o processo genético do livro em tela decorre de um processo lento, rotineiro e
consciente:
Na verdade, Húmus não é, a nosso ver, um anti-romance. Nem nos parece lícito
afirmar que Raul Brandão não tivesse por finalidade escrever um romance,
porque o escreveu. Muito menos parece-nos que o escritor zombe da técnica
da composição. O que nela ocorre é a séria discussão sobre o que significa
fazer um romance nesse momento histórico. Não nos parece, tampouco, que a
época seja propícia à construção de personagens heróicas, capazes de
transpor obstáculos intransponíveis. Nem é o nosso tempo o tempo de grandes
75
histórias para contar. Nele se reflete, antecipando o que seria preocupação
de algumas décadas mais tarde: a crise do romance...(PEREIRA, 1999, p. 2–3).
No romance moderno, portanto, a função primordial deixou de ser a mera atividade
de diegese bem definida e ordenada, cedeu lugar a uma tentativa de equacionar uma
problematização do mundo e da condição humana, o que provocou a destruição da
novelística tradicional, como lembra Ângela Gonçalves em sua Dissertação de
Mestrado Húmus: um sinal entre as luzes do crepúsculo (2002), defendida na
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É no gancho
dessa destruição da novelística canônica que Claudia Atanazio Valentim (2006), pensa
a crise do romance canônico no princípio do século passado. No entanto, talvez seja
interessante lembrar que esse mesmo modelo de romance (canônico), gênero
constantemente esgarçado pelos escritores do novecentos, novamente ganhou forças
desde as décadas de 1970 e 1980
86
.
É admitindo essa metamorfose do romance, que se funda a partir da
impossibilidade de narrar, que Vergílio Ferreira (1965a) tece comentários acerca do
reposicionamento da crítica em relação a A náusea, de Sartre, obra que não foi,
durante algum tempo, vista sob o prisma da modernidade. Hoje, a crítica não se
aventura tão avidamente em desconsiderá-la como tal. Diz sobre o julgamento da crítica
ao livro: “Extraordinário ‘equívoco’[,] este [é] [...] um dos livros mais importantes deste
século e dos raros antecessores do ‘novo romance’ francês...” (p. 68). Essas mesmas
palavras podem ser dirigidas, sem embaraços, aos juízos que se impuseram, até a
86
Em Portugal, citemos as narrativas de Lobo Antunes e José Saramago, para nos determos somente
nesses exemplos.
76
década de sessenta, ao Húmus, atualmente apontado, quase incontestavelmente,
como uma das narrativas mais modernas e precursoras de todo o século XX.
O texto de Raul Brandão interage com o leitor na medida em que não admite que
este seja apenas um contemplador que se desenrolar pelo palco da arte o enredo
que é contado: a problemática, a dúvida do narrador é compartilhada e o leitor, que até
então se debruçava sobre o romance em busca de distração, não encontra mais a
calma e o sossego de antes, mas se agitarem as idéias, os sentimentos e as
sensações, pois o romance brandoniano, como exemplar português do romance
moderno, desestabiliza o receptor, convulsiona o ato da leitura. E quando começamos a
perceber a ordem e desordem calculadas do romance moderno é que principiamos a
desconstruí-lo, para fitar – e com espanto – a engenhosidade da sua edificação.
Não se poderia esperar que a narrativa de Brandão oferecesse as mesmas
respostas quando se inquire, ou melhor, disseca (para usarmos um termo mais em
voga no século XIX) o romance espetáculo, como anunciou Vergílio Ferreira em
diversos ensaios dos volumes Espaço do Invisível, ao qual, como vimos, o romance-
problema se opõe:
um romance-problema não é uma exposição de ideias e muito menos um
romance de tese. Porque um romance não demonstra. A demonstração fala
apenas a [sic] voz da inteligência. Mas o romance-problema violenta o
espectador no seu interrogar, força-o a compartilhar da sua procura. Tal
procura, assim, fala à nossa densidade humana e não apenas à transparência
mental ou à quase gratuidade de um jogo. (1965b, p. 266),
É necessário, dessa forma, estar ciente de que a nova ordem temporal é a
desordem da cronologia, a destruição da linearidade da narração (da História e do
romance, como vimos). E é nisso que se funda a modernidade do (sub)gênero de
77
Húmus. Contudo, tem-se que destacar, o romance canônico não morreu; ao contrário,
convive (conflituosamente, por vezes) com o romance moderno: um não precisa
necessariamente suceder ao outro, mas desse embate ainda não é possível antever o
que nos aguarda: supressão total do espetáculo, exaltação da idéia ou uma terceira via
que se venha a abrir (se é que não já foi aberta) no século XXI?
Ainda é preciso lembrar que as categorias narrativas do gênero romanesco são
costumeiramente estudadas por quem se debruça sobre questões de estrutura textual,
de narratologia. Entretanto, não é o foco deste trabalho analisá-las uma a uma.
Interessa-nos mostrar que o conjunto desses componentes (enredo, narrador, tempo,
espaço e personagens) sofreu uma mutação, acompanhando e retroalimentando a
própria metamorfose do romance, e por extensão o texto de Raul Brandão, que, como
sustentamos, inaugura um novo modelo de construção da narrativa literária no século
passado em Portugal, como se verá na análise do Húmus, no capítulo que se inicia a
seguir.
78
4 A CONSTRUÇÃO NARRATIVA
momentos em que cada um grita: - Eu não
vivi! eu não vivi! eu o vivi! momentos em
que deparamos com outra figura maior, que nos
mete medo. A vida é isto? [...] Tenho de ser
grotesco ao lado da vida e da morte.
(BRANDÃO, 2000, p. 24.)
Como problematizamos no primeiro capítulo, a narrativa de Raul Brandão não é
resultado de impulso criador desordenado e eventual e muito menos fruto repentino de
um intelecto que tende à excepcionalidade de seu autor, mas de um longo processo de
maturação de idéias e uma lenta construção e transformação do texto ao longo de suas
versões. Invertido o efeito negativo da crítica literária (ou ao menos contestado), que
até recentemente leu e debateu Húmus como um livro defeituoso, é possível lançar um
olhar sobre a construção do próprio texto, possibilitando ao leitor desta Dissertação um
contato mais próximo com a obra brandoniana. Teceremos uma leitura crítica do
romance que, em decorrência da natureza deste estudo, irá centrar-se em quatro eixos
de investigação: 1. a temática do livro, 2. a configuração estrutural da obra, 3. as
micronarrativas do livro e suas relações com a concepção de ordenação do tempo
compartilhada pelo autor, 4. as principais diferenças entre H1 e as edições posteriores.
4.1 Os sentidos do Húmus: leitura crítica do romance
87
Húmus é um livro repleto de signos que nos remetem à dor: o embate entre a vida
79
e a morte, problemática que sempre inquietou o homem, supura em gritos que ecoam
por toda a narrativa e que abrem uma via de comunicação entre dois estados
possíveis: a vida-simulacro, feita de manias e de mentiras, esboço de uma vivência
humana, e a vida-verdadeira, em que, de fato, a existência ganharia sentido.
88
Embora
as dicotomias estejam sempre presentes, em Húmus não dois pólos: vida e morte
formam uma moeda. O narrador, sobre quem nos deteremos mais adiante, protesta
contra a mesmice da existência, contra a mentira, contra a Igreja, contra a burguesia e
contra o capitalismo; não aceita as artimanhas impostas pela civilização moderna, da
qual decorre uma vida falsa, desprovida de uma experiência autêntica, para pensarmos
a partir dos conceitos de Walter Benjamin. Entretanto, se se expõe que a vida é uma
farsa (essa idéia Raul Brandão havia exposto em seu livro de 1903 e a retoma
durante quase toda a sua produção literária), também se afirma que é preciso mentir
para suportar a inutilidade da vida e reprimir o sonho (que se manifesta a partir das
experiências alquímicas do Gabiru) que existe no mais recôndito de cada ser humano,
desejoso de que não lhe caia a máscara.
Na meticulosa construção do texto, Raul Brandão harmoniza uma plêiade de
estéticas e tendências que surgiam na virada do século, algumas das quais estão entre
as conhecidas vanguardas européias, com destaque para o valor expressionista (ao
lado do impressionismo, como mencionamos na abertura do primeiro capítulo), que
se infiltra não apenas na forma, mas também no conteúdo literário: as personagens
sofrem agonicamente, perfilam toda a narrativa como a purgar os defeitos e a tentar
87
A partir de agora iremos referir ao Húmus somente como H1 e a ortografia de fragmentos do texto
literário citados nesta investigação está atualizada. Quando utilizarmos outra fonte, forneceremos a
informação completa.
80
recomeçar a viver, sempre aos gritos, plasticamente aproximando-se da tela de Edvard
Munch. O desespero lancinante que se confronta ao olhar O Grito, pintado em 1893
(Anexo Imagem 3), aproxima-se, em tema e em técnica, da miséria, da dor e do
sofrimento que se multiplicam pelo texto brandoniano, ora emitidos pelo narrador, ora
pelas velhas ou pelo Gabiru. A explosão da emoção e a retratação do sentimento por
meio da deformação visual da imagem, em que a dramaticidade (e, em certa medida, a
tragicidade) avulta, aproximam o texto brandoniano e a tela de Munch.
Técnica: essa parece ser a palavra-chave na construção do mus, livro que,
verdadeiramente, exige reencontros, novas leituras, para que possamos absorver e
compreender ao máximo possível o texto de Raul Brandão e o projeto estético a ele
subjacente. Se, como vimos no primeiro capítulo, Teixeira de Pascoaes sentiu a
necessidade de voltar à obra, a fim de estudá-la como peça de arte (conscientemente
construída), algumas passagens do romance parecem confirmar essa idéia, dando-nos
a impressão de que seu discurso difuso, freqüentemente ambíguo, é mais uma das
artimanhas do autor, que muitas vezes se detém em esmiuçar o cotidiano de uma vila
imaginária, que certa ambientação ao livro, ou em enveredar por reflexões
existenciais e até mesmo metalingüísticas.
A metalinguagem, aliás, é um dos mais fortes argumentos disponíveis no próprio
corpo do texto para que se defenda a modernidade da narrativa, numa perspectiva da
consciência da ruptura, aparentemente explicitada por meio do narrador, que diz: “E é
com secreta satisfação que vejo esfarelar-se este edifício tão bem construído sobre
bases, que pareciam inabaláveis” (H1, p. 61), pois a “construção antiga desabou, e a
88
A tensão entre ideal (vida-verdadeira) e simulação (vida-simulacro) é uma constante que atravessa o
livro em tela, fazendo-nos lembrar as idéias de Platão (2006) expostas n’A República. Entretanto,
81
um mundo novo correspondem criaturas novas” (H1, p. 118). Assim, a “narrativa
desconjunta-se: ganha em dor e em grotesco. Enche a boca, perde a naturalidade,
adquire em imponência” (H1, p. 145), ou seja, “torna-se obscura, dolorosa, hesitante,
como se fosse arrancada aos pedaços d’uma alma espezinhada” (H1, p. 147, grifo
nosso).
É interessante que o narrador de Húmus esboce tais sentenças. Porém, mais
intrigante ainda é o caráter oscilante, hesitante, como nos sugeriu a citação, da
narração do romance, que ora acontece na voz de um narrador que observa os
fatos (locutor
89
), ora na voz de um narrador que, embora nos dê a impressão de que os
acontecimentos que relata são ilusões, interage, na medida do possível, com o enredo
(ator), fazendo-nos pensar que coloca a máscara de cada uma das personagens que
vai despontando no livro, trocando de papel cada vez que seja necessário, até a
diluição da instância narrativa, por não se saber, exatamente, quem desempenha a
função de narrador: o narrador-locutor, o narrador-ator, o Gabiru, uma das velhas, o
próprio autor empírico?
90
Nesse jogo de scaras, aparentemente sem um fito
estabelecido, pode-se perceber uma das mais agudas questões que o texto de Raul
Brandão traz em seu bojo: a problemática da vida e sua dependência em relação à
mentira e ao fingimento, tema central no livro, que se apresenta como um “discurso
obsessivo” (MACHADO, 2000, p. 263), que beira o “monocórdico” (p. 263):
Aqui estou em que finjo que sorrio, e acabo por fingir toda vida. A minha
vontade era anular-te e finjo, e o sorriso acaba por ganhar cama, a boca por
se habituar à mentira, a ponto de não saber discernir o meu ser, do ser
artificial que criei peça a peça. [...] E quando tiro a máscara? Mas eu não
saliente-se, não aprofundaremos este ponto em nossa análise.
89
Termo tomado de empréstimo à Maria João Reynaud, em sua Tese, Metamorfoses da Escrita (2000a).
90
Embora o tema seja passível de ser explorado a partir do Húmus, passaremos ao largo da discussão
entre narrador e autor empírico neste trabalho.
82
posso tirar a máscara, mesmo quando me fecho a sete chaves: a mentira
entranhou-se-me na carne. (H1, p. 57).
Embora, como se depreende da citação, o texto de Húmus adquira um tom
confessional e, às vezes, de memórias (“E se remexo o braseiro vejo outras figuras,
outras ainda, até ao início da vida. Tão longe! tão longe!”, H1, p. 289), acreditamos que,
diferentemente do que julgou a crítica literária pré-1967, não se trate de um diário. As
datas estão lá, é verdade, marcando dia-a-dia a peleja entre a dor e o sonho, entre a
vida e a morte; entretanto, chama-nos a atenção outra oposição que se estabelece no
texto da obra e que, acreditamos, parece ter relação imediata com a cronologia ali
esboçada: o inverno, arquilexema do frio, da angústia e do ritual da repetição mecânica
dos gestos; e a primavera, abarcando os significados da flor, do calor e do sonho.
Dentre as jornadas que compõem os 19 capítulos da primeira versão
91
, uma é bastante
especial: a data que marca o início na primavera no hemisfério norte, 21 de março. É
justamente nesse fragmento que podemos ler: “Chegou. Vai abrir a mais bela, a mais
fecunda, a mais doirada de todas as primaveras a primavera eterna” (H1, p. 134).
Assim, as datas explicitadas podem se aproximar muito mais de um artifício que,
abarcando o ano solar (e verdadeiramente a datação das jornadas atinge o período de
um ano, sem o delimitar: pode ser um ano qualquer) e se deixando confundir com as
entradas de um verdadeiro diário
92
, têm como função opor inverno e primavera, morte e
vida, mentira e verdade, repetição e inovação, todas faces de uma mesma totalidade.
O inverno tem a sua voz própria, a sua cor, o seu vestido em farrapos com que
agasalha os montes deixando-lhes os ossos de fora. Mas o inverno é sonho.
agora o compreendo. É sonho concentrado: sob esta capa ressequida está
uma primavera intacta. (H1, p. 291, grifo nosso).
91
Seguindo a crítica atual, chamamos de jornadas os fragmentos datados no Húmus.
92
Dalva Calvão Verani diz que se Poderíamos [...] entendê-lo como um romance escrito em forma de
diário, sendo esta forma um recurso intencional do autor” (2001, p. 63, grifo nosso).
83
A idéia de uma organização diarística, intencionalmente construída, com a função
de reforçar a posição explicitada também é partilhada por Maria Alzira Seixo (2000, p.
21), que chama a atenção para que a notação dos dias e dos meses do ano não tem
outra finalidade no texto a não ser o de realçar a relação entre a primavera e o
inverno.
93
Apesar de possuir o formato diarístico, datado quase s a mês
94
, o
romance em questão é, sobretudo, uma obra de ficção e se assume como tal quando
não busca manter uma relação com a realidade, com o verossímil. Raul Brandão não
apaga as marcas de ficcionalização, antes as sublinha, mostra-as. Poderíamos afirmar
que d’A Farsa para Húmus, a escritura brandoniana (aqui tomando apenas as
narrativas de cunho ficcional) vai tornando-se continuamente mais inverossímil, pois
progressivamente rompe o paradigma tradicional.
95
As datas o, portanto, fictícias, e,
à primeira vista, conferem um caráter de circularidade à estrutura da obra.
Se podemos pensar em afastar a hipótese de que Húmus seja um diário, não é
possível, como assevera Reynaud (2000a), negar que tenha um tom de teatralização,
de representação, como quase toda a obra brandoniana. O teatro, ou melhor, o drama,
entra na composição do texto de Raul Brandão como componente estilística e como
tema, o que não invalida vermos o livro como romance: “a concepção do mundo como
um ‘teatro universal’, que parece exercer uma forte atracção sobre o imaginário
93
Acreditamos que Raul Brandão tenha preferido trabalhar com o par primavera-inverno, pois o verão, a
quem usualmente o período frio se contrapõe também é a época do estio, do escasseamento das
chuvas.
94
A versão que ora funda nossa leitura crítica do romance não apresenta jornadas com datas referentes
aos meses de julho, agosto e outubro. Já em H2, como nos lembra David Mourão-Ferreira (1992),
“verifica-se [...] significativa lacuna, entre 25 de Maio e 15 de Setembro; ou seja: a exclusão de todo o
Estio” (p. 189), bem como a supressão do mês de dezembro. A H3 mantém as supressões na datação
das jornadas apresentadas em H2. Outra questão curiosa na datação das jornadas de H3 é o registro de
um 13 de maio, após um 19 de maio, ou seja, uma sugestão de inversão da ordem temporal.
84
brandoniano, atravessa toda a sua obra” (REYNAUD, 2000a, p. 38). Mais uma vez uma
passagem do livro parece nos dar respostas a nossas cogitações:
É certo que metade d’isto – metade pelo menos – é representado. Se te
confessas dirias: - Eu sou um ator, eu sou o ator de mim mesmo:
represento sempre até quando sou sincero; até quando digo o que sinto, é
outro, é n’outro tom de voz, que diz o que sinto...[...] Mais da metade de mim,
muito mais de metade dos meus sentimentos, são postiços. (H1, p. 172, grifo
nosso).
Estamos diante da essência do teatro. Como narrativa, Húmus se insinua, numa
leitura acurada, inegavelmente como romance, mas englobando o teatro na construção
do texto, portanto. A ausência de continuidade (em diversas categorias narrativas), que
poderia ser usada como prova textual contra seu caráter romanesco, é mais um fruto
da experiência estética de Raul Brandão, e é assim interpretada porque joga para o
leitor a responsabilidade de ligar os fatos e as micronarrativas que se estabelecem.
Entretanto, o contato mais alongado com o texto da obra permite-nos ver as relações
antes aparentemente desligadas, algumas das quais tentaremos expor quando nos
debruçarmos sobre as personagens se é que podemos assim chamá-las mais
importantes da narrativa. Aliás, o próprio texto nos indícios de que nem sempre se
trata de personagens: às vezes são meras projeções do narrador, outras vezes são
apenas representações de conceitos, idéias. Lembramos, também, que a técnica da
caricatura é bastante utilizada para a composição dessa categoria formal do romance e
algumas citações fazem alusões diretas a essa característica. Não é de se estranhar
que Vergílio Ferreira assegure que “Húmuso é um livro de gente, mas da abstracção
que essa gente de si fez” (1977, p. 220).
95
Segundo Alzira Seixo (2000), “A Farsa é [...] o mais tradicional dos seus textos de ficção” (p. 18).
85
Uma peculiaridade do estilo do autor que merece destaque é a estratégia da
repetição de que se utiliza para a composição do texto, que, além de permitir um
melhor encadeamento das idéias abstratas abordadas no livro, sugere-nos o martelar
da própria consciência desse homem (narrador) que, a partir de uma vila imaginária,
que poderia ser qualquer cidade do ocidente (“A pedra também sonha: a vila é
Lourdes, feira e hospital onde corre o oiro às pazadas.”, H1, p. 259; “Na França, na
Itália, na Rússia, o exército bandeia com a plebe.”, H1, p. 313), passa a questionar o
estado de inércia de sua vida e da vida dos habitantes da cidadela:
Mora aqui a insignificância, e até à insignificância o tempo imprime caráter.
Mora aqui, paredes meias com a colegiada, o Santo, que de quando em quando
sai do torpor e clama: - O inferno! O inferno! Mora um chapéu, uma saia, o
interesse e plumas. Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas. Moram as
Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida como bonecas desconjuntadas, a
fazer cortesias. Moram as Albergarias, e as Albergarias só têm um fim na
existência: estrear todos os semestres um vestido no jardim. Moram os que
moem, remoem e esmoem, os que se fecham à pressa e por dentro com uma
mania, e os que se aborrecem um dia, uma semana, um ano, até chegar a hora
pacata do solo ou a hora tremenda da morte. (H1, p 12).
no primeiro capítulo do romance (“A Vila”), o narrador apresenta-nos as
personagens
96
da narrativa: são, em sua maioria, velhas que passam o tempo tentando
driblar a morte, afastando-a de si, negando a sua existência com a repetição indefinida
da vida, como a repetição experimentada pelo autor em seu texto. Dentre elas, quatro
merecem atenção especial por possibilitarem o estabelecimento de conexões entre as
ações do Húmus, o Gabiru e três velhas, a saber: a Joana, a D. Restituta e a
(majestosa) Teodora; e sobre cada uma delas nos deteremos um pouco.
O narrador caracteriza as velhas, salienta-lhes o traço vaporoso que assumem na
condição de personagens planas, ressaltando que, como idéias ou conceitos, quase
86
sempre corporificados, podem ser trocadas por outras, pois não são, ao longo da
narrativa, detalhadamente construídas, psicologicamente estudadas e analisadas, daí
que se tenha significativa dificuldade em estabelecer as personagens da narrativa
quando a analisamos sob o prisma do romance tradicional.
David Mourão-Ferreira (1992), percebendo a impossibilidade de assinalar
personagens em sentido estrito no livro em questão, e tendo a aguda percepção de que
a discussão dos conceitos de escrita do tempo e da história avulta como ponto
nevrálgico da produção brandoniana, sugere que o tempo é o verdadeiro personagem
de Húmus, pois se apresenta “concreto, concretamente vivido pelo narrador, [...]
modifica e nos modifica, [...] é ele-próprio personagem como em todos os grandes
romances dignos de tal nome” (p. 183).
97
As velhas quase sempre assumem ar grotesco e risível
98
e o narrador não as
percebe como entes (ficcionais, é verdade) que encarnam o mal e a desordem, mas
como tristes esboços de defeitos, sobre os quais se debruça e inicia sua narração,
misturada à lamentação de sua própria vida. Diz, ainda nas primeiras páginas da obra:
Cabem aqui dentro as velhas cismáticas, atrás de interesses, de paixões ou de
simples ninharias, dissolvendo-se no éter, e logo substituídas por outras
velhas, com as mesmas ou outras plumas nos penantes, com os mesmos ou
outros ridículos, fedorentas e ridículas. (H1, p. 14, grifo nosso).
Como dissemos, o narrador nos apresenta, não raras vezes, as velhas como
abstrações; e as ações que desenvolvem, mesmo que minimamente, no percurso da
narrativa, parecem servir para fixar-lhes os conceitos atribuídos pelo narrador: não é
96
O termo é aqui utilizado em sentido lato.
97
A afirmação de David Mourão–Ferreira não se torna inválida quando refletimos sobre personagens
planas de romances tradicionais, uma vez que estas desenvolvem, com freqüência, papéis secundários
no enredo. Também há críticos que discordam que lhes nomeemos de personagens.
87
simplesmente a D. Leocádia que imaginamos em cena, mas o próprio dever; não
pensamos na prima Angélica que continua indefinidamente a tricotar uma meia (em
sugestão à Penélope do texto clássico), mas na inveja que dela emana; não estamos
diante da D. Procópia, mas do ódio que nutre pela D. Biblioteca
99
. Nomes estranhos,
pouco verossímeis, que contribuem para que se tome toda a atmosfera do Húmus como
um delírio, uma cortina por meio da qual se entreveja o real, ou o que o narrador quer
que vejamos de uma reinvenção metafísica do real.
Conforme sustentamos no segundo capítulo deste trabalho, uma das noções
capitais do Húmus, que lhe conferem um traço de romance moderno, como assinalou
Mourão-Ferreira (1992), é o modo como seu autor organizou a cronologia. Dizemos
cronologia porque, embora seja um resultado do tempo, ou melhor, um
desenvolvimento do tempo, não é este que Raul Brandão abala, mas a escrita, a
ordenação; assim como não foi a História que sofreu abalo, mas a sua narração. A
cronologia do livro é a chave para a compreensão da técnica ali experienciada: é por
meio da sua suspensão que emana o efeito de desagregação do texto, de desajuste, de
desordenamento. Verdadeiramente, é possível que um leitor desatento (ou que não
esteja preparado para a inovação proposta pelo livro) pense que se trata de um defeito
de construção, daí o julgamento negativo da crítica literária, exposta no primeiro
capítulo desta pesquisa.
Mas não queremos aqui impor a imagem de um escritor que não cometeu
equívocos, que não falhou. A narrativa apresentada na primeira versão de Húmus,
98
Em Húmus, o grotesco e o risível andam lado a lado.
99
Gonçalves (2002) diz: “O húmus de D. Panarícia [sic] é a inveja; de D. Hermínia, a paciência; de
Adélia, a cobiça; da majestosa Teodora, o demo, dos Sousas [sic], a vaidade, enfim, personagens [...]
que denunciam uma vida de hábitos mesquinhos” (2002, p. 12).
88
apesar da inegável qualidade apontada pela crítica atual, sofre, aparentemente, de
algumas incongruências
100
(o que também incitou o autor a refundi-la), mas nem por
isso deixa de ser pacientemente montada, como um grande mosaico em que as peças
que se vão encaixando não seguem uma ordem definida: várias formas de se iniciar
e de se concluir a montagem de um puzzle. Teresa Cerdeira, em O avesso do bordado,
observa esse mesmo princípio de montagem no romance Pedro e Paula, de Helder
Macedo. Sobre a obra, a pesquisadora diz que
Elege como metáfora de sua construção a estrutura mutante do mosaico, tal
como o percebemos, múltiplo em sua unidade, com sua proposta, apenas
possível, de engendrar uma leitura, mas, sobretudo, sempre passível de
apontar o novo através de um inesperado reagenciamento das partes. (2000, p.
177, grifo nosso).
Não estamos aqui defendendo que Helder Macedo se tenha inspirado na narrativa
brandoniana para escrever o seu romance (e a citação de Cerdeira não nos parece
sugerir isso), mas tentando sublinhar que a cnica utilizada, às portas do século XXI,
pelo escritor da contemporaneidade, é, atualmente, valorizada como um dos
mecanismos mais apropriados a uma escrita de cunho moderno, que se debruça sobre
o próprio texto como produção, que reflete sobre o fazer literário, em vez de
simplesmente seguir os modelos estabelecidos, e que deseja seguir por um caminho
de experimentação da construção do texto. Foi exatamente o que fez Raul Brandão
praticamente um culo antes. Luci Ruas Pereira, em aula ministrada no Real Gabinete
Português de Leitura do Rio de Janeiro, em 24 de outubro de 2007, afirmou, seguindo
100
Incongruências sob o viés da ordem e da lógica. É preciso lembrar que na atmosfera de alucinação
que perpassa o Húmus, reforçada por sua temática, os papéis dos mortos e dos vivos podem ser
trocados e, atém mesmo, interpenetrarem-se. Mas, sob o ponto de vista de uma organização sucessiva e
lógica da narrativa, podemos apontar como incongruente, por exemplo, a fala atribuída à Teodora, na p.
235, após morte da personagem na narrativa, que ocorre entre as páginas 203 e 204.
89
os passos de Vergílio Ferreira, que o pecado de Brandão foi o de se adiantar demais ao
seu tempo
101
, ao propor uma técnica e um estilo de escrita para os quais leitores e
críticos literários da época não estavam preparados. Comentário aproximado fez
Teixeira de Pascoaes quando, em artigo analisado no primeiro capítulo, diz que a
literatura de Raul Brandão (e, lembremo-nos, Pascoaes ainda tratava do El-Rei Junot)
não pôde ser compreendida pela nação portuguesa naquele momento. O poeta sugeria,
dessa forma, que o romancista estava à frente de seu tempo, abrindo um horizonte na
prosa de Portugal. De forma semelhante, Maria João Reynaud (2000a) argumenta em
sua Tese, ao se reportar ao Húmus, como vimos na página 28 desta Dissertação.
O romance em tela absorve uma estrutura em mosaico não somente na
cronologia, mas também nas tendências estéticas, na figuração das personagens, na
construção fragmentada das partes do livro, dispostas de modo a sugerir um diário,
como foi dito anteriormente. Diante do espaço indefinido da narrativa, das personagens
que se multiplicam entre abstrações, figurações e caricaturas, de uma cronologia que
parece não se encadear logicamente, somos levados a pensar que o Húmus não é a
história de um mundo real, mas de um mundo pré-concebido (ou concebido apenas no
plano das idéias) que, de algum modo, mantém uma relação com o mundo real por
deste salientar os defeitos e as mazelas
102
:
O nosso mundo não é real: vivemos n’um mundo como eu o compreendo e o
explico. Não temos outro. É a voz dos mortos insistente que teima e se nos
impõe. Mais fundo: não existem senão sons repercutidos. Decerto, não
passamos de ecos. (H1, p. 24–25, grifo nosso).
101
Parafraseando Vergílio Ferreira em Um escritor apresenta-se (1981).
90
O trecho apresentado nos leva à reflexão, justamente por ganhar significados a
partir do debate acerca da realidade, do palpável, e da ficcionalização, da recriação de
um real em texto. Mas essa recriação não é possível no mus, talvez porque seu
autor quisesse, com sua obra, acentuar a impossibilidade da manutenção da vida
moderna e da narração tradicional. Assim, para o narrador que se debate entre essa
vida-simulacro e a vida-verdadeira, o universo é estabelecido em ecos, no plano das
idéias, como esclarece Platão em A República, o que minimiza, ainda mais, a
necessidade de um pacto de verossimilhança. Ao contrário, a leitura do livro só se torna
viável quando o leitor percebe o jogo do narrador e rompe o pacto, deixa de ver o
romance como uma recriação do real e passa a perceber nele um plano de conceitos e
de idéias, que, apesar de se apresentarem como metáforas da realidade, não precisam
coadunar-se com os preceitos desta. Entretanto, Raul Brandão parece ter tido a aguda
consciência de que, mesmo engendrando uma nova proposta de construção narrativa,
a leitura carece de um fio condutor, que lhe alguma ordenação em meio ao caos
provocante da escrita, e por isso criou quatro principais micronarrativas simultâneas
103
que, a nosso ver, dão ao Húmus a sustentação da narração e nos asseguram o direito
de o caracterizar como um romance moderno e não somente como livro de
pensamentos.
102
Salientamos que não compartilhamos da opinião de que a literatura retrata o real. A arte, enquanto
imitação, poderia, no máximo, reinventar a realidade, reescrevê-la.
91
4.1.1 Micronarrativas do texto literário
O primeiro é o núcleo narrativo do Gabiru, a partir do qual todos os outros se
organizam, ente que fica a meio termo entre alter ego do narrador (quando assume a
função narrativa) e personagem do livro (não na acepção tradicional). Trata-se de uma
figuração que havia aparecido na obra brandoniana, notadamente n’Os Pobres, de
1906, em que desempenha importante papel como filósofo. Se o tomarmos como
projeção do eu narrativo cindido o que antecipa a problemática da unidade tão bem
delineada em Fernando Pessoa e sua multifacetada criação literária ou se o
pensarmos como personagem que se detém nas tentativas de realização de seu desejo
(sonho) suprimir a morte e ressuscitar os mortos por meio de experiências diversas
e que perfila pelo romance em diálogo com o narrador ou em monólogo consigo
mesmo, em ambos os casos (projeção do eu e personagem) desempenha papel central
no texto de Húmus, imprime-lhe uma direção: a da revolução possível a partir do sonho,
do despertar dos habitantes da vila para o sonho, do desabrochar para a vida-
verdadeira, até que as árvores desabotoem em flores. Ressalte-se que pensar o Gabiru
como alter ego enunciativo, e essa é a posição que tomamos, não invalida que o
tomemos como personagem do Húmus, uma vez que na obra o narrador se converte
em personagem e o personagem se converte em narrador, num caso exemplar de
deslizamento e sobreposição das funções próprias do romance canônico:
- É necessário abalar os túmulos e desenterrar os mortos.
É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. É um homem absurdo. Olhos
magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que abomino, é a única parte
103
Apenas para facilitar a explanação proporemos uma segmentação dos núcleos narrativos.
92
do meu ser que me interessa. Às vezes deita-me tinta aos nervos. Fala
quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser prático,
gesticula dentro do casaco arrepiado: - A alma! a alma! Singular filósofo! É
capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro; é capaz de achar
vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constrói outra vida. Sonha, e os
seus sonhos são sempre irrealizáveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro
informe. Toda a gente se ri sonha outra vez...Para ele a vida consiste,
encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em
atascar-se em sonho. Meses inteiros ninguém lhe arranca uma palavra, dias
inteiros ouço-o monologar no fundo de mim próprio. Ignora todas as realidades
práticas. Na árvore a alma da árvore, na pedra a alma da pedra. Deforma
tudo. Põe a mão e molha. Destinge sonho... (H1, p. 34–35, grifo nosso).
O trecho que sublinhamos salienta bem o caráter conflituoso da relação entre
narrador e Gabiru, ao afirmar que é, ao mesmo tempo, a parte do ser que mais abomina
e interessa ao primeiro. É a partir desse embate interno (por que não dizer psicológico?)
que se constroem os diálogos entre as duas instâncias (“É o Gabiru que se põe a falar
sem tom nem som”
104
), passagens do livro em que, não raras vezes, não se tem como
delimitar o que é discurso do narrador, o que é discurso da personagem, em parte por
uma redefinição do uso dos travessões, mas também pelo uso indefinido das pessoas
do discurso (indireto livre) que o texto faz: “Mas pergunto posso porventura deixá-la
morrer quando está nas minhas mãos salvá-la? Não sou eu por acaso um homem de
bem, nós somos todos homens de bem – depende das circunstâncias” (H1, p. 195).
O fragmento acima, acreditamos, reporta-se à pouco esclarecida morte da mulher
do Gabiru, cuja existência o próprio narrador põe em xeque, ao afirmar que “É um ser
quase etéreo [a mulher do Gabiru]. Nem sei dizer se existiu, se a criei; sei que se sumiu
n’um sopro cada vez mais efêmera [...]. [....] Morreu transida de frio. Uma mulher pálida
o que vale um pássaro” (H1, p. 39). Saliente-se que, no início do livro, o narrador-
locutor destaca que o Gabiru está empenhado em descobrir uma forma de suprimir a
104
Loc. cit.
93
morte, de ressuscitar os mortos, de impedir, portanto, que sua companheira pereça.
Para isso
afundou-se em experiências de laboratório, à procura da pedra filosofal.
Ridículo. Depois na aplicação da eletricidade aos vegetais, que se consomem
de febre, que se desentranham em flor, sem produzirem fruto. – Grotesco.
Agora ninguém o arranca a infindáveis monólogos caóticos: - A morte! A morte!
A morte! (H1, p. 37).
O sonho do Gabiru, de vencer a morte (“Não morrer é nada: vou ressuscitá-
los...”, H1, p. 41), de recomeçar a vida e aproveitá-la como um momento verdadeiro, em
oposição à simulação que se instala na vila-metonímia-do-mundo, também é o sonho
do narrador afinal, um é projeção do outro e também das demais figurações que
vão sendo apresentadas ao longo da narrativa. É bem certo que Raul Brandão aborda
um tema que extrapola os limites do ficcional, sem, no entanto, arvorar ao Húmus o
caráter de representação do real ou de uma leitura de certa realidade social.
O valor mimético da literatura, apregoado pela estética realista-naturalista é,
ao mesmo tempo, negado e aceito na obra em análise. É negado porque, como
adiantamos, o autor parece destacar ao longo de todo o corpo da obra que se trata de
um devaneio, de uma imaginação vaporosa que se utiliza de espaços e personagens
“ambigüamente simbólicos” (MOURÃO-FERREIRA, 1992, p. 184) em sua construção;
por outro lado, podemos dizer que é aceito porque, ao se utilizar da técnica da
encenação dramática, transforma Húmus em palco (do impossível, é verdade), fundindo
em cada personagem as problemáticas da verossimilhança e da representação. Se
pensarmos detidamente, o sonho tem essa dupla característica: a de ser uma
encenação de algo possível, um esboço, um desejo que necessita ser concretizado; e
94
também, muitas vezes, de ser o momento em que o impossível vem à tona, em que a
verossimilhança deixa de ser pré-requisito e se propõe um mergulho nas imagens que
se desdobram à nossa frente. Portanto, o sonho é, genuinamente, o espaço do absurdo
e da contradição, por ansiar-se e não se poder concretizar o anseio, mas, por outro
lado, por não ser mais possível viver sem o desejo, uma vez que ter a consciência do
sonho é negar o estado de inconsciência anterior. Daí que na narrativa do Húmus
sonho e dor andem lado a lado, pois estamos, mais uma vez, diante da questão da
consciência de que o sonho é irrealizável, como é o sonho do Gabiru de suprimir a
morte e ressuscitar sua mulher, como é o sonho de cada um dos que povoam a vila:
O que eu quero é tornar a viver. A minha saudade é esta. O que eu quero é
recomeçar a vida gota a gota, até nas mais pequenas coisas. Não reparei que
vivia e agora é tarde. [...] Encontrei pouco uma árvore carcomida: deixaram-
na de pé, e um único ramo ainda verde desentranhou-se em flor... Pudesse eu
recomeçar a vida! (H1, p. 47).
O desejo de retornar a viver, de retornar à vida para poder aproveitá-la como vida-
verdadeira e não mais como vida-simulacro não é possível. Resta, ao narrador (e,
também, ao Gabiru e às velhas), exprimir essa consciência do desperdício da vida por
meio do grito, ação que explode em Húmus, fazendo ecoar mil vozes no tecido do texto
e no tecido do sonho (“É uma voz – são muitas vozes. É um grito são muitos gritos.
É o grito contido milhares de anos, o grito dos mortos libertos”, H1, p. 54), que
percebem a inadiável aproximação da morte:
Toda a vila, a vila toda, a que a luz artificial dava relevo, desata a gritar como se
lhe arrancassem a pele, desata a gritar diante de si própria, diante da verdade.
Gritam as vellhas, grita o Santo frente da sombra imensa que se introduziu na
vida. Grita a paciência e a mentira, grita a hipocrisia. Desapareceram as figuras
e só ficam gritos na noite. Outro passo – outro grito” (H1, p. 239).
95
Adiante, apresentamos fragmentos em que se deflagra o embate entre narrador e
Gabiru. Observe-se que, no primeiro exemplo, o texto oscila entre o uso da segunda e
da terceira pessoas, embora esta se enquadre como um discurso camuflado, falso, tal
qual propõe Vergílio Ferreira (1965b, p. 262) para primeira pessoa real e primeira
pessoa ideal. É algo sobre que temos que refletir sempre quando estamos diante do
texto de Húmus: a pessoa textualmente reportada é, realmente, a quem se dirige /
relata? Não se trata de um artifício retórico ou mais uma armadilha do narrador, que se
debate com seu alter ego narrativo?
- Cala-te! Cala-te! Ás vezes fala mais alto e domina-me ele a mim. Rio-me de
ti e impões-te-me. É ridículo e tu te atreves; tu és feliz porque te atreves a
sonhar, a seres tu, a dizeres inconveniências sem nem lei. tu não tens
método, tu te fechas a sete chaves à tua vontade, livre, feliz e desprezado.
No fundo invejo-te. (H1, p. 48).
No segundo exemplo, vemos uma resposta do Gabiru às inquietações do
narrador-locutor, quando aquele sugere um modelo subversivo de vida (que seria
possibilitada a partir da revolução do sonho) que desrespeite a lei, que não siga regras
pré-estabelecidas, mas somente o impulso. Interessa notar que o alter ego enunciativo
põe em cena o papel dos ladrões, dos bichos e dos malfeitores; figuras que entram, na
narrativa de Húmus, na micronarrativa da personagem Joana, da qual falaremos mais à
frente: “Não; viver é que é bom, viver com o instinto, como os ladrões e os bichos, os
malfeitores e as feras, sem pensar, sem sonhar, sem palavras nem leis, até cair a um
canto, morto e feliz, de barriga para o ar. Isso sim! Isso sim!...” (H1, p. 48). Saliente-se
que, tomando o Gabiru como alter ego enunciativo, guardião e defensor dos desejos e
96
dos sonhos mais íntimos e profundos do narrador, pode-se pensar numa oposição entre
o consciente sugerido pelo locutor, ou mesmo pelo ator, e o inconsciente, que vem à
tona quando o Gabiru deixa de ser uma figura periférica e é chamado ao palco do
romance:
É preciso fugir à realidade. Compreendo tudo. O que elas odeiam no Gabiru é a
sua imensa capacidade de sonho; o que a vila escarnece é o que a vila inveja.
[...] durante algumas horas [as velhas] esqueceram a mediocidade da vida
esqueceram também a morte. (H1, p. 75–76).
O trecho acima se abre para além de uma possibilidade de desabafo do narrador
ao filósofo, e essa é uma das mais instigantes peculiaridades do livro: a ambigüidade
que preside à realização do texto. É possível, sem muito esforço, conjecturar que o
fragmento se reporta à própria consciência, vez por outra lembrada no corpo do
romance, valor amorfo que não se corporifica unicamente na figura do ente que agora
debatemos; ou ainda que é uma tentativa de diálogo com Deus, figura que ora se
confunde com a consciência do homem (que o teria inventado), ora se funde com a
figura do Gabiru. David Mourão-Ferreira não hesita em afirmar que Húmus é,
fundamentalmente, “o romance de uma consciência” (H1, p. 185) e é a partir desta que
brota o sofrimento que impregna o texto, fazendo-nos lembrar a “pobre ceifeira” de
Fernando Pessoa (2005, p. 144), que só é feliz porque desconhece e “canta sem
razão”, num alegre estado de inconsciência. O texto de Raul Brandão soma à questão
da consciência o questionamento de Deus, ao percebê-lo como uma criação da psique
humana (no momento em que os estudos de Freud ainda despontavam no cenário
europeu), portanto, pouco mais que uma invenção, ou produto da imaginação:
97
A questão suprema é esta e só esta: Deus existe ou deus não existe. Se não há
Deus, a vida, produto do acaso, é uma mistificação. Aproveitamo-la para
satisfazer instintos e paixões. Se Deus não existe, não força que me
detenha. Não palavras, nem regras, nem leis. Tudo é permitido. [...] Oh
ponhamos a questão, consciência: se Deus não existe tu não és senão um
estorvo, meia zia de regras aprendidas ou herdadas. Ponhamos enfim a
questão com toda a clareza, porque este é o único problema que me importa e
que te importa resolver. (H1, p. 89–90, grifo nosso).
Algo a ser informado ao leitor da primeira versão de Húmus é que nesta as
passagens em que o narrador se refere à figura divina estão mais dispersas ao longo
do texto literário que nas versões posteriores, em que Raul Brandão empreende uma
ordenação dessas jornadas, concentrando-as em dois capítulos na segunda e terceira
versões, frente a um único capítulo na versão que aqui analisamos. Certamente, o
procedimento confere ao núcleo temático em que se constrói a figura de Deus muito
mais força e importância de edição para edição, despegando-o, sensivelmente, do
Gabiru nas versões posteriores do texto. Em todo o caso (e em todas as versões),
acreditamos que Gabiru e Deus estão ligados à noção de consciência e à possibilidade
criadora e cerceadora desta; afinal, o narrador-locutor só consegue dialogar com ambos
à noite, em seu quarto, quando se dá conta de que
O pior é [o] que se passa no silêncio. É a outra coisa que acorda, é a outra
coisa desconhecida que começa a empurrar o tabique. Deitamos-lhe todos as
mãos para o segurar, mas, no escuro e no silêncio, a pressão redobra...Está
outra coisa por traz do tabique, outra coisa que eu o quis ver, e que o sacode
com desespero. Bem sei, bem sei que existes! Bem sei que estiveste
sempre ao de mim. Nunca te deixei discutir comigo. (H1, p. 73, grifo
nosso).
Com a revolução despertada pelo Gabiru, que se deflagra com a chegada da
primavera, simbolização freqüentemente construída como a árvore que desabrocha em
flores, percebe-se uma alteração no comportamento do narrador e de suas projeções,
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que, de um estado de angústia, chega a um estado de perplexidade e, posteriormente,
de aceitação da existência inadiável da morte e da impossibilidade de realização do
sonho: “Chegou a primavera. Deita flor a D. Leocádia, a D. Hermínia e a D. Procópia.
Não árvore no monte que se não consuma do mesmo sonho” (H1, p. 124). O Gabiru
“espezinha” não somente o narrador, mas vai disseminando o sonho por toda a vila, e a
narrativa vai evoluindo, centrando-se em certos quadros e ações, a fim de mostrar qual
o sonho de cada personagem que se apresenta. Sonho, diga-se de passagem, quase
sempre irrealizável, sonho que também nutre com seu húmus a vida de Joana, figura
também nuclear no romance sobre o qual passamos a refletir.
É interessante que o narrador se detenha nessa personagem, delimitando-a ao
longo do livro, descrevendo-a como uma mulher que
Serviu com uma saia rota, as mãos sujas de lavar a louça, uma camisa, os usos
e seis mil réis de soldada. Lavou, esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a
miséria, o riso, que caminha para a morte com um vestido d’aparato e um
chapéu de plumas na cabeça. Para contar fio a fio a sua história bastava dizer
como as mãos se lhe foram deformando e criando ranhuras, nodosidades,
côdeas, como as mãos se foram parecendo com a casca d’uma árvore. [...]
Sempre a comparei à macieira do quintal: é inocente e útil e não ocupa lugar, e
não vem primavera que o ternura, nem inverno sem produzir maçãs. (H1,
p. 15).
Percebe-se ao longo do texto literário que o narrador nutre uma desvelada
simpatia por Joana, representante das classes sociais mais baixas, adjetivada ao longo
do texto como “a mulher da esfrega”, que sinaliza em Húmus a questão da exploração
dos vencidos pelos vencedores, como nos sugere Walter Benjamin (1994) em suas
teses “Sobre o conceito de história”. Apesar dessa aproximação, a caracterização da
personagem, como lemos na citação acima, não está livre de um tom risível: não
cômico, mas quase lastimável. Não se trata, naturalmente, de um riso debochado, como
99
o que se observa no Eça de Queirós em muitos de seus textos estritamente realistas,
mas de um riso em que avulta um tom decadentista, um Eça da “Decadência do riso”
(1984).
De forma fragmentada, o narrador vai nos apresentando a história de vida de
Joana, lembrando seu nascimento em meio à pobreza da cabana, cavada no sopé da
pedra, de seu crescimento e de como começou a servir na casa de D. Restituta da
Piedade Sardinha, outra personagem sobre a qual serão tecidos comentários:
A mãe ficou prenhe. Eram tão pobres que, para o que havia de nascer, só
amaranharam um paninho, duas camisas e um lenço. Vieram as dores e
nasceram dois gêmeos. Repartiu as camisas, rasgou o lenço e o pano ao meio,
e, no casebre perdido, entre a natureza bruta, a mulher pôs-se a chorar dando
um seio a cada um. (H1, p. 285).
Nesse trecho do romance, queremos destacar a linguagem escolhida pelo autor
para descrever a situação lastimável do nascimento de Joana, aproximando-a, por
diversas vezes, do animalesco, como se verá na citação seguinte, o que, para além de
evidenciar certa influência naturalista – talvez advinda das leituras de Fialho de Almeida
na década de 1890 –, parece-nos sugerir que se trata de uma personagem desprovida
de consciência, ou, se preferirmos, cuja consciência não atinge o nível de profundidade
do Gabiru ou do narrador. De qualquer forma, a esterilidade e a secura que circundam
Joana não são uma marca que tenha aparecido com o mus de 1917, mas estava
presente no texto de Raul Brandão desde a publicação d’A Morte do Palhaço e O
Mistério da Árvore, originariamente em 1896, como vimos no primeiro capítulo. A
citação abaixo é mais uma exemplificação dessa faceta estética brandoniana:
100
É uma velha alta e seca, com o peito raso. O hábito de carregar à cabeça
endireitou-a como um espeque, o habito das caminhadas espalmou-lhe os pés:
a recoveira assenta sobre bases sólidas. Parece um homem com as orelhas
despegadas do crânio e olhos inocentes de bicho. (H1, p 16, grifo nosso).
Em certa medida animalizada e lembremos que Joana não dominava
perfeitamente a linguagem verbal como se evidencia em diversas passagens do livro –,
o sonho de Joana é dos mais simples que são mostrados no livro: “O que ela quer é
outra vez criar. Está disposta a recomeçar a vida, a deitar mais ternura, a tirá-lo à boca
para dar aos outros” (H1, p. 150). Com seu instinto maternal, preenchida de ternura, a
personagem sofre por ver os ladrões com quem sua filha se envolvera matarem o neto
recém-nascido, em cena bastante focada pelo narrador no capítulo “A mulher da
esfrega”, que divide espaço, nas versões seguintes, com o capítulo “A velha e os
ladrões”.
Nessa noite, à meia noite, nasce o menino entre os ladrões. Vem morto ao
mundo. A Joana pega-lhe a tremer com as mãos da esfrega e deita-o no chalé.
Quatro cabeças se curvam à luz do candeeiro de petróleo para verem o menino
– três cabeças de ladrões e a cabeça da velha.
[...]
Escolhem o sítio e o pai abre a cova com o alvião. Nenhum diz palavra. Só a
Joana aperta mais o menino de encontro ao seio murcho, como se fosse
possível aquecê-lo. (H1, p. 149-150).
[...]
- Senhor ladrão, vossa senhoria... Assim Deus me ajude... Como a terra está
fria! (H1, p. 153).
A partir desse ponto da narrativa, passa a se tornar ainda mais evidente a relação
que é feita entre Joana e a simbologia da árvore, bastante trabalhada por Raul Brandão
desde seus primeiros textos literários, ainda no final do século XIX. O narrador acentua
que, assim como o vegetal, a personagem é denegrida por fora, engelhada, enrugada;
entretanto, por dentro, corre a seiva, pulsa a vida (“Por dentro a Joana é ternura, por
101
fora a Joana é denegrida. A mesma fealdade reveste as pedras. Reveste também as
árvores”, H1, p. 16; “Por fora farrapos, por dentro vida”, H1, p. 281). Além dessa
aproximação no aspecto físico, o narrador coteja a personagem com a árvore e com a
criança em função de sua ingenuidade e da sua frágil consciência.
Mal se compreende que depois d’uma vida inteira, esta mulher conserve intacta
a inocência d’uma criança e o pasmo dos olhos à flor do rosto. [...] Misturou à
vida ternura. Misturou a isto a sua própria vida. Aqueceu isto a bafo. Tem as
mãos como cepos. (H1, p. 17).
É possível entrever uma relação entre certo discurso do Gabiru que chega, talvez
como forma de se contrapor ao anseio do narrador-locutor, a apregoar uma vida entre
os ladrões e os bichos, uma vida sem sonho, vida imediata e sem reflexão, e a vida de
Joana, que, segundo o narrador, “Remoeu aquele sonho quando seguiu a filha pelas
vielas. As mãos secas de desespero tentaram em vão arrancá-la à desgraça. A filha
desceu mais fundo, a Joana desceu mais fundo. Deu-lhe a vida e suportou o escárnio.
Andou nas mãos dos ladrões [...]” (H1, p. 148).
Mas o sonho humilde de Joana (“Há sonhos humildes que ninguém quer sonhar,
serve-os à Joana”, H1, p. 138) é, em certa medida, realizado em um tempo anterior à
narração, pois, andando pelas casas de família em que servia, chega a criar os filhos
dos outros e, também, a sua filha. O que a personagem parece ansiar é a retomada do
sonho, esse sonho banal, possível de ser realizado no dia-a-dia. Talvez seja por isso
que, dentre as personagens de Húmus, Joana seja a que apresenta o menor conflito
interior, que esboce a mais suave contradição interna, que seria aplacada por meio
da concretização de um sonho que não se realiza, que o sonho de Joana, de tão
simples, quase não se configura como tal.
102
Em seu estado de semiconsciência, servindo a todos e sendo explorada por todos,
Joana vai-se aproximando cada vez mais da árvore, cujas raízes estão fortemente
fincadas na terra, na realidade palpável, mas os galhos tocam os ares, tentando
aproximar-se do sonho; além disso, a árvore, como símbolo, permite uma comunicação
entre o inferno (profundezas) e o céu (alturas), mostrando o caráter contraditório do ser
humano (“Os braços desmedidos da árvore sobem cada vez mais alto, e as raízes
alastram aao fundo da terra”, H1, p. 130) e da própria vida: a mesma mulher que
anda entre os ladrões e que é tentada a deixá-los entrar para roubar a casa da patroa,
onde mora e trabalha, é a figura que, em toda a narrativa, é capaz de amar. É essa
troca que se estabelece entre a Joana e a árvore que, após a chegada da primavera
em que todas as árvores se abrem em flores (“A primavera é um fenômeno elétrico. [...]
Primeira noite de luar e de loucura chegou a primavera. Tudo deita flor”, H1, p. 123),
permite ao narrador dizer:
Até as árvores são sonhos. Atravessaram o inverno com sonho contido, com o
sonho humilde com que carregam séculos. E até esses sonhos se
transformaram em realidade. Realiza-se enfim o milagre: as árvores chegam ao
céu. (H1, p. 135).
Ao lado da figura grotesca e caricata de Joana (“Grotesco, grotesco, e desespero
n’este grotesco, e dor n’este manequim desconjuntado [...]. Anda aqui um ser imenso
que luta com um ser humilde e o sonho amolga até à caricatura”, H1, p. 144),
personagem mais bem trabalhada pelo autor de mus, vai se desenvolvendo a
micronarrativa de D. Restituta, cuja grande problemática e desejo se aproximam
bastante do sonho humilde da criada: criar o filho, que esconde às outras velhas, e vê-
lo casar com a filha do conselheiro Barata.
103
A expressão dramática de Restituta muito se aproxima da da Candidinha d’A
Farsa, como já sugeriu Teixeira de Pascoaes em carta analisada no primeiro capítulo. O
tema do livro, aliás, desenvolve-se em torno de Candidinha, personagem que, como a
Restituta no Húmus, sempre escuta os segredos e lamentações dos outros e que vive
de favores e pequenas doações. O desejo de ambas é casar o filho, criado, nos dois
casos, às escondidas, com mulheres ricas das vilas em que as narrativas se
desenrolam. Em ambas as situações, as personagens (Candidinha e Restituta) sofrem
uma alteração de comportamento, saindo de um estado de aceitação pacífica das
imposições para um estado em que, passeando pelas ruas do espaço narrativo,
revelam os segredos ouvidos e destacam, aos gritos, que possuem filhos. Poderíamos
dizer, portanto, que a Restituta e a Candidinha são redutíveis à mesma idéia, que se
trata de uma mesma personagem que retorna ao Húmus 14 anos após a sua aparição
inicial.
Essa retomada também acontece no caso de Joana, que interage na narrativa d’A
Farsa e cuja história de vida, que também lemos no romance de 1917, apresenta-se
mais bem ordenada, do ponto de vista da cronologia, no primeiro: isso se deve, em
parte, porque, como já expusemos, do primeiro para o segundo livros, Raul Brandão vai
levando ao extremo sua experiência estética de esfacelamento da narrativa, da
construção em mosaico e, em outros comentários metalingüísticos, relaciona a
mesmice da vida-simulacro ao próprio modelo enrijecido, repetitivo e direcionado de
uma escrita do romance canônico (“toda a noite romances de Gaborieu, onde o
mesmo polícia persegue o mesmo gatuno, onde o mesmo gatuno foge sempre ao
mesmo polícia”, H1, p. 224). As diferenças fundamentais, na perspectiva das duas
personagens, entre as narrativas é que a Joana de 1903 termina morta, reaparecendo
104
no texto de 1917; a Candidinha de 1903 o filho morrer antes de realizar o sonho de
casá-lo, enquanto a Restituta de 1917 é quem se mata para deixar o filho livre para a
concretização do próprio desejo materno:
Passei tudo, passei mortes para o poder criar e nunca pude dizer que tinha um
filho. Para o criar, para o poder criar nunca pude ver o meu filho. Meti tudo p’r’o
saco, sem poder abrir o bico, senão matavam-me à fome. [...] a noite me
ficava livre para sonhar com ele, para o ver rico, para o ver como os filhos das
outras...Aqui está a Restituta que é idiota, aqui está a Restituta que é um poço
sem fundo. Diante d’ela pode dizer-se tudo, a Restituta serve para tudo, a
Restituta mete tudo para o saco. [...] a Restituta sabe o que se passa, o que
está no prego e o que está no fundo das almas. Calei tudo, disse a tudo que
sim para o poder criar. [...] E num crescendo de desespero: - Acuso! acuso!
acuso! (H1, p. 208–209).
[...]
Balouça ao vento, a uma réstia de luar, pendurado n’uma corda, o cadáver da
D. Restituta, que parece dizer pela última vez que sim para que o filho possa
casar com a filha do conselheiro Barata. Balouça ao vento n’um sexto andar
esquerdo. Morre ignorada e desconhecida quem toda a vida viveu de côdeas,
para lhe assegurar o futuro e a assinatura com o brasão e elmo, Monfalcão dos
Monfalcões (Sardinha). (H1, p. 217, grifo nosso).
Também ignorada e desconhecida pode-se dizer de Joana. Nos dois casos o
narrador nos apresenta personagens que se sacrificam em prol de um amor, de um
desejo, de uma paixão e as delineia como “Fisionomias de dor, fisionomias
concentradas, fisionomias de desespero e paixão, [que] vão aparecendo sob cada
fisionomia, e todos deparam com sentimentos e palavras que nunca tinham encontrado”
(H1, p. 126).
O quarto e último episódio narrativo presente em mus que destacamos nesta
leitura crítica do romance é a morte da majestosa Teodora. Mais uma vez, a presença
inadiável da morte toma corpo no texto brandoniano, sugerindo que, em vão, se espera
pela concretização do sonho. Se lançarmos um olhar sobre o conjunto literário que é o
romance de 1917, perceberemos um forte sentimento de pessimismo e desespero que
105
emana da narrativa, o que lhe marca e acentua o caráter decadentista tão bem
representado por Raul Brandão e António Patrício entre os prosadores portugueses do
fin-de-siécle. Ao lermos a passagem do livro que transcrevemos adiante, é quase
improvável não se perceber certa semelhança com a cena do episódio dramático O
Avejão (1991) em que uma velha rica, cercada de outras velhas que a querem ver
morrer, agoniza e conversa com o avejão (uma espécie de Gabiru) sobre sua vida e
sobre a destinação de sua alma após findar o corpo.
Pergunto se é possível que a majestosa Teodora continue a viver mil anos e a
impor-se, a mandar, de quico na cabeça e com o cofre atrás de si, e as outras
agarradas à mesa do jogo e à espera da morte. Pergunto se ter inveja não é
sofrer, se ter paciência não é sofrer. que tempos que cada uma delas
pensa em matá-la e arreda a idéia com medo do inferno. A teia aperta-se.
Mais um momento e a teia torna-se visível. A majestosa Teodora não pode
escapar [, pois] efetivamente a Teodora é uma insignificância. leis. (H1,
p. 100–101, grifo nosso).
Despertando no tênue enredo de Húmus o rancor de quase todos que a rodeiam,
a Teodora encarna uma contradição, desvelada em seu próprio nome, que, segundo
Antenor Nascentes, no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1952), significa
“dádiva de um deus ou dos deuses” (p. 294), e, após breve momento de melhora de
sua enfermidade (“Atravessei viva o inferno. Agora nem do diabo tenho medo!”, H1, p.
192), finalmente sucumbe à morte, em uma cena para cujo fim não se pode ter certeza
de que os filhos tenham contribuído (negligenciando ajuda à doente) com o fim narrado
ou de que apenas dele desejem tirar proveito, com intuito de lhe subtrair a fortuna
(Acudam-me! acudam-me! Quero viver e vocês querem-me matar. Dou-lhes tudo e
deixem-me viver. O que eu quero é viver!, H1, p. 203):
106
Os dois sucumbem e tapam os ouvidos, fechados no sótão, com o procurador
ao lado dizendo frases, mais frases que têm o selo do Estado, o cunho da
regra, e vêm no Diário do Governo. Pouco e pouco, à medida que os gritos
decrescem, vão-se aproximando da porta, atraídos, arrastados, até que cessam
de todo. Morreu – custou-lhe.
- Está no céu – conclui com decisão o procurador. – E metem-na na cama.
(H1, p. 204, grifo nosso).
Algo que nos chama a atenção nas quatro micronarrativas que têm como
personagem central ou o Gabiru ou uma das velhas que povoam o texto brandoniano é
a realização das mortes às quais referimos nesta Dissertação: o fim pouco esclarecido
da mulher do filósofo, o filicídio do neto de Joana, o suicídio de D. Restituta e a morte
natural da (majestosa) Teodora. A proximidade da morte, que ronda o romance de
Brandão, embora mantenha certa distância do narrador (que se utiliza desses
acontecimentos insólitos para evidenciá-la no corpo do texto literário), é o contraponto
que contrasta com a debilidade da vida (“Os mortos é que estão vivos! os mortos é que
estão vivos!, H1, p. 134) e nos sugere um tempo de erosão, de ruína da plena
realização cronológica dos seres figurativos, individualizados ou caricaturais que nos
apresenta Húmus.
4.2 Um pouco mais do texto
O narrador-locutor, em seu tempo de narração, parece ter o domínio completo do
destino de cada personagem do romance, o que, por vezes, nos a impressão de
uma correspondência parcial com o próprio tempo da escritura, sugerindo uma fusão
entre as categorias do locutor e do autor: “Agora essas figuras têm de cumprir um
destino. E pergunto a mim mesmo baixinho se na verdade eu não desejo que avancem
um passo e outro passo ainda...” (p. 227); “Fui eu que, como n’um quadro, lhe dei
107
valores e perspectivas. Fui que lhe entornei em cima ilusão. Na realidade existem
cores como gritos existem. Arranquei tudo do fundo do quadro. Porque não hei-de
acabá-lo?” (p. 163). Os comentários ambiguamente metalingüísticos e narrativos vão,
pouco a pouco, inserindo Húmus no rol dos textos que se debruçam sobre a
problemática da escrita, que se questionam sobre a construção literária e até mesmo
sobre questões de possibilidades da linguagem humana e a relação que se delineia
entre as partes constitutivas do signo lingüístico: a palavra também passa a ser fruto de
reflexão (“E ainda o que nos vale o as palavras, para termos a que nos agarrar”, H1,
p. 24; “Desde que não há Deus tudo são palavras”, H1, p. 184); e engendra um novo
tempo histórico, uma nova ordem, que se materializa por meio da perplexidade e do
espanto:
É com palavras que construímos o mundo. É com palavras que os mortos se
nos dirigem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na
vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas
palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em
carne viva, que o traduzam as cóleras, o instinto e o espanto. (H1, p. 170–171).
Como tentamos evidenciar em rápidas relações com outros textos, a temática
trabalhada no Húmus não é necessariamente algo original, especialmente criada para
tal empreitada literária, mas um exercício de escrita que vinha sendo praticado por
Raul Brandão desde seus primeiros escritos até publicações posteriores: isso reforça a
idéia de um livro único, apontada por Maria João Reynaud em sua Tese (2000a,
passim).
Após a chegada da primavera e da instalação do sonho no seio da vila e de
seus habitantes, verdadeira mudança nos comportamentos das personagens,
embora destaque-se – isso não as configure como figuras esféricas na narrativa, mas
108
somente determine que a um estado de letargia suceda um momento de euforia em
relação à vida que culmina com uma aceitação da realidade inadiável, a morte. Como
destaca Reynaud, somente “a partir da segunda versão, pela acção do Gabiru, que
age no plano onírico, é que se verifica a abolição da morte” (2000a, P. 295). As velhas,
preparadas para a inércia e para o verme, largaram a correr com o mesmo
destino e para o mesmo assalto. Todo o velho lixo, os velhos restos fedorentos,
as velhas bocas amargas, as velhas reminiscências, os velhos suspiros
abafados cada noite e cada dia, se remiraram em novas bocas frescas, em
nova carne ansiosa d’amor, em nova vida frenética de luxúria. (H1, p. 267).
Essa alteração comportamental, talvez psicológica, também é sensível em relação
ao narrador-locutor, que, mais uma vez colocando-se na posição de ator, adota um tom
discursivo mais moderado, impregnado de menos espanto e ressaltando mais
freqüentemente um tom de paz, de um homem que chega ao final da vida e se depara
com a realidade inquestionável e invencível que é a morte, contra a qual não adianta
insurgir-se: “...Cheguei ao ponto, Morte. [...] Cheguei ao ponto, Morte, em que não me
metes medo. Aceito-te. [...] Confio em ti. [...] tu acalmas. Aceito-te mas intimo-te.”
(H1, p. 296). Essa mesma sensação de relativa paz é perceptível na relação do
narrador-locutor com Deus, que se desdobra, também, na relação do locutor com a
própria consciência e com o alter ego Gabiru:
A primavera está aqui, mas atrás d’este ramo em flor houve camadas de
primavera d’oiro, imensas primaveras extasiadas, e flores desmedidas por trás
d’esta flor minúscula. O tempo não existe. O que eu chama a vida é um elo, e o
que vem um tropel, um sonho desmedido que -de realizar-se. E nenhum
grito é inútil, para que o sonho vivo ande pelo seu pé. A alma que vai
desesperada à procura de Deus, que erra no universo, ensangüentada e dorida,
a cada grito se aproxima de Deus. vamos todos a Deus, os vivos e os
mortos. (H1, p. 294, grifo nosso).
109
Diante do novo estado psicológico a que chega o locutor, o palco da vila
imaginária perde em significação e em importância, enquanto os momentos de reflexão
metafísica ganham ainda mais relevo. As projeções do narrador e a simulação
apresentada por meio de uma narração aparentemente desconexa passam, também, a
ser questionadas na narrativa, que se insinua, até ao fim do texto literário como um
artifício para se pensar o real, mas o uma representação dele (“Talvez o mundo não
exista, talvez tudo no mundo sejam expressões da minha própria alma. [...] Estou
convencido que nenhum d’estes seres existe. [...] Estou convencido de isto são apenas
expressões de dor e mais nada”, H1, 294), confirmando que Húmus, por fim, é um
romance-problema como nos sugeriu Vergílio Ferreira (1965b), uma escritura em que,
após a leitura, sobram as idéias, inquietam-nos os pensamentos e problemas
esboçados no texto:
Até que ponto é ainda possível compatibilizar esta atitude com a ideia
tradicional de romance? Será que ainda se conta alguma coisa em Húmus?
Alguma coisa que o seja o sonho de imortalidade do Gabiru? E será este um
sonho visionário ou, antes, uma alegoria do conhecimento? Temos talvez que
começar por admitir que o desígnio de Raul Brandão é transformar o
pensamento no verdadeiro tema da obra. (REYNAUD, 2000a, p. 266, grifo do
autor).
A ação deflagrada no último capítulo “Vêm os desgraçados” parece ser uma
reiteração da força revolucionária do sonho, do qual não podemos nos separar, embora
ele seja, muitas vezes, irrealizável. Contudo, o capítulo aparenta destoar do restante da
obra de Raul Brandão por fazer sucessivas alusões à realidade mundial da época e é
excluído nas versões posteriores, talvez porque o autor tenha visto, além dessa
desarmonia com o restante do texto, algum inconveniente em permitir que os romances
110
de 1921 e 1926 saíssem com passagem que sugeririam “os acontecimentos históricos
que marcaram o primeiro vinténio do século XX” (REYNAUD, 2000a, p. 337).
O romance de idéias de que nos fala Vergílio Ferreira também foi por ele mesmo
experimentado, traduzindo em escritura o que eram apenas conceituações teóricas.
Estamos ao longo de toda esta Dissertação tentando fundamentar que Húmus é,
indubitavelmente, um romance, e romance moderno, que para além de uma escrita
defeituosa, foi percebido por Ferreira e Mourão-Ferreira, na década de 1960, como uma
experiência estética precursora, abrindo novas possibilidades de construção narrativa e
influenciando uma série de escritores, como pontuamos no segundo capítulo. Dentre os
que bebem na fonte brandoniana, destaca-se, no corpo desta investigação, o próprio
Vergílio Ferreira, que levou a fundo o caráter duplo de crítico e leitor de Raul Brandão,
construindo, a nosso ver, um romance em contínuo diálogo com Húmus: Signo sinal,
publicado em 1979. Diante da possibilidade de uma rápida comparação entre os dois
textos, que se constroem sobre “ruínas e [...] destroços” (H1, p. 64), e cientes do papel
de Ferreira como um dos maiores ensaístas portugueses, que trouxeram para dentro de
sua produção literária a reflexão sobre o fazer artístico e sobre a experiência estética
brandoniana, parece-nos importante destacar, em subcapítulo específico, a ponte entre
essas duas narrativas, o que se faz adiante.
4.3 Húmus e Signo sinal: escritas em diálogo
Signo Sinal é uma narrativa em que mais fatos que em Húmus. Este, como
vimos, é permeado por uma monotonia e se caracteriza justamente pela ausência de
um enredo narrativo bem-definido e de fatos que possibilitem a sustentação linear de
111
um eventual enredo. O romance de Raul Brandão traz páginas sucessivas de
questionamentos e reflexões sobre temas variados, com destaque para um mundo que
se constrói a partir da idéia nietzschiana da morte de Deus e para a verificação da
mesmice e monotonia da vida humana. Se fosse facultado ao leitor extrair o que não é
enredo na obra de Raul Brandão, pouco mais de uma ou duas dezenas de páginas
restariam. no romance vergiliano podemos identificar acontecimentos que
contribuem para a estruturação de um enredo mais sólido e de uma narração, embora o
destaque da obra também fique para os momentos de reflexão e ponderação. O
terremoto que castiga o espaço em que se desenrola o romance é o principal fato de
Signo sinal e tenta configurar-se como fio condutor da narrativa.
Diferentemente do texto brandoniano, Signo sinal possui narrador nomeado, Luís
Cunha, praticamente o único sobrevivente da família proprietária de uma brica de lã,
cujo alter ego, o Arquiteto, carrega consigo o fardo de reordenar o caos, reestabelecer a
ordem. O fato de nenhum outro personagem da obra interagir com o Arquiteto reforça o
papel de outro do narrador-protagonista, que lhe é atribuído.
Entretanto, como é característico do romance moderno, o papel narrativo passa
por reformulações e perde o caráter esclarecedor e norteador que mantinha no
romance canônico. Por diversas vezes, a narratividade do romance vergiliano sofre
interferências do próprio autor textual, o que contribui para um embaralhamento dos
papéis de escritor e narrador (elemento ficcional), tal qual vimos no Húmus, na tarefa de
contar a reconstrução desse espaço social e urbano, que tudo leva a crer que é,
também, uma vila imaginária: a “ambigüidade do estatuto do narrador leva a que, por
trás dele, constantemente se perfile o Autor” (REYNAUD, 2000a, p. 52).
112
Interessa-nos evidenciar que o processo de refazimento da vila nunca é terminado,
o que também nos permite a leitura de que o espaço é apenas um simulacro para o
próprio pensamento do narrador-protagonista, que vagueia pelos escombros da aldeia,
fixando o olhar em seus moradores marginalizados e desorganizados. Uma segunda
forma de ver a catástrofe que é motor da narrativa de Signo sinal é como alegoria da
ruína, leitura que comunga com a crise da narração deflagrada com o advento da
modernidade, segundo Benjamin.
Em suas reflexões, o narrador-protagonista envereda por questões de ordem
social, que questiona o papel dos pobres na reconstrução da cidadela, do papel dos
pequenos cidadãos na construção da própria História. O livro se constrói basicamente
só de reflexões, como destaca Luci Ruas Pereira (1999):
Como desde o início observamos, não há, da parte do protagonista de Signo
sinal, qualquer vestígio de uma ação prática. Seu movimento resume-se ao
olhar, imaginar, deambular, procurar no labirinto das ruas um Arquiteto cheio
de razões e palavras, que ninguém, a não ser ele, ouve ou . O olhar que
percorre as obras é “errante e vazio”, a consciência que tem seu papel coloca-
o “nas margens da criação do mundo”. Todavia insiste em tentar recomeçar a
contar a história, feita com o trabalho dos homens e o estrépito das máquinas e
a tentativa resulta em mais uma frustração. É como se descesse uma cortina
ao palco, anunciando o fim de uma representação. Mas o que se representa é
um drama feito de conflitos insolúveis. A dialética que garante à História a
continuidade do seu movimento se interrompe, sem qualquer salto qualitativo,
sem a superação desses mesmos conflitos. À exceção das histórias que
contam o passado, pequenas histórias que sobrevivem ao caos, nenhuma
outra história tem um final. Como em Húmus, a narrativa fecha-se sem avanço.
(PEREIRA, 1999, p. 5, grifo do autor).
Muitas dessas reflexões recaem sobre o próprio devir histórico. São pensamentos
de um sujeito historicamente ativo, que tenta reencontrar seu lugar na sociedade
moderna e egressa de tantos baques e catástrofes. pouco dissemos que a
reconstrução da vila nunca chega ao fim, está sempre em processo. Mas,
113
paralelamente ao soerguimento do espaço, são traçadas narrativas menores,
micronarrativas que vão aparecendo no decorrer do vaguear do narrador pelos
escombros da vila destruída, como acontece no Húmus. Como um flâneur, Luís
rememora os tempos passados e vê surgirem, desenvolverem-se e encerrarem-se
histórias menores, como a do roubo da galinha pedrês, do Chiquinho, ou ainda a
anedota do bolo da Páscoa. Quando o narrador-protagonista reflete sobre o passado, o
tempo ainda consegue garantir alguma lógica e sucessão temporal. Porém, quando
pousa no presente ou pensa no futuro, essa lógica se esvai.
Essa estratégia narrativa do romance pode revelar uma filiação à idéia de que é
preciso valorizar uma microhistória, uma história dos vencidos, uma história global e
total em que todos estamos presentes e ativos, como defendia Walter Benjamin em
seus escritos. Desse modo, a não-realização da macronarrativa de Signo sinal, ou seja,
a reconstrução da vila, seria uma alegorização da própria crise da história tradicional, a
história dos grandes acontecimentos. Em sintonia com as teorias de Benjamin, a
articulista Luci Ruas Pereira também vê na estruturação do tempo narrativo do romance
em tela um sinal de que a narração se tornou impossível nos tempos da modernidade,
conforme se pode ler no seguinte trecho:
Do mundo envelhecido é que vêm ao narrador-protagonista as únicas
narrativas estruturadas segundo uma lógica temporal. Porque essas imagens
que a memória resgata são da infância na aldeia. Nelas é que ainda se podem
reconhecer as malhas de um tecido social que se esgarçam e rompem com a
ocorrência do terremoto. (Por isso mesmo, no presente, marcado pelo estar
sendo ou pela suspensão do devir histórico, as narrativas tornam-se inviáveis.)
(PEREIRA, 1999, p. 4).
Sendo um espaço de permanente destruição, a vila imaginária é o palco da ruína
por excelência. E se faz palco tanto na concepção histórica, ao desvelar uma história
114
que não avança linearmente, quanto na construção do texto ficcional, do enredo
propriamente dito. E é ruína porque é o lugar em que o passado continua a repetir-se
indefinidamente, assegurando a continuidade da catástrofe, alegorizada em Signo sinal
pelo terremoto. Lembremos que Walter Benjamin também desenvolveu uma imagem
para representar a idéia de ruína. É a alegoria do
Anjo da História [que] gostaria de parar, cuidar das feridas das vítimas
esmagadas sob os escombros amontoados, mas a tempestade o leva
inexoravelmente à repetição do passado: novas catástrofes, novas
hecatombes, cada vez mais amplas e destruidoras. (LÖWY, 2005, p. 90).
A ruína de Signo sinal vai além da paralisia do tempo, da estrutura falhada do
romance ou da presença contínua do terremoto e de seus efeitos. Não é uma ruína de
um tempo passado, mas uma ruína que se pereniza em função da incapacidade do
Arquiteto em conduzir a reordenação do espaço devastado, da própria conduta
vacilante e inerte do narrador-protagonista, que se detém em contemplar o caos. É
ruína que está presente na degradação dos personagens que perambulam pela obra
o Coxo, a Muda, a prostitua Carolina, o ladrão e na demonstração de que o homem
perdeu seu centro ordenador. Como afirma Luci Ruas Pereira (1999): A deriva é a
palavra de ordem.(p. 3), a mesma deriva que nos leva por caminhos sinuosos pelo
texto de Raul Brandão.
A leitura dos dois romances e a ciência de que Vergílio Ferreira se deteve, com
certa freqüência, na análise do texto brandoniano e de suas técnicas de construção
narrativa, levam-nos a pensar, reforçando as palavras de Verani (2001) explicitadas
nesta Dissertação, que Ferreira é o mais fértil e mais desvelado herdeiro literário de
Raul Brandão, embora o crítico sub-repticiamente, e, talvez, sem a aguda percepção de
115
que rejeita uma influência brandoniana, diga reiteradamente em seus ensaios que
era escritor formado quando veio a encontrar o prosador do Douro, apesar de entre seu
primeiro volume do Espaço do Invisível, em que faz alusões ao Húmus, e a
publicação de Signo sinal, em 1979, tenha decorrido mais de uma década:
Raul Brandão era da nossa família, mas nós não o sabíamos. Parente
imprevistamente descoberto num recanto da província, foi depois que a sua
voz de esclareceu numa procura européia que através dela a essa voz a
reconhecemos ainda nossa. (FERREIRA, 1977, p. 214).
A mesma afirmação de Vergílio Ferreira nos deixa entrever que em algum lugar
daquela terra portuguesa autores pouco conhecidos escreveram obras ostensivamente
modernas. Inovador em seu processo de “autodestruição criadora” (PAZ, 1984), a
experiência estética de Raul Brandão, em que a construção do livro é regida pelo
princípio da montagem e da desordem, é, certamente, das mais significativas e se
define como um dos mais altos momentos da literatura portuguesa em todo o século
XX.
116
5 A EXPERIÊNCIA ESTÉTICA DE RAUL BRANDÃO (Considerações Finais)
Esta Dissertação de Mestrado se estrutura a partir do objetivo de pensar o texto de
Raul Brandão não como um romance mal acabado, inconscientemente falhado, mas
como resultado de um processo de maturação intelectual em que podemos observar
o prenúncio da modernidade na prosa portuguesa do século XX. Se o texto é
descontínuo e verdadeiramente o é não se pode deixar de pensá-lo como projeto
estético (nem sempre deflagradamente planejado) em que avulta a pluralidade, a
segmentação, a quebra da linearidade.
Assim, tentamos contestar a crítica que julgava ser o livro em estudo uma narrativa
inacabada, pois seu autor, como vimos, trabalhou nas versões durante mais de 12 anos
consecutivos, sendo, portanto, difícil de aceitar que não tivesse desejado imprimir a
configuração que o livro adotou. Não é uma produção à beira do intuitivo, como afirmou
Álvaro Manuel Machado em citação explicitada no corpo desta investigação, mas
debatida com seus amigos mais próximos e que, insistentemente, contrapõe-se ao
romance canônico.
Depois, debatemos a crise da narração e suas implicações na escrita da história e
na escrita do romance durante o culo passado, lembrando que são dois tipos de
narrativas, uma que se debruça sobre uma realidade e outra que tenta reinventá-la a
cada leitura. Assim, dos escombros do conceito de história e de sua escrita no século
XIX, ergue-se, como vimos, a nova história; dos escombros do romance canônico,
surge o romance moderno. Sublinhe-se que não se trata apenas de uma crise de
concepção estrutural, que abalou a forma com que história e romance eram escritos,
117
mas, principalmente, uma mudança na mentalidade e no pensamento da sociedade
ocidental, européia por extensão.
Pensar Húmus é mais do que discutir um texto produzindo no olho da crise do
romance, mas o próprio romance da crise, que se esgueira pelas ruas sinuosas de uma
vila que é a representação simbólica e metonímica do mundo da virada do século, que
vive uma nova ordem vigente em que narrar “não é mais apenas ‘contar’ fatos como [...]
acontecem, mas deixar-se tomar por um olhar recriador que instaure a pluralidade e
permita a deformação desse ‘contar’, a ponto, até mesmo, de tornar os fatos [...]
inverossímeis” (MATOS, 2006, p.11).
O texto de Húmus, que analisamos criticamente no terceiro capítulo, apresenta um
curioso embate entre o tempo físico (cronologicamente ordenado), que parece se evadir
por um halo aberto pelo autor, e o tempo cósmico
105
, que verdadeiramente rege a
narrativa. O tempo no romance de 1917 é categoria fundamental: tudo mais é derivado
dele e se delimita a partir dele. Não podemos deixar de perceber certa proximidade com
uma escritora do nosso lado do Atlântico, Clarice Lispector, cuja Água Viva (1973)
instiga discussão semelhante acerca da configuração e do papel desempenhados pelo
tempo no texto literário e sobre a reestruturação do romance tradicional. O “instante-já”
clariciano aproxima-se, de certo modo, do tédio ad infinitum presente na prosa
brandoniana. Mas afirmar que Clarice leu o autor português e que Húmus influenciou
sua escrita no romance de 1973 é um ponto que não iremos pôr em questão, o fulcral é
que as duas obras, ao lado de Signo sinal de Vergílio Ferreira, caminham pari passu
105
Termo utilizado por Maria João Reynaud (2000a) em contraposição a tempo físico. Apropriamo-nos,
nesta investigação, da nomenclatura adotada pela pesquisadora por se se considerar o termo tempo
psicológico pouco ajustado para explicitar a configuração que essa categoria narrativa adota no texto de
Húmus.
118
com o nouveau roman francês, embora estejam separadas por um lapso de quase
sessenta anos.
A construção narrativa de Raul Brandão é uma produção consciente de tentativa-e-
erro, que não tem o modelo final traçado e definido, mas revela, desde o princípio,
aquilo que não quer, o que rejeita como padrão e inspiração. Lembremos que desde
seu primeiro texto literário, Impressões e Paisagens (1890), o autor manifestou uma
aguda inquietação e nesse livro inicial, não hesitou em afirmar que, no momento do
lançamento, a obra estava estilisticamente superada, não refletia o seu
pensamento. A experiência estética brandoniana, portanto, revela a busca da
modernidade, da ruptura, da experimentação. É a quebra das armações do texto a fim
de remontá-lo desordenadamente, configurando-o em mosaico, enovelando-lhe o
tempo.
Outrossim, tratamos, ao longo desta Dissertação, de um Brandão ficcionista, mas é
preciso que se reforce que a temática que é desenvolvida ao longo do mus, desde
Os Pobres ou ainda desde A Farsa para pararmos por –, é a que decorre de sua
vivência como jornalista e colaborador em diversos periódicos portugueses, dos quais
os mais importantes foram apontados nas páginas iniciais do capítulo VARIANTES
TEXTUAIS.
Algumas idéias talvez não tenham sido suficientemente debatidas no decorrer
desta pesquisa, pois, se o fizéssemos, correríamos o risco de nos desviar do plano
estabelecido na Introdução. Contudo, a título de conclusão, queremos torná-las
explícitas, fornecendo mais alguma matéria para o debate acerca de Húmus e, por
conseguinte, da obra literária de Raul Brandão: dizem respeito a discursos que a crítica
exibiu acerca do romancista e de sua produção e que podem ter contribuído, de algum
119
modo, para que a obra brandoniana continue pouco estudada. Mesmo Vergílio Ferreira
que, a nosso ver, se configura como o mais importante pesquisador na área até a
década de 1980, não conseguiu se libertar de todo de conceitos pré-estabelecidos e
que criaram, durante anos, uma imagem obscurecida do autor de que trata esta
investigação. Duas questões parecem-nos fulcrais: 1. a afirmação de ser Raul Brandão
um autor inculto, com poucas leituras; 2. a de ser um poeta, não um prosador.
Quanto à primeira, fundamo-nos em citação de Ferreira (1977) explicitada em
rodapé na página 71. Essa imagem de homem de poucas leituras (“Raul Brandão é
possível que tenha lido pouco”, FERREIRA, 1977, p. 195), sem contato com o mundo
literário além de seus próprios escritos, ainda amarga e turva muitos estudos sobre a
obra do escritor do Douro, mas encontra resistência no próprio corpo textual de Húmus,
em que podemos perceber a influência (e confluência) de muitos escritores do século
anterior, além de uma forte abertura para um diálogo com as artes plásticas.
Seja com alusões diretas, seja com demonstrações implícitas, Raul Brandão
parece-nos fornecer argumentos para que possamos afirmar que, se não foi um homem
e um escritor que ostentou sua cultura literária, o é porque não a teve, mas porque,
mais que preocupado em reproduzir modelos alheios ou discuti-los, o autor de Húmus
visava a levar ao limite a experiência da narrativa crepuscular ao limite. Mas,
provavelmente, teve-a, pois muitos livros de autores portugueses e estrangeiros
consagrados foram encontrados por investigadores, como nos informou Teresa Martins
Marques em diálogo sobre o espólio brandoniano travado durante o XXI Encontro da
Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (2007), na biblioteca
pessoal do prosador, após sua morte na Casa de Nespereira, habitação onde passou a
morar a partir do casamento com Angelina.
120
Felizmente, outros ensaístas divergem dessa posição de se tomar Brandão por
inculto, como podemos ler nas palavras de Álvaro Manuel Machado (2000): “Ora, certo
é que desde a primeira obra publicada [...], Raul Brandão reflete marcas compósitas de
modelos diversos e até contraditórios, nacionais e estrangeiros, de Camilo, Júlio Dinis,
Eça e Fialho, a Victor Hugo, Baudelaire e Flaubert” (p. 260) e, mais adiante, acrescenta:
Dostoiévski. Este é apontado tanto por Machado (1984) quanto por Ferreira (1987), e,
mais recentemente, Reynaud (2000a) e Jorge Valentim (2004), como a grande
influência literária de Raul Brandão.
Quanto à caracterização de poeta em prosa, segunda questão que levantamos, é
certo que seu texto é dotado de ambigüidade simbólica e que suas reflexões e
questionamentos existenciais alcançam um grau elevado de lirismo, mas sua escrita
conserva-se, a nosso ver, como prosa. Que seu texto seja apontado como lírico, é
possível; mas que à escrita brandoniana seja negada o caráter romanesco, é algo que
se deve questionar.
Explicite-se, também, que, embora em alguns momentos esta investigação possa
transparecer paixão pela escrita de Raul Brandão (e não acreditamos ser possível um
estudo sem profundo interesse pelo objeto investigado), não a julgamos infalível ou
sempre de ótima qualidade. A própria versão princeps do mus, que ora analisamos,
apresenta-se como um estado de texto que, a nosso ver, é superado esteticamente
pelas versões posteriores. O motivo que nos levou à eleição de H1 em detrimento das
versões de 1921 e 1926 não foi, portanto, estritamente qualitativo, mas porque a partir
de H1 poderíamos argumentar de forma mais eficiente o lugar precursor de Raul
Brandão na literatura portuguesa e observarmos, mais de perto, o processo de
maturação de um projeto narrativo que vinha sendo gestado desde A Farsa.
121
Esperamos, assim, ter alcançado o propósito delineado para esta Dissertação:
problematizar o caráter moderno da produção literária brandoniana, tendo como corpus
de análise o Húmus de 1917, livro que adianta, em décadas, o existencialismo francês
de um Camus, de um Sartre, de um Malraux. Para além de qualquer questionamento,
não nos furtamos a dizer que mus é um monumento literário edificado a partir da
negação dos valores do século XIX, da desordem e da ruína e que a produção
brandoniana encontra-se, em sua maior parte, ainda carente de estudos investigativos,
aos quais agora acrescentamos esta Dissertação de Mestrado, defendida na Faculdade
de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro: A experiência estética de Raul
Brandão Variantes textuais e Construção narrativa em Húmus. Que as idéias possam
germinar a partir deste nosso húmus!
122
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399-418.
130
ANDICE – EXERCÍCIO DE EDIÇÃO CRÍTICA
APRESENTAÇÃO E CRITÉRIOS DESTE EXERCÍCIO DE EDIÇÃO CRÍTICA
O exercício de Crítica Textual aqui apresentado tem por único objetivo dar
dimensão ao leitor deste trabalho das reais diferenças entre as três versões de Húmus.
Sua feitura se justifica pelo difícil acesso à edição crítica publicada por Maria João
Reynaud e, não em menor importância, porque tomamos como texto-base para o
confrontamento uma versão diferente da utilizada pela ilustre pesquisadora em seu
estudo.
Reynaud escolheu a última edição, publicada em 1926 pelas livrarias Aillaud &
Bertrand, como texto-base para comparação entre as edições, argumentando que essa
reflete um estágio em que Raul Brandão estaria, supostamente, mais satisfeito com seu
texto, sendo, portanto, a versão mais autorizada. Por sua vez, elegemos a primeira das
versões para esta análise, pois acreditamos que nela é possível perceber toda a
modernidade da narrativa brandoniana, modernidade que se tentou endossar em toda a
pesquisa.
Apesar de curto, este Exercício encontrou obstáculos para sua elaboração. O
primeiro deles diz respeito ao material utilizado, uma vez que não dispusemos dos raros
manuscritos de Húmus, depositados na Biblioteca Nacional de Lisboa e em
transferência para a Sociedade Martins Sarmento, nem de um exemplar da última
edição. Dessa forma, na ausência de um dos textos originais, preferimos pautar o
trabalho de Crítica Textual a partir da edição preparada por Reynaud, que reproduz a
versão de 1917 e a de 1921 em fac-símile e traz, no terceiro volume, a edição crítica
preparada por Reynaud. O inconveniente da utilização do material publicado pela
investigadora é que não pudemos nos fiar na edição crítica para destacar a numeração
original das páginas, uma vez que ela não reproduz com exatidão o volume publicado
por Aillaud & Bertrand, no que tange à disposição gráfica do texto e de paratextos.
Dessa forma, optamos por não fazer referências à paginação original.
O segundo empecilho foi a escolha de qual trecho cotejar e anotar. As três versões
de Húmus são tão diferentes entre si que geram uma significativa dificuldade em
encontrar passagens de texto que possam ser comparados. Para tal, escolheu-se a
segunda jornada da obra, datada de “15 de Novembro”, uma vez que aparece nas três
versões, estando sempre localizado no mesmo capítulo: “A Vila”, que inaugura a obra.
Além de facilitar um exercício de collatio, a escolha desse trecho possibilita termos
contato com o início da obra, dando dimensão das alterações que se configuram no
decorrer de todo o texto de Brandão.
A última dificuldade diz respeito ao próprio trabalho de preparação de uma Edição
Crítica e à sua especificidade, muitas vezes dificultada pelas limitações impostas pelos
recursos tecnológicos de que dispúnhamos e pela enorme quantidade de notas e
comentários que pediam lugar neste Exercício. Contudo, tivemos que selecioná-los e
restringi-los, pois a leitura deve ser facilitada o ximo possível e a intervenção do
editor crítico a menor cabível. Agora, faz-se necessário explicitar alguns pontos que
nortearam a feitura deste trabalho apenso.
Atualizamos a ortografia das três versões do texto selecionado, mantendo a norma
de Portugal, exceto no caso dos nomes das personagens e de expressões que são
marcas estilísticas do autor, como aquelas em que Raul Brandão utiliza do apóstrofo. A
pontuação original foi preservada e as diferenças verificadas nas versões que
sucederam à primeira, anotadas, assim como as modificações de paragrafação.
Para que se entenda o conteúdo das notas, destacamos a significação de siglas e
caracteres utilizados na composição deste exercício de Crítica Textual:
H1 – primeira versão de Húmus, publicada em 1917 pela Renascença Portuguesa.
H2 – segunda versão da obra, levada ao público em 1921 pelas editoras Annuario do
Brasil e Renascença Portuguesa.
H3 – terceira versão, de 1926, publicada por Aillaud & Bertrand.
[ ] – acréscimo de texto.
< > - supressão de texto.
(...) – trecho abreviado pelo editor deste Exercício.
| | - indicativo de linha em branco.
§ -
indicativo de início de parágrafo.
/ - separação entre anotações críticas referentes a uma mesma nota.
____ - mudança de página.
* - marca o início e o fim de um trecho selecionado para uma nota alfbética.
As notas que receberam designação numérica, em seqüências às que compõem o
corpo desta Dissertação, referem-se a alterações (variantes) em relação à H1 e estão
devidamente assinaladas se se referem somente à segunda edição ou às duas últimas;
as notas identificadas por letras marcam variações do texto de H3 em relação à H2:
são, portanto variantes dentro da variante. No caso de notas numéricas assinalamos,
conforme a tabela de siglas e caracteres, o início e o término do trecho selecionado
para uma nova anotação. Por fim, vejamos como devem ser lidas as notas alfabéticas e
numéricas, com exemplificação de uma por vez:
I)
1
H2, H3: <Debaixo d’estes tectos (...) discussões sobre a imortalidade da alma.>
Lê-se:
Em H2 e H3 o trecho a seguir, presente em H1, é suprimido: Debaixo d’estes tectos,
entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo
o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de
pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finado,
jáninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimônia, em que a gente se
veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringiria a vida a um tom
neutro, a um cheiro, o mofo, e a vila a cor de mataborrão. Seres e coisas criam o
mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica, nascida ao acaso n’um sítio húmido.
Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem
razão aparente d’um dia para o outro n’um palmo do universo que se lhes afigura o
mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma
escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a cios ou a
discussões sobre a imortalidade da alma.
II)
2
*para ela, mal se ergue, recomeçar*
A
Em H3: para que ela, mal se <ergue>[ erga], <recomeçar>[ recomece]
Lê-se
Em H2 registra-se: para ela, mal se ergue, recomeçar. H3 varia de H2 e apresenta-nos,
para a mesma passagem, o seguinte texto: para que ela, mal se erga, recomece.
O editor crítico
15 de Novembro
Debaixo d’estes tectos, entre cada quatro pa-
redes, cada um procura reduzir a vida a uma insi-
gnificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir
a vida a uma insignificância, edificar um muro
feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la,
escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finado, já
ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se
a uma cerimônia, em que a gente se veste de luto
____
e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringiria
a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo,
e a vila a cor de mataborrão. Seres e coisas criam
o mesmo bolor, como uma vegetação criptogâmica,
nascida ao acaso n’um sítio húmido. Têm o seu
rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito.
Desaparecem, ressurgem sem razão aparente d’um
dia para o outro n’um palmo do universo que se
lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos
sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma
escorrência fosforescente, que corresponde tal-
vez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre
a imortalidade da alma.
106
§
As paixões dormem, o riso postiço criou cama,
as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os
mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e
neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte
que tem diante de si o tempo ilimitado para roer.
Há aqui ódios que minam e contraminam, mas
como o tempo chega para tudo, cada ano minam
um palmo. A paciência é infinita e mete espigões
pela terra adentro: adquiriu a cor da pedra e to-
dos os dias cresce uma polegada. A ambição não
avança um pé sem ter o outro assente, a manha
anda e desanda, e, por mais que se escute, não se
106
H2, H3: <Debaixo d’estes tectos, entre cada quatro paredes (...) discussões sobre a imortalidade da
alma.>
lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignifi-
cância a lei da vida; é a insignificância que go-
verna a vila. É a paciência, que espera hoje,
____
amanhã, com o mesmo sorriso humilde: — Tem
paciência — e os seus dedos ágeis tecem uma teia
de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. —Tem
paciência — e rodeia, volta atrás, espera ano atrás
d’ano, e olha com os mesmos olhos sem expres-
são e o mesmo sorriso estampado. Paciência ...
paciência ...
107
Já a mentira é d’outra casta, faz-se
de mil cores e toda a gente a acha agradável.—
Pois sim...pois sim
108
e 109
.
107
H3
: <
Paciência ...paciência ...>
108
Em H2 e H3: <.>[...]
109
Em H2 e H3: [— Não se passa nada, não se passa nada. Todos os dias dizemos as mesmas
palavras., cumprimentamos com o mesmo sorriso e fazemos as mesmas mesuras. Petrificam-se os
hábitos lentamente acumulados. E o tempo mói: mói a ambição e o fel e torna as figuras grotescas.
§
Reparem, vê-se daqui a vila toda... está a Adélia, o Pires e a Pires como figuras de cera. Ninguém
mexe. N’um canto mais escuro a prima Angélica o levanta a cabeça de sobre a meia. Tanta inveja
ruminou que desaprendeu de falar. Chega o chá, toma o chá, e apega-se logo à mesma meia, a que
mãos caridosas todos os dias desfazem as malhas,
1
*para ela, mal se ergue, recomeçar* a tarefa. Um
dia um século e só o pêndulo invisível vai e vem com a mesma regularidade implacável p’ra a
morte! p’ra a morte! p’ra a morte!
§
Passou um minuto ou um século? Sobre o granito salitroso assenta
outra camada denegrida, e as horas caem sobre a vila como gotas d’água de uma clepsidra. De tanto ver
as pedras não reparo nas pedras. A morte roda na ponta dos pés e ninguém ouve seus passos. Todos
os dias os leva, todos os dias toca a finados. O nada à espera e a D. Procopia a abrir a boca com sono,
como se não tivesse diante de si a eternidade para dormir. Tudo isto se passa como se tudo isto não
fosse um drama todos os dramas, um minuto e todos os minutos ... § Não anos, séculos que dura
esta bisca de três e os gestos são cada vez mais lentos. Desde que o mundo é mundo que as velhas
se curvam sobre a mesma mesa do jogo. O jogo banal é a bisca o jogo é o da morte ... O candeeiro
ilumina e a sombra rói as fisionomias, a majestosa Theodora, a Adelia, a Eleutheria das Eleutherias, o
padre. Salienta-se do escuro uma boca que remói, a da
2
*D. Bibliotheca. Os padres* exaltam-na, a Igreja
exalta a sua caridade, que rebusca a desgraça para lhe dar três vinténs. distingo, despegadas dos
crânios, as orelhas do respeitável Elias de Melo e do impoluto Melias de Melo, lívidos como dois
fantasmas. Ambos regulam a consciência como quem corda a um relógio. Dívidas são vidas.
3
*
Tudo isto parece que flutua debaixo d’água, que esverdeia debaixo d’água. A luz do candeeiro ilumina as
mãos da D. Leocadia, que põe acima de tudo o seu dever, e que leva para casa uma órfã a quem
sustenta e que lhe entrapa as pernas: ósseas e secas enchem a sala toda, o mundo todo... § Não sei
bem se estou morto ou se estou vivo ... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento sabe bem, e o
tempo passa, o tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta não
se traduz em palavras.* A D. Procopia odeia a D. Bibliotheca, mas nem ela sabe o que está por trás
d’aquele ódio, contido pelo inferno. Toda a gente se habitua à vida. Matar matava-a eu, mas várias
palavras me detêm. Detém-me também um nada ... Chegamos todos ao ponto em que se esclarece à luz
do inferno. Mas ninguém arrisca um passo definitivo.
4
§ As velhas com o tempo adquiriram a mesma
expressão, com o tempo chegaram a temer um desenlace. Debruçadas sobre a mesa as figuras não
bolem. Não bolem outras figuras que se envolvem no escuro, e o que me interessa não são as palavras
do padre Jogo; nem o que a Adelia diz baixinho à Eleutheria, para que a velha temerosa ouça: A
nossa Theodora escada vez mais moça! ... o que me interessa são as figuras invisíveis: é a dor
d’essas figuras imóveis, e sobre elas outra figura maior, curva e atenta, que há séculos espera o
Esta página o contém texto de H1. As notas de rodapé, que se alongam desde a p.
133, devem-se às grandes alterações nesta parte do texto em H2 e H3.
desenlace. § A vila petrifica-se, a vila abjecta cria o mesmo bolor. Mora aqui a insignificância e até à
insignificância o tempo imprime carácter. Moram na viela íngreme e cascosa, que revê humidade em
pleno verão, velhas a quem restam palavras, presas, encarniçadas, como um doido sobre uma coroa
de lata que lhes enche o mundo todo. Mora d’um lado o espanto, do outro o absurdo. E todos à uma
afastam e repelem de si a vida. Mora aqui a Telles que passa a vida a limpar os móveis, e fechada
com os móveis reluzentes, talvez resto d’um sonho a que se apega com desespero, e velhas só mesuras,
só baba, só rancor. Ter uma mania e pensar n’ela com obstinação! Criá-la. Ter uma mania e vê-la crescer
como um filho! ... Mora aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim à vida, e a Ursula, cuja missão no
mundo é fazer rir os outros.
A
Em H3: para que ela, mal se <ergue>[ erga], <recomeçar>[ recomece]
B
Em H3: D. Bibliotheca: os padres
C
Em H3: <Tudo isto parece (...) as mãos da> / [A] D. Leocadia <,que> põe (...) / pernas <:>[.] / [A luz do
candeeiro lumina-lhe as mãos ósseas e secas que enchem a sala toda e o mundo todo] / < ósseas e
secas enchem a sala toda, o mundo todo (...) não se traduz em palavras.>
D
Em H3: [Tudo isto parece que flutua debaixo d’água, que esverdeia debaixo d’água. Não Sei bem se
vivo ou se estou morto ... Decorre um ano e outro ano ainda. O relento sabe bem, e o tempo passa, o
tempo gasta-as como o salitre aos santos nos seus nichos. Se o desespero aumenta não se traduz em
palavras.]
§
Cabem aqui seres que fazem da vida um há-
bito e que conseguem olhar o céu com indiferença
e a vida sem sobressalto, e esta mixórdia do ridí-
culo e de figuras somíticas. Mora aqui a insignifi-
cância, e até à insignificância o tempo imprime
carácter.
110
Mora aqui, paredes meias com a cole-
giada, o Santo, que de quando em quando sai
do torpor e clama: — O inferno! O inferno! —
Mora um chapéu, uma saia, o interesse e plumas.
111
Moram as Telles, e as Telles odeiam as Souzas.
Moram as Fonsecas, e as Fonsecas passam a vida,
como bonecas desconjuntadas, a fazer cortesias.
Moram as Albergarias, e as Albergarias só têm
um fim na existência: estrear todos os semestres
um vestido no jardim. Moram os que moem, re-
moem e esmoem, os que se fecham à pressa e por
dentro como uma mania, e os que se aborrecem
um dia, uma semana, um ano, até chegar a hora
pacata do solo ou a hora tremenda da morte.
112
Mo-
____
ram os que enriquecem no fundo das lojas, onde
as fazendas petrificaram.
113
Mora aqui o egoísmo
que faz da vida um casulo, e a ambição que gasta
os dentes por casa, o que enche a existência de
rancores e, atrás d’ano de chicana, consome outro
ano de chicana.
114
Moram na viela íngreme e cas-
cosa, que revê humidade em pleno verão, velhas
a quem só restam palavras, presas, alimentadas,
110
Em H2 e H3: <Mora aqui a insignificância, e até a insignificância o tempo imprime carácter.>
111
Em H2 e H3: <Mora um chapéu, uma saia, o interesse e plumas.>
112
Em H2 e H3: <Moram os que enriquecem no fundo das lojas, onde as fazendas petrificaram.>
113
Em H2 e H3, esse período inicia um novo parágrafo.
114
Em H2 e H3: <Moram na viela (...) máximo escrúpulo.>
encarniçadas, como um doido sobre uma coroa de
lata que lhes enche o muro todo. Mora d’um lado
o espanto e a árvore; do outro o absurdo. E todos
à uma afastam e repelem de si a vida. Moram
aqui a D. Engracia e a D. Bibliotheca. Mora aqui
a Telles que passa a vida a limpar os móveis, só
e fechada com os móveis reluzentes, talvez resto
d’um sonho a que se apega com desespero, e ve-
lhas só mesuras, só baba, só rancor. Ter uma ma-
nia e pensar n’ela com obstinação! Criá-la. Ter
uma mania e vê-la crescer como um filho!... Mora
aqui a D. Restituta, sempre a acenar que sim à vi-
da, e a Ursula, cuja missão no mundo é fazer rir
os outros. Todos os dias a morte os leva, todos os
dias toca a finados. O nada a espera e a D. Pro-
copia a abrir a boca com sono, como se não
tivesse diante de si a eternidade para dormir, e a
D. Felizarda a invejar as plumas da D. Biblio-
theca. Tudo isto se passa como se tudo isto não
tivesse importância nenhuma; tudo isto se passa
____
como se tudo isto não fosse um drama e todos os
dramas, um minuto e todos os minutos. Mora
aqui a D. Hermengarda e a D. Penaricia — mania!
mania! mania! — hoje, amanhã, sempre — e a morte
joga com a regularidade mecânica d’um pêndulo.
Toda esta gente usa a vida como quem usa uma
ninharia. Aí vem a Adelia ... A Timothea se ti-
vesse de envenenar a vila, envenenava-a às pin-
guinhas. Há-os que se gastam como quem gasta
uma pedra sobre uma pedra. O Felix procurador
não avança palavra sem dobrar a língua, e con-
serva no escritório, em rimas de papel co-
bertas de pó, a história da ganância, da vida e da
morte de várias gerações. O severo Elias deixa
morrer a mãe à fome e todos os anos dá contos
de réis aos asilos. Regula a consciência como
quem dá corda a um relógio. Dívidas são dívidas.
Têm
115
regras fixas. Para não ver o céu dobra-se
sobre livros exactos, d’um lado Dever
116
, do outro
Haver. O drama do Anacleto é um drama respei-
tável, um drama por partidas dobradas, na má-
115
Em H1 o autor registrou Tem, o que identificamos como uma falha de concordância levando em
consideração que o vocábulo Dívidas, na linha anterior, pode ser lido como sujeito do verbo.
116
Embora possa parecer que aqui existe uma falha de escrita e/ou edição, isso não se confirma, pois a
mesma construção pode ser lida em outras páginas de H1, como na p. 168, por exemplo.
xima ordem e no máximo escrúpulo.
117
Cabem
aqui dentro as velhas cismáticas, atrás de dis-
solvendo-se no éter, e logo substituídas por
outras velhas, com as mesmas ou outras plumas
nos penantes, com os mesmos ou outros ridículos,
fedorentas e maníacas; os homens a quem se fo-
____
ram apegando pela vida afora
118
dedadas de mentira,
prontos para a cova — e o Gabiru e o seu so-
nho. Cabem aqui o céu e as lambisgóias com as suas
mesuras, a morte e a bisca de três. E cabe aqui
também uma velha criada, que se não tira diante
dos meus olhos. Obsidia-me. Carrega. Obedece.
Serve as outras velhas todas. A Joanna é uma
velha estúpida.
§
Serviu primeiro na vila, serviu depois na
cidade.
119
Serviu um antropologista
120
exótico, que
fundira cem contos a juntar caveiras, e de quem
a Joanna dizia ao amolecer-lhe os edemas dos
pés: — Este senhor é um 2.º Camões! — Serviu a
D. Herminia e a D. Hermengarda. Serviu com
uma saia rota, as mãos sujas de lavar a louça, uma
camisa, os usos e seis mil réis de soldada. Lavou,
esfregou, cheira mal. Serviu o tropel, a miséria,
o riso, que caminha para a morte com um ves-
tido d’aparato e um chapéu de plumas na cabeça.
Para contar fio a fio a sua história bastava dizer
como as mãos se lhe foram deformando e criando
ranhuras, nodosidades, côdeas, como as mãos se
foram parecendo com a casca d’uma árvore. O
frio gretou-lh’as, a humidade entranhou-se, a
lenha que rachou endureceu-lh’as. Sempre a com-
parei à macieira do quintal: é inocente e útil e
117
Aqui encerra o trecho, sinalizado pela nota 118, que é retirado pelo autor em H2 e H3.
118
Em H1, fóra.
119
Em H3: <Serviu um antropologista exótico (...) Hermengarda.>
120
Mantivemos o termo utilizado por Raul Brandão.
não ocupa lugar,
121
e não vem primavera que não
dê ternura, nem inverno sem produzir maçãs. A
vida gasta-a, corroem-na as lágrimas, e ela está
aqui tal qual como quando entrou para casa da
D. Hermengarda. Faz rir e faz chorar. Os meni-
nos borraram-na — adorou os meninos. Os doentes
que ninguém quer aturar, atura-os a Joanna.
122
ninguém extranha
123
— nem ela — que a Joanna
aguente, e a manhã a encontre de pé, a rachar a
lenha, a acender o lume, a aquecer a água. Há
seres criados de propósito para os serviços gros-
seiro. Por dentro a Joanna é só ternura, por fora
a Joanna é denegrida. A mesma fealdade reveste
as pedras. Reveste também as árvores.
§
É uma velha alta e seca, com o peito raso.
O hábito de carregar à cabeça endireitou-a como
um espeque, o hábito das caminhadas espalmou-
lhe os pés: a recoveira assenta sobre bases sólidas.
Parece um homem com as orelhas despegadas do
crânio e olhos inocentes de bicho. É d’estas cria-
turas que dão aos outros em troca da soldada o
melhor do seu ser, que se apegam aos filhos alheios
e choram sobre todas as desgraças. E
124
ainda por
cima dedicam-se, aturam os meninos
125
, e quando
põem-se a chorar nas escadas.
126
—É preciso escon-
121
Em H2 e H3: <e não vem (...) maçãs.>
122
Em H3: <Os meninos (...) Joanna.>
123
Mantivemos como em H1 por crermos que o emprego da palavra com “x” não é uma questão
meramente ortográfica, mas que abre uma janela de interpretação outra (ex- como prefixo que remete ao
que está fora).
124
Em H3: desgraças. <E ainda>[Ainda] por cima
125
Em H2 e H3: <e aturam os meninos,>
126
Em H3: <É preciso escondeá-la (...) D. Hermengarda a chamá-la.>
deá-la — asseverou D. Hermengarda quando lhe
foi em pequena para casa. Escondeia-a. Noite velha
e já ela bate de cima com a tranca no soalho, a
chamá-la. — E não te servindo a porta da rua é a
____
serventia dos cães. — Mas ela apega-se. Nunca
teve outra ama como aquela senhora. Venera-a.
Anos depois diz das pancadas: — Merecia-as. —
Já não é preciso chamá-la: a Joana ergue-se
n’um sobressalto, alta noite, noite negra, e dorme
com um olho fechado e outro aberto. Velha,
tonta, abre de quando em quando os olhos, põe
o ouvido à escuta num movimento instintivo, a
127
voz da D. Hermengarda a chamá-la.
§
Mal se compreende que depois d’uma vida
inteira, esta mulher conserve intacta a inocên-
cia d’uma criança e o pasmo dos olhos à flor do
rosto. Trambulhões, fome, o frio da pobreza — o
pior — e, apesar de amolgada, com uma saia de
estamenha, no pescoço peles, as mãos gretadas
de lavar a louça, uma coisa que não se exprime
com palavras, um balbuciar, um riso ... Misturou
à vida ternura. Misturou a isto a sua própria
vida. Aqueceu isto a bafo.
| |
§
Tem as mãos como cepos.
127
Em H1 registra-se com o acento grave
142
ANEXO
Imagem 1- Quadro Raul Brandão, por Columbano Bordalo Pinheiro.
Imagem 2 – Quadro Angelus Novus, de Paul Klee.
Imagem 3 – Quadro O Grito, de Edvard Munch.
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