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Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Comunicação e Expressão
Curso de Pós-Graduação em Literatura
Université Denis Diderot – Paris VII
Ecole Doctorale Langue, Littérature, Image, civilisations et sciences humaines
UFR LAC – Lettres, Arts, Cinéma
Teatralidade e Gestualidade em Clarice Lispector e
Maurice Blanchot
TESE DE DOUTORADO EM CO-TUTELA
Orientadores:
Prof. Dr. Sérgio Medeiros (UFSC) / Prof. Dr. Christophe Bident (Paris 7)
Rogério de Souza Confortin
Florianópolis 2009
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Teatralidade e Gestualidade em Clarice Lispector e
Maurice Blanchot
Rogério de Souza Confortin
Agradeço aos meus orientadores Prof. Dr. Sérgio Medeiros (UFSC) e Prof. Dr.
Christophe Bident (Paris VII) pelo apoio ao projeto, leitura e orientação.
Agradeço o apoio institucional do programa Colégio Doutoral Franco Brasileiro levado
pela CAPES que me concedeu a bolsa para a realização deste Doutorado em Cotutela.
Agradeço ao Programa de Pós-graduação em Literatura da UFSC pelo pleno apoio
institucional e pela bolsa na fase final do doutorado.
Agradeço a imprescindível leitura de Liliana Reales, mulher, amiga e companheira.
Agradeço a leitura atenta e as pontuações críticas dos Profs. Drs. Wladimir Garcia e Jair
da Fonseca da UFSC.
Agradeço a minha família.
Agradeço a todos os amigos que em seus gestos possibilitaram os encontros necessários
ao término desta etapa de experiência e de prova-ção intelectual.
1
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SUMÁRIO
RESUMO/ RÉSUMÉ 7
ADVERTÊNCIA
10
INTRODUÇÃO 14
PROLEGÔMENOS 44
Sobre uma noção de experiência em geral para uma aproximação
à noção de experiência ficcional literária limite no sentido de uma
soberania equívoca da literatura. 45
Sobre o conceito de experiência de escritura (literária). 62
PARTE I
Nota sobre a noção de experiência limite compreendida
enquanto épreuve (prova-ção). 83
Apontamento sobre uma direção teórico crítica. 87
CAPÍTULO I
Sobre a noção de experiência em Nietzsche. 95
Da relação entre uma experiência no sentido
fenomenológico e épreuve crítica no sentido
de um pensamento da diferença. 145
CAPÍTULO II
Da crítica clínica de Gilles Deleuze como acesso a uma economia
das forças estéticas presentes em um corpus literário. 150
Deleuze com Nietzsche e Spinoza. 152
2
Deleuze com Nietzsche. Da relação das forças
equacionadas enquanto crítica. 157
Sobre o eterno retorno como conceito articulador
de uma noção ampla de corpo e corpus ficcionais. 168
Da possibilidade de se descrever uma teatralidade narrativa,
no sentido de uma cartografia das afecções nas ficções de
Clarice Lispector e Maurice Blanchot. . 181
Uma experiência crítica (épreuve?) em Roland Barthes.
Algumas considerações teóricas da noção de
teatralidade maquínica na ficção de
Clarice Lispector e Maurice Blanchot 191
Da lógica do sentido à lógica da sensação. 194
PARTE II 201
Nota sobre uma compreensão do sentido de corpo e corpus
a partir de Corpus de Jean-Luc Nancy. 202
Transcrição do Prefácio à edição em espanhol de
58 indicios sobre el cuerpo, Extensión del Alma. 212
Comentário. 213
Voz narrativa e voz narradora em L’entretien infini de Maurice Blanchot. 219
Imagem, Alegoria e Teatralidade. 231
De uma interpretação do sentido da imagem a partir de
uma tipologia das forças no intuito de uma aproximação ao
conceito de uma teatralidade maquínica da literatura. 242
Teatralidade como estratégia para uma compreensão
da literatura enquanto gestualidade própria de uma
promessa poética do mundo. 247
Bataille e Blanchot e o jogo paradoxal da escritura literária. 251
3
O pensamento do fora de Blanchot segundo Foucault. 258
A lei como figura paradoxal numa economia
do interdito e da transgressão. 260
Onde está a teatralidade nas narrativas de
Clarice Lispector e Maurice Blanchot? 264
O paradoxo e a mimese. Tentativa de acesso à noção de
teatralidade na literatura a partir da compreensão de
uma tensão própria ao jogo de encenação do ator. 271
Da teatralidade teatral à teatralidade literária.
O espaço paradoxal da escritura enquanto palco virtual dos afectos. 277
Da teatralidade maquínica no discurso filosófico. 281
Sobre uma possibilidade de definição da experiência limite
na literatura como experiência do “indizível”. 285
CAPÍTULO I 289
Épreuve crítica: Teatralidade e Gestualidade em
Thomas L’obscur e A paixão segundo G.H. 289
Uma cartografia dos gestos. 290
Épreuve ou imagem de uma dramatização teatral dos personagens. 299
A teatralidade literária pode desdobrar uma imagem
do “Eu-eu” como ser-para-fora-de-si? 308
Roland Barthes, precursor de uma leitura sobre
uma teatralidade maquínica na escritura ensaística
de Georges Bataille. 323
A teatralidade de uma poética do neutro. 338
Duas cenas, múltiplas séries e o (in)expressivo ou (in)operante
pulsional de uma experiência limite pressentida como
teatralidade maquínica da literatura. 342
THOMAS 354
4
O QUARTO (a cena do luto). 360
G.H. 364
O QUARTO (a cena da ausência do outro como ausência de si). 366
A cena literária como espaço de prova-ção do “aberto”. 376
As três “figuras” na parede do quarto da empregada de G.H. 377
A moral do “joujou”. 384
Considerações fragmentárias e incompletas. 389
Movimento de síntese fragmentária de uma longa
jornada de exploração conceitual e épreuve crítica (resumo). 390
ANEXOS 417
Thomas l’Obscur: tradução da segunda versão de 1950. 418
BIBLIOGRAFIA 471
5
Resumo
A tese lança um olhar teórico e crítico sobre duas preocupações conceituais fulcrais
desta pesquisa em teoria literária. O eixo teórico explora um território epistemológico que
circunda o gesto teórico e crítico de Maurice Blanchot, o qual exerce uma potência de leitura
ímpar na teoria literária contemporânea, principalmente francesa, e busca suas filiações mais
próximas. O eixo crítico, finalmente, opera conceitualmente, através dos termos de épreuve
crítica (prova-ção) e teatralidade maquínica da literatura, uma experiência de leitura em
chave pós-estruturalista de A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector e Thomas l’Obscur
de Maurice Blanchot, textos que encenam em suas vozes narrativas uma literatura pensante.
Tanto o eixo teórico quanto o eixo crítico se dão numa espécie de entrelaçamento
que procura promover uma situação de leitura que vinculamos com a imagem de um gesto
teatral que metaforiza de forma “maquínica” (relação da escritura literária como a própria
experiência do desejo de subjetivização) a experiência da escritura literária como a épreuve
de uma situação estética para além de um trabalho estruturalmente semiótico.
Corpo escrevente e Corpus ficcional operam, no limiar da imagem de sua
intersecção, o desejo da crítica de se imiscuir ao processo paradoxal, volátil e trans-subjetivo
em que uma voz narrativa soberana e muitas vezes fragmentária promove e alude a
movimentos que sinalizam tanto uma gestualidade da escritura quanto uma teatralidade de
efeitos corpóreos que se dão a partir das cenas e da complexidade poética, agônica e
filosófica que (se) encena a partir dos relatos ficcionais supracitados.
Résumé
La thèse lance un regard théorique et critique sur deux préoccupations conceptuelles-
clés de cette recherche en théorie littéraire. L’axe théorique explore un territoire
épistémologique qui encercle le geste théorique et critique de Maurice Blanchot et celui-ci
exerce une puissance de lecture sans égale dans la théorie littéraire contemporaine, surtout la
française, et cherche ses affiliations les plus proches. L’axe critique, finalement, opère
conceptuellement, à travers les termes : épreuve critique, théâtralité machinique de la
littérature ; une expérience de lecture dans le ton post-structuraliste de La passion selon
G.H. de Clarice Lispector et Thomas l’obscur de Maurice Blanchot, des textes qui mettent-
en-scène, dans leurs voix narratives, une littérature pensante.
Aussi bien l’axe théorique que l’axe critique se font dans une espèce d’entrelacement
qui cherche à promouvoir une situation de lecture avec l’image d’un geste théâtral qui
métaphorise, de façon « machinique » (rapports de l’écriture littéraire avec la propre
expérience du désir de subjectivation), l’expérience de l’écriture littéraire comme l’ épreuve
d’une situation esthétique au-delà d’un travail structurellement sémiotique.
Corps écrivain et Corpus fictionnel opèrent, au seuil de l’image de leur intersection,
le désir de la critique de s’immiscer dans le processus paradoxal, volatil et transubjectif où
une voix narrative souveraine et, souvent, fragmentaire, favorise et fait allusion à des
mouvements qui signalisent, aussi bien une gestualité de l’écriture, qu’une théâtralité
d’effets corporés, qui viennent des scènes et de la complexité poétique, agonique et
philosophique qui (se) met-en-scène à partir des récits fictionnels mentionnés ci-dessus.
6
Je ne cherche pas à trouver quoi que ce soit, mais :
1° à m’évader de l’être ;
2° à continuer ma marche hors lui ;
3° marche qui ne vise pas de but à l’infini
mais creuse le fini.
indefiniment.
(A. Artaud. Suppôts et supliciations.)
Le Geste Longtemps j’aurai donné le nom de
geste à l’expansion d’une formule dont la
estructure devait conférer d’emblée sa stature à
mon projet et plier à son rytme tout ce qui
viendrait se surimposer à elle, en sorte que son
avenir fût contenu en germe dans son élan initial,
quand bien même je n’aurais pas encore été prêt à
l’articules. Hachée, brisée, discontinue,
interrompue peut-être, l’unité du geste est
néanmoins assurée par ce qui le relance, par ce qui
ressoude et réajointe les moments de negations ou
de rectification par lesquels il ne cesse de
repasser, faisant ainsi l’expérience de son propre
temps. Tout ce qui vient du travail en nous
qu’accomplit le temps, et où nous nous
accomplissons à notre insu jusqu’à ce qu’un
hasard nous mette en position d’en prendre la
mesure (et, ainsi, de nous reprendre), ne se libère
jamais totalement de sa tutelle. Que le temps
passe et que certaines choses ne cessent de
revenir, qui ne passent pas, c’est là ce qui pour
nous reste toujours nouveau, scandaleusement
nouveau.
[Bernard Vouilloux. Le Geste suivi de Le Geste
Ressanssant. 2001, dos du livre.
Il ya quelque chose qui est pour ainsi dire la
mauvaise conscience de la bonne conscience
rationaliste et le scrupule ultime des esprits forts ;
quelque chose que proteste et « murmure » en
nous contre le succès des entreprises
reductionistes. (...) Il ya quelque chose d’inévident
et d’indémontrable à quoi tient le côté
inexaustible, atmospherique des totalités
spirituelles, quelque chose dont l’invisible
présence nous comble, dont l’absense inexplicable
nous laisse curieusement inquiéts, quelque chose
qui n’existe pas et qui est pourtant la chose la plus
important entre toute les choses importantes, la
seule qui vaille la peine d’être dite et la seule
justement qu’on ne puisse dire ! Comment
expliquer l’ironie passablement dérisoire de ce
paradoxe : que le plus important, en toutes choses,
soit précisement ce qui n’existe pas ou dont
l’existence, à tout le mois, est le plus douteuse,
amphibolique et controversable ? [Vladimir
Jankélevitch. Le Je-ne-sais-quoi et le presque-rien
– 1. La maniére et l’occasion. 1980, p.11]
7
Si nous pouvions, par une réduction ou une
dissidence préliminaire, séparer mort et mourir,
parole et écriture, nous obtiendrions, fût-ce à
grands frais et à grand-peine, une sorte de calme
théorique, de bonheur théorique, ce calme et ce
bonheur que nous accordons, au fond de leur
tombe heureuse, aux grands morts – les morts
sont toujours momentanément grands – qui sont
aussi et comme par excellence, les figures
marquantes ou les supports de la théorie.
L’enchevêtrement, ce réseau mal ordonné, der la
parole et de l’écriture, ne peut être tranché qu’à
condition d’être chaque fois restauré et même
rendu plus difficile a démêler par la pratique
(impraticable, souveraine, aveugle, pitoyable
dans tous le cas) de l’écriture qui ne sais
qu’après coup, ne le sachant jamais que d’un
savoir d’emprunt, que le nœud par elle fut
tranché, alors qu’il n’étais pas encore noué, et
que c’est cette violence décisive de la pratique
qui seule en fit un nœud gordien. C’est donc
cette violence tranchante, préliminaire, de
l’écriture, qui assure, effet fortement ironique,
l’unité écriture-parole en permettant de la lire en
ces deux termes (comme un livre ouvert, avec
sur une page un texte dit de traduction et sur
l’autre page le même texte dit original, sans
qu’on puisse jamais décider de quel côté l’un de
quel côté l’autre ni même qu’il s’agit d’un texte
en deux versions, tant identité et différence se
recouvrent), dualité qu’elle défait et refait chaque
fois en donnant lieu à une parole plus rusée.
La parole est rusée, à la mesure de sa faiblesse,
de son aptitude à s’effacer, d’autant plus elle-
même qu’elle s’embarrasse, retenue jusqu’au
balbutiement (personne ne la chercherai auprés
des spécialistes de la parole ; il lui est plus
« naturel » qu’à l’écriture de n’avoir pas rapport
au beau, au bien : « c’est un beau parleur » ; reste
que « celui qui écrit bien » n’est que l’héritier de
« celui qui parle bien » ; les jugements de valeur
sont venues à l’écriture dans la mesure où,
substitut de la parole, l’écriture l’achevait et
l’accomplissait). Par là, dira-t-on, encore vivante
et même défaillante afin d’être au plus près de la
vie qui ne brille jamais mieux comme essence de
la vie qu’au moment où elle se perd. Mais la
parole moribonde (parole, non pas mourante,
mais du mourir même) a peut-être toujours déjà
passé la limite que la vie ne passe pas : passant à
son insu par le chemin qu’a frayé l’écriture en le
marquant comme infrayable. (M. BLANCHOT.
Le pas au-delà. Paris, Gallimard, 1973, p. 127-8)
AUTOR. - Estou apaixonado por um personagem
que inventei: Ângela Pralini. Ei-la falando:
8
ÂNGELA. - Ah como eu gostaria de uma vida
lânguida. Eu sou uma das intérpretes de Deus.
AUTOR. - Quando Ângela pensa em Deus, será
que ela se refere a Deus ou a mim?
ÂNGELA. - Quem faz minha vida? Sinto que
alguém manda em mim e me destina. Como se
alguém me criasse. Mas também sou livre e não
obedeço ordens. [...]
AUTOR. - Participo da inquietação tremulante de
Ângela mas não a imito.
ÂNGELA. - Sou fraca, dúbia, há uma charlatã
dentro de mim embora eu fale a verdade. [...]
AUTOR. - Eu ainda não me atingi. Os frangalhos
de Ângela a fazem atingir-se? Minha ausência de
mim é dolorosa. Não há um ato em que eu me
lance todo. E a grandiosidade da vida é lançar-se -
lançar-se até mesmo na morte. [...]
ÂNGELA. – Está amanhecendo: ouço os galos.
Eu estou amanhecendo.
- O resto é a implícita tragédia do homem - a minha
e a sua? O único jeito é solidarizar-se? Mas
“solidariedade” contém eu sei a palavra “só”.
[Quando o olhar dele vai se distanciando de
Ângela e ela fica pequena e desaparece, então o
AUTOR diz:]
- Quanto a mim também me distancio de mim. Se a
voz de Deus se manifesta no silêncio, eu também
me calo silencioso. Adeus.
Recuo meu olhar minha câmera e Ângela vai
ficando pequena, pequena, menor - até que a perco
de vista.
E agora sou obrigado a me interromper porque
Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas
não a terra em que se é enterrado e sim a terra em
que se revive. Com a chuva abundante nas florestas
e o sussurro das ventanias.
Quanto a mim estou. Sim.
“Eu... eu... não. Não posso acabar.”
Eu acho que...
(LISPECTOR, Clarice. Um sopro de vida
(Pulsações). 1978/1999, pp. 126-128 e 157-159)
9
ADVERTÊNCIA
Seria necessário tentar esclarecer certas questões ou situações sobre a configuração
que este trabalho de tese assumiu, mais do que como uma simples estratégia de escritura,
como gesto e teatralidade crítica, num movimento em sintonia com o que aqui se pretende
demonstrar por uma via em que os procedimentos argumentativos cederam espaço à
dramaticidade do gesto crítico e à esquiva do fechamento, da violência da conclusão e do
ilusório de todo acabamento.
Os termos teatralidade e gestualidade devem ser compreendidos a partir do próprio
movimento especulativo do texto, que procura amalgamar, como se entenderá a seguir, uma
espécie de operatória ou de suplementariedade entre o texto “principal” e o texto das notas.
No conjunto ou na conjuntura do movimento entre os textos de cima e de baixo, procurou-se
estabelecer entradas e saídas das diversas discussões que se estabelecem no intuito de se
chegar à atmosfera das noções de teatralidade maquínica da literatura e da gestualidade que
aí se procura entender tanto como gesto literário que forja o trabalho da obra literária
quanto, constitutivamente e em dupla via, se estabelece numa copresença a necessidade de
um gesto crítico que, de algum modo, possa “acompanhar” a singularidade do pensamento
que se desbrava na potência da poética das escrituras de Maurice Blanchot e de Clarice
Lispector.
O conceito de teatralidade não está relacionado com sua acepção corrente vinculada
a uma semiologia ou semiótica do teatro tout court. A noção de teatralidade maquínica
adquire sua força do próprio movimento tateante e perscrutativo entre o texto “de cima” e o
“texto de baixo” e ainda com outra potência, a partir do refluxo que essas longitudes e essas
latitudes da leitura formam no translado ou na possível interrupção que oferece cada nota.
Daí pensarmos na necessidade premente dessas saídas e reentradas no texto, como
saídas e reentradas numa obra literária. Teatralidade maquínica da própria leitura que
estabelece essa visão de um espectador diante de um movimento da obra que, mesmo
tratado em cada uma de suas partes, carrega na forma subversiva de seu próprio estilo ou nas
transformações de gênero que vive em sua trajetória, a produção de uma teatrológica ou
dramática de sua própria escritura. Teatralidade e gestualidade da escritura, afinal, e não do
teatro, apesar da linha de continuidade que coexiste na própria história ampla de uma
10
narratividade generalizada que se estabelece como força ou potência mimética constitutiva e
que se trataria justamente de perceber na infinita complexidade de seu desdobramento.
A teatralidade e a gestualidade que aqui procuramos fazer funcionar é a imagem
teórica necessária para se pensar a dinâmica própria da crítica contemporânea afinada com
os autores que aqui se lerão. Essa imagem corresponde, em poucas palavras, a um
determinado discurso teórico e crítico que possa fazer reverberar o movimento
multifacetado no interior da própria filosofia e onde se coloca a necessidade tanto de uma
passagem pela analítica fenomenológica quanto talvez de seu ultrapassamento. Isso levaria a
se pensar o pensamento como algo para além da própria filosofia, percebendo um
movimento não somente especulativo que se impõe como necessidade performativa,
atravessando um determinado estatuto reflexivo transcedental para uma performática da
imanência do corpo bio-político e do corpus da escritura em geral como potência anacrônica
e trans-histórica.
Queremos ressaltar a importância estratégica e tática das notas em relação à pesquisa
como um “todo” fragmentário no sentido que dá Blanchot à própria idéia de escritura como
maquínica de pensamento. As notas neste trabalho poderiam se chamar “pontes
especulativas”. De fato, poder-se-á perceber que as notas não têm um caráter eminentemente
excedente e uma função apenas “acessória”. As notas são, de algum modo, verdadeiros
movimentos de concatenação das idéias expostas no corpo do texto. Portanto, gostaríamos
de fazer jogar um sentido rearranjador e dinâmico a respeito do texto que se configura “em
baixo” do texto “maior”.
As notas aqui funcionam como um texto infiltrado e relativamente diluído, não fosse
sua marca diagramática, buscando pouco a pouco estabelecer-se como texto também
soberano. Porém, o tipo de soberania que ele almeja não se detém na forma da coesão
retórica ou semântica identificada e de direito presente no texto “superior”. Diríamos, de
bom grado com Deleuze, que o texto presente nas notas constitui-se talvez como uma
potência de minoração no conjunto da pesquisa, ficando claro que fazemos uso livre dessa
noção deleuzeana que opera, na verdade, numa complexidade de diferenciações lingüísticas
e retóricas, semânticas e estilísticas muito próprias, como é o caso na descrição semiológica
ou signalética da literatura de Kafka. Reteríamos que o desejo do texto menor nesta pesquisa
11
é o de uma complementarização excrescente, pois se desenvolve como uma espécie de
sistema dobrado dentro e fora do texto instituído como especulante.
Poderíamos dizer ainda sobre o caráter especulante do texto “primeiro”, que ele se
especula ou se reflete no texto “segundo”, como uma superfície espelhada que duplicaria sua
imagem acima e abaixo do objeto de reflexão. Em se tratando de escritura, teríamos que ter
em mente que o sentido desse objeto torna-se desde sempre o próprio objeto ou fenômeno
que se pretende especular.
A metáfora, aqui, talvez tenha sido imprópria no sentido de que no caso da escritura
crítica que se emprende neste trabalho de tese, o sentido do trabalho permanece numa
dinâmica metonímica, como diria Blanchot, reenviando o significante a uma incessância
inesgotável de referencialização não se travestindo simplesmente num transporte do
significante com vias a uma alternância retórica ou léxica. A crítica deve, portanto,
impulsionar incessantemente o significante de seu referente, ou seja, o objeto dinâmico de
sua crítica dado a partir da forma e expressões literárias, a um limite especulativo que o
force a não ser domado, forçando-se a si mesma a compreender um movimento ético e
estético a um só tempo. Estético, pois deverá se revestir de uma força de atração em relação
ao objeto literário que procura ler e ético, pois deve, nesse embate, promover-se enquanto
força de circunscrição centrífuga, dinamizando seu poder especulativo como potência
desdobradora do regime de forças inerente à transgressividade da própria escritura literária.
As notas então, desenvolvem-se numa relação ambígua com o texto “primeiro”. Pois
elas não existem jamais independentemente ao regime “superior” de escritura e, no entanto,
desdobram-se com relativa autonomia, chegando a constituir um regime de forças interno e
concatenado, constituinte de seu próprio arranjo estrutural, simulando-se desde então, como
texto disseminado no interior da temática geral da tese.
Essa intrusão especulativa, tornada imperceptível como diferença em seu sentido
hierárquico, opera também como regime de comentário, passando a potencializar
metonimicamente o corpo do texto ao reenviar e dobrar sobre o próprio texto um outro
programa de inferências e sobredeterminações. Finalmente, um regime especulativo e crítico
“primeiro” se desdobra e redobra no regime especulativo “segundo”, produzindo essa
espécie de reflexão disseminante operada na emergência de um “terceiro” e multiplicador
regime especulativo, dado no porvir contingente de sua leitura.
12
Não, ouça! ouça! não existia o começo da morte
dentro de si! E como atravessasse o próprio corpo
violentamente, em busca, sentiu levantar-se de seu
interior uma aragem de saúde, todo ele abrindo-se para
respirar...
Não podia pois morrer, pensou então lentamente. Aos
poucos o pensamento frágil tomou uma longa
inspiração, cresceu, tornou-se compacto e inteiriço
como um bloco que se ajustasse dentro de seus
contornos. Não havia espaço para outra presença, para
a dúvida. O coração batendo com força, ouviu-se
atenta. (...) Pois seu corpo nunca precisara de ninguém,
era livre. Pois se ela andava pelas ruas. Bebia água,
abolira Deus, o mundo, tudo. Não morreria. Tão fácil.
Estendeu as mãos sem saber o que fazer delas depois
que sabia. Talvez alisar-se, beijar-se, cheia de
curiosidade e de gratidão reconhecer-se. Já sem se
prender a raciocínios, pareceu-lhe tão ilógico morrer,
que se deteve agora estupefata, cheia de terror. Eterna?
Violenta ... (...)
(...)
Um pássaro lá fora voou obliquamente!
Atravessou o ar puro e desapareceu na densidade de
uma árvore.
O silêncio ficou palpitando atrás dele em pequenos
sussurros. Há quanto tempo estivera observando-o,
sem sentir.
Ah, então ela morreria.
Sim, que morreria. Simples como ossaro voara.
Inclinou a cabeça para um lado, suavemente como
uma louca mansa: mas é fácil, tão fácil... nem é
inteligente... é a morte que virá, que virá... [Clarice
Lispector. Perto do Coração Selvagem. p.146-7]
Mais l’horreur est qu’en lui s’ouvre la conscience
qu’aucun sentiment n’est possible, comme du reste
nulle pensée et nulle conscience. Et l’horreur pire est
qu’en l’appréhendant, loin de le dissiper comme un
fantôme qu’on touche, je l’accrois au-delà de toute
mesure. Je l’epreuve comme ne l’éprouvant pas et
comme n’eprouvant rien, n’étant rien, et cette
absurdité est sa monstrueuse substance. Quelque chose
de totalement absurde me sert de raison. Je me sens
mort – non ; je me sens, vivant, infiniment plus mort
que mort. Je decouvre mon être dans l’abîme
vertigineux où il n’est pas, absence où il se loge ainsi
qu’un dieu. Je ne suis pas et je dure ; (...)
[Maurice Blanchot. Thomas l’Obscur. Nouvelle
Version. Pp 122-3.]
13
INTRODUÇÃO
Como se explicará nas páginas que se seguem, o objetivo principal deste trabalho de
tese é o de pensar a questão da experiência de escritura literária de um modo em que se
possa traçar uma cartografia conceptual no que tange à singularidade literária dos textos dos
autores citados focando a análise na especificidade de dois textos, a saber, A Paixão segundo
G.H de Clarice Lispector e Thomas L’obscur de Maurice Blanchot. Essa especificidade não
deverá impedir, no entanto, que a crítica se desdobre na intertextualidade com outros textos
e na crítica comparada que se pretende realizar a partir desse encontro.
Em seguida - e diria que aí se configura o desafio maior do trabalho comparado entre
Clarice Lispector e Maurice Blanchot - nos lançamos a uma certa aventura crítica mediada
pelas diferenças possíveis de serem traçadas entre algumas linhas de força que essas
literaturas criam em termos conceituais e estéticos.
Em poucas palavras, diria que a “aventura” crítica que nos propomos na segunda
parte do trabalho de tese, está diagramada na forma de uma linha de força principal que virá
a se desdobrar em alguns outros segmentos derivados ou disseminados, digamos assim, no
processo da própria experiência de crítica e que nomearemos de movimento de teatralidade
maquínica em A paixão segundo G.H e Thomas L’obscur.
Nesse sentido, a noção de teatralidade funcionando como modo performativo e
operativo da imagem e da cena no texto literário de Blanchot e de Lispector encontra seu
ponto de partida teórico no ensaio de Christophe Bident sobre a questão da teatralidade em
Roland Barthes. Esse ensaio nos permitiu realizar uma série de indagações, leituras e
reflexões teóricas para a exploração dos saberes envolvidos, até por vezes de modo
heterogêneo, porém pertinente, no tema da nossa tese em vários pensadores
contemporâneos.
Contudo, essa noção que chamamos de teatralidade maquínica surgiu da intuição de
que a escritura literária em Blanchot e em Clarice opera uma relação específica da
linguagem e da escritura em particular com temas filosóficos que situaríamos aqui como
estético-ontológicos. De qualquer modo, essa intuição de um movimento de “teatralidade”
14
na literatura dos autores citados procurou operar a partir da crítica que se estabelece no texto
de Bident como o movimento singular que percebe uma indeterminação constitutiva na
economia do sentido estético. O detalhe “minimalista” que Bident observa em Barthes e que
se elabora como uma tensão entre significante e significado em direção a uma teoria
“signalética” do sentido estético é da mesma ordem, mas operaria, de certo modo, como
uma espécie de semiologia fenomenológica, enquanto que em Blanchot leríamos uma
preocupação pós-fenomenológica a partir de traços teóricos que implicariam numa
verdadeira sur-époché do sentido do literário e finalmente nos levariam a observar em
Clarice certa tematização ontológica e existencial de cunho heideggeriano, mas que se
aproximaria de algum modo do gesto crítico de Maurice Blanchot. Seria necessário pensar
como demarcar uma pesquisa sobre a relação do corpo como autêntico espaço de criação,
instituição e desenvolvimento de um corpus literário no sentido da produção de uma
textualidade específica do movimento literário de um autor.
Exatamente, onde poderíamos inferir que a teatralidade de uma escritura se organiza
em uma série de escolhas ou de modos próprios a um autor? Trataria-se de uma economia
estilística, como procuramos pensar na parte teórica da tese? Nesse sentido, se procurou
pensar algumas linhas de força possivelmente identificáveis numa intenção, como dissemos,
filosófica ou estético-ontológica, talvez antes, “crítico-dramática”? Como esses dois modos
ou estilos ficcionais elaborariam certos ritmos próprios de descrição das cenas, de
questionamento do sentido, de produção dramática das imagens em sua relação de desvio do
propriamente filosófico? Onde estaria a especificidade ou singularidade do gesto literário
como regime de pensamento? Diríamos que percebemos esse movimento gestual ou essa
construção de um espaço literário a partir de uma dramaticidade suspensiva, inercialmente
ambígua, vagarosa ou veloz, inconclusiva, em uma palavra, paradoxal
1
.
A respeito da noção plástica, dramática ou teatral de gesto, perguntamo-nos até que
ponto esse “paradigma” ou talvez “alegoria” conceitual do gesto não carrega em sua
constituição, ou antes, em sua instituição, toda uma “ambiência” epistêmica específica que
se situaria na confluência, ao menos das teorias críticas francesas, entre um pensamento
(perdão pelos neologismos forçados) semio-neo-fenomenológico de Barthes,
déconstructeur-economimetique derridiano e imanent-energetique de Deleuze? Que
1
Cf. BIDENT, C. Le geste théâtral de Roland Barthes. Texto inédito.
15
potência de imagem conceitual pode fazer operar ou “maquinar” conceitos como o de corpo,
de gesto e de teatralidade? Qual uma imagem pré-predicativa ou uma imagem situacional de
uma economia signalética, o gesto teatral como conceito, não faria o papel de aglutinador do
movimento gestual crítico, literário e filosófico à la fois de Barthes, Derrida e Deleuze? E
ainda, Nancy não seria de algum modo um encenador de uma certa teatralidade que
dramatizaria esse vórtice epistemológico francês?
A partir desses diagramas, que lugar ambíguo ou disseminante teria Blanchot nessa
economia “tripartite”? Que tipo de economia ou de traço se “borra” ou se “arrasta” nessa
signalética do gesto (pois, justamente, o gesto parece informar sobre uma
produção/destruição de sentido que depende e não depende, ao mesmo tempo, de sua
referência). A escritura marca uma “ponta” ou um pólo na economia signalética do gesto, ou
o gesto simplesmente é a forma plenamente paradoxal do sentido como disseminação, como
memória volátil desse binômio produtor de resto e de restância que é o
significante/significado? Enfim, se existe, qual seria a função “extra” dicotômica do gesto
numa economia binomial do signo? O gesto parece elaborar, em sua imagem, a perda
irredutível do sentido nessa espécie de economia plástica dramática, seja o gesto
eventualizado na cena, seja o gesto produtor da cena, tendo aí, nessa bifurcação, a
necessidade de se traçarem modos diferenciados de descrição dessas economias ou desses
regimes textuais ou discursivos em se tratando de literatura. Enfim, daquela perda reteremos
que ela é também sempre um resto, uma restância do sentido que se daria como um certo
“inapreensível” da imaginação sobre o texto.
Finalmente, como pensar o gesto (de escritura, da escritura, de desejo, de angústia), o
corpo (que escreve, que lê), o corpus (filosófico, literário, híbrido) e a teatralidade (da cena
literária) numa economia crítica comparada, se não como a criação mesma de outra ficção,
nesse momento pensada como ficção crítica no sentido de sua carga de escolha e de jogo, ou
mesmo de “performance”, que possa unir a partir de seu movimento fragmentário (teatral,
dramático, retórico) essas duas literaturas (esses dois textos) que partilham, segundo nosso
entendimento, no mínimo, preocupações estéticas e ontológicas comuns.
Christophe Bident lê um gesto teatral a partir de todo um corpus que seria o das
obras completas de Roland Barthes. Não seria necessário em nosso caso fazer também esse
movimento mais “amplo”, para além dos dois textos que nos propomos trabalhar? Mas não
16
poderíamos pensar a partir do fragmentário, ou seja, a partir da densidade e da riqueza dos
textos abordados, pensar a partir desse fragmentário, a eleição de dois textos que se
dispositivariam no movimento específico da crítica que aí emerge? Trata-se de “entrar” na
obra de Maurice Blanchot e de Clarice Lispector a partir de Thomas L’obscur e A paixão
segundo G.H. para, a partir daí, produzir, ao modo de uma teatralidade, os saltos entre os
palcos ficcionais possíveis ou produzíveis que encontraremos em outros textos desses
autores. Como afirmam Deleuze e Guattari em O que é a filosofia, Mil platôs ou em Kafka,
se trata de, efetivamente, entrar numa obra e percebê-la como máquina de guerra, captura
de forças ou como rhizome enfim, esse tecido multi-dimensionalizado, forjado de afectos,
perceptos, conceptos e linhas de força, composto e atravessado por mil capturas de força,
que se dão gesto, que se realizam virtualmente num processo de devires, processo de
antecipação paradoxal do próprio porvir. Seria preciso estar pelo menos de acordo com as
linhas gerais da problemática da reflexão incomparável de Diferença e Repetição de
Deleuze, para nos situarmos no que apontamos como noção de teatralidade maquínica na
literatura, da noção de uma experiência limite literária, de uma crítica literária enquanto
épreuve crítica e do arcabouço teórico que acompanha o uso do termo (re)presentação já a
partir do que se estabelece como crítica geral da representação ou como crítica da
representação em geral na obra capital do filosofo francês. Nesse sentido, nos remetemos à
parte introdutória intitulada “O verdadeiro movimento: o teatro e a representação” onde uma
linha crítica geral e de certo modo alegórica é encadeada no sentido de uma crítica à forma
especulativa hegeliana posta a prova por Kierkegaard e por Nietzsche. Tratar-se-ia de pensar
numa estratégia especulativa de “encenador” que esses dois pensadores teriam levado a cabo
enquanto movimento teatral a partir de uma noção de repetição não como a encarava Hegel,
como mediação ou movimento lógico abstrato em direção a uma transcendência teleológica
pura e absoluta, mas sim como verdadeiro alcance ao espírito por meio de uma passagem da
metafísica a uma certa estratégia imanente do movimento. A esse respeito, citamos Deleuze:
Não lhes basta, pois, propor uma nova representação do movimento, a representação
já é mediação.
Ao contrário, trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz de
comover o espírito fora de toda representação; trata-se de fazer do próprio movimento
uma obra, sem interposição; de substituir representações mediadas por símbolos
diretos; de inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou saltos que
atinjam diretamente o espírito. [...] Eles inventam na filosofia um incrível equivalente
do teatro, fundando, desta maneira, esse teatro do futuro, e, ao mesmo tempo, uma
nova filosofia. [...] O teatro é o movimento real e extrai o movimento real de todas as
artes que utiliza. Eis o que nos é dito: este movimento, a essência e a interioridade do
17
movimento, é a repetição, não a oposição, não a mediação. Hegel é denunciado como
aquele que propõe um movimento do conceito abstrato em vez do movimento da
Physis e da Psique. Hegel substitui a verdadeira relação do singular e do universal na
Idéia pela relação abstrata do particular com o conceito em geral. Permanece pois, no
elemento refletido da “representação” na simples generalidade. Representa conceitos
em vez de dramatizar Idéias: faz um falso teatro, um falso drama, um falso
movimento. [...] Quando ao contrário se diz que o movimento é a repetição e que é
este nosso verdadeiro teatro [...] Pensa-se no espaço cênico, no vazio deste espaço, na
maneira como ele é preenchido, determinado por signos e máscaras pelos quais o ator
desempenha um papel que desempenha outros papéis; pensa-se como a repetição se
tece de um ponto notável a outro compreendendo em si as diferenças. [...] o teatro da
repetição opõe-se ao teatro da representação, como o movimento opõe-se ao conceito
e à representação que o relaciona ao conceito. No teatro da repetição, experimentamos
forças puras, traçados dinâmicos no espaço que, sem intermediário, agem sobre o
espírito, unindo-o diretamente à natureza e à história; experimentamos uma linguagem
que fala antes das palavras, gestos que se elaboram antes dos corpos organizados,
mascaras antes das faces, espectros e fantasmas antes das personagens – todo o
aparelho da repetição como “potência terrível”.
2
Nossa intenção posta na utilização do conceito de teatralidade maquínica na
literatura parte desse mesmo movimento crítico orientado à percepção de uma dramática
possível na contrução do récit a partir da performação e do trânsito expressivo da voz
narrativa em A paixão segundo G.H e Thomas L’obscur.
Há um texto de Jean-Luc Nancy que “resume” - se isso fosse possível - e congrega
ao mesmo tempo algumas das linhas de força “primordiais” que se processam no gesto
crítico e ficcional de Maurice Blanchot e que aproximaremos da escritura literária em
Clarice. Para poder se compreender melhor, o reproduzimos integralmente:
L’entretien infini, avec ce titre – celui d’un des plus imposants de ses ouvrages - on
pourrait tenter d'emblématiser la pensée de Maurice Blanchot. A dire vrai, moins une
pensée qu’une posture ou un geste: celui d'une confiance. Avant tout, Blanchot fait
confiance à la possibilité de l'entretien. Ce qui s'y entretient (avec un autre, avec soi-
même, avec la propre poursuite de l'entretien), c'est le rapport toujours renouvelé de la
parole avec l'infini du sens qui fait sa vérité.
L'écriture (la littérature) nomme ce rapport. Elle ne transcrit pas un témoignage, elle
n'invente pas une fiction, elle ne délivre pas un message : elle trace le parcours infini
du sens en tant qu'il s'absente. Cet absentement n'est pas négatif, il fait la chance et
l'enjeu du sens même. "Ecrire" signifie approcher sans relâche la limite de la parole,
cette limite que la parole seule désigne et dont la désignation nous illimite (nous, les
parlants).
Blanchot a su reconnaître ainsi l'événement de la modernité : l'évaporation des outre-
mondes et avec eux d'une division assurée entre la "littérature" et l'expérience ou la
vérité. Il rouvre dans l’écriture la tâche de donner une voix à ce qui de soi reste muet.
Donner pareille voix, c’est « veiller sur le sens absent « ». Vigilance attentive,
soucieuse et affectueuse. Elle veut prendre soin de cette réserve d’absence par laquelle
se donne la vérité : l’expérience en nous de l’infini hors de nous.
2
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luis Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal,
2006, pp. 28-32.
18
Cette expérience est possible et nécessaire lorsque se sont refermés les livres sacrés
avec leur herméneutique de l’existence. La littérature – ou l’écriture – commence dans
la fermeture de ces livres. Mais elle ne forme pas une théologie profane. Elle récuse
toute théologie autant que tout athéisme : toute installation d’un Sens. L« absence »
n’est ici qu’un mouvement : un absentement. C’est le constant passage à l’infini de
toute parole. « Le prodigieux absent, absent de moi et de tout, absent aussi pour
moi… » dont parle Thomas l’obscur n’est pas un être ni une instance mais le
glissement continu de moi hors de moi, par lequel vient, pourtant toujours en attente,
le « sentiment pur de son existence »
Cette existence n’est pas la vie comme immédiate affection et perpétuation de soi,
sans en être la mort. Mais le « mourir » dont Blanchot parle – et qui ne se confond en
rien avec la cessation de vivre, qui est au contraire le vivre ou ce « sur-vivre » nommé
par Derrida au plus près de Blanchot – forme le mouvement de l’incessante approche
de l’absentement comme sens véritable, annulant en lui toute trace de nihilisme.
Tel est le mouvement qui peut en s’écrivant « donner à rien, sous sa forme de rien, la
forme de quelque chose ».
3
De início, nos atemos à afirmação de Nancy sobre um modus operandi do
pensamento de Blanchot. Questão fundamental, veremos, pois se trata aí do mote que nos
guiará até a possibilidade de uma espécie de “performação” crítica (que chamamos de
épreuve
4
critique) na segunda parte da tese. Esse modus operandi blanchotiano seria da
3
Texte d’homnenage sur le centenaire de naissance de Maurice Blanchot écrit par Jean Luc-Nancy et accesé
sur le site http://www.culture.fr/sections/themes/livres_et_litterature/articles/maurice-blanchot le 22 novembre
2007 le 22/11/2007. Texte publié sous l'autorité scientifique du Haut comité des Célébrations nationales, placé
sous la présidence de Jean Leclant, secrétaire perpétuel de l'Académie des inscriptions et belles-lettres.
Renseignements auprès de la direction des Archives de France : 01 40 27 62 01.
4
Entendemos épreuve como a possibilidade de nomear e fazer diferir um conceito complexo de experiência.
Gostaríamos de fazer jogar neste momento uma idéia de potência teórica ou de “filiação” teórica que
percebemos ocorrer na obra crítica de Blanchot e que tem a ver com uma leitura muito particular da filosofia
de Heidegger e de uma certa postura crítica em relação à phénomenologie. Bataille faz uma crítica literária
muito heterogênea em sua expressividade, do mesmo modo como Blanchot que elabora a partir do “ensaio”
uma possibilidade singular do pensamento, extrapolando linhas metodológicas ou escolas de pensamento e
operando a partir do fragmento, da intertextualidade e da matéria absolutamente heterogênea dada pelos dados
da cultura literária, filosófica e histórica. A experiência, em certo sentido, abriría-se a uma semiologia do texto
e da textualidade, no sentido de Barthes, mas é com Bataille e Blanchot, desdobrada particularmente na forma
ou a partir do gênero ensaístico, forma expressiva que contando com uma dinamicidade fragmentaria,
aforística, no sentido nietzscheano, pode alcançar, de certo modo, essa dimensão que chamamos de épreuve
crítica e que é da ordem de uma experiência semiológica no sentido da busca de uma descrição afetiva ou
pathologica do texto literário em geral, aí onde a fenomenologia como método de conhecimento objetivo foi
experimentada em seu limite reducionista, assim como Barthes aponta um uso nuançado ou transgredido da
fenomenologia em La Chambre Claire (Barthes, R. Ouevres completes, V, p. 804.). Essa sur-époché à que
Barthes se refere no fragmento 8 de seu último livro, é talvez filiada ao mesmo uso teórico que faz Blanchot a
partir da noção de Neutro. Veremos que em Clarice Lispector será necessário pensar sobre a questão da
experiência interior ou, por outra variante conceitual, pensar na questão da experiência-limite tanto por Bataille
como por Blanchot, particularmente e respectivamente, em L’experience interieur (Bataille, G., 1943 e 1954) e
na parte II de L’entretien infini (Blanchot, M. 1968, p. 117, intitulado justamente “L’experience limite”).
Tal épreuve critique advirá, nesses termos, de uma leitura crítica sobre determinado gesto crítico que utiliza
uma expressividade ensaística e certa transgressão - mesmo que num sentido muito específico e paradoxal, de
uma certa leitura fenomenológica e que remetemos ao neologismo de “sur-époché” - em relação a um marco
filosófico constituído a grosso modo tanto em Bataille quanto em Blanchot, do pensamento ou do gesto crítico
nietzscheano, de uma crítica literária heterogênea e erudita, de uma crítica à fenomenologia de Husserl e,
19
ordem de uma postura crítica ou de um gesto crítico. Tal gesto seria aquele da confiança no
entre-ter-se da conversação. Gesto que apresenta um trabalho ou um movimento metonímico
incessante de diferenciação sígnica. Com Deleuze, esse movimento crítico seria da ordem de
um processo nomeado “signalética”. Trabalho ou jogo infinito do sentido enquanto relação
entre o signo e sua “idéia”
5
. Daquilo que se “versa” em comunhão, em co-presença com o
outro. Porém, deveríamos ter em mente que o termo em português de conversa como
entretenimento banal não teria apenas o sentido gasto da busca de distração superficial.
finalmente, de uma crítica à ontologia hermenêutica de Heidegger, ou talvez, diríamos, de uma radicalização
ou de um uso para além da própria épreuve crítica de Heidegger.
5
Cf. o apêndice “Platão e o simulacro” de Gilles Deleuze em Lógica do sentido, onde há toda uma elaboração
crítica do que seria o tema nietzschiano da “revero do platonismo”. Tema complexo, Deleuze, faz uma
economia crítica dos conceitos de Idéia, cópia e simulacro, potencializando o conceito de simulacro e
aproximando-o do próprio conceito de escritura, quando se refere a J. Derrida no livro La pharmacie de
Platon. De fato cópia e simulacro em relação à Idéia, engajam uma luta pelo “direito” de tornarem-se sinais
mais “fortes” ou “preponderantes” em relação a essa “origem” que imporia uma “unidade” da idéia. Uma
“signalética” seria uma economia crítica do jogo de intenções e de estratégias no que concerne ao
estabelecimento de uma organização dialética baseada na teoria platônica da Idéia e do “método de divisão”
platônico. O simulacro conteria uma potência de diferenciação maquínica, corrompendo o próprio estatuto
hierárquico baseado numa estrutura tríade de uma essência da Idéia, de uma degradação em segundo grau da
cópia e uma outra degradação ou despotencialização em terceiro grau do simulacro. Diferentemente, o
simulacro na economia crítica de Deleuze, teria a potência própria de uma “expressão” signalética, ou seja,
potência de discernimento da própria constituição do sentido enquanto jogo de diferenciação irredutível, para
Derrida trabalho do conceito de différance. Uma signalética seria uma “teoria” para além de uma filosofia do
Signo como representação funcional entre Significante e Significado, para além de uma transcendência do
signo e de sua idéia. Uma signalética, ao desconstruir a estratégia hierárquica de Idéia, cópia e simulacro como
hierarquia degradativa, percebe que o grau mais “baixo” ou mais degradado atribuído ao simulacro é
justamente o espaço conceitual que reúne o movimento de relatividade absoluta onde não há mais identidade a
si, onde a própria idéia de origem essencial da Idéia é trazida ao meio termo imanente ocupado pela idéia de
simulacro enquanto signalética do signo em relação ao sentido da idéia enquanto imagem. Enfim, no
platonismo, como na dialética em geral (como relação de oposição entre o idêntico e o outro), haveria uma
relação monocêntrica e convergente, critério de escolha extra-séries, transcendência de um sentido que
organizaria a própria relação hierárquica entre a imanência mais baixa e degradada do simulacro (Arte) e a
transcendência mais alta e pura da essência da Idéia (Uno), passando pelo trabalho da cópia como modelo
“ideal” (Filosofia) de acesso à origem e à verdade da Idéia. Deleuze, ao pensar sobre uma inversão do
Platonismo, remete a sua própria filosofia que percebe uma potência infinita do diferir-se de si próprio do
simulacro, potência filosófica excêntrica e divergente, filosofia de séries divergentes, da multiplicidade
paradoxal do sentido, porém esse sentido passível de ser experienciado ou pensado por uma signalética das
forças de constituição do próprio sentido. Citamos Deleuze, quando comenta a respeito da arte moderna (o
Joyce de Finnegans Wake) estar elaborando esta relação de potencialização do simulacro: “Tais sistemas,
constituídos pela colocação em comunicação de elementos dispares ou de séries heterogêneas, são bastante
ordinários em um sentido. São sistemas sinal-signo. O sinal é uma estrutura em que se repartem diferenças de
potencial e que assegura a comunicação dos díspares. O signo é o que fulgura entre os dois níveis da orla, entre
as duas séries comunicantes. Parece realmente que todos os fenômenos respondem a estas condições na
medida em que encontram sua razão em uma dissimetria, em uma diferença, uma desigualdade constitutivas:
todos os sistemas físicos são sinais, todas as qualidades são signos”. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São
Paulo, Perspectiva. 2003, p. 266. Não podemos deixar de pensar no trabalho que uma signalética poderia fazer
ressoar entre os textos de Clarice Lispector e Maurice Blanchot. Seria a teatralidade maquínica possível como
relação de convergência exterior aos textos dada numa critica comparada?
20
Contudo, certamente ao lermos os textos de Maurice Blanchot e de pensadores como
Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Jean-Luc Nancy poderemos lembrar que
há sim uma relação com uma espécie de distração fundamental e que adviria da
compreensão aguda dos temas que de algum modo propõem uma desconstrução, ou uma
certa “ultra-crítica”, filiada e desdobrada a partir de Heidegger, dos temas da filosofia, da
arte e da crítica da linguagem enquanto crítica geral da representação.
Essa distração, como base disseminante do sentido a partir do trabalho da linguagem
literária, será relacionada por Jean-Luc Nancy como um movimento ou uma experiência
singular da escritura em Blanchot e que se dirige a uma operação crítica, a certo gesto ou
postura crítica.
[...] celui d'une confiance. Avant tout, Blanchot fait confiance à la possibilité de
l'entretien. Ce qui s'y entretient (avec un autre, avec soi-même, avec la propre
poursuite de l'entretien), c'est le rapport toujours renouvelé de la parole avec l'infini du
sens qui fait sa vérité.
O que se entretém, ou o que se têm (presença de uma doação de sentido), o que
conversa é a própria versação mútua e (co)mutável que para além dos pólos de
discursividade textual de uma fenomenalidade lingüística, se elabora como
transcedentalidade da linguagem enquanto experiência comum, ou seja o espaço de
experiência estética, ou simplesmente o espaço de uma épreuve do pensamento dado a partir
do questionamento ético fundamental que atravessa a filosofia principalmente no que se
refere à problemática da linguagem. O que se passa entre um e outro através da linguagem é
necessariamente relacionado a um conceito de infinitude. Do sentido, da maquinária posta
em obra pela linguagem.
Para além dos sujeitos do discurso e de uma “objetalidade” operacional desse mesmo
discurso, há aí nesse jogo de entretenimento mútuo - seja de alguém com outro, seja de si
mesmo para um outro de si mesmo (escritura e fabulação), ou seja, na própria rede de
sentidos que se estabelecem na trama do próprio texto, um movimento de abertura e de
fechamento da própria potência representativa do sentido (linguagem).
Para além de Heidegger, que muito propriamente pensa o Dasein (ser-o-aí)
6
como
limite do sentido numa presença fática, veremos que Blanchot elabora uma verdadeira
maquínica gestual e crítica que tem como imagem mais potente o “conceito” de neutro e
21
que, como se verá, opera uma relação conceitual e teórica sobre o próprio limite da morte
7
como instauração de uma suspensão ontológica do sentido do ser-para-a-morte
heideggeriano. Diria que esse movimento é o movimento de uma espécie de sur-époché
fenomenológica.
Se a morte estabelece um limite para o qual o Dasein se factualiza e se historiciza
numa presença ôntico-ontológica e como jogo próprio a essa mesma tensão, para Blanchot a
tarefa do pensamento se desconstrói a si própria no momento em que se instaura o jogo de
impossibilidade sempre possível do advento da morte enquanto limiar e não como limite.
Pois o limite estabelece ainda um nexo lógico de superação e de transgressão
8
possível,
enquanto que a noção de limiar suspende toda lógica de finalidade e de cumprimento do
sentido. O movimento ou o gesto crítico, nesse sentido, a partir da noção de neutro, toma a
experiência da literatura como o campo de prova (épreuve) onde a própria potência de
representatividade do sentido é suspensa em favor do movimento do gesto crítico
desconstrutor de um sentido restrito e binomial de significante/significado.
L'écriture (la littérature) nomme ce rapport. Elle ne transcrit pas un témoignage, elle
n'invente pas une fiction, elle ne délivre pas un message: elle trace le parcours infini
du sens en tant qu'il s'absente. Cet absentement n'est pas négatif, il fait la chance et
l'enjeu du sens même. "Ecrire" signifie approcher sans relâche la limite de la parole,
cette limite que la parole seule désigne et dont la désignation nous illimite (nous, les
parlants).
9
6
Ser-o-aí é a sugestão de Heidegger para Jean Beaufret a respeito da (im)possibilidade de tradução de Dasein.
G. Agamben o utiliza também em A linguagem e a morte, 2006. P.13
7
Veremos, a partir do texto de Christophe Bident sobre o gesto teatral em Roland Barthes, que a questão da
morte como limite ou, melhor, como limiar, pode ser pensada como outra via, operada sob outra base crítica,
da análise da significação irredutível da morte para Barthes quando este analisa a questão do rosto e da
expressividade nos teatros oriental e ocidental: “Sortant du théâtre, au moins du théâtre
(2)
, Barthes prend alors
le lecteur à témoin. Voici deux photographies, celles du général Nogi et de sa femme, à la veille de leur suicide
(un suicide rituel : leur empereur vient de mourir). Peut-être leur visage est-il « impassible », peut-être
aussi « bête, paysan, digne ». Aucun sens ne saurait s’imposer à un signe qui ne connaît plus d’autre
conjonction qu’à la mort. Le texte se termine sur ces postulats métaphysiques : « la Mort » (Barthes met une
majuscule) « est le sens », la Mort n’a pas de sens, la Mort comme sens n’a pas de sens, la Mort est le
signifiant transcendantal du sens qui n’a pas de sens, le signifiant ultime, le signifiant sans signifié, le dernier
des signifiants. Ainsi, à nouveau, comme pour l’acteur, « le visage congédie tout signifié » et donc toute
prédication possible. La vacance de la signification advient « par exemption du sens de la Mort, de la Mort
comme sens ».Cf BIDENT, C. Le geste théatrale de Rolanda Barthes. Inedit, p. 23.
8
Cf. o texto de Foucault sobre Bataille onde há todo um desenvolvimento crítico sobre a questão do limite e da
transgressão do limite enquanto (im)possibilidade. In : FOUCAULT, M. Dits et écrits, I. Paris, Gallimard,
2001, p. 261.
9
Texte d’homnenage sur le centenaire de naissance de Maurice Blanchot écrit par Jean Luc-Nancy et accesé
sur le site http://www.culture.fr/sections/themes/livres_et_litterature/articles/maurice-blanchot le 22 novembre
2007 le 22/11/2007.
22
Parágrafo denso em sua carga semântico filosófica, o que nele Nancy afirma é o fato
do próprio movimento da escritura conter uma espécie de potencialidade neutra que é a
inscrição do sentido se dar como apresentação ou atribuição de uma sobredeterminação
constitutiva e paradoxal entre o significante e o significado em favor de um movimento
próprio do sentido, ou seja, a ausência como constituição paradoxal do mesmo. O ato de
escritura se esparrama para além do instante da própria escrita. Esse se esparramar ou esse
se deslizar da escritura se dá justamente como relação limiar entre forças discursivas ativas e
passivas a um só tempo. A conversa, ou o entre-ter-se do discurso recebe e doa sentido em
sua própria presença. Diria que esse movimento da escritura não será jamais um movimento
que se dá numa presença a si, como nos informaria uma fenomenologia da linguagem, mas
sim um movimento para-fora-de-si, visto que a propriedade mais própria desse movimento é
o de que a cada investida de seu sentido último, mesmo que hipotético, ele gera na verdade
uma aproximação ao ilimitado de sua finalidade, pois a morte enquanto dimensão pensável
permanece sempre como uma (im)propriedade por excelência, ou seja, o marco de um limite
jamais alcançável pela instância da consciência e do discurso filosófico.
A literatura, nesse sentido, é o próprio campo de prova dessa qualidade sem
finalidade mesmo que, aparentemente, seu sentido possa ser a própria morte como limite. A
literatura se daria então como movimento do sentido em direção ao limiar de sua própria
finalidade que a partir de uma conceitualidade, ou melhor, de uma gestualidade crítica
blanchotiana, poderíamos dizer neutra.
Nancy utiliza com muita propriedade o termo “limite” como esse traço que se
desloca sempre para além de seu próprio limite. Mas ele insiste que esse limite que é
constantemente perseguido pela escritura é o que na mesma medida “ilimita” o aproximar-se
que se dá numa linguagem comum. Há aí, nesse movimento, uma dimensão comum, a
dimensão de um “nós”, os falantes, ou os que versam entre si sem concretamente poderem
estabelecer laços de sentido que não os de um sentido que jamais se finaliza, que não se
identifica a nenhum limite alcançável.
Pois na designação que é a tarefa mesma da linguagem haveria já o desvio do que se
pretende representar, diríamos, “signalar”. Desvio do que é numa presença o que nessa
mesma presença já é outra coisa, o que nesse espaço, ou melhor, nesse espaçamento ínfimo
23
entre a coisa dita e a coisa referenciada, já tem outra materialidade e representará sempre o
traço de uma perda, a marca invisível de uma substituição.
Produção do simulacro, portanto, e que dá à presença da coisa uma outra presença
sobreposta como duplicidade inerente da atribuição. Esse é o movimento que, ao aproximar
o sentido, torce a própria apropriação e aproximação da coisa ao seu simulacro exemplar,
sempre o mesmo da referência e outro de sua atribuição. Mas já não há nesse movimento
origem ou primeiro termo, mas referência sempre já imediatizada da relação.
Nancy continua:
L'écriture (la littérature) nomme ce rapport. Elle ne transcrit pas un témoignage, elle
n'invente pas une fiction, elle ne délivre pas un message : elle trace le parcours infini
du sens en tant qu'il s'absente.(…)
Blanchot a su reconnaître ainsi l'événement de la modernité : l'évaporation des outre-
mondes et avec eux d'une division assurée entre la "littérature" et l'expérience ou la
vérité. Il rouvre dans l’écriture la tâche de donner une voix à ce qui de soi reste muet.
Donner pareille voix, c’est « veiller sur le sens absent « ». Vigilance attentive,
soucieuse et affectueuse. Elle veut prendre soin de cette réserve d’absence par laquelle
se donne la vérité : l’expérience en nous de l’infini hors de nous.
10
O sentido seria, então, movimento de deriva do sentido, desgaste do próprio
movimento, e a literatura pode provar o próprio desgaste do sentido como potência de
atribuição própria, como relação do sentido fora de uma constituição de verdade de uma
finalidade, mesmo e, sobretudo, da morte. A literatura traça o próprio movimento infinito do
sentido e de seu desgaste paradoxalmente produtor e sem fim.
Donner pareille voix, c’est « veiller sur le sens absent ». Vigilance attentive,
soucieuse et affectueuse. Elle veut prendre soin de cette réserve d’absence par laquelle
se donne la vérité: l’expérience en nous de l’infini hors de nous.
Cette expérience est possible et nécessaire lorsque se sont refermés les livres sacrés
avec leur herméneutique de l’existence. La littérature – ou l’écriture – commence dans
la fermeture de ces livres. Mais elle ne forme pas une théologie profane. Elle récuse
toute théologie autant que tout athéisme: toute installation d’un Sens. L’ « absence »
n’est ici qu’un mouvement: un absentement. C’est le constant passage à l’infini de
toute parole. « Le prodigieux absent, absent de moi et de tout, absent aussi pour
moi… » dont parle Thomas l’obscur n’est pas un être ni une instance mais le
glissement continu de moi hors de moi, par lequel vient, pourtant toujours en attente,
le « sentiment pur de son existence ».
11
“Velar sobre o sentido ausente” é a própria imagem do neutro. Esse velar é um
cuidado próprio e atencioso ao próprio movimento da escritura. Pois a escritura como
maquínica que decide jogar com o desgaste do próprio sentido não pretende a não ser fazer
do sentido um jogo e uma performação desse jogo. Se for na ordem do simulacro que o
10
Op. Cit.
24
único sentido de finalidade pode se encadear como finalidade sem fim, é o próprio jogo de
simulação na ordem dos simulacros que criará a possibilidade de um surplus de sentido.
Para além da possibilidade de uma hermenêutica da existência (e veja-se aí o limite
desfigurado de uma hermenêutica da facticidade de Heidegger) a tarefa crítica blanchotiana
se impõe uma jornada sobre o limiar do sentido e de seu desgaste infinito. Sem fundamento
que não seja abissal, o sentido do Ser se desdobra e se invagina no próprio movimento da
linguagem que identifica ser e pensamento como impossibilidade de superação do limite,
mas, ao mesmo tempo, como impossibilidade de permanência no interior dessa linha limite.
Daí a conceitualização do fora.
Numa entrevista, no final de 1978, Foucault evocava que toda sua experiência
crítica, grosso modo, se filiava de algum modo a Nietzsche, Bataille, Klossowiski e
Blanchot. Disse-o quando entrevistado a respeito da singularidade de seu gesto crítico,
digamos assim. Daí a resposta que esclarecerá em muito a linha de força teórica da primeira
parte desta tese e que prepara, no movimento de discernimento epistemológico que
pretendemos expor de início, aquilo que ensaiamos expor como o tensionamento entre o
gesto crítico pós-estruturalista e sua aproximação a uma literatura de uma experiência limite.
L’expérience du phénoménologue est, au fond, une certaine façon de poser un regard
réfléxif sur un objet quelconque du vécu, sur le quotidien dans sa forme transitoire
pour en saisir les significations. Pour Nietzsche, Bataille, Blanchot, au contraire,
l’expérience, c’est essayer de parvenir à un certain point de la vie quoi soit le plus
prés possible de l’invivable. Ce qui est requis est le maximun d’intensité et, en même
temps, d’impossibilité. Le travail phénoménologique, au contraire, consiste à déployer
tout le champ de possibilités liées à l’experience quotidienne.
En autre, la phénoménologie cherche à ressaisir la signification de l’expérience
quotidienne pour retrouver en quoi le sujet que je suis est bien effectivement
fondateur, dans ses fonctions transcendentales, de cette expériences et de ces
significations. En revanche, l’expérience chez Nietzsche, Blanchot, Bataille a pour
fonction d’arracher le sujet à lui-même ou qu’il soit porté à son anéantissement ou à
sa dissolution. C’est une entreprise de dé-subjectivation.
L’idée d’une expérience limite, qui arrache le sujet à lui-même, voilà ce qui a été
important pour moi dans la lecture de Nietzsche, de Bataille, de Blanchot (…).
12
É toda a tensão que trabalha a teoria e a crítica mais intensamente durante toda a
segunda metade do século XX, muitas vezes ou mesmo sempre como movimento de
decifração do trabalho propriamente estético na literatura e nas artes.
11
Idem.
12
Cf. FOUCAULT, M. Dits et écrits, II. Paris, Gallimard, 2001, p. 862.
25
O que Jean-Luc Nancy diz a respeito da possibilidade da obra de Blanchot estar
atrelada ao fim de uma hermenêutica da existência, é o que Foucault encontra como
possibilidade filiativa e de postura crítica, ressalvando que toda filiação sobre-determina
uma série de diferenças e tensões numa configuração teórico-crítica como a de Foucault, ao
ler Nietzsche, Bataille e Blanchot.
Que esses pensadores tenham um caráter heterogêneo em suas preocupações críticas
e filosóficas marca, sobretudo, a própria composição da problemática de uma passagem do
conceito de pensamento filosófico para pensamento, gesto ou postura crítica em nossa
contemporaneidade.
Essa problemática de uma heterogeneidade constitutiva na construção do que se
denomina gesto crítico pós-estruturalista será de algum modo uma linha de força importante
na discussão sobre o sentido de uma experiência limite na literatura e a própria experiência
limite de um sentido da escritura literária. Daí o discernimento de Foucault sobre o caráter
des-subjetivante na experiência limite da literatura.
Com Nietzsche, a filosofia foi abalada em suas formas institucionais e
fundamentalmente em sua base metafísica e logocêntrica. Um autêntico gesto filosófico
inaugurou de forma violenta uma série de golpes na própria constituição genética e
filológica do que se tinha como verdadeira instituição das formas de pensar o conceito de
verdade e seus desdobramentos teleológicos. Esse gesto crítico se dá como a própria forma
em que se desvela uma certa obviedade gramatical e retórica que teria constituído a
identificação plena do pensamento filosófico e da ontologia aristotélica, ou, em outras
palavras, com Heidegger, teria constituído a identificação do pensamento com o Ser,
enquanto ser da linguagem.
Com efeito, o pensamento de Nietzsche se dá ao mesmo tempo como movimento
destrutivo e estético, pois em sua crítica dos fundamentos metafísicos da filosofia instaura,
por assim dizer, uma série de outros movimentos que se engajam formal e semanticamente
como significantes dessa crítica. Vale dizer que o sentido da crítica é tributário das formas
de expressão que aí são colocadas em jogo e é nesse movimento de atrelamento e co-
presença da forma e da expressividade da forma que podemos perceber o sentido mais
próprio de uma postura ou de um gesto crítico.
26
Esse movimento de uma singular expressividade e performação do pensamento
nietzscheano pode ser observado num texto de 1967 de Gilles Deleuze e que comenta,
mesmo que não desdobrando a hipótese, a existência de uma dramaticidade teatral
13
na obra
do filósofo que constantemente atribuía um valor especial ao movimento e à gestualidade
dançarina de Dionísio, entidade que sabemos associada às linhas de força simbólicas do
inconsciente, da dispersão noturna e caótica do sentido e em contraposição a Apolo,
entidade tensionadora de uma organização diurna, artística e formal, de consciência e
atração do sentido.
Arrancar-se a si mesmo de certa posição subjetiva a partir de uma experiência limite
como se pode perceber nos textos de Nietzsche, Bataille e Blanchot, é justamente perceber
que uma tarefa do pensamento filosófico já teria tomado formas específicas de expressão
que no mesmo movimento de sua exposição revelam uma trama e formalização dramáticas,
um certo encadeamento expressivo que inaugura todo um movimento de autêntica
modalização estética. Zaratustra, para além de representar um pensamento filosófico por
mais transgressor que seja, opera uma série de movimentos e de gestualidades próprias ao
pensamento nietzscheano.
Para além das imagens e das simbologias que no Zaratustra se associam ao
encadeamento de seu relato falsamente místico, há de forma tão crônica quanto aguda o
movimento de uma teatralidade onde uma gestualidade específica envolve e configura o tom
tanto dos movimentos corpóreos dos personagens quanto do sentido que daí se elabora toda
a cena e que busca fazer implodir, a partir de uma transvaloração dos procedimentos
filosóficos, certa pedagogia filosófica que se instituía desde sua gênese socrática, uma
dialética entre o mestre e seus discípulos ou entre o senhor e o escravo pela leitura
hegeliana.
E veremos que se trata justamente de ler em Blanchot, como pudemos também ler
com Jean-Luc Nancy, toda uma operatória crítica que, ao reler Hegel e a dialética de seu
13
Trata-se do texto “Conclusiones sobre La voluntad de poder y El eterno retorno”, onde Deleuze comenta a
intrudução por Nietzsche do teatro na filosofia. “(...) puede que Nietzsche fuese en su profundidad un hombre
de teatro. No solamente practicó una filosofía teatral (Dionisio) sino que introdujo el teatro en la propia
filosofía. Y junto con el teatro muchos medios de expresión que transformaron la filosofía. Muchos aforismos
de Nietzsche deben entenderse como principios y valoraciones de escenográfo. Nietzsche concibe su
Zaratustra enteramente para la filosofía, pero también enteramente para la escena”. In: DELEUZE, G. La isla
Desierta y Otros textos. Textos y entrevistas (1953-1974). Valencia, Pre-Textos, 2005. P.155.
27
pensamento, sob a luz de uma espécie de filosofia “dramática” nietzscheana e a destruição
da metafísica proposta por Heidegger, deve se tornar gesto e postura do pensamento.
É nesse sentido que tentamos criar o espaço onde essa cena crítica e teórica poderá
performar-se. Esse espaço será o que Blanchot chamou de Espaço Literário. Mas devemos
acrescentar que esse espaço será dramatizado a partir dos elementos críticos e conceituais
que se forjaram durante toda a metade do século XX e que hoje se alcunha de forma um
tanto geral como pós-estruturalismo.
Um espaço literário dramatizado quer dizer uma postura e um gesto específico sobre
a tarefa crítica. Pois a obra como produto do trabalho da escritura representa um limite de
algum modo intransponível, justamente porque um certo estatuto crítico e filosófico se
engendra atualmente como uma necessidade de retorno a certos momentos, ou melhor,
linhas de força dessa mesma crítica contemporânea.
É o que tentaremos descrever com os conceitos de épreuve em Blanchot que se
entende como filiado à noção de experiência-limite que lemos em Georges Bataille e que
pode ser percebido como fundo teórico em todo o pensamento ou gesto crítico de Foucault.
Ou seja, a partir da noção de experiência-limite poderemos visualizar o que Foucault
chama de experiência pela qual se possa fazer emergir a dinâmica própria de formação do
sentido a partir de uma historicidade específica, qual seja, a do momento pós-estruturalista e
de sua constituição como “gênese” e aplicação ao discurso literário.
Essa épreuve a que aproximamos a própria escritura crítica de Blanchot, será
justamente a possibilidade de jogo entre uma atitude ou gestualidade crítica e o
desdobramento específico a partir do embate com o texto literário. Com efeito, em Blanchot
o que se percebe é a própria encenação formal, expressiva e retórica de uma épreuve, ou
como traduzimos, prova-ção. É aí onde sujeito e objeto do discurso se performam a partir de
uma postura sobre a tarefa do pensamento e a crítica radical sobre a verdade que impôs
Nietzsche, e todos os grandes nomes que dessa destruição inicial do sentido do valor de
verdade se nutriram das mais diferentes formas.
Como fazer crítica a partir da comparação de textos literários? O que é uma crítica
comparada de textos literários?
A partir da noção de gesto crítico, procuraremos a possibilidade de pensar os textos
de Clarice Lispector e de Maurice Blanchot como um pensamento sobre o sentido da
28
literatura enquanto experiência limite do corpo como desdobramento para fora-de-si. Como
teatralidade do corpóreo a partir do espaço próprio do literário, criação dramática, mesmo
que uma certa dramaticidade virtualizada pelo espaço verbalizado da palavra e do texto.
Se há uma gestualidade crítica pode haver também uma gestualidade estética
literária. É no cruzamento dessas duas gestualidades que procuraremos fazer emergir certa
especificidade da produção crítica e literária tanto em Blanchot quanto em Lispector.
Mesmo que em segundo grau, pois se trata de analisar apenas dois textos ficcionais
de Blanchot e de Lispector, procuraremos pensar algumas singularidades no trabalho
ensaístico dos autores. Aí se abre a possibilidade de fazer encenar a partir das próprias cenas
de seus textos ficcionais, uma espécie de intersecção impossível, uma sorte de épreuve, ou
prova-ção, de escritura crítica e ficcional. É a partir dos movimentos dos corpos dos
personagens em cada uma das ficções que se procura fazer uma espécie de dramatização ou
de teatrologia alegórica entre as linhas de força mais subterrâneas ou primordiais dos textos,
a saber, os processos da angústia, de deriva do sentido e de despersonalização de seus
personagens protagonistas.
Daí a associação dessas imagens a certa questão filosófica ou ontológica e mesmo de
certos limites possivelmente atravessados a partir de uma linguagem eminentemente
literária, onde a força de seu embate se dá exclusivamente por sua capacidade “cênica” e
dramática exposta a partir de procedimentos retóricos específicos, possivelmente
relacionáveis enquanto partidários das formas básicas de afecção que citamos acima como
sendo a própria especificidade do momento crítico e estético contemporâneo. A épreuve ou
prova-ção dessa escritura será o tensionamento próprio ao jogo das diferenças e
identificações entre os temas da angústia, da despersonalização e da deriva do sentido seja
do ato dessa escritura, seja da encenação interior ao relato. Até que ponto se estabelecem os
limites entre o gesto da escritura ficcional e a gestualidade própria ao domínio do ficcional?
Em outras palavras, aí onde as cenas se desdobram no interior da ficção e onde elas
se desenharam como gesto estético e filosófico, tão distantes em sua origem, eis que essas
imagens tornam-se como outros feixes reorientados em um jogo mais obscuro e subterrâneo
de forças, as quais serão apenas reorganizadas por uma dupla ou tripla leitura crítica, ainda
que essa leitura não se organizará nunca como possibilidade de síntese, mas sim e ao
contrário, como uma impossibilidade de fechamento e de construção de um sentido único e
29
organizador. Antes apenas, deseja-se que exista nesse processo, que se espera tão crítico
quanto dramático, a irrupção de outras linhas de força, as quais sejam já a constituição de
um inesperado recomeço de toda leitura.
Daí que será necessário pensar numa certa constituição filosófica da imagem, o que
pode ser percebido em Blanchot como uma verdadeira linha de força conceitual que
organizaria, diríamos, todo o seu trabalho ficcional, crítico e filosófico. É o caso específico
dos textos sobre uma condição ontológica, ou antes, ôntico-ontológica da imagem nos
apêndices de O espaço Literário
14
, livro de 1955 e que já demonstra uma teoria do literário e
da crítica como uma forma muito singular e mesmo diferenciada da filosofia de Heidegger.
Ensaiamos descrever alguns movimentos da questão da imagem como estando
absolutamente atrelada à questão de uma teatralidade nas duas literaturas.
Muito se escreveu e se escreve sobre Clarice no Brasil e mesmo no exterior.
Inclusive costuma-se chamá-la apenas por seu primeiro nome, como se sua literatura apesar
de abismal, poética e filosoficamente complexa, nos remete-se a algo de muito simples e
cotidiano, o que permitiria pensar essa escritora como alguém já nossa conhecida e
cotidianamente familiar. Na verdade, a complexidade de sua escritura advém do caráter e da
força de seus temas, muitas vezes banais e, ao mesmo tempo, estranhamente perturbadores,
por isso mesmo fazendo parte do que para Heidegger é a própria dimensão de
Quottidianité
15
. É bem essa relação de um sujeito narrador ou personagem que muitas vezes
se desfigura a partir da tensão própria em que ele se descobre temporalizado entre os objetos
do mundo e entre as pessoas de uma comunidade, seja a família, a coletividade urbana e o
murmúrio agônico de sua cotidianidade ou a relação afetiva geralmente atravessada por uma
intuição a respeito do solipsismo que Clarice constantemente tematiza como verdadeira
experiência limite, operando, se poderia afirmar, uma espécie de analítica existencial na
forma de uma poética-narrativa.
A linha de força mais potente e que relacionaria Maurice Blanchot e Clarice
Lispector ou Clarice Lispector a Maurice Blanchot, estaria, na verdade, em três segmentos
que se entremeiam como em espiral dando a ver a teatralidade própria de uma conjunção, de
um estilo, se assim podemos dizer, sem intentar decifrar ou reduzi-los à essência impossível
14
BLANCHOT, M. L’espace litteraire. Paris, Gallimard, 1955, pp. 337-374.
15
Cf. p. 148. Segundo o Diccionaire Heidegger de Jean-Marie Vaysse, « la quottidianité c’est la maniére dont
le Dasein se montre. Elle est le point de départ de l’analique existenciel ».
30
de uma origem. Ou seja, essa linha de força tríplice poderia ser reconhecida dinamizada por:
uma angústia essencial que é a forma de uma solidão essencial que permeia a tarefa da
escritura literária. A questão da deriva do sentido que se elabora como uma preocupação
própria ao questionamento filosófico ontológico dos narradores ou dos personagens ou
mesmo de um narrador-personagem que freqüentemente se desfigura
16
e deriva de forma
quase esquizofrênica, como num jogo de máscaras e de teatralizações de vozes narrativas,
como nos últimos textos e, especificamente, no caso de textos como Um sopro de vida,
Água viva e também de certa forma em A hora da estrela. Finalmente poderíamos juntar a
esses dois segmentos a tematização de uma despersonalização muitas vezes paradoxal que
se dá seja no próprio narrador como voz que relata uma experiência limite de um verdadeiro
ofuscamento do Eu, como no caso exemplar de A paixão segundo G.H.
Seria quase desnecessário remeter ao sentido da experiência do neutro nesse relato
em primeira pessoa e que descreve a estranha tensão que se elabora como paixão e luta do
narrador (de) G.H ao se defrontar com um instante de desfiguração, deriva e
despersonalização de seu “Eu” hipotético. Daí a pensar a crise do estatuto fenomenológico
de uma voz narrativa, é o próprio desafio de se pensar a literatura de Clarice Lispector como
verdadeira experiência-limite literária para além das teses fenomenológicas e mesmo,
diríamos, como performação do discurso literário enquanto desdobramento sui generis da
dimensão filosófica como teatralização de uma condição sempre para além de uma
reflexividade simplesmente literária ou espectral de um Eu narrativo, ficcional.
Pois em Clarice se trataria de uma discussão aprofundada sobre o caráter afectivo e
poético do trabalho da escritura como embate abismal e violento entre a solidão essencial do
escritor em sua preocupação ficcional e as tensões próprias à afectividade e ao
relacionamento com o outro
17
. Nesse ponto observamos a preocupação de Clarice em
16
Cf. o livro de Evelyne Grossman La défiguration: Artaud - Beckett – Michaux. Paris, Minuit, 2004.
17
É nesse gesto de escritura ou a partir da maquínica teatrológica que performa a voz de G.H. onde um Eu-eu-
outro é constantemente convocado a sua singularidade essencial a partir justamente de uma experiência limite
que declina em uma espécie de angústia existencial dada como embate entre o Eu transtornado pela
experiência limite e uma imagem do absoluto como Deus. Essa experiência é operada como uma espécie de
gesto confessional ético-místico, se assim podemos dizer, próximo ao que remeteria a um certo pathos de
gênero neutro, (alegorizado pela imagem mesma do neutro como significação vazia da experiência limite com
o “inseto”), expressado na forma de uma sintaxe de concordância temporal-verbal alterada, artifício de criação
de uma temporalidade paradoxal, quase demencial e intuitivamente funcionalizadora de uma espécie de gesto
retórico pós-fenomenológico. Sujeito e objeto de linguagem aí se mesclam constitutivamente a partir do uso
estratégico de verbos reflexivos. “- Nunca, até então a vida me havia acontecido de dia. Nunca à luz do sol. Só
31
apontar um acesso que em sua literatura se imporia como uma dimensão fundamentalmente
tensionada e ontologicamente prefigurada a partir do embate particular entre estes temas da
afetividade e da temporalidade, os quais adviriam de uma preocupação especialmente
poética sobre a dimensão do humano, descrito como limite entre uma representação do
sagrado e a suspeita de uma impossibilidade descritiva dessa representação. Daí
resumiríamos que uma teatralidade em Clarice faria movimentar como performação o
próprio limite de uma acepção fenomenológica sobre os temas do sagrado, da paixão e da
morte, no sentido da criação de uma potência de alusão poética de temas filosóficos por via
da escritura literária, performando uma literatura “pensante”.
A imagem do neutro em A paixão segundo G.H. potencializa, como em textos de
Blanchot, uma verdadeira estratégia de elaboração ontológica para além de uma
fenomenologia da afecção e do afeto e em direção à performação dramática da cena como
alegoria teatral de um intrincamento das questões existenciais e teológicas que são
performadas como sentido em deriva, despersonalização de uma suposta unidade da
identidade do Eu e angústia como dimensão própria ao trabalho de pré-ocupação que advém
da tarefa da escritura literária enquanto campo de elaboração de uma potência específica da
literatura, a saber, potência passiva ou (in)operante onde o ser da linguagem é, ao mesmo
tempo que tematizado, obscurecido em seu próprio movimento de (des)velamento
18
.
nas minhas noites é que o mundo se revolvia lentamente.” (Lispector, A Paixão segundo G.H. Rio de Janeiro,
Rocco, 1998, p. 77).
Mas o tom ou a gestualidade desse relato “testemunhal” da personagem G.H. é justamente, a nosso ver ver, a
possibilidade de uma espécie de entretien infini elaborado na forma dessa paradoxal comunhão solipsista dada
na forma de um relato ficcional que trata de uma experiência extrema, limite, onde não há simplesmente perda
das bases de uma percepção racional, mas antes, o adentramento a partir da “luz do dia” no espaço do
desconhecido; elemento constituinte e mesmo “anterior” (pré-predicativo, pré-ontológico?) dessa mesma
racionalidade, quando a investigação de uma temporalidade noturna, inconsciente, se mescla no relato, como
numa experiência mística (sem, contudo, se caracterizar exatamente como tal) ao fato existencial da
consciência da perda de si, dada na forma de uma espécie de êxtase da experiência limite entre o medo e a
angústia e finalmente uma estranha jubilação. Mas esse medo ou essa angústia (e seria necessário estabelecer
uma economia entre os termos a partir do § 40 de Ser e Tempo de Heidegger) é vivida como experiência limite
de si, pelo gesto da escritura, constituindo não um impedimento radical catatônico, mas pelo contrário, abrindo
a possibilidade de acesso ao limite vertiginoso de uma existência que se debate no questionamento de sua
própria faticidade, mesmo que no processo da escritura advenham elementos teológicos.
18
É notório o tema do embate de um personagem transtornado, em deriva ou em crise e elucubrações sobre a
questão coletiva ou mesmo uma certa impossibilidade de se continuar a pensar a humanidade como um
universal. Há em Clarice uma problematização que atravessa os limites entre o humano que se pensa a si no
tenso limiar entre sua extrema potência de solidão agnóstica e o caráter sagrado da existência na forma de um
olhar do narrador que muitas vezes faz retroceder a tematização filosófica da narrativa a um espaço
estranhamente primitivo ou mesmo pré-ontologico. Nesse sentido é a quotidianidade do Dasein que de algum
modo é investigada e diluída na poética clariciana a partir de imagens muito particulares de descrição dos
32
Enfim, quando Jean-Luc Nancy fala da possibilidade da escritura de Blanchot se dar
no mesmo momento de fechamento ou de impossibilidade dos textos que se remeteriam a
uma representação hermenêutica da existência, esse assunto concerniria também, com muita
propriedade, aos textos de Clarice Lispector. Uma série de gestos e movimentos dos
personagens claricianos se dá como verdadeira performação ou função alegóricas em
direção a uma teatralidade muito particular, diríamos poética, que tematiza justamente a
visualização ou a constituição de um território neutro e agônico da escritura.
Esse espaço, que Blanchot chama com justeza de literário, separaria o fim de uma era
onde reinara de formas diversas uma metafísica da presença a si - mesmo que esta em seus
últimos dias tenha sido nuançada pela potência própria de uma analítica fenomenológica que
talvez ainda esteja longe de se esgotar - do espaço indeterminado, ambíguo e absolutamente
paradoxal que se abre como dobra e movimento do fora em direção ao qual se tematiza, com
Blanchot, a potência (in)operante e paradoxalmente passiva do neutro como estratégia de
desgaste infinito do sentido, sur-époché.
É o trabalho de uma espera e de uma discrição na escritura literária que opera a
dimensão ética específica do trabalho estético e que compreenderia, como agonia abissal, o
embate do ser como força transtornada e limiar entre um “Eu” desfigurado ou
despersonalizado como existencial - seja a partir de uma leitura do Dasein heideggeriano ou
do “il” blanchotiano como operatória de uma voz narrativa neutra - e o coletivo como
dimensão inabarcável e solipsista do outro enquanto um absolutamente outro tematizado
apenas a partir da linguagem, esta observada e mesmo topologizada de algum modo como
campo de deriva e desgaste do sentido.
A relação com o outro se daria finalmente a partir da escritura literária como
possibilidade impossível de uma economia poética de um jogo de forças afectivas
dramatizado a partir de uma teatralidade imanente e alegórica da cena e das imagens
possibilitadas por uma gestualidade específica que adviria do próprio jogo mais amplo do
sentido entre as cenas no interior dos relatos e os outros movimentos que fazem dos
personagens e dos narradores os atores de um palco virtualizado pelo espaço literário.
objetos e das cenas como uma temporalidade em geral observada paradoxalmente como dimensão fluida e
anacrônica ao mesmo tempo. Esse tema da temporalidade é o que sustenta filosoficamente toda uma economia
teatral e cênica na obra de Clarice Lispector.
33
Christophe Bident, ao analisar a questão da teatralidade em Roland Barthes, vai
desenvolver todo um percurso diria “arqueológico” do gesto crítico semiológico
barthesiano. Dessa forma, Bident vai pensar o gesto crítico de Barthes sobre a teatralidade a
partir de certo embate de perspectivas sobre o teatral ocidental e oriental, e que lhe será
possibilitado em grande medida a partir de noções e conceitos advindos da obra teatral e
crítica de Bertolt Brecht.
A linguagem, em sua dimensão artística, digamos cênica, particularmente no teatro,
vais ser pensada por Barthes nesse sentido, como o espaço mesmo de jogo dos signos que
operariam, para além de uma dialética do significante e do significado, um resto ou um
hiato, digamos assim, onde o sentido opera como teatralidade ou movimento para além de
uma síntese da significação.
É realmente toda uma arqueologia do gesto crítico barthesiano que faz Bident, pois
passo a passo, identifica os movimentos críticos que levam Barthes a pensar paradoxalmente
uma teatralidade sem o teatro, ou em outras palavras, pensar a linguagem teatral para além
do palco ou do movimento próprio de encenação teatral. Como se o teatro operasse uma
força sígnica que trabalharia para além de seu jogo performativo constitutivo, como se o
próprio de uma teatralidade fosse justamente o que se desenvolve como a própria
operacionalidade da linguagem, nos modos de uma exposição, de uma explicação e de um
distanciamento a que o signo como operador semiológico “dinâmico” faz jogar, ou mesmo
faz performar para além da própria mise em scene teatral.
Com efeito, há um fundo neutro e virtualmente possibilitador do jogo sígnico da
teatralidade. Esse fundo sem fundo e espaço virtual da significação é pensado como a
própria dimensão da morte enquanto presença sígnica de uma ausência plena de um sentido
irredutível, ausência espacializada, enquadrada e constitutiva de um suplemento de
linguagem.
Como a imagem cadavérica para Blanchot, Barthes pensa a imagem “fotográfica” da
morte como a própria possibilidade de existência a-significante desse espaço virtual neutro,
diria “último” e “primeiro”, espaço paradoxal de uma significação sem significado. Barthes
pensa aí no espaço a-ginificante que abre a imagem, a própria condição do sentido sem
contudo devolver nenhum sentido que não o da própria ausência espacializada no instante e
a-significada pela imagem.
34
Citamos um fragmento, longo mas importante, do desenvolvimento dessa
“arqueologia” do gesto crítico sobre a teatralidade em Roland Barthes que leva Bident a
chegar a esse ponto constitutivo de um espaço neutro e sem fundo identificado com a morte
e onde se moveria a teatralidade como a própria possibilidade de se pensar o gesto teatral
para além da mise en scene.
La question se résume à une parenthèse et à une mise en italiques. « Réduit aux
signifiants élémentaires de l’écriture (le vide de la page et le creux de ses incises), le
visage congédie tout signifié, c’est-à-dire toute expressivité : cette écriture n’écrit rien
(ou écrit: rien). » Barthes ne commente pas cette variante entre disparition et
chosification; les signifiés de dénotation peuvent bien disparaître, les signifiés de
connotation demeurent et vont de la pratique du satori à l’affirmation nihiliste du
néant. Le choix de l’interprétation détermine aussi les modalités de l’affichage du
code, de la fonction critique du signe et de la matérialité de la substance.(…)
N’écrire rien, disparaître, ce geste conjoint le signe à l’immobilité. Écrire: rien,
substantialiser le néant, cette représentation marque le signe d’une impassibilité.
Sortant du théâtre, au moins du théâtre
(2)
, Barthes prend alors le lecteur à témoin.
Voici deux photographies, celles du général Nogi et de sa femme, à la veille de leur
suicide (un suicide rituel: leur empereur vient de mourir). Peut-être leur visage est-il
« impassible », peut-être aussi « bête, paysan, digne ». Aucun sens ne saurait
s’imposer à un signe qui ne connaît plus d’autre conjonction qu’à la mort. Le texte se
termine sur ces postulats métaphysiques: « la Mort » (Barthes met une majuscule)
« est le sens », la Mort n’a pas de sens, la Mort comme sens n’a pas de sens, la Mort
est le signifiant transcendantal du sens qui n’a pas de sens, le signifiant ultime, le
signifiant sans signifié, le dernier des signifiants. Ainsi, à nouveau, comme pour
l’acteur, « le visage congédie tout signifié » et donc toute prédication possible. La
vacance de la signification advient « par exemption du sens de la Mort, de la Mort
comme sens ».
Il faut alors relire tout le passage. Car l’écart est grand de la théâtralité
photographique à la théâtralité théâtrale, du rituel du suicide au rituel du théâtre, du
visage du mourant au visage de l’acteur, de l’immobilité du cadavre à l’immobilité du
corps, de l’immobilité codifiée à l’impassibilité morale, du rien de l’écriture à
l’écriture du rien, de la Mort majuscule à la mort minuscule. Cet écart ou ces écarts,
Barthes les suggère: il ne les théorise pas. Il les suggère dans une formulation
faussement banale: par une touche et par une prise. Le saut du théâtre à la photo,
glissando à l’intérieur du même paragraphe, a la violence d’une caresse. Barthes vient
d’évoquer l’exténuation du sens, « cette conjonction du signe et de l’impassibilité qui
marque le théâtre asiatique », et il glisse : « Ceci touche à une certaine façon de
prendre la mort ».
Quel statut accorder au déictique ? Quelle figure imaginer sous la touche ? Quelle
valeur accorder à la prise ? Quelle détermination particulière accorder à « certaine » ?
Comment refuser un sens à ce rapport intellectuel et à cet acte imaginaire? Barthes
pense davantage à une modalité historique de l’écriture qu’à une disparition du sens:
l’affichage discret d’un code, l’exposition subtile d’un signe, l’abstraction sensuelle
d’une substance témoignent d’un raffinement intellectuel, d’une pureté gestuelle,
d’une matité ou d’une neutralité matérielle qui n’ont ici d’autre répondant qu’une
forme d’extase. Est-ce la « morale » cherchée par Roland Barthes?
On s’en approche, en effet. Car si l’on a bien vu que le paradigme du théâtre
occidental ne recouvre ici qu’une certaine forme « institutionnelle » ou « hystérique »,
c’est, en deçà de toute opposition binaire, vers le point de fuite de la théâtralité que
Barthes se dirige ici. Les métaphores et les métonymies de la mort, et une certaine
exposition du neutre, saturent le texte. Toujours « ceci », la théâtralité, « touche à une
certaine façon de prendre la mort ». Dans le vocabulaire de Barthes, on pourrait dire
35
que le théâtre hystérique la mobilise et la substantialise, tandis que le théâtre
historique l’immobilise et l’expose. C’est aussi au statut éphémère et absolument
évanescent du théâtre ou du “spectacle vivant” que la réflexion s’adresse. L’envers du
spectacle vivant est sa mort instantanée et l’on comprend pourquoi maintenir un signe
demande de la durée pour lutter contre la successivité disparate d’instants fugitifs. La
mort est le “point mort” du mobile théâtral, le point d’embrayage des rapports et des
vitesses. C’est à l’écarter sans cesse que semploie un signe qui s’expose, s’explique
et se distancie.
Rationnellement, la parenthèse était donc inutile. La théâtralité « n’écrit rien »
qui ne disparaisse aussitôt. Ce mouvement transcende tout déchiffrement possible. La
théâtralité exige une suspension du sens car pour reprendre une autre distinction que
Barthes propose à la même époque, mais à propos du cinéma opposé au roman, elle
suspend « un système du sens à un ordre de l’opérable » (III, 185). La théâtralité n’a
de sens qu’à disparaître dialectiquement dans cette opération extérieure à la
représentation proprement dite : « sans signification, mais appelant la profondeur de
tout sens possible », comme l’écrit Blanchot, que citera Barthes dans La Chambre
claire (V, 873), à partir d’une autre photographie mate, plate, immobile, à partir d’une
autre photographie de mort.
19
A pergunta que deveria se expor, se explicar e se distanciar seria agora a seguinte:
como relacionar o gesto crítico a essa teatralidade que procuramos perceber nos textos de
Clarice Lispector e Maurice Blanchot?
Uma primeira possibilidade é a de um relacionamento constitutivo do gesto da
escritura literária operar uma relação com a angústia no sentido de que esse movimento é
um movimento próximo ao espaço neutro da morte enquanto imagem da fascinação poética.
No entanto, este é o movimento que justamente opera a partir de um distanciamento inerente
à morte, esta identificada como o espaço da própria (im)possibilidade do sentido e da
exposição, explicação e distanciamento dos signos que teatralizariam a própria perplexidade
diante da angústia percebida aqui como linha de fuga da própria morte.
Se a angústia é uma linha de fuga forte em A paixão segundo G.H, mais importante
será perceber de que forma essa tonalidade afetiva se expõe, se explica e se distancia em
relação ao texto de Blanchot, Thomas l’Obscur.
Será a própria fascinação pelo estranho e pelo gesto do estranhamento que advém
desse significante literário em sua distensão ou deriva de sentido que procuramos pôr a
prova a partir da possibilidade de descrição de uma teatralidade desenvolvida em cada um
dos textos por uma economia do gesto dos personagens enquanto significação interna ao
relato e externa à narração.
19
BIDENT, Christophe. Le geste théatrale de Roland Barthes. Inédito, pp. 22 e 23.
36
Como se o narrador desses textos naufragasse num indizível plano de indiferença
entre o relato ficcional e o gesto de sua produção narrativa. O significado do texto literário
não se direciona mais nem à possibilidade de compreensão poética nem a um esclarecimento
filosófico que estaria “escondido” por trás de algum movimento de decifração inerente ao
próprio texto.
Teríamos, nessa perspectiva, a possibilidade de seguir essa textualidade ficcional
como espectadores de um teatro invisível e (in)operante que se daria no mesmo instante em
que o ficcional se pretende força significante, mas, desvanece no lapso (hiato) gerado entre o
narrado e sua narratividade, ou entre o dito e o movimento de seu dizer.
Para Blanchot,
Le théatre est l’art de jouer avec la division en l’introduisant dans l’espace par le
dialogue. La notion de dialogue est tardive. Dans les plus anciennes formes scéniques,
chaque parole parle solitairement, tournée seulement vers les hommes qui se sont
réunis religieusement pour l’entendre; il n’y a pas de communication laterale; c’est au
publique que s’adresse celui qui parle, dans une plenitude que exclut tout réponse,
parole d’en haut, dans un rapport sans réciprocité. Mais dès que la parole se divise
pour aller et venir sur la scène, la relation avec le publique change; la distance
s’approfondi; ceux qui sont là en bas pour entendre, n’entendent plus immédiatement
mais à titre de répondants : par leur attention qui porte et support tout. Le silence est
désormais en tiers, jusqu’aux époques où l’on finit par oublier le silence, l’idéal étant
de dialoguer avec naturel comme dans une conversation de societé. La discontinuité
est alors perdue, au profit d’une continui de surface. (…) Et Brecht ? Brecht, celui
qui a pris conscience de la fascination et veut rompre avec elle en la retournant contre
elle.
20
Até que ponto esse fundo de neutralidade, que se dá no próprio movimento da
fascinação e que está produzido a partir de um esquecimento constitutivo e de uma espécie
de decantação de um gesto ancestral como o da mise en scène grega, não se refuncionaliza
na escritura literária de Blanchot e Clarice, redistribuindo no relato ficcional dessa segunda
metade do século XX (le récit moderne) uma espécie de teatralidade constitutiva a partir de
um trabalho de narração que procura, na forma de um trabalho de descrição de experiências
limite, fragmentar tanto a percepção do Eu como identidade a si, como a compreensão do
próprio relato como verdadeiro espaço de teatralidade literária?
O palco como espaço literário seria, nesse sentido, a própria virtualização da
potência do relato ficcional em se expor como campo de (des)subjetivação, de
experimentação de tonalidades afetivas obscuras, estas, de um modo ou de outro associáveis
20
BIDENT, Christophe. Le geste théatral de Roland Barthes. Inédito.
37
a um plano de discernimento limite da experiência artística e filosófica, enquanto atitude
promovida para além de uma representação cindida entre o real e o imaginário.
Essa atitude de escritura literária é agenciadora de um modo próprio de afecções, e
de (des)estabilizações de forças afetivas, criativas, a partir daí pré-sentidas e elaboradas
como gestualidade própria de escritura e autêntica atitude ética.
Pois afinal se trata justamente do gesto que ao se elaborar a partir da discrição e da
solidão da tarefa artística traz, para a atitude do trabalho literário, a marca desse ritual de
atenção e de silêncio entre o sentido do comunitário e o abismo que daí se origina, a própria
escuta desse indivíduo embebido no fundo da cena teatral.
Christophe Bident “fecha” seu ensaio remetendo-se às varias possibilidades de
análise em relação ao gesto crítico de Barthes e a uma noção de teatralidade que o crítico
francês teria emprestado - não sem ter nesse gesto acrescentado seus próprios movimentos,
suas escolhas epistemológicas, sua criatividade e erudição livresca - de Brecht. Se o fato de
Brecht inscrever, em sua atividade teatral, verdadeiros processos de produção estética da
cena numa complexidade “heteroscópica” contribuiu para o interesse de Barthes, diríamos
que essa complexidade da cena no teatro de Brecht é da ordem de uma dialética complexa e
dinâmica entre a internalidade do texto irônico, funcionando como aquilo que se desvela
autenticamente como artifício de politização dos corpos e a externalidade da matéria cênica
funcionando enquanto espaço imanente e limítrofe de relação estética entre o corpo cênico e
uma espécie de Corpus ou espetacularidade suplementar dos espectadores. Mas o
movimento mesmo dessa dialética dinâmica é suspendido numa relação outra e
intermediária que se dá na própria constituição e na fabricação da cena.
Sabemos do movimento singular da performance teatral, dado na própria ambiência
coletiva e na relação de instauração de um evento produzido pela comunhão de instantes
singulares, vale dizer, a existência de certa polissemia desdobrada em temporalidades
singulares, porém organizadas num mesmo espaço, ainda que múltiplo, ramificado pelos
planos de fundo, ou que se imprimem como abstração entre as linhas da mobília, do palco
ou dos mil planos que advêm da platéia, estes como planos fragmentados em suas
interpenetrações (gestualidade da platéia sobre-determinando a gestualidade dos atores na
cena). Bem, como pensar numa teatralidade que se daria fora do palco físico do teatro, ou
seja, como pensar no movimento próprio da teatralidade, mas operado no interior
38
invaginado (e codificado a seu modo) do espaço literário? Como pensar - se seria possível
pensar em algo assim - numa teatralidade do gesto literário, numa teatralidade do romance,
ou simplesmente do texto ficcional?
Poderia-se pensar numa espécie de desdobramento de palcos internos às cenas do
texto ficcional? E ainda relacionar entre um texto e outro uma comunhão ou interpenetração
dessas cenas, ou seja, do monólogo testemunhal de uma experiência limite em A Paixão...
de Clarice e do texto ficcional alegoricamente filosófico de Blanchot como em Thomas
L’obscur?
Talvez uma chave de leitura esteja na questão do corpo enquanto verdadeiro
“conceito-processo” pensado como personagem conceitual. Vale dizer, pensar uma relação
sensual desses corpos abstratos que são os personagens nos dois textos. Com Barthes, nos
aproximar dessa noção do traço e da escritura como extensão sensual e força de sedução
entre os corpos. Lembrando do fragmento de um texto seu que pensa o corpo enquanto
manifestado a partir do traço e do movimento do traço na arte de Twombly: “Le trait, si
souple, léger ou incertain soit-il, renvoie toujours à une force, à une direction; c’est um
energon, um travail, qui donne à lire la trace de sa pulsion et de sa dépense. Le trait est une
action visible”. Barthes continua descrevendo essa linha conceitual sobre uma certa
energética do traço e do movimento do traço enquanto campo de desdobramento pulsional
do corpo . O traço de Twombly seria inimitável, assim como o é cada corpo. “Le trait de
TW est inimitable (essayer de l’imiter: ce que vous ferez ne será ni de lui ni de vous; ce
será: rien) Or c’est qui est inimitable, finalement, c’est le corps. […] De cette fatalité, em
quoi peut se résumer um certain malheur humain, il n’y a qu’un moyen de se tirer: la
seduction: que mon corps (ou ses substituts sensuels, l’art, l’écriture) séduise, emporte ou
dérange l’autre corps”
21
.
Nesse momento, o texto barthesiano se aproxima do que diz Nancy sobre o corpo em
58 indices sur le corps; quando o filósofo descreve o corpo numa relação imanente
transcendental em relação aos conceitos de esprit e d’âme. Para Nancy, em Corpus, o
“índice” é a categoria semiótica que pode descrever esse processo pulsional e imanente do
corpo. Sua inimitabilidade se dá também por sua inclassificabilidade, pois o corpo se dá
como uma espécie de invaginação ontológica; materialidade processual do próprio devir,
21
Œuvres Completes, V, p. 14.
39
pli” ou espacement. Bem, haveria que se fazer todo o percurso de indagação de tal
complexa descrição do corpo enquanto “unité d’un être hors de soi”, de um corpo que se
pensaria como: “unité d’un venir à soi comme un “se sentir”, un “se toucher” que
necessairement passe par le dehors – se qui fait que je ne peux pas me sentir sans sentir de
l’autre et sans être senti par l’autre
22
.
No fragmento 47 de 58 indices... Nancy descreve o processo inevitável de excreção
do corpo-corpus. Esse processo é descrito também como excreção imaterial, imagética:
L’exteriorité et l’altérité du corps vont jusqu’à l’insupportable: La déjection, l’ordure, l’ignoble déchet
qui fait encore partie de lui (…) Depuis l’excrément jusqu’à excroissance des ongles, des poils, il faut
qu’il mette au dehors et separe de lui le résidu ou l’excès de ses processus d’assimilation, l’excés de
sa propre vie. Cela il ne veut ni le dire, ni le voir, ni le sentir. Il en épreuve de la honte, et toutes sortes
de gênes et d’embarras quotidiens. L’âme s’impose le silence sur toute une partie du corps dont elle
est la propre forme. (p. 53)
A pergunta é: poderíamos extrapolar essa definição de Nancy dizendo que, para além
dessa “formalização” do corpo a partir da cotidianidade silenciosa e muda da alma
(economia dos afetos, “l’affect” em Deleuze), existiria uma possibilidade de se pensar a
escritura como processo de “excreção” pulsional, como a pensa Barthes? Ou seja, se o traço
para Barthes pode descrever uma atividade pulsional do corpo, poderia-se pensar a escritura
literária como transposição complexa dessa atividade silenciosa da alma? Ou ainda como
estratégia de teatralização subjetiva do corpo? Ali onde o corpo do escritor dobrado sobre
um processo de auto-subjetivação produziria a obra como processo específico de
desdobramento ou excreção de um vivido? Construção de uma dramatização de si,
desdobramento de si como fora-de-si, como afirma Nancy? Até que ponto uma gestualidade
da escritura não se dá como transposição em segundo ou terceiro grau de uma energética
pulsional dada no processo metonímico da escritura? Ali onde o traço entra numa economia
específica, codificada pelo signo. Seria o gesto literário o próprio cruzamento ou excreção
alegórica de uma relação imanente e serial do índice de um corpo e de sua relação com a
linguagem enquanto matéria codificada no signo e na ambigüidade constitutiva do signo?
Barthes diz que o consumo da obra é o consumo desse corpo próprio do artista,
consumo dessa singularidade corpórea que se materializa pelo traço na obra: “c’est qui est
22
Corpus, pp. 123-124.
40
consommé, [...] c’est um corps, une « individualité » (c'est-à-dire: ce qui ne peut être
davantage divisé). Autrement dit, dans l’ouvre de l’artiste, c’est son corps qui est acheté
23
.
Uma certa “prostituição” se daria nesse comércio de corpos tensionados ou
pulsionados pelo traço. Barthes, em seguida, no ensaio sobre Twombly, se pergunta sobre
certa “lei” inevitável que se imporia a partir desse comércio capitalista sobre o “corpo” da
“obra-artista”. Barthes termina esse fragmento concluindo sobre a infinita capacidade do
corpo de se transfigurar pelo traço, para além de toda a troca ou comércio em que é tomado
em uma sociedade.
Finalmente, é possível se perguntar, a partir de Barthes e de Nancy, até que ponto
será possível “encenar” ou performar a sobre-determinação de uma gestualidade singular de
um corpo que se “constela” num processo singular, tanto indiciário (o corpo percebido no
ato de sua escritura, ou no contexto de sua produção) quanto sígnico (a própria extensão de
um processo indicial, processual, subjetivo a partir de uma “estrutura” de linguagem). Por
exemplo, a língua portuguesa de Clarice, a língua francesa de Blanchot e suas
gramaticalidades e retoricidades como diremos adiante.
A questão é que ao utilizar a noção de uma teatralidade maquínica para fazer jogar os
significantes literários dos textos de Clarice e de Blanchot, poderemos aceder a uma certa
autenticidade do movimento de escritura que, internamente ao relato ficcional, se relaciona
ao modo ou à gestualidade específica dessas literaturas que, de um modo ou de outro,
rompem com certos procedimentos tradicionalmente associados ao gênero literário
“realista”. Desse movimento ou desse gesto ligado a uma teatralidade dos textos, nos
propomos, antes do que uma decifração ou interpretação, qualquer que seja, dos textos de
Clarice e de Blanchot, acompanhar, mesmo que num passo em falso, o movimento
indecidível da criação ficcional e de sua gestualidade de escritura. Como disse Sloterdijk, a
literatura, como a vida, é risco aberto. E a poesia, como disse Celan, não se impõe, se expõe.
O gesto crítico procura, então, o aberto e a exposição. Procura, antes, expor e se expor.
Por esses motivos, buscamos, num longo percurso de leituras, uma organização de
explorações teóricas que pudessem configurar o campo de saberes e de discussões onde
amadureceu a inquietação inicial do trabalho de tese: uma escritura que se auto-dramatiza,
que faz da literatura, não representação e sim cena do risco aberto; e que faz do corpo que a
23
Op. Cit. OC V, p. 714.
41
produz, personagem conceitual. A configuração desse campo de saberes ocupa a primeira
parte da tese. Na segunda, ensaiamos a nossa épreuve crítica, sob os efeitos da configuração
teórica da primeira parte.
42
Il se décida pourtant a tourner le dos à la mer et
s’engagea dans un petit bois où il s’étendit après avoir
fait quelques pas. La journée allait se terminer ; il n’y
avait presque plus de lumière, mais on continuait à
voir assez distinctement certains détails du paysage et,
en particulier, la colline que bornait l’horizon et que
brillait, insouciante et libre. Ce qui inquiétait Thomas,
ce qu’il était couché là dans l’herbe avec le désir d’y
demeurer longtemps, bien que cette position lui fût
interdite. Comme la nuit tombait, il essaya de se
redresser et, les deux mains appuyées sur le sol, il mit
un genou à terre, tandis que son autre jambe se
balançait ; puis, il fit un mouvement brusque et réussit
à se tenir tout à fait droit. Il était donc debout. Á la
vérité, il y avait dans sa façon d’être une indécision qui
laissait un douter sur ce qu’il faisait. (Maurice
Blanchot, Thomas l’Obscur, p. 14-5)
Mas se a brandura era o modo como se ouvia a noite,
para a noite a brandura era a sua própria aguda espada,
e na brandura a noite toda estava contida. O homem
não se deixou enfeitiçar pela delícia que sentiu na
suavidade; adivinhava que léguas além a escuridão
sabia que ele estava ali.
(...)
Varias vezes tentou se ajeitar numa posição mais
confortável. Tomava um cuidado impessoal consigo
mesmo como se fosse um embrulho. Mas embaixo era
o chão definitivo, em cima a única estrela, e o homem
se sentia acordado pelas duas coisas acordadas na
escuridão.
(C. Lispector. A maça no escuro. Rocco. 1998, P.20.)
43
PROLEGÔMENOS
44
Sobre uma noção de experiência em geral para uma aproximação à noção
de experiência ficcional literária limite no sentido de uma soberania
equívoca da literatura.
Expérience n’est pas savoir, ni non-
savoir. Expérience est traversée,
transport de bord à bord, transport
incessant d’un bord à l’autre tout le long
du tracé qui developpe et qui limite une
aréalité. »
24
La littérature est-elle capable de
transmetre cette expérience ?
Transitif ou intransitif, manifeste ou
latent, fuit d’une intention ou d’un
automatisme, sens ou non-sens, obvie ou
obtus, en quête d’action ou de vérité,
modeste ou ambitieux, volontariement
réaliste ou subjectif, en réalité autonome
et impuissant, et pourtant souveraine, le
langage litéraire peut changer de sens,
présentifier ou absentifier, s’intéresser ou
s’inderintéresser, réaliser ou irréaliser, ou
irréaliser pour mieux encore réaliser, se
présenter ou s’absenter, ou s’abesenter
pour autrement se présenter. Il est le lieu
de renversements incessants.
25
Seria necessário apontar, minimamente ao menos, certa direção filosófica para situar
o problema de uma experiência literária limite enquanto situação estética singular no quadro
epistemológico do pós-estruturalismo. Nesse sentido, procuraremos apenas situar uma
leitura da primeira introdução de a Crítica do Juízo
26
de Kant onde procuramos indicar, não
de forma inteiramente pacífica, uma noção de experiência em geral.
Por outro lado, nos pareceu que poderia haver no campo da problemática da Crítica
do Juízo enquanto espécie de intersecção ou de entre-lugar ativo às duas primeiras críticas
de Kant, a saber, a pura e a prática, uma relação conceitual com o conceito de Neutro
24
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Paris, Metalié, 2000, p. 98. “Experiencia não é saber nem não-saber.
Experiência é travessia, transporte de extremo à extremo, transporte incessante de uma borda à outra ao longo
do traçado, que desenvolve e limita uma arealidade” Aréalité, opera um jogo intraduzível entre areal, uma
oposição relativa ao real e arealidade de algo que se dá como espaçado e perfurado pelo ar, uma in-
substancialidade. (minha tradução)
25
BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot : Le Partenaire invisible. Champ Vallon, Seyssel, 199, p. 246.
26
KANT, Emmanuel. Critique de la faculté de juger. Paris, Gallimard, 1985.
45
blanchotiano, ao menos no que concerniria ao que chamamos de dimensão paradoxológica
do pensamento crítico de Maurice Blanchot.
Em Clarice Lispector existem, singularmente elaboradas esteticamente por toda sua
obra, diversas acepções muitas vezes alegóricas a uma crítica da representação do corpo (no
sentido das sensações que o percorrem como forças estéticas e poéticas) e aos limites de
uma experiência de cognoscibilidade ou de entendimento do sentido em geral, seja em
relação ao mundo físico e natural, seja em relação ao mundo subjetivo e ideal e que se
interseccionariam justamente no que procuramos assumir aqui como experiência literária.
Esta experiência, à qual nos referimos como experiência limite, e que é neste caso da
ordem de uma experiência narrativa e poética, faz a junção paradoxal do âmbito exploratório
infinito de um conhecimento de si enquanto corpo de escrita e corpus de escritura e o
próprio refluxo finito da experiência do mundo enquanto linguagem. A finitude própria a
esse corpo (entropia como lei geral das forças) abre a possibilidade inaudita da experiência
dramática do ficcional enquanto acesso ao interstício aberto no processo de experiência em
geral e da experiência específica do literário.
Esse questionamento em Clarice ocorre basicamente a partir de problematizações
poético alegóricas sobre o espaço, o tempo e a subjetividade que necessariamente se
coadunam a partir das linhas de força poéticas que entram em ressonância com o trabalho de
uma voz narrativa ocupada constantemente com questões de ordem filosófica e ou
existencial. Essa voz é geralmente desdobrada a partir do desenvolvimento muitas vezes
interiorizado e falsamente monológico da história narrada.
Essa voz narrativa, tanto em Clarice quanto em Blanchot, no que concerne a sua
posição de referência (referência sempre móvel ao sentido que daí se desloca e descola), se
direciona ao mundo, muitas vezes como uma relação heteromórfica. Seja um mundo
mineral, vegetal ou animal, trata-se de um mundo onde certo realismo se desfigura a partir
de questionamentos estéticos ou filosóficos limites, místicos e existenciais a um só tempo.
Sejam essas reflexões de ordem moral, sejam a partir de antinomias da razão, elas se dão
num espaço ficcional onde muitas vezes o paradoxo (retórico ou semântico) cede espaço às
figuras poéticas que tendem a estabilizar o conflito sem, todavia, o resolver. Na verdade,
elas implicam numa falsa e muitas vezes trágica estabilização, se desdobrando e se
diferenciando sempre em novos conflitos, repetindo-se numa oscilação que gostariamos de
46
dizer teatral, no qual o narrador, voz siderante nos dois textos com os quais nos
preocupamos, refere-se a si mesmo, seja como a personagem-narradora G.H em A Paixão...
de Clarice Lispector, seja quando projeta-se sutilmente, como no caso do relato em terceira
pessoa, que ocorre entre narrador e personagem em Thomas l’Obscur de M. Blanchot.
Diríamos que a experiência literária, tanto em Clarice quanto em Blanchot, procura
operar sempre num limiar especulativo. Nele, o campo de uma reflexão filosófica tende a
uma perspectivização ou a uma transformação radical de seu modo discursivo, já que
literariamente a experiência pode ser empurrada em direção a figuras e a imagens que
possibilitem tanto a aproximação filosófica necessária a certas temáticas quanto à potência
dramática necessária ao alcance de experiências que chamamos limite.
Nosso propósito aqui é o de apenas introduzir uma discussão própria à problemática
central que procuramos estabelecer como crítica comparada entre a ficção de Clarice
Lispector e Maurice Blanchot bem como o próprio problema da literatura enquanto
expressividade possível de experiências limite, como afirmamos, seja do próprio corpo
enquanto gestualidade e expressividade do corpus literário, seja do corpus literário ou obra,
enunciado como forma expressiva de um corpo que escreve a partir de uma dramaticidade
que lhe é própria, que chamamos de teatralidade ou teatralidade maquínica da literatura.
Contudo, gostaríamos de reafirmar que neste intuito introdutório não há intenção
nem espaço para um desdobramento denso e eficiente sobre tal espectro de
problematizações filosóficas. De qualquer modo o que nos interessa na seqüência é a
dimensão literária do que chamamos de experiência limite da escritura a partir de textos
teóricos de Maurice Blanchot e de Georges Bataille bem como a partir da teoria estético-
energética de Gilles Deleuze e da desconstrução de Jacques Derrida.
Gostaríamos de poder ainda, pelo menos no sentido de uma alusão ao tema de uma
performance crítica que observamos como hipótese do que chamo de teatralidade
maquínica da literatura, introduzir uma reflexão sobre a noção de experiência em Kant.
Pois tentaremos fazer ressoar uma ampla problemática que se refere em grandes linhas tanto
ao caráter de diferença entre uma experiência fática do mundo e as reverberações desta
sobre uma experiência teatral da linguagem que passaremos a considerar na leitura das
ficções que nos ocupam.
La possibilité d’une expérience em general est la possibilité de connaissances
enpiriques en tant que jugements synthétiques. Elle ne peut être tirée analytiquement
47
de simples perceptions comparées (comme on le croit généralement) car la liaison de
deux perceptions diverses dans le concept d’un objet (en vue de la connaissance de cet
objet) est une synthèse qui rend possible une connaissance empirique, c’est-à-dire une
experience, et qui ne le fait pas autrement que d’après des principes de l’unité
synthétiques des phénomènes, c’est-à-dire d’après les propositions fondamentales
(principes) grâce auxquelles ils sont ramenées sous les categories. Or, ces
connaissances empiriques constituent, suivant ce qu’elles ont nécessairement en
commun (à savoir ces lois transcendantales de la nature) une unité analytique de toute
expérience, mais non pas cette unité syntetique de l’expérience en tant que système
qui relie sous un principe les lois empiriques, même suivant ce qu’elles ont de
différent (et là où leur diversité peut aller à l’infini). Ce qu’est la catégorie à l’égard de
chaque experience particulière, voilà désormais ce qu’est la finalité de la nature, ou sa
convenance (même eu égard à ses lois particulières) par rapport à notre pouvoir de la
faculté de juger, d’après lequel elle est répresentée non seulement comme mécanique,
mais encore comme technique ; c’est là un concept que sans doute ne détermine pas
objectivement l’unité synthetique comme le fait la catégorie, mais, cependant, il
fournit subjectivement des principes qui servent de fil conducteur à l’investigation de
la nature.
27
Se a Crítica da razão pura procura estabelecer conceitos e noções fundamantais a
priori para a análise dos limites e possibilidades do pensamento pensar a própria natureza de
forma objetiva e se expõe o intuito de se conhecer os desdobramentos da possibilidade de
conhecimento da natureza no campo de uma economia dos hábitos e do sentido da
liberdade, a crítica do juízo estabelece uma discussão que de algum modo observa a
faculdade do juízo como fundamental para se coadjuvar as duas primeiras críticas, numa
dinâmica que poderíamos pensar como dialética.
A Crítica do juízo estabeleceria um nexo particular com as relações teóricas gerais e
particulares à analise do conhecimento teórico de uma objetividade sobre a natureza (Crítica
da razão pura) e à analise do desdobramento prático dessa objetividade teórica na
complexidade das relações que daí decorrem, tais como por exemplo operam no amplo
conceito de liberdade (Crítica da razão prática).
A partir da crítica da faculdade do juízo, associamos aquilo que nos será importante
especificamente para o esclarecimento das problemáticas que se desenvolverão mais
adiante. Primeiro, uma aproximação de questões que envolvem a dimensão e a potência de
certa economia estética que procuramos esboçar. Segundo, a localização da discussão sobre
a experiência literária enquanto possibilidade sui generis de apresentação ou de performação
de problematizações estéticas como limite ou diferença conflitante entre o discurso
filosófico e a experiência inominável e paradoxalmente experienciada como o limite
27
Op. Cit., p. 30.
48
discursivo e necessário à descrição da sensação, do desejo ou mesmo da necessidade física e
psicológica de atribuição de sentido na qual opera a literatura enquanto experiência limite do
corpo num corpus de escritura ficcional.
Se Kant fala de uma técnica que emergiria da faculdade de julgar como fundamento
da idéia de uma técnica da natureza
28
ao desdobrar uma investigação sobre a crítica do juízo
como intersecção dialética às outras duas críticas, gostaríamos de pensar esta técnica no
sentido que podemos ler na segunda seção, intitulala “Dialética do julgamento estético”
29
,
como o campo onde também se agenciariam as possibilidades da linguagem literária
enquanto imaginação e procedimento de escritura.
Sobre a possibilidade de se pensar primeiro uma experiência em geral, para em
seguida aceder a uma noção de experiência literária limite e logo pensarmos na tarefa crítica
enquanto épreuve crítica, lembramos no ensaio “Force et Signification” de Derrida, no qual
uma concepção de força
30
discursiva literária é pensada enquanto potência própria da
literatura. Nesse ensaio, Derrida alude ao limite conceitual que porta a Crítica do Juízo de
Kant no que se refere à imaginação nos termos específicos de Idéia estética se referindo ao
sentido particular de que ela não poderia se tornar um conhecimento, pois seria oriunda de
uma intuição da imaginação.
A referência a Kant tem para Derrida a função de crítica ao estruturalismo, a partir de
uma descontrução da gênese teórica de Forme et signification de J. Rousset, no nível de
sutileza necessário para se entender um jogo de espelhos do próprio estruturalismo em
relação ao seu papel hegemônico e, de certo modo, totalitário no que se refere à lógica quase
imperceptível de domínio logocêntrico sobre o literário enquanto tal. Lógica que, afinal, não
teria efetuado a desestabilisação conceitual necessária aos conceitos polares ou dialéticos de
figura e fundo, forma e expressão.
28
Cf. Op. Cit., p. 47 «Le concept de la finalité n’est en rien un concept constitutif de l’experience, une
détermination d’un phénomène appartenant à un concept empirique de l’objet ; en effet, ce n’est nullement une
categorie. C’est dans notre faculté de juger qui nous percevons la finalité en tant qui cette faculté réflechit
seulement sur un objet donné, qui ce soit sur l’intuition empirique de cet objet, pour la ramener à quelque
concept (on laisse indeterminé la question de savoir lequel), ou que ce soit sur le concept d’experience lui-
même, pour ramener les lois qu’il enveloppe à des principes communs. Par consequent, c’est la faculté de
juger qui est proprement technique ; la nature est seulement representé comme téchnique, dans la mesure où
elle s’accord avec ce procédé de la faculté de juger et le rend nécessaire. »
29
Cf. « La Dialétique de la faculté de juger esthétique », in : KANT, Emmanuel. Critique de la faculté de
juger. Folio Essais, Gallimard, 1985, p. 297.
30
Cf. “Force et signification” de JacquesDerrida, in : L’écriture et la difference. Paris, Seuil, 1967, p. 16.
49
Citamos Derrida:
Il en va de même pour la notion d'imagination, ce pouvoir de médiation ou
de synthèse entre le sens et la lettre, racine commune de l'universel et du singulier —
comme de toutes les autres instances ainsi dissociées —, origine obscure de ces
schèmes structuraux, de cette amitié entre « la forme et le fond » qui rend possibles
l'oeuvre et l'accès à l'unité de l'oeuvre, cette imagination qui aux yeux de Kant était
déjà en elle-même un « art », était l'art lui-même qui originairement ne distingue pas
entre le vrai et le beau: c'est de la même imagination que, malgré les différences, nous
parlent la Critique de la raison pure et la Critique du jugement. Art, certes, mais « art
caché
31
» qu'on ne peut « exposer à découvert devant les yeux
32
». « On peut appeler
l'idée esthétique une représentation inexponible de l'imagination (dans la liberté de son
jeu)
33
». L'imagination est la liberté qui ne se montre que dans ses oeuvres. Celles-ci
ne sont pas dans la nature mais elles n'habitent pas un autre monde que le nôtre.
«L'imagination (en tant que faculté de connaître productive) a, en effet, une grande
puissance pour créer en quelque sorte une seconde nature avec la matière que lui
fournit la nature réelle». C'est pourquoi l'intelligence ne doit pas être la faculté
essentielle du critique quand il part à la reconnaissance de l'imagination et du beau,
«ce que nous appelons beau et où l'intelligence est au service de l'imagination et non
celle-ci au service de l'intelligence». Car «la liberté de l'imagination consiste
justement en ceci qu'elle schématise sans concept». Cette origine énigmatique de
l'oeuvre comme structure et unité indissociable — et comme objet de la critique
structuraliste — est, selon Kant, «la première chose sur laquelle nous devons porter
notre attention».
34
É essa “origem enigmática” da obra como estrutura e unidade indissociável que
Derrida se preocupa em pensar a partir de uma série de questionamentos, com intenção de
fazer aparecer certo sentido de experiência crítica que se oporia ao de uma espécie de
“sonambulismo” estruturalista. Seria desviando ou reenviando, quem sabe, o olhar
perscrutador da crítica do sentido da forma ao sentido da força no jogo de significações
expressivas da obra literária, que se poderia aceder ao momento contemporâneo e crucial da
crítica, momento no qual as bases do próprio pensamento ocidental passam a ser
desestabilizadas em sua prerrogativa de verdade inabalável, teleológica e logocêntrica a um
só tempo - mesmo que, e justamente por isso, essa lógica esteja travestida no programa de
uma metodologia aguda e radicalmente estruturada numa espécie de progressão dialética do
sentido.
Seria necessário contrapor ainda à Kant o programa crítico de Deleuze. Existe no
programa deleuzeano toda uma outra perspectiva, digamos que critica a crítica kantiana.
Esta é resumida de forma magistral no ensaio “Para dar um fim ao Juízo”.
31
No original, Derrida cita a partir de Critique de la raison pure (Trad. Tremesaygues et Pacaud, p. 153)
32
Ibid.
33
No original, Derrida cita a partir de Critique du jugement, §57, trad. Gibelin, p. 157. As outras três citações
são respectivamente: Ibid.
§ 49, p. 133; Ibid., p. 72; Ibid., § 35, p. III.
34
No original, Critique de la raison pure, p.93.
50
Da tragédia grega à filosofia moderna é toda uma doutrina do julgamento que se vai
elaborando e desenvolvendo. O trágico não é tanto a ação quanto o juízo, e a tragédia
grega instaura primeiramente um tribunal. Kant não inventa uma verdadeira crítica do
juízo, já que esse livro, ao contrário, erige um fantástico tribunal subjetivo. Em
ruptura com a tradição judaico-cristã, é Spinoza quem conduz a crítica; ele teve quatro
grandes discípulos que a retomaram e a relançaram, Nietzsche, Lawrence, Kafka,
Artaud.
35
Enfim, não poderíamos resumir satisfatoriamente esse ensaio que justamente e de
uma maneira teatral, com seu jogo de performances em cada um dos pensadores e escritores
citados, traz de forma sintética toda a filosófica, dita imanente por Deleuze, de Spinoza. É
disso que se trata, e em “La realization de la critique”, de Nietzsche et la Philosophie, a
problemática da crítica kantiana é referida em termos mais técnicos. Deleuze elogia Kant
por ter (quase) alcançado ou concebido na Crítica da razão pura, uma crítica imanente.
Porém, Kant, contraditoriamente, segundo Deleuze, teria concebido que a “crítica
não poderia ser uma crítica da razão pelo sentimento, pela experiência ou por qualquer
instância exterior qualquer que fosse. E [que] o criticado não poderia ser, muito menos,
exterior à razão: [e que] não deveríamos procurar na razão erros vindos de outra parte,
corpo, sentido ou paixões, mas sim ilusões provindas da razão como tal.”
36
, continuiria a
concluir que entre essas duas exigências, “a critica deveria ser [ainda] uma critica da razão
pela própria razão”
37
.
Para Deleuze portanto,
Il manquait à Kant une methode qui permît de juger la raison du dedans, sans lui
confier pour autant le soin d’être juge d’elle-même. Et en fait, Kant ne réalise pas son
projet de critique immanente. La philosophie transcedentale decouvre des conditions
qui restent encore exterieures au conditionné. Les principes transcendentaux sont des
principes des conditionnements, non pas de genèse interne. Nous demandons une
genèse de la raison elle-même et aussi une genèse de l’entendement et de ses
catégories : quelles sont les forces de la raison et de l’entendement ? Quelle est la
volunté qui se cache et qui s’exprime dans la raison ? Qui se tient dérriére la raison,
dans la raison elle-même ? Avec la volunté de puissance et la methode qui en découle,
Nietzsche dispose du principe d’une genèse interne. Reste que les principes chez
Nietzsche ne sont jamais des principes transcendentaux ; ceux-ci sont precisement
remplacés par la genéalogie. Seule la volunté de puissance comme principe génétique
et genealogique, comme principe legislative, est apte à realiser la critique interne.
38
A questão fundamental nesse livro de Deleuze seria, finalmente, o par conceitual,
vontade de potência e eterno retorno, dois conceitos, ou melhor, duas noções complexas que
35
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Paul Pelbart. São Paulo, Ed. 34, 1997, p. 143.
36
DELEUZE, Glilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, Quadrige/PUF, 1962, p. 104 (Tradução nossa).
37
Idem. (entre colchetes, nosso comentário)
38
Idem.
51
poderíamos chamar sem problema de noções maquínicas do pensamento de Nietzsche tanto
quanto reoperadas no próprio pensamento deleuzeano. Pode-se ter uma idéia mais global
dos desdobramentos críticos dessa verdadeira estética energética dos afectos ou das forças,
por exemplo, a partir dos textos de Crítica e clínica que se situam sobre o problema da
escritura literária.
No sentido mais técnico da especulação de Deleuze sobre a filosofia nietzscheana, e
particularmente em relação ao embate conceitual com Kant, procuramos apenas expor o
esquema em cinco pontos elaborados por Deleuze no capítulo seguinte, pontos nos quais
apresenta esquematicamente a diferença programática da filosofia de Nietzsche em relação à
de Kant.
A concepção de Nietzsche de crítica em oposição a Kant é assim colocada:
1° Non pas des principes transcendentaux, qui sont des simples conditions pour de
prétendues faits, mais des príncipes genetiques et plastiques, qui rendent compte du
sens et des valeurs des croyances, des interpretations et évaluations ; 2° Non pas une
pensée qui se croît législatrice, parce qu’elle n’obéit qu’à la raison, mais une pensée
qui pense contre la raison : (…) C’est qu’on oppose à la raison c’est la pensée elle-
même,(…) Parce que la raison pour son compte reccueille et exprime les droits de ce
qui soumet la pensée, la pensée reconquiert ses droits et se fait legislatrice contre la
raison : le coup de dés, tel était le sens du coup de dés ; 3° Non pas le legislateur
kantien, mais le genealogiste, le legislateur de Kant est un juge e tribunal,(…) qui
surveille à la fois la distribuition de domaines et la repartition des valeurs établies.
L’inspiration généalogique s’oppose à l’inspiration judiciaire. Le génealogiste est le
vrai législateur. Le genealogiste est un peu devin, philosophe de l’avenir. (…) Pour lui
aussi, penser c’est juger, mais juger, c’est evaluer et interpreter, c’est créer des
valeurs. Le probléme du jugement devient celui de la justice et de la hiérarchie ; 4°
Non pas être raisonnable, fonctionnaire des valeurs en cours, à la fois prête et fidéle,
législateur et sujet, esclave vainqueur et esclave vaincu, homme reactif au service de
soi-même. (…) L’instance critique n’est pas l’homme réalisé, ni aucune forme
sublimée de l’homme, car entre l’homme et Dieu il n’y a pas encore assez de
différence, ils prennet très bien la place l’un de l’autre. L’instance critique est la
volunté de puissance,(…) Mais sous quelle forme ? Non pas le surhomme, qui est le
produit positif de la critique elle-même. Mais il y a un « type relativement
surhumain »
39
: le type critique, l’homme en tant qu’il veut être dépassé, surmonté.
« Vous pourriez vous transformer en péres et ancêtres du surhomme : que ceci soit le
meilleur de votre oeuvre »
40
; 5° Le but de la critique : non pas les fins de l’homme ou
de la raison, mais enfin le surhomme, l’homme surmonté, dépassé. Dans la critique il
ne s’agit pas de justifier, mais de sentir autrement : une autre sensibilité.
41
Um pensamento da vida e não um pensamento em contraposição transcendental à
vida, um pensamento da imanência enquanto expressividade pura e energética do mundo
dado em sua multiplicidade de forças em interação e disjunção na própria matéria, que é ela
39
Op. cit., p. 107. Deleuze cita Nietzsche, EH, IV, 5.
40
Op. cit., p. 108. Deleuze cita Nietzsche, Z, II, “Sur les îles bienheureuses ».
41
Op. cit., p. 106-8.
52
mesma energia
42
redobrada ou desdobrada num estado ou modo específico de sua qualidade
e quantidade no espaço-tempo.
42
Uma posição diferente sobre a energia, e voltada especificamente para uma comprensão da complexa relação
que faz Maurice Blanchot aproximar a literatura de uma espécie de força ultra transgressiva como a do Terror,
é discutida por Christophe Bident no capítulo sobre a crítica blanchotiana de seu livro Maurice Blanchot: Le
Partenaire Invisible. Trata-se, nesse caso, de toda a problemática do mal e da literatura pensada também por
Bataille. Da significação de obras como a de Sade e Lautremont numa história do pensamento literário
especificamente e do pensamento moral em geral. Gostaríamos de remetermos, como numa espécie de fundo
dinâmico, a essa idéia fundamental de uma simbólica da energia na literatura. O problema da literatura nos
termos ligados a sua qualidade hipertransgressiva, como no caso sadiano, por exemplo, passaria pela potência
literária de se contrapor a um decantamento moral e estabilisador das autênticas possibilidades do pensamento
de se pensar para além de uma reflexão moral tout court. Nessa perspectiva, o homem sadiano forçaria esse
pensamento a se pensar para além de suas fronteiras éticas no sentido de que ele é capaz, em sua
transgressividade absoluta de se movimentar como o limite de si próprio em relação ao homem “normal”. Isso
não significaria uma aceitação moral de seus atos, mas simplesmente a discernibilidade da potência ou das
possibilidades transgressivas que esse pensamento afronta ao próprio pensar normativo e estabilizado numa
certa metafísica da presença a si. Citamos Bident comentando o volume Lautremont et Sade de Blanchot :
« Cette Terreur, capacité destructrice, athéisme divin, est un veritable défi à la raison. C’est la construction
contradictoire et croissante de ce défi, « en quantité infinie », que Blanchot analyse dans la fiction. Il en dégage
un principe symbolique d’énergie (…) Ce principe de l’œuvre n’est pas un principe moral ou immoral.
Blanchot prend soin de le preciser en concluant son essai sur Sade : « Nous ne disons pas que cette pensé soit
viable. Mais elle nous montre qu’entre l’homme normal qui enferme l’homme sadique dans une impasse et le
sadique qui fait de cette impasse une issue, c’est celui-ci qui en sait le plus long sur la vérité et la logique de sa
situation et qui en a l’inteligence la plus profonde, au point de pouvoir aider l’homme normal à se comprendre
lui-même, en l’aidant à modifier les conditions de toute compréhension. » La littérature est cette énergie de la
compréhension, d’autant plus forte que contradictoire, mouvementée et incessante, elle parcurt incessantement
ses contradictions ». BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot : Le Partenaire invisible. Champ Vallon,
Seyssel, 1998, p. 255.
Para Blanchot, e segundo Christophe Bident, a obra literária limite no caso de Sade e Lautremont, mas também
toda obra que se aproxime desse movimento infinito de contestação e de soberania equívoca da literatura,
maneja simbolicamente uma energia ou forças de contestação que só poderiam ser pensadas a partir de uma
crítica que também percebesse que a obra não pode ser « esquadrinhada » sem perda de seu movimento interno
infinito em seu conjunto. Nesse ponto, percebemos uma definição de crítica literária enquanto épreuve, no
sentido específico que tomamos o termo sobre o qual Blanchot parece sempre fazer a variação retórica com o
termo expérience. « Ce qui s’impose à l’analyse est donc ceci : « [l’analyse] ne compense ce qu’il y a
d’illégitime dans sa méthode (qui separe c’est qui est ensemble) que par ses excés et le prolongement indéfinie
de son activité. […] Seul le mouvement perpetuel la justifie, car dés qu’elle s’arrete, toutes ses conclusions
suspendues, ses explications en attente prennent une valeur définitive, et l’œuvre, alors violemment séparé
d’elle-même, se disloque pour faire place à une armature rudimentaire, maladroitement reconstruite du dehors .
L’énergie doit devenir le principe même de la critique. »
Este princípio energético é o que recorrentemente emerge na crítica contemporânea como desdobrado por
metonímia pela noção de movimento. Movimento que procuramos fazer ressoar como um esquema de
descrição das forças estéticas numa experiência ficcional. Pois se trata de não paralisar a presença como
presença a si (presença da significação ou do sentido da obra), mas sim de se compreender a obra em seu
movimento ou em sua maquínica própria como translação de significações em relação à imanência de sua
produção e a especificidade de sua captura de forças como o pensa Deleuze. Tratar-se-ia de não separar a obra
de seu movimento de captura de forças, aí onde a crítica deve repensar a intersecção ética de sua própria tarefa
à necessidade estética do movimento trans-histórico da obra.
O que chamamos aqui de teatralidade maquínica da literatura, não é senão o desdobramento em outro léxico ou
em outra estratégia crítico-reflexiva, das noções de energia ou força, e de seu movimento relacional no
interior-exterior (dobra, pli) da obra, ou seja, na confluência de uma necessidade ética de extrapolar uma
organicidade representacional da arte a partir de uma cartografia das composições dinâmicas de forças que
instauram a obra e a tarefa artística na esfera de uma necessidade imanente de criação e performance do
53
Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, são quatro “personagens conceituais” que
desenvolveram um modo de performação das forças que estão em jogo na experiência em
geral e na experiência literária em particular. Segundo formas expressivas diferentes, cada
um desses pensadores ou atores de um teatro do pensamento e de um teatro da vida,
desenvolveu formas de expressão da complexividade e multiplicidade de forças em ação e
reação no mundo.
A literatura emerge daí, como história e geografias de um pensamento
experiementador de mundo que desliza, inclusive, para o seu próprio fora, essa exterioridade
“interna” ao movimento imanente do pensamento do mundo. Deslize para “um” fora
(dehors), no sentido da experimentação inaudita que o pensamento artístico pode vir a
efetuar sobre suas próprias forças expressivas em deriva e reação, em atividade e suspensão.
Daí emerge todo tema deleuzeano da criação de uma língua-outra dentro da língua
normativa em que se dá o combate do escritor com seu “estilo” em uma literatura limite.
Esse fora se diria de outro modo do que ocorre no mundo, como experimentação artística da
mesma experiência em geral dobrada sobre si mesma e que forma ou forja, arranja tanto
quanto desfaz e organiza, espaços lúdicos ou perceptivos, tempos excêntricos e
concêntricos, processos limítrofes que se executam reiterados e transformados à consciência
e ao inconsciente ou mesmo, e paradoxalmente, extrapolando inclusive estas duas categorias
psicológicas ao fundar outras formas de sensibilidade, meio conscientes, meio
inconsistentes, meio abstratas, e finalmente dramáticas ou possíveis de serem apreendidas
somente a partir de uma dinâmica performativa, nem apenas dialética nem apenas analítica.
Deleuze se apropria de uma idéia de Artaud para configurar a atuação desse
programa crítico. Esta idéia é a de “sistema da crueldade”, a qual ele modifica a partir da
noção de teatro da crueldade
43
de Artaud. Com Artaud há uma espécie de violência
corpóreo enquanto desejo transvalorado em movimento estético “puro”. Bem entendido, que esse movimento
não tem a ver especificamente com a totalidade antológica da obra, mas sim com a qualidade dramática das
relações de força da obra em seu desdobramento como pensamento expressivo, discerníveis também a partir de
suas partes separadamente, ou fragmentariamente como pretendemos fazer neste trabalho de tese, partindo da
leitura de um texto de cada autor para uma transposição excedente de suas relações, no que poderemos
observar da conjugação interna de suas imagens com o fragmetário da obra e conjuntamente em relação aos
outros textos do corpus das obras dos dois autores e também de outro modo, do corpo e ou corpus teórico que
se redobra nesse corpus em construção de uma intenção crítica em processo e na busca de uma atividade que,
como diria Blanchot, se dá como comentário de comentários. Cf . BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot :
Le partenaire invisible. Champ Vallon, Seyssel, 1998, pp. 255-6.
43
Remetemos-nos a nota anteiror sobre a questão de um caráter “hipertransgresivo” da literatura enquanto
simbólica de uma energia de contestação infinita da literatura e o sentido da noção de crueldade como operador
54
benfaseja contra o sistema do juízo forjado por toda uma história - seja da filosofia ou da
religião - de uma interpretação reativa das forças. Essa crueldade deve ser pensada não
como relação antinômica à bondade, no sentido estabelecido na história da humanidade
enquanto esquema de uma dívida infinita para com uma potência transcendente e superior,
absoluta e unitária, vale dizer, Deus-Uno-Absoluto. Ela deve ser pensada no sentido de que
é necesario um “combate” às vezes, ou quase sempre, violento para se “lesgislar” para além
de uma instauração jurídica sedimentada sobre valores transcendentes. Para se aceder a essa
potência infinitamente múltipla da immanência do mundo é necessário, portanto, um
encontro com certa “crueldade das forças”.
A literatura, ou pelo menos a experiência limite à qual é enfrentado o escritor-artista,
promove segundo Deleuze, uma saúde, no sentido que ao elaborar esse enfrentamento, ou
esse combate contra um sistema do juízo teleológico-transcendente, o homem se vê frente ao
seu próprio limite, a uma ética fundada sobre sua experiência existencial e imanente. Ao se
horizontalizar a potência ou as formas transcendentes de julgamento, ao afrontar e superar
uma culpabilização originária, teológica, operada na sedimentação arqui-originária do
sentido de sua própria condição de finitude, esta transposta na relação simbólica com o
sagrado, o homem dessa experiência-limite, ou a promessa de um super-homem, como o
prediz Nietzsche, adentra um estranho espaço de vertigem e delírio, onde a mesma potência
abstrata que ele rejeita como soberana sobre sua existência se reverte na potência de
experiência estética que ele próprio se faz produzir. Para isso é necessário penetrar num
espaço ou operar a partir de um sistema da cruendade que faz revirar todo o peso dessa
sedimentação judicativa e reacionária baseada no recalque histórico dos valores
interpretados segundo um programa reativo, interpretados segundo uma experiência de
culpa e dívida infinita com Deus.
Em resumo, diria que o sacrifício como imagem arqui-originária do sentido cósmico
e coletivo de “povo”, passa de um modo enigmático de estado ou de uma qualidade
expiatória a um esquecimento des-originário e fundante de uma estrutura ontologicamente
reativa. Essa estrutura tem a qualidade do juízo e do julgamento transcedentais, por
dessa outra forma de energia simbólica que aplica Artaud em suas preocupações com uma crítica da
representação mimética teatral. Trata-se da mesma qualidade de força estética aplicada à compreensão da arte
como movimento existenciário e cósmico, movimento de individuação, no sentido de Deleuze.
55
exemplo, ainda com Kant, e passa a um modo imanente na qualidade do conceito de justiça
com Spinoza.
Partindo de certo procedimento analítico de Kant, procuramos situar e movimentar
uma discussão sobre a especificidade de uma experiência artística ou literária que
nomeamos de experiência-limite e que, necessariamente, deveria se diferenciar de um
sentido geral de experiência. Que nesse conceito de experiência em Kant seja absolutamente
necessário fazer a gênese de sua constituição no quadro de uma crítica fundamental dos
valores de Nietzsche, não deslegitimaria o sentido conceitual geral proposto na citação
kantinana enquanto possibilidade de “categorização” da noção de experiência. Afinal, não
parte da experiência toda e qualquer possibilidade do próprio pensamento?
É a partir desse debate, portanto, que situaremos o campo de experiência onde
Maurice Blanchot e Clarice Lispector estabelecem uma certa estratégia da literatura
funcionando como campo de experimentação do pensamento e de uma espécie de “corpo do
pensamento” a que uma teatralidade maquínica performaria os movimentos de possibilidade
e figuração estéticas. É no sentido dessa experiência limite de um pensamento literário que
se daria pela via da criação de imagens e de cenas como as que envolvem
paradigmaticamente uma idéia do paradoxo, imagens como as de angústia, de solidão ou de
um pensamento existencial beirando o místico e a metafísica, que procuramos perceber uma
certa constelação de imagens “conceptuais” e “teatrais”. Por exemplo: imagens
dramatizadas e performadas como repetições (na matéria expressiva como na matéria
semântica da frase) ou a partir da atribuição de sentidos alegóricos como no uso da palavra
“neutro”, por exemplo, que junto a outros termos agenciariam uma espécie de vasto campo
semântico limítrofe entre uma dramaticidade cênica operada pela voz narrativa e a
exploração antinômica e paradoxal de temas filosóficos no interior e mesmo no exterior
dessa experiência literária.
E justamente aqui, interior e exterior devem se dissipar no movimento espasmódico
da própria experiência limite, alí onde procuramos discernir os campos de força que possam
aderir ao espaço dramático da construção da cena ou dos palcos virtuais onde se desenvolve
a voz narrativa que atua, finalmente, como personagem conceitual (entidade de uma
instância semiótica) descentrado e em deriva incessante, nesse entrelugar ou nessa “cesura”
56
(im)produtiva
44
e neutra, que se realiza a partir dessa experiência literária a que chamamos
limite.
Essas imagens ou essas cenas gesticuladas ou plasticizadas a partir de uma série de
estratégias dramático-conceituais - por exemplo, no caso de Blanchot: o neutro, a noite, a
outra noite, o incessante, o fora, o obscuro, etc, e em Clarice: o nada, uma terceira perna
perdida, o infernal, deus, o bestial, o inseto, etc. - funcionam como verdadeiros elementos
semânticos para a performação de uma espécie de palco virtual, onde pode ser encenado, se
assim podemos dizer, todo um jogo de forças indeterminadas, fluxos de forças móveis que
atravessariam os personagens a partir de uma voz narrativa que em cada caso deverá ser
descrita em sua mobilidade teatral e maquínica.
É nesse espaço de uma experiência literária limite que certo teatro ou melhor, uma
virtual teatralidade maquínica, pode por a prova justamente os limites que uma
subjetividade, operada a partir da escritura, encenaria no movimento próprio à voz narrativa
enquanto se processa a produção de um corpo e de um corpus interseccionados no
movimento artístico ou literário.
Retornando a Kant, no que concerne à questão da experiência, desejamos enfatizar
que o sentido de experiência limite trabalhado aqui numa certa linha divergênte em relação
ao sentido de experiência que advém da crítica kantiana, nos parece, seguindo a leitura que
faz Deleuze, ter lançado as bases para uma crítica da razão e, por conseqüência, da
experiência, como o sentido de uma atribuição apofântica, operando por via transcendental.
Isso, para o pensamento contemporâneo, se impõe como uma possibilidade de se indagar
como o pensamento dessas categorias deveria pensar a própria constituição e gênese das
44
O conceito de (im)produtividade e posteriormente de (in)operância têm a ver com o que procuraremos
discernir no decorrer da tese, a saber, que a experiência-limite da literatura que nos preocupamos em perceber
em Clarice Lispector e Maurice Blanchot, se dá ou se afirma em sua dinâmica expressiva, como o caráter de
uma escritura que performa tanto um descentramento das noções de poder e de função literárias, quanto se
incere numa experiência da linguagem que desgasta incessantemente uma hipotética função sólida do narrador
ou dos personagens, transformando o processo da escritura literária em verdadeiras “instâncias narrativas”; em
outras palavras, situando e instaurando uma outra performatividade como corpo-dialeto de uma lingua
“menor” (rareza das formas e dos efeitos de expressão e dicção) e uma teatralidade do estilo poético no interior
da normatividade “operante” da lingua literária institucional. O (in)operante nesse sentido é o próprio refluxo
do embate da leitura com a multiplicidade dos sentidos que se dão como tripla instância de vozes narrativas no
interior da propria teatralidade da máquina literária. A) Função-autor-escritura, B) instância intervalar da
leitura-escritura e C) personagens ou entidades literário-discursivas. É nessse sentido que também nos
referimos diretamente ao trabalho de Dominique Rabaté quando explora a noção de “Literatura do
esgotamento” em seu livro Vers une littérature de l’épuisement de 2004.
57
mesmas estruturas com o intuito de uma entrada nas problemáticas do sentido e do valor da
reflexão categorial para seus próprios fins lógicos e especulativos.
Para Blanchot, teórica e ficcionalmente, e para Clarice Lispector que pensa a questão
da experiência eminentemente de forma literária, para esses dois escritores, o sentido de
experiência está contextualizado no plano geral de uma crítica do sentido e do valor da
representação e da própria existência como plano pré-ontológico, ou em outras palavras, se
situa no questionamento da própria especificidade do movimento literário como gesto
singular de pensamento. Sobretudo para Blanchot - que é também teórico e crítico no
sentido profissional dos termos – que pode justamente aceder a possibilidades estéticas que
fariam jogar a própria noção de experiência ou as imagens expressivas forjadas no processo
artístico e que justamente podem promover um tipo de experiência corpórea ou imanente, no
sentido da força performática ou dramática (teatrológica) que aí se apresenta.
Daí lembrarmos da afirmação de Foucault quando fala de uma herança literária de
Nietzsche à filosofia, elencando, nesse movimento filiativo, Blanchot e Bataille como
escritores relacionados a uma preocupação especulativa que desestabilizaria, de algum
modo, o desejo fenomenológico de discernir a experiência do vivido de suas significações
possíveis, para instaurar uma experimentação literária que, ao invés de purificar o vivido, no
sentido do discernimento de seus fluxos complexos, procuraria aproximar-se de um espaço
de experiência onde as significações seriam da ordem do “indescritível”. Porém, justamente
aí, onde o pensamento se aproximaria daquilo que o faz existir, paradoxalmente, é a própria
possibilidade de sua inexistência, de sua não conformação ou de sua desfiguração, enquanto
processo simbólico, que margearia as raias do inconsciente, instaurando a possibilidade de
uma experiência de outra dimensão análitica, ou seja, configurada a partir de um nível
paradoxal da elaboração do sentido. (Literatura-limite se movendo às margens do “real”
como processo de elaboração incessante de uma teatralidade maquínica do corpo-corpus
literário, vale dizer, operando no limiar do impensável.)
No limite do invivido, no limiar do esquecimento positivo de uma experiência
vivida, ali onde a experiência do sofrimento ou da angústia se aproxima do espaço poético
do ordinário e de sua possibilidade asfixiante e cotidiana, ou seja, da entrada do escritor-
artista em linhas de fuga ativas ou destrutivas e, ao mesmo tempo, criativas, seria onde uma
experiência limite instauraria uma potência estética específica, ou a uma experiência do
58
literário enquanto circunscrição do inimaginável
45
segundo Blanchot. Porque o indescritível
ou mesmo o inefável paradoxalmente, podem sempre ser chamados à linguagem e ao
estranhamento de uma voz ou de uma sensação de neutralidade ou tédio diante do cotidiano
(aquilo que em Clarice e Blanchot é operado como verdadeiro fundo obscuro ou ethos
profundo de sua linguagem literária) pode ser justamente esse ethos, o espaço onde a
possibilidade de uma experiência geral dos sentidos é atribuída enquanto experiência
estética, estásica, extra-ordinária ou, melhor, infra-ordinária, como o indicava sobre sua
própria literatura, o escritor Georges Perec
46
.
Nesse sentido, o chamado à narrativa silenciosa e literária enquanto atividade de
inscrição subjetiva do vivido, ou mesmo de reinscrição de um movimento (in)descritível
dado na rememoração impura e criativa da experiência subjetiva, atinge, no limite da
intenção narrativa, um espaço literário próprio à escritura. Trata-se desse espaço esférico, ao
qual Blanchot alude em sua leitura de Proust
47
, no qual a linguagem retorna a si mesma
como técnica narrativa sobre as dimensões imanentes do espaço e do tempo. Nesse sentido,
no espaço móvel onde se dá a escritura, no espaço esférico onde o tempo é dobrado e
redobrado como atribuição poética da própria narratividade, um limite é lançado à sua
própria transposição impossível. Limite no qual se engendra como experiência intensiva
48
de
45
Sobre toda a importante discussão na teoria blanchotiana de uma noção de inimaginável enquanto a potência
própria onde pode operar uma literatura “fantástica”, termo progressivamente renomeado por Blanchot, pelas
figuras de uma “souveraineté de l’invisible” ou justamente pela figura bataillana de “L’experience interireur”.
Cf. BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot: Le partenaire invisible. Champ Vallon, Seyssel, 1998, p. 245.
Ou, ainda, « La nature propre du fantastique […] est de passer pour la réalité même, d’être le tout de la
réalité » « C’est dans ce que Blanchot nomme indifférement le fantastique ou le merveilleux qu’il perçoit « en
apparence une fantasie et un jeu, en vérité l’expérience la plus profonde d’un homme ». Há nesse capítulo do
livro de Bident, toda uma discussão a respeito do sentido de uma aparente retirada ou inexpressividade de
Blanchot da cena política ou da falta de um engajamento político, no sentido que impôs Sartre. Para Blanchot,
a literatura detém as potências soberanas de uma contestação ou transgressões absolutas do real e do
ideológico. Inclusive, para se compreender essa tensão Blanchot-Sartre, é necessrio se voltar para a
constituição formal do pensamento de ambos. A literatura para Blanchot se constitui no sentido de
transgressões infinitas do real, não para sobrepô-lo dialeticamente, mas para desconstitui-lo ou reconstitui-lo
em seu próprio movimento ontológico e imagético. Artaud, Leiris, Kafka, são alguns exemplos desse
fantástico hipertransgressivo ao qual se refere Blanchot. Christophe Bident comenta: « Blanchot abandonnera
par la suíte le terme « fantastique » pour évoquer cette souveraineté de l’invisible, de l’experience intérieure. Il
le remplacera par celui d’imaginaire, un imaginaire ouvert à l’infini à la figure souterraine de l’inimaginable.
Ainsi, en 1947 : « L’irrealité commence avec le tout ; L’imaginaire n’est pas une étrange région située par-dèlà
le monde, il est le monde même, mais le monde comme ensemble, comme tout » (pp. 120-133 e p. 307).
46
PEREC,Georges. Romans & Récits. Ed. établi et presentée par Bernard Magné. La pochotéque, Le livre de
Poche. 2002, p. 12.
47
BLANCHOT, Maurice. O Livro Porvir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 2005, p.29.
48
Talvez seja necessária uma nota explicativa para explicar por que se fez aqui uma leitura da Crítica do juízo
de Kant. Que a escritura seja para Blanchot uma espécie de tecnicidade literária do próprio pensamento; ali
59
subjetivização do corpo em um corpus de escritura, a atividade infra-ordinária da escritura
enquanto extrapolação e intrapolação do vivido na obra.
Extrapolar ou retornar à interioridade destes pólos é operar como força intensiva no
próprio movimento centrífugo e centrípeto da crítica, onde se desviam e se desfiguram,
como movimento para fora do sistema, os pólos dialéticos da forma e da substância ou da
figura e do fundo. Infrapolarizar nesse caso será, portanto, intensificar o trabalho crítico
como jogo descritivo das forças e mobilidades intensivas que se deslocam incessantemente
na obra literária; justamente porque aí se encontra na tarefa artística a complexidade à qual
Kant (talvez insuficientemente) se remete ao tratar dos materiais e objetos estéticos
enquanto pertencentes ao plano de uma crítica do juízo, justamente esta encarregada de
compreender a complexidade dos elementos afectivos que estão envolvidos nas relações e
no processo produtivo e destrutivo do qual a arte (re)presenta o próprio movimento.
Uma noção de experiência limite da literatura procura se aproximar do que Deleuze
alude, de forma complexa em sua filosofia, do impensado do pensamento. Nesse sentido,
procuramos aproximar esse “impensado do pensamento” da noção de teatralidade da
literatura a partir de uma problematização sobre a noção de voz narrativa e do caráter
“neutro” dessa voz atuando como verdadeiro movimento dramático no interior do que
associaremos à forma genérica do conceito de récit em francês.
onde o pensamento se neutraliza em relação ao seu outro, ou seja, sua materialidade processual de escritura;
que a Crítica do juízo kantiana tenha surgido como desdobramento necessário às duas primeiras críticas e,
sobretudo, que a partir desse desdobramento se pensa numa criticidade estética limite tanto no interior quanto
exteriormente à criticidade teórica e prática no interior da metafísica kantiana, trata-se aí da importância para
Kant de estabelecer um questionamento que poderíamos chamar paradoxal, a saber, existiriam princípios de
fundamento a priori no que concerne aos juízos estéticos, ou em uma palavra, qual o estatuto ou a
fundamentação que regeria a atividade propriamente estética que se dá na esfera das artes? Questionamento
que se dá como verdadeiro entre-lugar nas críticas teóricas e práticas de Kant, ali onde uma espécie de
movimento descritivo infinito parece se abrir como possibilidade crítica no que diz respeito ao jogo de forças
próprio à atividade artística. Como se a crítica literária ou o discurso crítico em suas formas diversas e em suas
linhas teóricas variadas, bebessem finalmente dessa espécie de atribuição filiativa da crítica do juízo estético às
duas outras críticas kantianas. Como se entre um discurso teórico sobre a natureza e um discurso prático ou
moral sobre a liberdade, necessariamente irrompesse esse campo móvel de uma crítica das forças estéticas que
amparariam a própria atividade do pensamento, e que para além das categorias do entendimento e da razão,
fosse absolutamente necessária a compreensão e descritibilidade infinita desse movimento sobre o qual, no
limite, não podemos antever nenhuma finalidade que não seja redobrar os fins da atividade artística sobre a
própria crítica que os elabora sempre já como outra matéria, atribuindo sentido ao que não cessa de oferecer
seu próprio sentido, desde sempre fadado a ser especulado na forma de outra economia, na reverberação de
suas diferenças, no limite ou nos limiares do trabalho de desgaste produtivo ininterrupto a que a crítica deve
sua potência em relação à potência artística.
60
Finalmente, é nesse espaço de inversão ou de desestabilização crítico-epistêmica de
uma experiência fenomenológica ao qual se remete Foucault como assertiva a uma filiação
nietzscheana de Blanchot e Bataille e da qual ele mesmo fará parte junto a Deleuze e
Derrida - cada qual, bem entendido, criando sua própria singularidade teórica - que nós
acrescentaríamos o nome de Clarice Lispector como experimentadora limite dessas regiões
onde o impensado ou o inimaginado passa a ter, paradoxalmente, lugar a partir de um
movimento que chamamos teatrológico da literatura.
61
Sobre o conceito de experiência de escritura (literária).
La forme fascine quand on n'a plus la force de
comprendre la force en son dedans.
49
DERRIDA. « Force et signification » in
L’ecriture et la différence, p.11.
A experiência do fenomenólogo é, no fundo,
uma certa maneira de pôr um olhar reflexivo
sobre um objeto qualquer do vivido, sobre o
cotidiano em sua forma transitória, para
extrair as significações. Para Nietzsche,
Bataille, Blanchot, ao contrário, a experiência
é tentar chegar a um certo ponto da vida que
seja o mais próximo do invivível
[l´invivable]. O que se requer é o máximo de
intensidade e, ao mesmo tempo, de
impossibilidade. (...)
Por outro lado, a fenomenologia busca
restituir a significação da experiência
cotidiana para reencontrar em quê o sujeito
que sou é efetivamente fundador, em suas
funções transcendentais, dessa experiência e
de suas significações. Em contrapartida, a
experiência em Nietzsche, Blanchot, Bataille
tem por função arrancar o sujeito de si
mesmo, de fazer em sorte que ele não seja
mais ele mesmo ou que ele seja levado à sua
destruição ou à sua dissolução. É um
empreendimento de des-subjetivação.
FOUCAULT.
Entretien avec Michel Foucault
(281). «Conversazione con Michel Foucault»
In: Dits et Ecrits, vol II., pp. 861-862.
Em “La mort possible”, de L’espace littéraire, Blanchot estabelece uma discusão
sobre a palavra experiência. Essa passagem é exemplar para apresentar uma certa definição
desse conceito que é um dos nossos motivos de tematização e discussão.
De algum modo, a problemática inicial que orienta nosso trabalho de tese é
justamente a do problema da experiência literária operada a partir do conceito de escritura
acionado em chave pós-estruturalista
50
enquanto preocupação conceitual e estética,
49
DERRIDA, J. L’écriture et la Différence. Paris, Seiul, 1967.
50
Poderíamos atribuir um valor de “performação” ao gesto da escritura. O conceito de escritura que aqui
operamos é crítico da noção de linguagem, em geral, como representação do mundo e da noção de escritura,
em particular, como suplementar em relação à fala. O conceito de escritura, na linha de uma crítica da
metafísica da presença, é desenvolvido de forma mais incisiva a partir da segunda metade do século XX por
alguns teóricos e filósofos como Maurice Blanchot, Gilles Deleuze e Jacques Derrida dentre outros, como
conceito operador de uma crítica geral da representação. Esse conceito opera dinamicamente toda uma crítica
dos dualismos fundamentais tais como: essência/aparência, fala/escrita, identidade/diferença, exterior/interior,
62
desenvolvido no trabalho teórico e ficcional de Blanchot e na escritura ficcional e ensaística
de Clarice Lispector.
Citamos Blanchot:
L’oeuvre attire celui qui s’y consacre vers le point ou elle est à l’epreuve de son
impossibilité. En cela, elle est une expérience, mais que veut dire ce mot ? Dans un
passage de Malte, Rilke dit que « les vers ne sont pas des sentiments, ils sont des
expériences. Pour écrire un seul vers, il faut voir beaucoup de villes, d’hommes et des
choses… » Rilke ne veut pas dire cependant que le vers sera l’expression d’une
personnalité riche, capable de vivre et de avoir vécu. Les souvenirs sont nécessaires,
mais pour être oubliés, pour que dans cet oubli, dans le silence d’une profonde
métamorphose, naisse à la fin un mot, le premier mot d’un vers. Expérience signifie ici :
contact avec l’être, renouvelement de soi-même à ce contact – une épreuve mais qui
reste indeterminée.
51
Veremos adiante que essa problemática de um regime de atrações ou de um jogo de
forças no seio da experiência literária - que Foucault aponta ou identifica no conhecido
ensaio sobre Blanchot “La pensée du dehors”
52
- atravessará de algum modo nosso trabalho
etc, no sentido de fazer emergir uma outra capacidade “epistemológica”, ou digamos em outras palavras, uma
capacidade gestual e crítica de registro geral das forças discursivas que historicamente se basearam numa
dialética binária, opositiva e sintética.
O termo ou a noção de escritura será operado conceitualmente enquanto registro de valor e sentido da
linguagem a partir do dinamismo permutativo que lhe é próprio, fazendo jogar tanto o sentido quanto o valor
expressivos e formais, sentido e valor, então, pensados enquanto sistema semiótico iterável e disseminante da
própria linguagem, construtores tanto de uma realidade histórica quanto ficcional e paradoxalmente
coexistentes na dinâmica institucional da literatura. Escritura, para além de um suporte gráfico e lingüístico é
processo gestual expressivo, formal e semiologicamente teatrológico e passível de uma crítica ao nível das
forças, do valor e do sentido da escritura enquanto dimensão trans-histórica. Para além de uma dialética da
forma e do conteúdo, pensamos uma crítica do valor e do sentido da própria linguagem enquanto máquina
crítica imanente que associamos à imagem de uma teatralidade maquínica da literatura como possibilidade de
uma efeitva poética do pensamento, quando este se pensa no limiar de sua própria impossibilidade, aí onde
uma noção de efeitos e sensações pode dar lugar à construção e à performação de experiências que chamamos
limite.
Citamos um trecho de L’entretien infini de Blanchot como marca de compreensão epistemológica do que se
entende neste trabalho do termo escritura e de como se fará jogar na pesquisa essa noção-conceito. « Ecrire,
l’exigence d’écrire: non plus l’écriture qui s’est toujours mise (par une nécessité nullement évitable) au service
de la parole ou de la pensée dite idéaliste, c'est-à-dire moralisante, mais l’écriture qui, par sa force propre
lentement libérée (force aleatore d’absence), semble ne se consacrer qu’à elle-même qui reste sans identité et,
peu à peu, dégage des possibilités tout autres, une façon anônyme, distraite, différée et dispersée d’être en
rapport par laquelle tout est mis en cause, et d’abord l’idée de Dieu, du Moi, du Sujet, puis de la Verité et de
l’Un, puis l’idée du Livre et de l’œuvre, en sorte que cette escriture (entendue dans sa rigueur enigmatique),
loin d’avoir pour but, le Livre, en marquera plutôt la fin : écriture qu’on pourrait dire hors discours, hors
langage. » Cf. BLANCHOT, Maurice. L’entretien Infini. Paris, Gallimard, 1969. ( § 3, Note, p .VII)
51
BLANCHOT, Maurice. L’espace littéraire. Paris, Gallimard, 1955, p . 105. Na tradução brasileira : O
Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Rocco, 1987, p. 83.
52
Cf. « La pensée du dehors », in : FOUCAULT , Michel. Dits et écrits. 1954 -1975. Paris, Gallimard, 2001, p.
546. « L’attirance est pour Blanchot, c’est qu’est, sans doute, pour Sade le desir, pour Nietzsche la force, pour
Artaud la materialité de la pensée, pour Bataille la transgression : l’experience pure du dehors et la plus
denudée. (…) l’attirance (…) ne prend appui sur aucun charme, ne rompt aucune solitude, ne fonde aucune
communication positive. Être attiré, c’est n’est pas être invité par l’attrait de l’extérieur, c’est plutôt éprouver,
dans le vide et le dénouement, la presence du dehors, et, lié a cette presence, le fait qu’on est irremediablement
hors du dehors. Loin d’appeler l’interiorité à se rapprocher d’une autre, l’attirance manifeste impériosement
63
como uma espécie de problematização capilarizada e que tenderá a organizar, num certo
regime de tensões, uma conjuntura ou gestualidade teórica figurada no que se tem chamado
pós-estruturalismo no âmbito da crítica literária. Problematização que procura, sempre que
possível, operar uma relação geral entre um estatuto de crítica contemporânea da linguagem
e uma experiência da literatura enquanto campo de forças corpóreas e discursivas dada no
ato performativo da escritura.
Veremos também que essa experiência-limite da literatura será operacionalizada
junto ao termo épreuve que performa ou joga (com o que há nesse verbo de potência de
acaso e de irredutibilidade a uma finalidade) com o sentido de uma experiência tanto
corpórea ou imanente, quanto também de algum modo, transcendental, no sentido amplo de
eixos temáticos interseccionados como linguagem, significação e sentido a partir de um
questionamento crítico geral sobre o estatuto epistemológico do conceito de
(re)presentação. Justamente aí se encontrará o processo complexo que poderia ser chamado
pós-fenomenológico, seja o de uma experiência de escritura que ao tematizar o espaço de
suspensão do sentido, a partir de estratégias temáticas e semânticas, deve elaborar a si
própria - ou seja, essa experiência limite da literatura - como estratégia poética e retórica,
onde a linguagem se des-funcionaliza a partir de uma tática de desestabilização do sentido.
Esse seria o gesto próprio de um movimento crítico como o da desconstrução de Derrida por
que le dehors est là, ouvert, sans intimité, sans protection ni retenu (comment pourrait-il en avoir, lui qui n’a
pas d’intériorité, mais se déploie à l’infini hors de tout fermeture ?) ; mais qu’à cette ouverture même il n’est
pas possible d’avoir accés, car le dehors ne livre jamais son essence ; il ne peut pas s’ouvrir comme une
présence positive (…) mais seulement comme l’absence qui se retire au plus loin d’elle-même et se creuse
dans le signe qu’elle fait pour qu’on avance vers elle. » (pp. 553-554)
Diria que em A paixão segundo G.H essa possibilidade de um pivô conceitual seria da ordem de uma relação
angustiosa com a idéia sobre uma espécie de ancestralidade inumana, aí jogando uma experiência de ordem
pré-ontológica pela gestualidade e expressividade da escritura ou, por outro viés, que existiria uma
preocupação geral com a condição humana limitada a uma racionalidade impotente diante da abertura
fulgurante e selvagem de um mundo poético e de algum modo pré-filosófico. Essa ancestralidade imanente que
pulsa como vetor de atração ou de força na obra clariciana operaria a partir de uma tensão cética a respeito de
uma tematização geral onto-teológica acionada por um amplo corpus de escrituras teológicas, filosóficas e
literárias. Abre-se aí uma imensa problemática que consistiria em se delimitar dinamicamente a resultante entre
experiência literária e experiência fática traduzida na forma de uma chave ou acesso biográfico no mínimo
problemático. Na perspectiva deste trabalho poderíamos equacionar essa problemática da obra enquanto jogo
de forças dado na forma expressiva e literária de uma épreuve de escritura enquanto corpus e uma épreuve de
existência enquanto corpo. Desde já, indica-se a problemática de se ser tentado a fazer operar uma simples
atribuição polarizada entre o corpo e o corpus na obra. Procura-se, é verdade, dinamizar o mais sutilmente
possível esse jogo binário, justamente para se pensar numa sorte de construção cartográfica do jogo de forças
dessa tensão, ainda mais quando que se trata aqui de se entender duas obras e dois universos ficcionais dados
como eventualização de uma comparação critica literária. O conceito de teatralidade acionará em um segundo
64
exemplo e suas cadências e reverberações singulares nas obras de Jean-Luc Nancy, Philippe
Lacoue-Labarthe ou Didi-Huberman, por exemplo.
Trata-se de aceder a um registro do tratamento filosófico no interior mesmo dos
movimentos corpóreos dos personagens; ali onde a tematização de uma relação de um corpo
fático possivelmente acionado como relação de escritura bio ou esquizo-gráfica e de um
corpus de escritura é agenciada como o próprio da experiência da escritura, seja em sua
forma seja em sua expressividade.
Nesse sentido, um jogo de forças deveria ser discernido justamente onde a cena
literária trabalha indissociavelmente em relação de reciprocidade com a operação sutil de
expressividade que chamamos teatral e à que se procura associar uma preocupação teórica
do que chamaremos de economia crítica do estilo numa escritura literária.
Obra de uma poética do neutro, a linguagem literária em Blanchot e, de outro modo,
em Clarice, é o próprio espaço de épreuve, onde o sentido se escava
53
a si próprio se
movimento essa problematização teórica a respeito da noção de escritura literária, de tematização filosófica e
de performatividade ou de gestualidade crítica utilizada na tese.
53
Escavar-se seria a tradução para o verbo francês se creuser, ou talvez ainda, tornar oco, escavar, esvaziar,
são sentidos que freqüentemente pode-se ler em Blanchot, tanto em sua obra literária, quanto crítica. Diria que
esse termo atrai para si uma imagem des-subjetivante ou desfigurante de uma relação estética fático-ficcional
na qual seria explorada toda uma problemática da linguagem elevada ao sentido de épreuve ou prova-ção de
uma experiência específica da literatura. Para Foucault e Blanchot, por exemplo, essas formas de experiências
literárias limite e que se dão na forma do que chamamos épreuve de escritura, surgem de modo mais agudo no
final do século XIX e começo do século XX, a partir de Mallarmé, Rilke, Kafka, Proust, Breton, Bataille, Des
Fôrets, Artaud, etc., para então se desdobrarem e avançarem até obras como as de Blanchot e Beckett ou de
forma mais ampla e genêrica, em muito da produção do que se chamou, a partir de uma conceitualização do
proprio Blanchot, récit como expressão estética ou prova de uma nova experiência literária que faria frente ao
modelo de representação ou de ilusão romanesca da literatura de fins do séc. XIX.
De algum modo, entre esses marcos históricos citados, o agudo debate surrealista no qual se inserem Blanchot,
Bataille e Artaud como pensamentos ou contrapontos transgressivos é o próprio campo de prova e a expressão
de um limite teórico a ser “transposto” em relação ao problema geral da representação no âmbito estético e
filosófico da linguagem. A esse respeito o ensaio biográfico Maurice Blanchot: le partenaire invisible de
Christophe Bident, situa de forma abrangente e aguda as relações contextuais, estéticas, políticas e conceituais
que constroem a cena do pensamento blanchotiano no século XX na França.
Foucault dirá em “C’étais un nageur entre deux mots”, in Dits et écrits - I, pp. 582-85, a propósito de Breton,
que essa experiência seria algo de novo e que se descolaria inclusive da própria idéia de literatura e de
filosofia. É a partir desse ponto que pensaremos e evocaremos a possibilidade de operar um gesto crítico no
sentido de aproximar o trabalho da crítica da necessidade de “épreuver” o jogo de inflexão de uma linguagem
literária limite e da necessidade da crítica em prová-lo não como domesticação e interpretação da forma, mas
como desdobramento da força própria do texto na gestualidade crítica.
Entendemos escritura literária enquanto verdadeira maquínica de linguagem que escava e esvazia o sentido
tornando-o matéria de abstração, porém a partir de uma potencialização singular de seu próprio trabalho crítico
incidindo sobre sua dimensão de experiência. Essa dimensão singular de épreuve ou prova-ção a que a
literatura passa a operar, de forma mais aguda a partir do surrealismo e de sua transposição, se desdobra
justamente no contexto de uma releitura da fenomenologia de Husserl. Ali onde a filosofia procura suspender o
65
reelaborando numa relação agônica e muitas vezes aporética e onde certas imagens do
corpo, do espaço e do tempo se conjugam num campo de subjetividade plural, poroso,
invocando uma relação com os próprios limites da experiência enquanto linguagem, seja o
termo de experiência justamente o campo ou o plano de (im)possibilidade do sentido. É o
que repete Blanchot a partir de uma leitura singular de Heidegger que poderíamos indicar
como um programa crítico pós-fenomenológico operado a partir de uma preocupação que
apontaríamos como uma estética das forças ou uma crítica ontológica da obra enquanto
trabalho e jogo iterável da escritura. L’espace literaire e L’entretien infini aparecerão aqui
como material teórico incontornável.
O conceito de experiência-limite que acionaremos ao lado da noção de épreuve no
caso das narrativas de Clarice e de Blanchot, poderia ser pensado como um espaço de
impossibilidade de descrição objetiva de certos processos ou cenas da narrativa, mas que,
contudo, numa espécie de contracorrente, abriria justamente a possibilidade de uma criação
literária densificada por essa vizinhança, diríamos atópica e incansavelmente limítrofe, entre
o que é da ordem do corpóreo e do que pode se desenvolver poeticamente a partir de uma
narrativa delirante, paradoxal e vórtica. Esse movimento de imagens dado muitas vezes na
forma de uma prosa poética será operado conceitualmente em alguns momentos pelos
termos “experiência-limite da literatura” ou também como a própria épreuve dessa escritura.
juízo em relação à “coisa” fática do mundo, a literatura prova uma espécie de intersecção (i)mediata entre os
pólos da experiência do pensamento.
Entre sujeito cognoscente e objeto cognoscível opera uma tensão própria ao trabalho poético e retórico da e
sobre a linguagem. Enquanto uma determinada relação da filosofia com a verdade é impulssionada ao seu
limite pela fenomenologia, a literatura estabelece um nexo diferente e de outro nível com esse limite. Na
verdade esse limite passa a não ser simplesmente suspendido ou posto entre parênteses por uma experiência
limite da literatura.
Se Husserl pensa numa estratégia lógico-filosófica, époché; a experiência de uma épreuve de escritura fará
jogar o sentido para além dessa suspensão, diríamos que exercerá uma força de sobre-suspensão ou uma sur-
époché. A linguagem, nesse nível de inflexão que gera uma experiência-limite do real seria da ordem da
própria relação intrínseca do consciente e do inconsciente, do imaginário e do simbólico operados por um jogo
de forças entre os signos e sua matéria de dinamismo criador que é uma capacidade do real ser posto a prova,
ou seja, ser experimentado de forma imanente. Campo da sensação, mas conceptualizado a partir da percepção
sensível, o real passa a ser “provado” enquanto trabalho da linguagem sobre sua própria extensão afectiva,
perceptiva e conceptiva. Como dirá Deleuze em O que é a filosofia, p. 211, são modos diferentes de apreensão
do real pensado enquanto plano de imanência que operam a filosofia, a ciência e a arte. Conceptos, perceptos e
afectos. Entre sujeito e objeto se ainda nos é necessária a polarização, se interpenetram numa velocidade
infinita e num jogo de forças intensivos três modos de relação e de operação de sistema múltiplo e complexo
da experiência-pensamento-linguagem. Mas cada um destes termos ou modos do ser acabam por agenciar uma
épreuve no plano de imanência mais intensificado ou gerenciado de certas finalidades que são de algum modo
a motivação de uma intenção que esboçara a materialidade de uma produção específica do pensamento. Em
66
Por outro lado, um acesso crítico à experiência limite literária obriga de algum modo a se
pensar junto a Blanchot nesse termo de uma épreuve no próprio processo crítico. Essa
experiência crítica sobre uma experiência literária que chamamos limite se direciona a um
certo movimento que chamaremos quiasmático. Pois, se há uma problematização em se
experimentar o próprio de uma representação problemática (leia-se: a crítica) com um
sentido limite do literário, esse espaço de crise abriria justamente um outro espaço de crise
sobredeterminado pela fronteira irredutível da experiência de leitura da obra e a experiência
de escritura da crítica. Daí a intenção de ao menos um sobrevôo teórico sobre o que se
chama aqui de economia crítica do estilo.
Se uma experiência limite é possível enquanto escritura literária, ela resvala ou se
direciona a linhas de fuga estilísticas relacionadas a estratégias próprias do trabalho poético
e retórico com a linguagem. Essa propriedade ou essa força do literário se afastaria, tanto
quanto se aproximaria, de uma crítica que deveria, nesse movimento paradoxal, se
descaracterizar enquanto linguagem crítica e se reinventar enquanto movimento ou
gestualidade crítica que se avizinharão dessa autenticidade de estilo ou dos modos
expressivos agenciados no trabalho da obra literária. O quiasma é o espaço sempre escavado
e (re)presentado por uma gestualidade irredutível da obra tanto quanto esta é irredutível à
crítica. Daí a necessidade de um encavalamento do comentário, da citação, da parodia e
finalmente do ensaístico corroborado por uma programática de notas e seus efeitos de
desvio.
Dessa experiência de leitura limite ou limítrofe em Clarice ou Blanchot, que arrasta o
leitor até os confins de uma espécie de intersecção angustiosa de um relato delirante e
contudo absolutamente coerente em sua deriva ontológica, prova-se uma indeterminação ou
uma suspensão do sentido que se elabora no trabalho ininterrupto de uma busca não revelada
pelos personagens a partir de uma certa prova-ção ou épreuve de experiências-limite. São os
temas da afetividade que são estirados a uma dimensão de improbabilidade de resolução.
São pensamentos que escorrem dos corpos mesmos que se diluem nessa improvável
conquista de entendimento sobre o destino de um amor ou de uma amizade que, desejados
em sua completude, não são alcançados a não ser a partir de uma confrontação fantasmática
resumo: a) filosófica, dispositivada por reflexividade e conceptualisação; b) científica, funcionalisada por
functividade e percepção ou finalmente c) artística, performada por composição e afectuação.
67
com um outro ou o outro que sempre se distancia, mesmo que para cada vez, se
reaproximar, seja como (im)possível realidade fática no interior da ficção, seja como
fantasia ou fantasma ou indeterminação suspensiva do espaço ontológico em que se funda a
cena em sua teatralidade
54
ficcional. Daí a preocupação em se constituir num segundo
movimento desta pesquisa uma cartografia gestual que poderia articular a dinâmica de uma
tematização especulativa absolutamente liberada de uma expressividade filosófica, mas
justamente potencializada por uma performatividade cênica apoiada no que chamamos de
teatralidade maquínica da narrativa.
Assim, veremos que a imagem da perda de uma terceira perna no inicio de A paixão
segundo G.H. performa uma complexidade expressiva que faz jogar de forma singular o
próprio cerne da experiência angustiosa de sobrepassamento transcendental que narra a
protagonista. A perda de um excesso inútil é a própria imagem de uma ação neutra e de
sentido suspensivo, trabalhando a cena numa espécie de escavação do próprio sentido
agônico que vai ser redobrado e desdobrado numa invaginação inclusive expressiva na
seqüência de repetições de frases no fim e no início de cada “parte” ou capítulo sem marca
numérica do texto de Clarice. Do mesmo modo, como se verá adiante, a cena de Thomas
escavando sua própria cova, e em um determinado momento criando a imagem da sensação
da escavação de seu próprio corpo, como se seu corpo se desfigura-se numa relação
metafórica com a imagem conceitualmente impossível da descrição de sua própria morte.
54
Philippe Lacoue-Labarthe, em “A cesura do especulativo”, aproxima e procura relacionar uma força teatral
do trágico como de algum modo originária de um espaço de jogo no interior da própria filosofia. Partindo de
um ensaio de Peter Szondi intitulado Ensaio sobre o Trágico, Lacoue-Labarthe intenta descrever os nexos e
paradoxos que jogam na questão mesma do fundamento, mesmo que sem origem determinada, do trágico na
operação filosófica. A preocupação e seu centro excêntrico, como ele diz, se localiza no trabalho de tradução e
observação teórica de Hörderlin. Da poética de Aristóteles à filosofia romântica alemã, particularmente com
Schelling, nesse ensaio, Lacoue-Labarthe faz ressoar essa desconcertante filiação do trabalho de uma poética
do trágico sobre o tecido do especulativo. Na verdade, trata-se nesse livro de fazer ressoar as contradições
produtivas de uma relação irredutível à identificação de todo um ethos moderno se diferenciando na própria
repetição interpretativa dada nas traduções das peças trágicas gregas como Édipo-Rei e Antígona por exemplo.
Se nosso intuito é o de fazer operar uma certa máquina teatral a partir da leitura de uma gestualidade dos
corpos nos textos de Clarice e Blanchot, essa intenção prevê essa correspondência, digamos, filiativa entre uma
poética do trágico e o trabalho do especulativo enquanto crítica literária. Citamos Lacoue-Labarthe: “E se, de
fato, a natureza da operação filosófica em geral (e especulativa em particular) é fundamentalmente econômica,
o próprio principio dessa economia é a relação espetacular, e seu aspecto mimético é oferecido pela própria
estrutura da teatralidade à filosofia. E à filosofia de Schelling também, que só inaugura, como se vê, o
pensamento trágico tornando-se o eco da poética da tragédia e, até mesmo, de mais longe, do antigo fundo do
ritual e do sacrificial, dos quais tudo indica, de fato, que a catarse de Aristóteles seja também a justificação e a
transposição filosóficas. Ou ainda, um não exclui o outro, a sua verificação lógica”. Cf. Lacoue-Labarthe,
Philippe. A imitação dos modernos: Ensaios sobre Arte e Filosofia. Orgs. Virginia de A. Figueiredo e João
Camillo Penna. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 192.
68
Ora, o que se extigue de sua consciência no momento da morte não pode jamais ter relação
fática com esse evento paradoxal e absolutamente inexpressivo da morte, pois a morte é
virtualidade sempre interiormente possível e atualidade exteriormente impossível do ser
vivente. Veremos que esse tema é uma imagem de certo modo fundamental e essencial na
obra branchotiana. Nesse ponto Blanchot faz uma leitura diferenciante do conceito de ser-
para-a-morte de Heidegger e nesse ponto é que elabora sua verdadeira singularidade
conceitual ao desenvolver toda a tematização do conceito de neutro.
Porém, essa distância (seja no monólogo clariciano de G.H, seja no récit
55
blanchotiano) não é nunca simples separação seguida de angústia. É antes um trabalho de
negativização de uma construção elaborada do desejo de união, do desejo de mergulho na
interioridade alheia, esta, contudo, sempre solapada pela vertigem de uma reaproximação da
imagem do outro. Essa imagem é um dos núcleos da problemática estética filosófica de
Thomas L’obscur. Pois é a problemática da imagem como espécie de subjectum “quântico”
que deverá ser explorada mais adiante.
A imagem seria o próprio complexo de uma virtualidade atualizada no desejo de
escritura. Esse bloco afectivo-perceptivo é trabalhado nos termos da paradoxologia
blanchotiana (trabalho estético teórico da noção de neutro, que é operado, por exemplo,
enquanto procedimento discursivo e ficcional, na estratégia retórica e semântica de operação
ou neutralização dialética de seus enunciados)
56
. Este imagem afectiva poderia de algum
55
Sobre a problemática teórica do que se instituiu na crítica literária francesa como definição de um gênero à
parte, o récit, termo conceitualizado pelo próprio Blanchot e que pode ser traduzido com cautela por “relato”
ou “novela”, citamos trecho do livro de Dominique Rabaté no qual é desenvolvido um ensaio sobre a
articulação expressiva, formal e teórica deste “gênero” literário que se desenvolve, no caso da literatura
francesa, principalmente a partir da segunda metade do século XX, performando o trabalho de uma voz
narrativa que extrapola os limites de uma ilusão mimética realista ao desdobrar toda a complexidade da
operação narrativa enquanto performação poética e egológica. Nesse sentido é que retomamos essa discussão
sobre o caráter perfomativo e dramático do récit para além de uma descrição ou aplicação teórica e em direção
a uma experiência crítica propriamente dita no sentido do que chamamos de teatralidade maquínica do texto
ficcional em Clarice e em Blanchot. « (...) Le narrateur de chacun de ces récit se présente plutôt comme um
locuteur; il met clairement l’accent sur l’acte de parole qu’il est en train d’accomplir pour un destinataire plus
ou moins personnalisé. La narration se met donc en scène selon un certain effet de voix.
(…) La dimension qui est ainsi visée est bien celle d’une theatralité spécifique au texte littéraire quand il a pris
conscience de son formidable pouvoir de separation : espace de la scène, role du monologue en attente de
réponse, pratiques du jeau de l’acteur avec ses pauses et ses déguisements. » Cf. RABATTÉ, D. Vers une
littérature de l’épuisement. José Corti, Pqris, 2004. P.17, 18.
56
Remetemos, quanto ao sentido que damos ao termo “paradoxologia blanchotiana”, ao absolutamente
esclarecedor capítulo “Respecter le Scandale” – Critique Litteraire, 1945-1948” do livro de Christophe Bident:
Maurice Blanchot – Le partenaire invisible, Champ Vallon, Seyssel, 1998, pp. 242-258. Nesse capítulo, Bident
apresenta tanto um desenvolvimento dos processos históricos e políticos da construção da maquinaria teórico e
69
modo, ser percebida quando a narradora alegoriza vertiginosamente uma experiência de
paixão e angústia em G.H., nessa figuração onde há toda uma parabóla filosófica e
“teológica” sobre a destinação do humano enquanto processo sem finalidade que não passe
por uma paradoxal supliciação agônica e sublime do eu.
57
Essa imagem que tentamos descrever como paradoxal, bloco afectivo-perceptivo e o
que ela opera como figuração de uma voz narrativa neutra, poderia ser descrita como aquilo
que não se dirigiria finalmente, a não ser em direção aos confins de uma ética
sobredeterminada por um jogo literário de forças irredutíveis a um estatuto ontológico do
Eu, do Outro e sob a forma de uma espécie de impessoalidade obtusa. Esse bloco afectivo
ou essa voz narrativa que se move como que travestida em voz narradora se articulará
adiante em nossa pequisa sob a forma conceitual do que chamaremos Eu-eu-outro.
crítica que coexistem no estilo blanchotiano, e que tomam uma forma mais operatória nesse período do recém
pós-guerra.
57
Seria necessário apontar a necessidade da aproximação ao tema da Communauté désouvrée de Jean-Luc
Nancy. Basicamente, se indicará uma linha de força e de intersecção dada na forma da estratégia de se pensar o
gesto de escritura e de ficcionalização como produtor de uma teatralidade maquínica em Thomas L’obscur e
em A paixão segundo G.H. Teatralidade esta, operada por estratégias específicas de trato com a imagem
literária como possibilidade de uma performação estético filosófica. O tema da dessubjetivisação, da morte e
da relação da escritura com a morte e o corpo, da morte como limite ou limiar de uma transgressão impossível
entre uma caracterização agônica do eu sempre transtornado em outro-de-si, ou como veremos, eu como
passagem agônica de um em-si para um fora-de-si, elaborado necessariamente nesse espaço de espaçamento
(l’é-loignement) e de atopia que se reverte o literário como encontro paradoxal de uma im-possibilidade
comunitária; a literatura neste sentido espaça o próprio de uma possibilidade inumana do humano, ali onde
categorias filosóficas devem ser performadas por uma poética sem finalidade a não ser que transtornadora do
ontológico enquanto tal. Comunidade de sentido sempre em escassez e incompletude, ou seja, escavação e
desfiguração de seu proprio espaço de sentido, forjando no porvir (a própria virtualidade e potência do
espaçamento enquanto dimensão do Dasein para Heidegger) sua própria atuação teatralizada e alegorizada por
uma série de intersecções, como por exemplo, em termos de uma expressividade literária ou da voz narrativa: o
ritmo heterogêneo da própria relação entre uma abstração convulsiva do “Eu” e sua performação narrativa
como ficcionalização de si-mesmo na forma imediata de um “eu” fora-de-si, perpassado constante e
imediatamente por uma constitutividade imanente do jogo de diferenças irredutível em relação ao “outro”
como ipseidade e absolutamente separado de minha finitude. Porém, essa irredutibilidade de um Eu-eu-outro é
dada pela complexidade de uma comunidade que des-obra constantemente o que a faz abstratamente coesa.
A morte funda sem fundamento lógico possível a própria irredutibilidade de uma união fadada ao fracasso,
união dos semelhantes na morte. Morte im-possível de ser compartilhada na imediatidade de sua facticidade.
Caberia à literatura pairar sobre essa inconstância tétrica e tética, permanecendo como a própria produção do
espaçamento, da virtualidade e da potência de um porvir incalculável e sem finalidade aparente. Essa
comunidade a partir de uma leitura que faz Nancy e Blanchot, é a própria imagem irredutível de um mundo
para além de uma dicotomização entre natureza e cultura, ou como diz Agambem, mundo operado como
desdobramento constitutivo entre Bios e Zoé, ou, respectivamente, natureza diurna de uma politização dos
corpos na sociedade moderna e natureza noturna e nua de um mundo que abarcaria em sua obscuridade radical
e arqui-ontológica, a própria possibilidade da literatura como expressividade de um pensamento para além de
uma filosofia comprometida com o trabalho transcendente de uma metafísica da presença, seja lá qual for sua
tendência epistêmica, se assim podemos dizer.
70
A relação egológica performada no relato ficcional, se assim podemos dizer, se
tensiona a partir de imagens que são elaboradas como o próprio trabalho temático da
escritura; trabalho sobre subjetividade, ou melhor, performação de uma dessubjetivação
posta a prova na forma aporética e poético-imagética do que chamamos experiência-limite
literária; onde figuras como as de êxtase e morte se coagulam na forma de uma espécie de
fulguração passiva do neutro; campo talvez hipostásico de encontro e da repulsão entre uma
dimensão imanente da consciência da escritura e sua correspondência literário-discursiva.
Quanto ao ficcional, citamos o início de Thomas L’obscur segunda versão: « Thomas
s’assit et regarda la mer. Pendant quelque temps il resta immobile, comme s’il était venu là
pour suivre les mouvements des autres nageurs et, bien que la brume l’empêchât de voir très
loin, il demeura, avec obstination, les yeux fixés sur ces corps qui flottaient difficilement. »
O personagem está sempre entre um jogo de forças semânticas e poéticas de neutralização.
Ele resta imóvel frente ao próprio devir do movimento que representa o mar, como se ele
tivesse ido ali para ficar imóvel ao mesmo tempo em que segue os movimentos dos outros
nadadores. Mesmo que uma bruma o impeça de enxergar, ele permanece com obstinação e
com olhos fixos a observar aqueles corpos que flutuam com dificuldade. Flutuar é um verbo
que indica uma imagem de facilidade e certa tranqüilidade naturais, uma deriva ou uma
inércia agradável; mas que ao mesmo tempo em que é associado ao termo negativo atribuído
pela palavra dificuldade, cria uma imagem maquinicamente neutra, junto à seqüência das
imagens que vão, na cadência dessas oposições semânticas, criando a verdadeira maquínica
ou poética do neutro na ficção blanchotiana. O mesmo ocorre nos textos teóricos e críticos
sem, contudo, adquirir a mesma potência poética própria do discurso ficcional de Blanchot.
Ao mesmo tempo em que coexiste o distanciamento entre seres objetalisados pelo
desejo de sua conquista impossível, é o próprio Eu-eu-outro de cada personagem que se
fragmenta e se volatiliza na incomensurável aventura desses solipsismos desterritorialisados,
(mesmo que se trate de linhas de fuga falsamente monológicas, no caso de G.H., ou
heterológicas, no caso do Thomas). Aí se interpenetram os pólos diluídos de uma deriva sem
fim que é operada a partir de certas imagens paradoxais e de uma tematização do corpo que
migra de instâncias concretas e afetadas pela angústia, a modos espectralizados onde
nenhum afecto pode se materializar sem antes passar por todo um jogo de elaborações
sucessivas e paradoxais da linguagem.
71
A figura ou as personas que nesse jogo de atrações são mascaradas, são solapadas ao
fundo móvel e abismal de suas correlações. Os personagens como G.H. ou como Thomas e
Anne, por exemplo, são performados por uma escritura que os faz representar sua
irrepresentabilidade a partir do próprio modo como é conduzido um movimento incessante e
descritivo de seus pensamentos, sem finalidade aparente que não a de tematizar a
incapacidade de resolução ou de conclusão sobre seus próprios questionamentos, seja sobre
a origem, seja sobre o sentido de suas angústias. De algum modo, o próprio de uma afecção
angustiosa é neutralizado por esse movimento incessante. Não é mais de angústia do que se
trata, mas da impossibilidade de descrição objetiva dessa complexidade aberrante que se dá
como aporia ontológica entre ser e não ser, jamais tematizada como discurso de
inteligibilidade, mas performado poeticamente a partir de uma maquínica imagética
extremamente complexa, que faz jogar os extremos e suas possibilidades dialéticas como
indeterminação constitutiva do próprio movimento. Como infinitização de uma máquina
lógica só possível a partir de recursos poéticos, finalmente literários e para além de um
alcance filosófico, ocorre a abertura para uma verdadeira experimentação do subjetivo de
suas desfigurações fenomenais que finalmente levariam a experiência literária para além de
uma pura potencialidade conceptual filosófica.
Essa determinação, ou melhor, sobredeterminação da experiência pensada como
desdobramento de si para um “fora-de-si” se dá como escavação ou esvaziamento do sentido
por excesso e transbordamento de relações de força entre um eu geralmente em deriva em
relação às forças que o envolvem. Seja no sentido de um embate com os objetos exteriores à
subjetividade, seja inversamente e conjugadamente na indeterminação fenomenológica
desse embate hibridizado entre observador e observado.
De certo modo, essas instâncias binárias serão dissolvidas por um tratamento
singular da linguagem que poeticamente desestabiliza um único sentido entre uma atividade
subjetiva e seus correspondentes objetais exteriores. Não há mais que uma corrosão
desenfreada do sentido a partir de jogos de força específicos entre uma subjetividade narrada
como à deriva de si, se confundindo nessa experiência ato e objeto de experiência, narração
e performação de ações no nível do enredo.
A experiência literária, em Clarice e em Blanchot, amalgamaria uma sorte de relação
invaginada entre o que pertenceria ao nível da experiência fática como gestualidade do ato
72
de escritura e a performação maquinada na dimensão da narrativa como exploração e
desdobramento de uma subjetividade dúplice, abismal, plural e tensionada no trabalho de
ficcionalização que comporta a escritura literária.
Essa instância de “fuga” ou linha de força despersonalisante de uma unidade interior
para uma pluralidade de modos de ser exteriores, opera enquanto abertura e atração à uma
exterioridade dúplice, ali mesmo onde se organiza pela escritura uma necessidade de
excrescência do sensível. Experiência-limite ou experiência do fora, tanto em Thomas
L’obscur quanto em A paixão segundo G.H., veremos a possibilidade de escrituras que
provam ou provocam pelo trabalho de uma poética de esvaziamento ou de suspensão do
sentido, trabalho da angústia ou experiência “extática”; em Clarice veremos essa experiência
como um “êxtase desmistificado”, imanente.
Esse campo limiar é o espaço borrado onde se dá a prova-ção de uma literatura que
experimentaria o corpo em seu excesso fantasmático. Diria que é uma espécie de
emergência de um campo transcendental dado na atividade criadora da escritura. Ali onde o
corpo se espectraliza no jogo de forças com outros corpos, sejam ficcionais, sejam auto-
esquizo-bio-gráficos, delimitando variavelmente desde o regime de atrações que aí se
conjuga, o espaço aberto e circunexcrito
58
de um corpus literário.
Para podermos aceder a alguns vetores conceptuais que expomos, seria interessante
perceber como a questão da experiência literária está relacionada à noção de limite e á sua
sobredeterminação crítica limiar. Uma das faces dessa sobredeterminação limiar, tanto da
experiência literária quanto da crítica que aí se fronteiriça e se dilui, se dá como uma
possibilidade especulativa sobre uma certa atopia ou aporética da morte.
O limite será sempre a possibilidade do pensamento se retorcer sobre si próprio
diante do evento da morte. Evento que Blanchot descreve como sendo da ordem de uma
impossibilidade possível. Experiência (im)possível portanto, a morte que marca ou nomeia
ficcionalmente uma dimensão fronteiriça móvel e indeterminada, o evento de um certo
aniquilamento de uma consciência objetiva, é teoricamente em Blanchot, uma
conceptualidade fundamental (afundante para Derrida no que diz respeito a uma
58
Em Corpus (Paris, Metalié, 2001), Jean Luc Nancy elabora uma reflexão filosófica vertiginosa sobre o corpo
enquanto campo de forças imanentes. É uma ontologia do corpo, se é possível assim dizer, onde um corpus de
escritura se elabora incessantemente performando uma possibilidade de pensamento corpóreo, ou de descrição
de um corpus do pensamento. Pensamento da imanência ou imanência de um pensamento.
73
originalidade essencial do logos que pretende constituir a filosofia como metafísica da
presença) que descreve e potencializa o próprio jogo singular da literatura como trabalho de
uma solidão essencial e limiar.
Nesse sentido, existe nesse mesmo capítulo de L’espace littéraire, intitulado
“L’oeuvre et l’espace de la mort” toda uma discussão a respeito do sentido impossível ou de
uma finalidade paradoxal do suicídio - ao menos em sua tematização como discussão
filosófico-literária - vale dizer, do suicídio enquanto desafio da morte ou desafio de um
devir-morte do homem. Dessa mesma discussão Blanchot associa a tarefa ou a experiência
artística como sendo da mesma ordem da paradoxal relação do suicídio com a morte.
Melhor dizendo, há na tarefa literária o movimento de uma atração daquele que se consagra
à obra na dimensão de uma paradoxal (im)possibilidade de experiência da morte. O suicídio
não poderia realizar a morte em última instância, pois a própria morte teria uma qualidade
dúplice e de certo modo paradoxal. Morte enquanto possibilidade do devir-morte do ser
enquanto ente, e morte enquanto potência de dissimulação inabordável objetivamente, pois
dimensão absolutamente ausente de qualquer experiência descritiva e ontologicamente
acessível. Metaforicamente, essa instância da morte seria como a própria sombra a qual
jamais se pode saltar. A tarefa artística, nessa associação, teria como finalidade a própria
impossibilidade de alcance a uma finalidade absoluta. Pela obra, a tarefa artística dissimula
seu próprio fim e relança aos confins de sua experiência sua própria potência de elaboração.
Blanchot relembra Valéry: « Le vrai peintre, toute sa vie, cherche la peinture; le vrai
poète, la poesie, etc. Car ce ne sont point des activités déterminées, dans celles-ci il faut
crier le besoin, le but, les moyens, et jusqu’aux obstacles… »
59
A experiência literária é da
ordem de uma atividade que ao se exercer se escavaria (se creuser) ou redobraria numa
espécie de invaginação ontológica sobre seu próprio objeto, desde sempre inseparável da
ação que aí se elabora como uma espécie de irredutibilidade dialética da obra.
Não há uma determinação fechada de finalidade em cada momento da execução de
um projeto ou de uma obra literária. Inclusive, a tela ou o poema, ou a obra artística tem
uma relação processual com seus elementos de produção, com seus rascunhos, esboços,
falhas, desvios e “erros” de percurso. Os “dejetos” de obra seriam também numa certa
perspectiva, da mesma qualidade ontológica que uma determinada versão final da obra.
59
BLANCHOT, Maurice. L’espace Littéraire. Paris, Folio Essais, Gallimard, 1955, 2005, p. 105.
74
Em um dos subcapítulos da parte intitulada “L’oeuvre et l’espace de la mort”, a
tarefa artística ou obra literária será analisada junto a uma reflexão associada ao tema do
suicídio a partir de uma análise de Blanchot sobre o personagem Kirilov de Dostoievski
60
. A
especulação literária sobre o ato suicida, nesse sentido, teria uma estranha relação estética
assim como a tarefa artística também operaria constitutivamente uma relação da finitude do
ser à abertura do mundo enquanto espaço possível de experiência do sublime.
Kirilov teria o desafio de afrontar Deus associado filosoficamente ao conceito de
absoluto, quando, ao elaborar toda uma espécie de filosofia do sentido do suicídio
consciente e voluntário, não conseguirá evitar o fracasso de sua própria intenção no
desenrolar da trama.
Toda a questão se resume ao caráter dúplice da morte e ao sentido absolutamente
paradoxal desta enquanto evento possivelmente atópico e atemporal para a consciência que
nesse movimento se extinguiria.
Um pouco mais adiante em “L’art, le suicide”, Blanchot explica sua aproximação
após ter associado não de forma análoga, mas aproximativa e relacional, a relação paradoxal
entre o a morte voluntária e a tematização literária do suicídio e a tarefa artística enquanto
experiência própria e limite da literatura. No fundo móvel da experiência literária emergeria
um duplo efeito de reinversão do sentido de uma busca. Sentido este que é relacionado por
Blanchot como uma experiência do incessante e do interminável. Se a especulação do
suicídio não pode chegar a termo a partir das aporias insondáveis entre evento e finalidade
ético-ontológica do ato, a experiência literária também opera uma relação nesse sentido
aporética com uma finalidade irredutível a seu exercício.
Nesse sentido, assim como dizia Rilke, a concomitância de presença e ausência de
uma “substância” do vivido, seriam os pólos aproximados dessa aporética da experiência
poética ou literária em relação ao tema do suicídio filosófico transubstanciado na
especulação do personagem Kirilov.
Ce rapprochement peut choquer, mais il n’a rien de surprenant, dans la mesure ou,
en se détournant des apparences, l’on comprend que ces deux mouvements mettent à
l’épreuve une forme singuliére de possibilité. Dans les deux cas, il s’agit d’un pouvoir qui
veut être pouvoir encore auprés de l’inssaisissable, là où cesse le royaume des fins. Dans
les deux cas intervient un saut invisible, mais décisif : non pas en ses sens que, par la mort,
nous passerions à l’inconnu, qu’après la mort, nous serions livré à l’au-delà insondable.
Non : c’est l’act même de mourir qui est ce saut, qui est la profondeur vide de l’au-delà,
60
Cf. Op. Cit., pp. 119-124.
75
c’est le fact de mourir qui inclut un renversement radical, par lequel la mort qui étais la
forme extreme de mon pouvoir ne devient pas seulement ce qui me dessaisit en me jetant
hors de mon pouvoir de commencer et même de finir, mais devient ce qui est sans
relations avec moi, sans pouvoir sur moi, ce qui est dénoué de tout possibilité, l’irrealité de
l’ndefini. Renversement que je ne puis me représenter, que je ne puis même concevoir
comme définitif, qui n’est pas la passage irréversible au-delà duquel il n’y aurait pas de
retour, car il est ce qui ne s’accomplit pas, l’interminable et l’incessant.
Le suicide est orienté vers ce renversement comme vers sa fin. L’œuvre de
recherche comme son origine.
61
Dessa longa citação, que serviria para dar a tônica e a poética próprias de Blanchot
sobre a questão, nos ateremos ao último parágrafo. Esse limite, ou esse limiar, é a linha de
fronteira esboçada e como que vorticizada aquém e para além de uma perspectiva de
redução fenomenológica. Veremos que há toda uma conceptualização desse entre-lugar
especulativo na crítica blanchotiana, espaço literário no qual Blanchot irá fazer operar o
conceito de Neutro como articulação especulativa para além de uma experiência
fenomenológica da literatura.
Em relação a essa experiência, digamos, de “suicídio hipertransgressivo” haveria
uma abordagem especulativa sobre uma dimensão inexorável ou, antes, paradoxal, da morte.
Já para a obra artística o limiar do espaço aberto na morte, essa dimensão paradoxal e
inabordável (sem bordas, sem limites), se encontraria como origem sem fundamento,
verdadeiro campo seminal da tarefa artística. Morte como dimensão vazia e obscura, espaço
do obtuso, ponto cego onde nenhum olhar pode alcançar sem desvio; esse espaço é um
campo de forças onde reina certa passividade para além do passivo
62
, ou seja, que toda ação
em direção à tarefa literária se daria como uma espécie de finalidade incessante e paradoxal
dessa mesma experiência de elaboração expressiva de uma presença que ao se atribuir como
sentido remete sempre ao lapso ou à cesura da representação de uma idealidade.
Blanchot em “Les deux versions de l’imaginaire”, desestabiliza uma dicotomia
básica em relação ao trabalho do negativo ou, em outras palavras, em relação ao processo
61
Op Cit. P. 133. Cf. na tradução em português: O Espaço Literário, Rocco, 1987. pp. 103-4.
62
São já conhecidas as referências à obra de Melville Bartleby, na qual a frase que o funcionário pronuncia “I
would prefer not” (“Eu prefereria não”), pela qual as teorias pós-estruturalistas figuram uma postura aporética
em relação ao sentido. Essa postura em suspenção, a prorrogação ad infinitun da intencionalidade se dá como
atribuição originaria e ativa de uma intenção que, entretanto, enuncia uma espécie de neutralização paradoxal
da ação no entanto promulgada. Passividade para além do passivo, essa ética de suspenção ativa do sentido é a
tônica de toda discussão ética profunda da contemporaneidade. Como o diz Deleuze, escrever é sempre um
devir-outra coisa que não o escritor. É um trabalho infindável onde uma finalidade só tem lugar enquanto
processo, paradoxal em sua própria enunciação essa finalidade se desprende mais de uma escrita do desejo do
que de um desejo de escrita.
76
dialético em si como máquina infinita do entendimento. Aí o que se vê é uma critica (de
filiação nietzscheana e heideggeriana) à fenomenologia de Sartre
63
ou mais amplamente,
uma crítica à dialética teleológica de Hegel.
L’image d’après l’analyse commune, est après l’objet : elle en est la suite ; nous
voyons, puis nous imaginons. Après l’objet viendrais l’objet. « Après » signifie qu’il
faut d’abord que la chose s’éloigne pour se laisser ressaisir. Mais cette éloignement n’est
pas le simple changement de place d’un mobile qui demeurerait, cepedant le même.
L’éloignement est ici au coeur de la chose . La chose était là, que nous saisissions dans
le mouvement vivant d’une action compréhensive, - et, devenue image, instantaneament
la voilà l’insaisissable, l’inactuelle, l’impassible, non pas la même chose éloignée, mais
cette chose comme éloignement, la présente dans son absense, la saisissable parce
qu’insaisisable, apparaissent en tant que disparue, le retour de ce que ne revient pas, le
cœur étrange du lointain comme vi et cœur unique de la chose.
Dans l’image, l’objet effleure à nouveau quelque chose qu’il avait maîtrisé pour
être objet, contre quoi il s’était édifié et défini, mais à present que sa valeur, sa
signification est suspendue, maintenant que le monde l’abandonne au désoeuvrement et
le met à part, la vérité en lui récule, l’élementaire le revendique, appauvrissement,
enrichessiment qui le consacrent comme image.
64
O sentido se dá então como desgarramento e dis-tanciamento anacrônico de uma
polarização causa e efeito, ele se interpenetra de si próprio ao se condensar como essa
espécie de transcendentalidade da idéia, agora pensada como imanência de significação em
processo e devir, ou seja, imagem.
Olho do furacão, essa passividade no interior do processo da obra advêm de uma
experiência paradoxal, pois justamente orientada ou desejada no espaço próprio desse limiar
do sentido da obra. Ou seja, uma busca sem fim é viabilizada a partir do próprio desejo que
o artista antevê na produção de um objeto que não é senão a experiência de seu próprio
corpo como matéria paradoxalmente indissociada dos objetos artísticos que nesse processo
se constituem.
Diria que no interior da atividade literária se constitui um campo de forças em
suspensão, espécie de neutralidade sem finalidade que não seja a reversão sobre si mesma de
sua própria finalidade sem fim, aí onde o desejo da obra se encontraria no porvir, no limiar
63
É necessário lembrar o quanto uma análise crítica apoiada numa pesquisa aprofundada sobre o efeito e as
conseqüências teóricas o livro de Sartre de 1936 l’Imagination, poderia esclarecer melhor conceitualmente e
em contraponto, a densa conceptualidade blanchotiana que aproximamos da noção de “sur-époché”,
funcionando esta em Blanchot, como estratégia crítica geral do sentido da arte e de sua produtividade
paradoxal, aplicada aos temas relacionados à singular experiência do literário como trânsito vertiginoso de uma
relação do pensamento dado como a própria elaboração de um “complexo existencial” do homem que
estruturamos cocneitualmente grosso modo, da seguinte forma trilemática: corpo (desejo “de si” e “do outro”)
- corpus (de escritura, pensamento) – mundo (extensão sensível do movimento - espaço/tempo no seio do
intervalo da existência). Cf. SARTRE, J. P. A Imaginação. Trad. Paulo Neves. LP&M, Porto Alegre. 2008.
64
BLANCHOT, Maurice. L’espace Litteraire. Paris, Gallimard, 1955, pp. 343-344.
77
impossível da emergência do evento da morte enquanto experiência absolutamente
postergada e abstração continuamente presente.
Nesse sentido, para Blanchot - e o efeito teórico consignado aqui é também revertido
para a obra clariciana - a obra artística será orientada através desse espaço “noturno”,
calcada no território dúplice da noite e de uma outra noite enquanto alegoria do inconsciente
e do desconhecido no seio da tarefa artística sempre e paradoxalmente pertencente tamm
ao espaço do dia. Diurnidade apolínea talvez, - se nos arriscamos retornar brevemente a uma
figura em contraponto a uma imagem da “noite” como espaço de uma potência dionisíaca do
inconsciente no primeiro Nietzsche - da clara visão e da consciência da obra.
Já o suicídio, voltando ao tema dessa experiência limite, é pensado como o desejo
limite ou delirante de conceber o próprio momento da morte. Essas duas instâncias aí se
relacionariam numa estranha ambivalência que parece apresentar como imagem resultante
um espaço comum interseccionado em sua região limítrofe, neutra.
Território próprio à criação literária, esse “olho do furacão”, é em Blanchot, o espaço
de uma poética do neutro que atrai e expulsa, a um só tempo, numa estranha relação
centrípeta e inversamente em outras direções, centrifuga, de fluxos variados de forças que se
interpenetrariam a partir das formas de expressão e da gestualidade própria aos corpos e às
imagens que se performam na obra. Esse programa de uma lógica aporética é, se quisermos,
o relato ou a técnica de uma desfiguração da expressividade representativa enquanto
mímesis rígida e fundacionalmente metafísica, portanto; pois se dá como escritura de uma
voz narrativa que se constitui de forma única, descrita pela crítica como a instituição do
récit
65
funcionando aí como expressividade própria à tensão entre a fala e o sujeito dada na
escritura literária e pensada como sistema sem centro, ou seja, campo de forças no qual o
sentido deve se aglutinar, coagular, tanto como dissolver-se e agregar-se a outras órbitas
constituidoras de efeitos de sentido (in)operantes, como procuraremos descrever mais
adiante.
65
Dominique Rabatté, em Vers une littérature de l’épuissement (Paris, José Corti, 2004) analisa a
singularidade dos textos que foram alcunhados geralmente dentro desta acepção de Récit na língua francesa.
Trata-se entre outros, de textos onde uma voz narrativa performa a si mesma numa intensidade expressiva que
poderíamos resumir grosso modo, como situada entre linhas de força autobiográficas e ficcionais a um
tempo, constituindo uma busca e um esgotamento extremos ou limites de uma experiência de subjetivação
literária e questionando basicamente um regime romanesco de expressão literária. Entre outros escritores:
Beckett, Dês Forêts e Camus. Poderíamos de início, aí também incluir Clarice Lispector e Maurice Blanchot.
78
A tarefa artística em geral e a experiência literária em particular, pensadas em sua
dimesão limite e enquanto devir de um corpo num corpus de escritura, serão pensados,
portanto, como elementos conjugados num espaço literário neutro onde se daria, numa
espécie de vorticidade inercial, uma noção da morte enquanto finalidade do ser empírica,
lógica e experiencialmente impossível a não ser como o próprio trabalho incessante da obra.
A morte figura nesse sentido - no plano de uma teorização da literatura como experiência
estética limite - como categoria paradoxal e exigência absoluta de toda e qualquer
experiência de entendimento
66
.
Antevemos um encontro que poderia fazer aparecer essa região intensamente
povoada de forças de atração e repulsão, espaço entre o desejo e a escritura do desejo, entre
a experiência literária e a fulguração processual de um devir corpo do corpus da escritura, ali
onde se esboça o território vertiginoso de duas experiências literárias, que procuramos
pensar como aventura crítica em processo, seja em Maurice Blanchot como em Clarice
Lispector, ou mesmo ainda seja no espaço móvel onde paira uma incerteza contingente, diria
expressiva, aí mesmo onde não há finalidade ou origem, neste espaço crítico onde
poderíamos elaborar o encontro de duas escrituras atravessadas pela intenção de um terceiro
gesto inatual, o qual não procurará a não ser intensificar certo jogo de intensidades dado pela
composição de uma espécie de cartografia das forças narrativas ou da redescrição volátil de
certa teatralidade maquínica
67
dessas forças forjadoras da experiência poética, a qual, talvez
não cessemos de desejar.
66
Uma referência importante sobre a problemática filosófica da morte e sua complexidade desconcertante é
Vladimir Jankélévitch. Citamos apenas a primeira referência à questão e que se articula como paradoxo
remetendo ao plano catastrófico e aporético da dimensão da morte como horizonte paradoxal da existência e
em nosso caso da experiência (épreuve) da literatura. « Les généralisations cosmologiques d’une parte, la
refléxion rationnelle d’autre parte tendent soit à bagatelliser, soit à conceptualiser la morte, à en reduire
l’importance metaphysique, à faire de la tragedie absolue un phénoméne relative, de l’aneantissement total une
disparition partitive, du mystére un problème, du scandale, une loi ; qu’ele scamote la cessation métempirique
dans une continuation empirique ou dans une éternité ideale, c’est de parte et d’autre, la conscience
philosophique qui se voit consolatrice : tantôt en naturalisant la surnaturalité de la morte, tantôt en rationalisant
son irrationalité. Mais l’evidence de la tragédie proteste à son tour contre la banalisation du phénoméne ;
l’ipseité de la personne disparue demeure irremplaçable, comme la disparition même de cette personne
demeure incompensable ; et d’autre part la nihilisation dérisoire de l’être pensant ferait encore question, même
si la pensée survit à l’être qui pense. En somme il y a deux évidences contradictoires qui paradoxalement sont
évidents toutes les deux à la fois et nonobstant se tournent le dos. (…) d’une part un mystére qui a des
dimensions métempiriques, c'est-à-dire infinies, ou mieux pas des dimensions du tout, et d’autre part un
évenement familier qui advient dans l’empirie et s’accomplie parfois sous nos yeux. » Cf. JANKÉLÉVITCH,
Vladimir. La mort. Paris, Flammarion, 1977, p.6.
67
A noção de teatralidade maquínica é uma certa máquina crítica que procuramos “encenar” com mais
intensidade a partir de agora. De algum modo essa noção complementará e performará os dois outros conceitos
79
que se operam na primeira parte da tese e que serão de algum modo “postos à prova” ensaisticamente na
segunda parte do trabalho. Seja a noção de uma economia critica do estilo, seja a noção de épreuve ou prova-
ção critica e/ou literária. Teatralidade maquínica, como já dissemos na Introdução, na acepção de Deleuze e
Guattari será a possibilidade de composição de uma cartografia das forças nas duas narrativas que
comparamos.Veremos que a partir dessa noção de teatralidade no interior do texto ficcional, um certo
entendimento de performance teatral indicará a possibilidade da alegoria de uma idéia de movimento e de
espaço cênico como o campo de intensidades e de forças. A idéia é compor uma descrição performática das
relações entre a descritividade ou narratividade dos movimentos dos corpos e seu alcance enquanto operador
de uma poética que trabalha o literário enquanto dimensão de experiência singular e autônoma de
problematização do vivido. Para além de uma referencialização exemplar da experiência filosófica, a literatura
pensada a partir das noções de economia crítica do estilo, de épreuve crítica ou literária e de teatralidade, pode
apresentar-se como autêntico campo de experiênciação-limite que intersecciona de um modo singular as
problemáticas atuais sobre as possíveis estratégias de produção de crítica dos modos de experiência do
pensamento.
80
PARTE I
81
Escrevo portanto (...) mas por motivo grave de "força
maior", como se diz nos requerimentos oficiais, por
"força de lei". Sim, minha força está na solidão. Não
tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das
grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro
da noite. (C. Lispector. A hora da Estrela. p.33)
(...)
A ação desta história terá como resultado minha
transfiguração em outrem e minha materialização
enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce
em que eu me enovelarei em macio cipó. (C.
Lispector. A hora da Estrela. p.36)
Souvent ce qu’il racontait de son histoire était si
manifestement emprunté à des livres qu’averti aussitôt
par une sorte de souffrance, l’on faisait des grands
efforts pour éviter de l’entendre. C’est là que son désir
de parler échouait le plus bizarrement. Il n’avait pas
une idée précise de ce que nous appelons le sérieux de
faits. La vérité, l’exactitude de ce qu’il faut dire
l’étonnait. Cette surprise était chaque fois marque et
dissimulé par un rapide battement de paupières.
« Qu’entendent-ils donc par événement ? », je lisais la
question dans son mouvement de retraite. Je crois que
sa faiblesse ne pouvait supporter cette dureté qu’il y a
dans nos vies quand elles se racontent, il ne pouvait
même l’imaginer, ou bien est-ce qu’il ne lui était
jamais rien arrivé de réel, vide qu’il dérobait et
éclairait par des récits de hasards ? Pourtant ça et là,
perçait une note juste, comme un cri révélant derrière
le masque quelqu’un qui demandait éternellement
secours sans réussir à indiquer où il se trouvait. (M.
Blanchot. Le dernier Homme. Gallimard, Nouvelle
Version, 1957. P. 14-5)
82
Nota sobre a noção de experiência-limite compreendida enquanto épreuve
(prova-ção).
Nous n’accédons au
moviment précis de
l’existence qu’à travers
des épreuves
continuelles.
68
Segundo o Larousse Épreuve significa: 1. Chagrin, douleur, malheur qui frappe
quelqu'un: ce deuil est une pénible épreuve. 2. Expérimentation, essai qu'on fait d'une chose:
faire l'épreuve d'un moteur (…)”. Há mais oito acepções da palavra. O nosso interesse é
relacionar as duas primeiras acepções que operam os dois pólos de importância capital para
nós. A relação tanto do sentido de uma experiência ligada ao pathos de uma
experimentação, ou seja, de “prova-ção” de uma experiência subjetiva de um fenômeno
(angústia, sofrimento), quanto a de uma experiência “controlada” ou “científica” de um
fenômeno. Ou seja, a dupla operacionalidade entre sujeito e objeto de conhecimento
hibridizada num termo que pudesse remeter ao domínio singular da escritura literária.
Valeria dizer que o que se tem em vista é a posta em posição crítica de um termo que
operaria esse campo “relacional”, imanente, entre uma “exterioridade”, o que vem de fora de
uma prova empírica, ou seja, sua relação numérica, “científica” e o relacionamento
interiorizado desta prova enquanto interpretação que atravessa o corpo. Enfim, épreuve
enquanto pathos da experiência. Poderia-se pensar que a noção de “escritura” no caso
particular da literatura e da crítica literária contemporânea, ensaia ou experiencia justamente
esse campo da épreuve. O termo épreuve traduziá a singularidade da experiência da escritura
enquanto “iterabilidade” e descentramento constitutivos no seio da linguagem. Ou seja,
escritura nestes termos, compreendida como o espaço de prova-ção da subjetividade a partir
68
Cf. [III. Feuillets arrachés à un carnet] - Autour de « L’impossible » [La preface de 1962. Notes et Projets]
in : BATAILLE, Georges. Romans et Recits. Paris, Gallimard, 2004, p. 582. Poderíamos aproximar todo o
projeto de L’impossible como o desenvolvimento bem mais amplo de uma questão d’épreuve enquanto
experiência do impossível ou para Blanchot experiência do Fora, e que lemos também vinculadas à questão de
la mise em jeu”ou simplesmente “l’enjeu” já tornado uma espécie de conceito “curinga” numa chave pós-
estruturalista; a “posta em jogo que é tamm posta em prova de uma poética do afectos, uma “mise en
épreuve”, eu diria, como a imagem de um ponto de ultrapassamento da lógica levado a cabo pela especulação
agônico-transgressiva de Bataille, que na verdade se pretende ir para além do especulável, operando uma
espécie de imanência afetiva relacionada como trabalho crítico limite para além da própria filosofia, sobre a
83
da performação da linguagem literária. A partir do léxico de Foucault, épreuve poderia ser
entendida como noção de experiência enquanto experimentação de uma crítica sobre as
problemáticas da linguagem, do inconsciente e da empresa nietzscheana, ou seja,
desembocando no que seria da ordem de uma dessubjetivação do sujeito. Citamos: “Uma
experiência não é nem verdadeira nem falsa. Uma experiência é sempre uma ficção; é
alguma coisa que nós mesmos fabricamos, que não existe antes e que vai existir depois. Isto
é a relação difícil com a verdade, a maneira pela qual esta se encontra enganjada em uma
experiência que não é ligada a ela e que até certo ponto, a destrói”
69
.
Escrevemos “prova-ção” com hífen, não como capricho inútil ou marca de estilo
vazia semanticamente. Poderíamos pensar que o uso de hífens e parênteses nas palavras
marca a possibilidade de “maquinar” a palavra enquanto conceito operatório, potencializá-la
em sua ambigüidade ou desvio subjacente a um sentido metafísico sedimentado e
incontornável.
A expressão-conceito economia crítica do estilo é um complexo conceitual que terá
uma função de certa forma subsidiária, ampla e geral. Essa expressão não procura ser
remetida ela própria a uma tese e espera-se que essa nota a indique e a relance como para
além de um horizonte de interpretação hermenêutica. Ela procura condensar em sua
significação a complexidade que o recorte do espectro de autores elencados aqui deseja
abordar e tenta descrever em alguns de seus traços. Tem-se em mente as diferenças que
permeiam esse espectro que poderíamos situar como um trânsito epistêmico do
estruturalismo a um pós-estruturalismo de algum modo compartilhando em um sentido geral
a estética nietzscheana. Essa espécie de “filiação” conceitual que a noção de escritura em
Blanchot e Derrida, por exemplo, apontaria e descreveria epistemologicamente. Que as
tensões ou problemas sobre a validade do prefixo ‘pós’, por enquanto sejam deixados de
lado ou em suspensão, em proveito de uma determinada circunscrição possível do “objeto”
da crítica, conforme o desejo e a vontade da tese em se desdobrar em suas possibilidades de
recorte, analogia e superposição da problemática mais geral às derivas que se constituam no
decorrer desse processo fragmentário que é o próprio trabalho das teorias críticas.
potência de afectos operadas pela experiencia da angústia e da possibilidade da poesia aceder a um espaço
potente de acesso aos próprios limites lógico-filosóficos.
84
Nesse sentido, procura-se perseguir justamente isso, ou seja, esse redobramento que
os conceitos provocam no interior aberto desse plano de possibilidades de escolha e de
derivação, de circunscrições e de discriminações na envoltura do objeto híbrido que aqui se
expõe. Dessa forma, partamos de um equacionamento da expressão-conceito: seja a
economia o labor que se estabelece de uma interioridade à sua exterioridade transitiva, de
um Oikos enquanto “célula-rizoma” complexa e detentora de sua exterioridade comunitária,
operando por troca incessante de linhas de força enquanto linguagem. Seja a crítica como o
desdobramento dessa transitividade econômica em direção a um certo plus de significação
irredutível a uma finalidade exclusiva que não seja a de sua incessante re-significação
operatória. O Estilo ou a experiência do estilo se desdobraria numa relação irredutível de
leitura enquanto contra-assinatura
70
segundo o conceito de Derrida. Que certa
conceitualização sobre o estilo possa, na circunscrição desta pesquisa, dar subsídios para a
compreensão de um certo estatuto da crítica contemporânea e na segunda parte, para a
reflexão sobre uma épreuve dos textos de Blanchot e de Lispector.
Deleuze, em Proust e os signos
71
, lendo a Recherche a partir de uma noção de
antilogos, e compreendendo a obra de arte como essencialmente produtora de sentido, ou
ainda, em sua conceitualização, lendo a obra como máquina literária, ou maquínica
complexa de composições sígnicas, relaciona o estilo à “estrutura formal significante da
obra”. Deveríamos, quem sabe, poder relacionar ainda essa noção de Deleuze à reflexão
sobre a noção de estilo de Barthes em “O estilo e sua imagem” em O rumor da Língua
72
69
“Apresentação”, in: FOUCAULT, M. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Org.
de Manuel Barros da Motta. Trad. Elisa Monteiro, 2
a
ed. Rio de Janeiro, Forenze Universitária, 2005, pp. xvi-
xx.
70
Derrida pensa sua filosofia, ou melhor, seu programa crítico de desconstrução da metafísica ocidental
compreendendo uma potência de diferenciação originária (différance) e não fundacional da linguagem. Dai
uma relação intrínseca de citacionalidade generalizada no trabalho da escritura tal qual pensa Derrida. Uma
noção de estilo deverá de qualquer forma ser pensada como um certo desvio da estilística. O estilo a que se
remete será sempre em relação de diferença de forças expressivas entre os textos de Clarice e Blanchot,
exatamente onde emergiria uma relação de possibilidade citacional promovida por esse terceiro texto crítico
que aqui se desencadeia como pesquisa e que não fará a não ser uma espécie de dinamização e de
situacionalização dos textos em seu jogo de diferenças atraídos e repelidos entre si a partir do que chamamos
de potência econômica da própria escritura enquanto escritura crítica. O estilo será pensado, portanto, a partir
de uma economia crítica desconstrutora, vale dizer, na possibilidade descritiva dos jogos de força e das
conexões e diferenças possíveis entre os textos trabalhados. Esse movimento é num determinado sentido, a
possibilidade de se contra-assinar, ou fazer da assinatura ou da marca da autoria uma potência reativada por
sua posta em diferença.
71
Cf. DELEUZE, Gilles. Proust e os signos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2003, p. 105.
72
Cf. BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 147.
85
com uma noção de estética da existência em Foucault e ainda a Éperons: Les styles de
Nietzsche
73
, de Derrida.
Entretanto, nesse momento, parece-nos que essa reflexão, a despeito de sua
importância, acabaria por tomar uma trajetória que bem poderia ser tema de outra tese.
Sigamos, portanto, no caminho que pode se bifurcar, mas que deve permanecer antes de
tudo, em direção ao que chamamos épreuve de uma experiência limite do literário e a
teatralidade e gestualidade do literário.
73
Cf. Éperons: Les styles de Nietzsche. Paris, Flammarion, Champs 41', 1978. Há uma tradução em espanhol
deste texto em http://www.jacquesderrida.com.ar/textos/eperons.htm consultada em 31/10/2008 às 10h30min.
86
Apontamento sobre a direção teórico crítica.
A primeira parte deste trabalho procura discutir a questão da experiência-limite da
literatura compreendida enquanto marca ou estratégia necessária em direção à noção de
épreuve (prova-ção).
No primeiro capítulo se intenta estabelecer uma série de demarcações a partir de
Nietzsche e conseqüentemente também a partir do espectro de autores elencados, no que diz
respeito ao conceito ou à noção de experiência para esse filósofo. Essa tarefa inicial deve-se
à hipótese de que a partir do gesto filosófico perspectivista nietzscheano desenvolve-se um
desvio
74
de uma conceitualização fenomenológica idealista da experiência do conhecimento.
Esse desvio operaria a partir de uma espécie de relação de cisão epistemológica (que é
também uma irredutibilidade de discernimento) no que diz respeito ao sujeito de
conhecimento e ao objeto de cognoscibilidade.
Nesse sentido, a partir do perspectivismo nietzscheano (ou de uma crítica filológica
do valor de verdade), a relação hierárquica e dicotômica entre sensível e inteligível, bem
como sua valoração epistemológica, será desestabilizada a partir de toda uma estratégia
crítica sobre o sentido do valor na filosofia (diria uma filologia incrementada
75
). Também o
74
O desvio ocorre como uma certa turbulência em um dado sistema-jogo (sempre de forças, possivelmente de
pensamento). Essa turbulência ou desestabilização no seio de um sistema é chave para a compreensão futura da
noção de Neutro em Blanchot, elemento-conceitual importante nesta pesquisa e de algum modo relacionado à
desconstrução derridiana. Porque o desvio não é nunca uma contraposição a uma determinada continuidade de
sentido, a um enunciado filosófico. Antes, é todo um complexo de operações que se forja enquanto
constituição de um jogo de forças discursivas anacrônicas, estratigráficas, heterogêneas. O desvio não celebra
nenhuma superação (relève hegeliana) como uma nova relação do pensamento filosófico enquanto fruto
sintético de um jogo dialético de oposições. A noção de desvio carrega a necessidade de uma operacionalidade
constitutiva da tarefa filosófica, valeria dizer que a problematização filosófica não poderia nunca ser
“encarada” de frente, mas sempre em constante desvio, numa incessante dinâmica perspectivista. Pois uma
força, ou um determinado momento espaço temporal no jogo das forças, jamais tem um sinal positivo ou
negativo que não seja já uma possibilidade interpretativa dependente de uma operação desconstrutora sobre o
sentido dos sinais anteriores àquele momento da força. A esse respeito ver: “Ativo e o reativo” in: DELEUZE,
Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1976.
75
Patrick Wotling, em seu Le vocabulaire de Nietzsche, tem uma interpretação de filologia em Nietzsche como
uma nova relação de leitura (decifração e tradução) do texto em geral, diria da escritura. Wotling cita
Nietzsche: “Por filologia é necessário entender aqui, num sentido muito geral, a arte de bem ler - de saber
decifrar os fatos sem os falsear por sua interpretação, sem, por exigência de compreender a qualquer preço,
perder toda prudência, toda a paciência, toda finesa. A filosofia concebida como ephexis na interpretação: que
se trate de livros, de novelas jornalísticas, de destinos ou do tempo que faz – sem falar da « saúde da alma »...”
(L’antéchrist, § 52). Wotling acrescenta: “Este antagonismo entre leitura e interpretação é difícil de entender
pois que em virtude da teoria da vontade de potência, tudo é interpretação. Mas esta, pode ser mais ou menos
rigorosa, sendo que esta arte de bem ler, que não é a arte de encontrar a leitura justa (todo texto admite uma
infinidade de interpretações), supõe antes a capacidade de suspender as convicções para se por à serviço do
87
será a partir de uma espécie de tática “energética” aplicada ao tema-conceito do jogo de
forças, enquanto campo de valoração e de avaliação de condutas estéticas, digamos, que
passariam a substituir um regime de condutas morais, baseadas numa oposição fundada
numa relação dicotômica de um “bem” em si e em um “mal” em si, por um valorativo
binário que fundamenta e origina o solo do verdadeiro e do falso, respectivamente, no que se
constitui como o sistema metafísico da presença a si para o pensamento ocidental.
Sendo possível identificar a construção da noção de “experiência transvalorada” em
Nietzsche, que operacionalizaria justamente a avaliação das condutas estéticas, e daí abrindo
a possibilidade de “traços de estilo”, poderíamos, a partir desse “fio-feixe condutor”
76
, dar
continuidade à pesquisa do sentido de uma épreuve enquanto experiência-crítica ou literária
limite e por outro lado, aceder à dimensão de possibilidade de compreensão de um
“pensamento do neutro” ou uma “poética do neutro” (Pensée au Neutre) de Blanchot.
No segundo capítulo, a partir de um ensaio intitulado “L’experience-limite” de
Blanchot sobre Bataille, que faz parte de um trajeto crítico mais amplo no interior de
L’entretien infinit, procurar-se primeiramente acompanhar Blanchot no desenvolvimento de
seu ensaio sobre a noção de experiência interior de Bataille enquanto experiência-limite.
Isso não quer dizer que nesse acompanhamento não se possa criar outras linhas de fuga a
partir de outros textos teóricos ou críticos. De algum modo, será inevitável. Até porque o
próprio Blanchot, em sua pesquisa mais ampla sobre a experiência-limite, desenvolve-a
sempre em relação a outros autores, seja na tarefa filosófica, seja nas obras literárias, seja
finalmente e de um modo propriamente recorrente, na transversalidade desses domínios a
partir de uma noção ampla de estilo crítico, ou melhor, neste caso, do estilo ensaístico
blanchotiano e que será abordado enquanto possibilidade da própria noção de épreuve ou
prova-ção crítica na segunda parte da tese.
texto, portanto que a interpretação, no sentido pejorativo que lhe dá Nietzsche neste contexto, sobrepõe uma
tradução toute prête “pronta” ao texto, em lugar de construir uma leitura a partir deste. A filologia supõe uma
educação pulsional que Nietzsche caracteriza pela lentidão, paciência e prudência”, cf. WOTLING, Patrick. Le
Vocabulaire de Nietzsche. Paris, Ellipses, 2001, pp. 40-41. (Tradução nossa)
76
Esse “fio-feixe” que conduz a tese advém da noção de “linha de fuga” deleuziana, pois veremos que essa
noção de “experiência transvalorada” se relaciona e anacronicamente a outros pensadores que são aqui
estudados. Uma linha de fuga não marca uma finalidade constatável, mas sim uma força já sempre em devir
que se lança à abertura de horizontes de possibilidades. Para uma análise detalhada da filosofia deleuzeana em
sua relação específica com a Arte, Cf. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’Art. Paris, PUF, 2005.
88
Procuramos abordar em quatro notas os quatro críticos “exemplares” de uma
possível e controversa (pós)crítica. Serão as notas sobre Blanchot, Bataille, Foucault e
Derrida.
Em outro sentido, a questão da transversalidade entre filosofia e literatura é o nó de
complexidade no qual o modelo teórico ou ensaístico nos pensadores citados procura (e
realiza cada qual ao seu modo) dar conta de maneira autêntica. Daí que a questão da
experiência-limite crítica e literária é descrita inseparavelmente de um desenvolvimento, por
assim dizer constitutivo, da própria noção de escritura.
A partir daí pode-se antever o sentido da idéia de “anacrônico” em relação aos
conceitos e às noções reivindicadas na primeira parte deste trabalho. Pois se tratará
justamente também neste caso, de descrever os modos e as circunscrições estratigráficas que
determinados conceitos-chave - como experiência-limite, escritura, neutro, fora, èpreuve,
noite, outra-noite, estilo, escritura-fragmentária, etc - assumem no decorrer do trabalho de
tese.
Voltando à questão da experiência-limite, tomada inicialmente e como referência a
partir de L’entretien infini de Blanchot, poder-se-ia antecipar que esta noção atrai de algum
modo para si, todo o desejo de pesquisa que movimenta este trabalho. Veremos que a
questão de um pensée au neutre para Blanchot, está constitutivamente associado ao
desenvolvimento de uma crítica fundamental a Hegel via Nietzsche e num relacionamento
conceitual muito próximo às problemáticas que desenvolve Bataille segundo um modo de
escritura ensaístico e literário. A partir da escritura literária e da transversalidade desta com
a filosofia na forma do ensaístico é que pode ganhar corpo e corpus uma dimensão crítica
própria da noção de experiência-limite literária.
Pois talvez se trate justamente disso, da questão da imagem literária e de um
processo de escritura que possibilite à operatória crítica alcançar um certo desvio para além
da fenomenologia possibilitado na relação potencialmente singular do literário. Poderíamos
adiantar que um “para além” da fenomenologia caracterizaria a tarefa do pensée au neutre
blanchotiano e que se esboçaria grosso modo, como o que não supera (relève) a
fenomenologia, mas que opera uma suspensão qualitativa do sentido.
Estaria aí o sentido do literário como máquina estética, maquínica expressiva
intrinsecamente relacionada a um sentido de corpo e de corpus de escritura. Pois o literário,
89
no sentido de sua experiência limite, seja em Blanchot ou em Clarice, ao dispositivar uma
relação específica (leia-se extática, histérica, angustiosa) com o corpo poderá relacionar
justamente uma crise da reflexão fenomenológica a partir de determinadas estratégias
retóricas, sintáticas e semânticas que indicariam, no limite, ou em seu limiar, uma certa
suspensão do sentido.
Uma voz narrativa descentrada e teatralizada numa estratégia de paralisia do
movimento faz “escorrer” ou “deslizar” no relato, uma certa deriva da ação que retrocede
sobre si mesma a partir de uma espécie de desgaste ininterrupto da ação enquanto
movimento de vai e vem do exterior e do interior, da subjetividade narrada e da narração
objetiva do meio em que se passam as cenas.
Essa teatralidade posta a prova a partir dessa voz narrativa é em si mesma
performada também a partir do enredo espiralado nos torvelinhos da consciência e da
inconsciência do narrador e das descrições subjetivas dos personagens blanchotianos; nos
jogos de força possibilitados por essa teatralidade intensiva que é gestualizada pelo
descentramento operatório da voz narrativa.
Nesse espaço literário onde se dramatiza o próprio descentramento da voz aturdida
por uma potencialidade ou poética do neutro, seguindo aqui de perto a noção blanchotiana,
se produz uma espécie de relação autofágica que a escritura elabora como suplementação do
corpo. Nesse campo de forças limiares, onde uma imanência do corpo, funcionando como
maquínica expressiva, opera um plano de consistência da narrativa e configura uma relação
singular do corpo com a obra, da gestualidade da escrita com a figuração de um corpus da
obra. Como a criação e o expurgo simultâneos de um corpus literário. Este plano seria de
algum modo expressão dramática e multi-folheada sobre si mesma configurada a partir das
estratégias específicas que se agenciam no trabalho da escritura.
Valeria dizer que o “sujeito” de uma escritura pós-fenomenológica se abisma
incessantemente numa relação de diferença a si e não de identidade a si. (De)subjetivação e
descentramento no interior-exterior de uma dimensão “invaginada” da escritura. Espaço
onde a crítica opera como máquina-de-sentido, como o limiar escorregadio entre a filosofia
e o ficcional-literário. É nesse espaço onde ocorre a possibilidade de uma experiência-limite
literária ou crítica enquanto épreuve. Aí onde o corpo se extende em direção ao corpus da
escritura, ressoando e reverberando a partir de imagens paradoxais, extáticas, e avizinhadas
90
a imagens-limite; como em certas cenas dos textos de Blanchot e Clarice, onde a experiência
do horror ou do inefável se desgastam a si próprias a partir do movimento de sua própria
expressão paradoxal.
Em resumo, certos traços e possibilidades dessa aproximação se darão a partir de
estratégias narrativas, não apenas no sentido formal-sintático, como mais amplamente no
desvio sutil que a escrita ensaística ou literária cria em termos expressivos e semânticos.
Será aí, na problemática da complexidade e do sentido da expressividade da narrativa, seja
na escrita ensaística ou literária, que se poderá pensar sobre a constituição de uma espécie de
expressividade corpórea ou agenciadora da escritura enquanto dimensão de acesso ao pensée
au neutre no sentido de uma teoria crítica pós-estruturalista blanchotiana. “Pós”, como
marca desse acontecimento crítico, gestado e desenvolvido singularmente em torno a
Blanchot principalmente pela crítica francesa. Diríamos que “em torno”, mas em
descentramento diferencial, visto a variedade de nuances teóricas que se elaboram nas
teorias ditas pós-estruturalistas.
Em seguida, numa segunda parte, se fez uma aproximação da noção de épreuve de
escritura com algumas noções blanchotianas lidas a partir dos trabalhos de Christophe
Bident, como Maurice Blanchot: Le Partenaire invisible
77
, Reconnaissances: Blanchot,
Antelme, Deleuze
78
e nos ensaios “Les mouvements du Neutre” e “Reconaître la Mort”, no
intuito de se pensar de que modo uma experiência ficcional como a narrada em A paixão
segundo G.H. e em Thomas L’obscur pode ser abordada como épreuve.
Nesta mesma segunda parte, procuramos também fazer ressoar certa operatória sobre
a noção de voz narrativa, assim como a trabalha Dominique Rabaté sob o gesto que ele
chama de poéticas da voz, a partir da leitura de dois de seus livros, a saber: Poetiques de la
voix
79
e Vers une littérature de l’épuisement
80
, onde são tratados os temas de uma estética ou
poéticas que teriam a particularidade de esgotarem ou desgastarem as formas descritivas
romanescas na direção do que se passou a chamar, a partir da reflexão blanchotiana, de
movimento de désoeuvrement da tarefa artística. Um sentido de vox narrativa carregaria em
seu movimento de desobramento uma série de relações estéticas, analisadas em sua
77
BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot : Le Partenaire Invisible. Champ Vallon, 1998.
78
BIDENT, Christophe. Reconnaissences: Blanchot, Antelme, Deleuze. Paris, Calmann-Lévy, 2003.
79
RABATÉ, Dominique. Poétiques de la voix. Paris, José Corti, 1999.
80
RABATÉ, Dominique. Vers une littérature de l’épuisement. Paris, José Corti, 2004.
91
dinâmica muitas vezes paradoxal, e que Rabaté lê a partir de vários autores de língua
francesa e inglesa como Beckett, Camus, Luis Renet des Fôrets, Proust, e o próprio
Blanchot.
Para além de uma idéia de representação ficcional mesmo que agônica (como
afirmamos algumas vezes) no campo da expressão literária, a noção de épreuve operaria um
verdadeiro mergulho na dimensão do sensual corpóreo como “pura” e paradoxal fronteira do
desconhecido enquanto conceito de uma experiência ou prova-ção do corpóreo como
proximidade infinita ou ponto cego; “estase biológica”, homeoestase operada num certo
desvio poético fruto de uma “épreuve da escritura” que poderia, a partir de uma retórica e de
uma sintaxe próprias, constituir uma narrativa hibrida, digamos assim, funcionando
enquanto experimentadora desse limite já e sempre possibilitado como experiência única de
desobramento de uma experiência literária.
Poderíamos remeter, a titulo de exemplo, a duas linhas de análise da possibilidade de
épreuve. Sejam as de derivas e inversões de perspectiva do espaço e do tempo entre
Thomas, os personagens e os objetos em Thomas L’obscur, que além de suspender a
possibilidade de fixação e identificação fenomenológica da narrativa, operaria uma
verdadeira épreuve filosófica, a partir de uma teatralidade ou uma imagética literária, seja,
nas descrições psico-teo-lógicas do narrador-personagem G.H., que deriva em solilóquio,
uma enunciação abismal entre a possibilidade e a impossibilidade do testemunho solitário e
vertiginoso da uma experiência-existencial limite.
Essa experiência não é outra que a do confronto com a dimensão ambígua, radical e
diferencial da existência (in)corpórea do narrador-personagem e a plena ausência do outro
quando de uma visita ao quarto da empregada no apartamento de G.H. Quarto que revela o
espaço prenhe de rastros da ausência da empregada. A mesma ausência que transtorna a
narração, fazendo a própria narrativa se abismar numa inconclusa possibilidade de
experiência de reconhecimento do outro, a qual levaria, no limite de sua deriva, ao momento
de uma certa experiência de imanência absoluta, quando a narradora prova (alegoricamente,
metaforicamente?) o gosto neutro da existência, a partir da imagem abjeta da experiência de
visão, cisão e degustação de uma barata.
De algum modo há nessas experiências a enunciação de um pensamento sobre a
imanência do corpo e sua relação transcendental existencial; há um pensamento - ou o limiar
92
de um impensado - sobre essa proximidade interna do corpo exteriorizada na necessidade
interminável de reconhecimento do outro a partir da narrativa ficcional de uma experiência
limite. Diria que o sentido da noção de épreuve que tentamos estabelecer, se situa numa
oscilação estratégica que pertence ao domínio fantasmático do neutro blanchotiano, vale
dizer, para além de toda e qualquer bipolarização como sensível/inteligível, forma/conteúdo,
consciente/inconsciente.
Esse domínio fantasmático não seria outro que o trânsito vertiginoso entre o corpo e
o corpus da escritura, ali onde a emergência de imagens limite faz refluir o corpo numa
diferença a si em direção a outrem; esse destinatário fantasmático que se localizaria num
fora de si, paradoxalmete produzido a partir de uma intersubjetividade latente e constitutiva
da dimensão de expressividade corpórea e agenciada no pacto que a voz narrativa estipula
com o possível leitor que, no processo de escrita, se virtualiza como o outro que acolhe esse
testemunho limite e excêntrico. Dimensão enunciativa onde se estabelece uma relação Ser-
com, ou por outra via, aquilo que chamaremos o mundo dos corpos enquanto imanência de
toda comunidade futura, assim como o nomeia Jean Luc-Nancy em Corpus
81
.
Ao mesmo tempo, esse corpo (das narrativas, dos personagens e da própria escritura)
performado pela própria operação retórica das narrativas blanchotiana e clariciana, será
“irrepresentável” sob a perspectiva de uma representação mimética clássica. A
irrepresentabilidade direta, pura do corpo, é entendida aqui como o próprio espaço gestual
da escritura, onde poderia doar-se incessantemente esse sentido irredutível do desconhecido
e do impensável enquanto épreuve de sua sobredeterminação fabular e inscrita numa
diferença entre o si-mesmo e sua necessária transfiguração para fora de si, através da
experiência limite dessa literatura. O espaço de escritura enquanto teatralidade maquínica
literária se dá como enunciação e efeito de mise en abîme próprio ao encadeamento retórico
e semântico nos dois romances e que devemos poder expor numa acepção teatrológica de
suas cenas.
Finalmente, valeria dizer que essa épreuve de escritura em Blanchot e Clarice, é o
campo ou a dimensão mesma de possibilidade de uma experiência interminável de
reconhecimento (reconnaissence) do outro enquanto limiar irredutível e incontornável de
uma experiência estético-ética da literatura (experiência agônica ‘de’ e ‘do’ outro em si
81
Nancy, Jean-Luc. Corpus. Paris, Metallié, 1992.
93
mesmo, afinal), formulada e constituída para além de qualquer e simples estratégia de
representação mimética que privilegie fundamentalmente uma idéia de presença a si de um
ente fáctico ou ficcional ao invés de uma idéia de presença constantemente se lançando para
fora-de-si em direção a outrem ou a algo esse algo que poderíamos nomear, com Deleuze,
de événement ou evento do encontro ou reencontro feliz.
94
CAPÍTULO I
Sobre a noção de experiência em Nietzsche.
Como relacionar experiência-limite e pensamento (do) neutro a partir de Nietzsche?
O que se entende por relacionamento de ou entre conceitos? O que é uma relação? Procurar-
se-á de inicio elaborar uma descrição do que se entende por relação de forças em Nietzsche,
para que se possa talvez caracterizar um possível sentido de “relação” enquanto conceito e
que guardaria ou reteria em seu desdobramento, uma relação de diferença e de identidade
recíprocas dos pólos do que entraria em operação numa atualidade, ou seja, da possibilidade
de compreensão de certa paradoxal “identidade” da diferença com a própria questão ou o
problema mesmo de um Quid da força.
Em L’entretien infinit, Blanchot já nas últimas páginas - ao elaborar uma série de
parágrafos relativos ao Neutro, e diria que relativos a um determinado conceito de neutro
que já deteria em sua constituição um sentido mais amplo de noção-conceito ou mesmo de
palavra-conceito - faz alusão ao termo em latin, aliquid. Eis o trecho:
Continuemos a excluir e a rasurar. Neutro vem à linguagem pela linguagem.
Entretanto não é somente um gênero gramatical - ou, como gênero e categoria,
orienta-nos para alguma outra coisa, l’aliquid que leva sua marca.
82
Aliquid
83
em latin é o mesmo que quid, qui. São tantas as acepções para o termo que
nos deteremos no que interessa no momento em relação a nosso questionamento sobre o
82
BLANCHOT, Maurice. L’entretien infinie. Paris, Gallimard, 1969, pp.447.
83
Pronome interrogativo, « neutre singulier (que, de quoi, à quoi, en quoi, pourquoi, quelle chose? de quelle
chose? qu'est-ce qui? qu'est-ce que? ce qui, ce que). » Cf. Latfra - dicionario-latin-français -Dicolat.html,
Dicionário Latin-Francês disponível na internet. Em A lógica do sentido, Deleuze na “Terceira série: Da
proposição.”, ao analisar a questão sobre a proposição, remete-se a três relações distintas da proposição:
manifestação, designação e significação. A estas três distinções no seio da proposição, ele acrescentará “uma
quarta dimensão que seria o sentido”. Ao afirmar sobre as “condições de verdade” de uma proposição, “pois
falando de condição de verdade nós nos elevamos acima do verdadeiro ou do falso, uma vez que uma
proposição falsa tem um sentido ou uma significação”, Deleuze remete à questão do círculo entre fundamento
e fundado. Ele diz: “A possibilidade para uma proposição de ser verdadeira não é nada além do que a forma de
possibilidade da proposição mesma. [...] O sentido é o expresso da proposição, este incorporal na superfície
das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que insiste ou subsiste na proposição”.
95
conceito de relação. Blanchot se referia ao “que” ao “quem”, ao “para que” ao “o que”,
“isso que”, etc, do Neutro.
Não há nessa proposição uma espécie de circularidade semântica na própria forma de
expressão que entorna uma forma de conteúdo? A atribuição de um termo neutro
interrogativo em latim não teria a função de exercer uma força de explicação que retornaria
sobre si mesma? Talvez, mas o que importa é que esse “que” do Neutro enquanto conceito é
justamente o que o afirma enquanto possibilidade de relação. Conectivo que faz relacionar o
sentido. Que faz do sentido, relação. Perguntar sobre a relação do que se relaciona. Pergunta
que aparentemente se neutraliza a partir e em direção, em retorno “ao” e “de” seu objeto de
questionamento. Pois o neutro deve ser inquirido a partir de si mesmo e constitutivamente
sobre seu campo de possibilidade imanente, ou seja, da linguagem em geral, ou da
linguagem enquanto literatura que seria para Blanchot, de algum modo, a possibilidade
mesma de realização de uma sobregeneralização ou sobredeterminação da linguagem em
geral.
Neste momento não poderámos se não acompanhar Blanchot na magistral atribuição
ou distribuição de sentido ao neutro. Mesmo que essa atribuição de sentido deixe de algum
modo a aparente impressão de girar em falso, ou apenas apontar campos de possibilidade
para onde se dirigiria um olhar crítico sobre o problema. Ele escreve:
Neutro, então, notadamente, nos remeteria à transparência da qual, assim, seria
marcado o estatuto ambíguo e não inocente. Haveria uma opacidade da
transparência ou mesmo algo de mais opaco que a opacidade, pois que aquilo
Descoberto pelos Estóicos, reavaliado pela escola de Ockham, com Gregório de Rimini e Nicolas d’Autrecourt
e por último pelo lógico Meinong no fim do séc. XIX, o sentido seria essa “alguma coisa, aliquid, que não se
confunde nem com a proposição ou os termos da proposição, nem com o objeto ou o estado de coisas que ele
designa, nem com o vivido, a representação ou o estado mental daquele que se expressa na proposição, nem
com os conceitos ou mesmo as essências significadas? O sentido, o expresso da proposição, seria pois
irredutível seja aos estados de coisas individuais, às imagens particulares, às crenças pessoais e aos conceitos
universais e gerais. [...] nem palavra, nem corpo, nem representação sensível, nem representação racional. Mais
do isto: o sentido seria, talvez ‘neutro’, indiferente por completo tanto ao particular como ao geral, ao singular
como ao universal, ao pessoal e ao impessoal.” (DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo,
Perspectiva, 2003 pp.18-20. Mais adiante Deleuze apontará em Husserl a herança estóica em seu conceito de
expressão e um pouco antes relaciona a imagem do anel de Moebius como exemplo de uma situação paradoxal
sobre o entendimento da Lógica do sentido. “Eis porque diziam que, de fato, não se pode inferi-lo a não ser
indiretamente, a partir do círculo a que nos conduzem as dimensões ordinárias da proposição. É somente
rompendo o círculo, como fazemos para o anel de Moebius, desdobrando-o no seu comprimento, revirando-o,
que a dimensão do sentido aparece por si mesma e na sua irredutibilidade, mas também em seu poder de
gênese, animando então um modelo interior a priori da proposição. A lógica do sentido é toda inspirada de
empirismo; mas, precisamente, não há senão o empirismo que saiba ultrapassar as dimensões experimentais do
visível, sem cair nas Idéias e encurralar, invocar, talvez produzir um fantasma no limite extremo de uma
experiência alongada, desdobrada” (p.21).
96
que reduz esta não reduz esse fundo de transparência, aquilo que, a titulo de
ausência, porta-a e a faz ser. Precisamente, eu não diria isso, dizendo: o neutro
do que nomeamos ser e que já o põe entre parênteses e de algum modo o
precede e sempre já o neutralizou menos por uma operação nihilificante que
por uma operação não-operante. Digamos pois, ainda, que se a transparência
tem por traço o neutro, o neutro não é de transparência. Retenhamos que neutro
seria dado numa posição de quase-ausência, de efeito de não efeito análoga
(talvez) à posição suposta que todo radical de uma palavra ou de uma série de
palavras mantém numa mesma família de línguas ou através de diversas
flexões, radical “fictício” que num certo sentido transparece sem jamais se
apresentar nem muito menos desaparecer, pela impassível e como
imprescritível, e contudo privada ou livre de todo sentido próprio, pois que não
porta sentido mais que pelas modalidades que, sozinhas, lhe dão um valor, uma
realidade, um “sentido” - “Ainda assim o sentido do sentido será neutro?”
Admitamo-lo momentaneamente: neutro se já a afirmação ou negação lhe
deixam intacto na sua posição de sentido (melhor, diremos que o sentido não se
põe, nem positivo nem negativo, entretanto se afirma como fora de toda
afirmação e negação; ali, estaria a força e a inutilidade de todo argumento
ontológico: Deus, que ele seja ou que ele não seja resta Deus; Deus soberania
do neutro, sempre em excesso em relação ao Ser, vazio de sentido, separado
por este vazio absolutamente de todo sentido e não sentido.)” - “Neutro ainda,
se o sentido opera ou age por um movimento de retirada de todo modo sem
fim, numa exigência de suspensão e por um sobre-enriquecimento irônico da
époché, esta não é somente a posição natural nem mesmo de existência que
com efeito, teria que ser suspensa para que na sua pura luminosidade
desativada possa aparecer o sentido; é o sentido ele mesmo que não portaria
sentido se não colocando-se entre parênteses, entre aspas e isso por uma
redução infinita, finalmente ficando fora de sentido, como um fantasma que o
dia dissipa e que entretanto não falta jamais, pois que a falta é sua marca” – “O
sentido: Ele não seria senão pelo neutro.” – “Mas por que o neutro permanece
estranho ao sentido, não indiferente, mas assombrando a possibilidade de
sentido e não-sentido pelo desvio invisível de uma diferença.” – “De onde
viríamos a concluir que a fenomenologia estaria já desviada para o neutro”.
“Assim como tudo que chamamos literatura, se uma de suas características é
perseguir indefinidamente a époché, a tarefa rigorosa de suspender e de se
suspender, sem que por isso esse movimento se confunda com uma
negatividade.” – “Neutro seria o ato literário que não é nem de afirmação nem
de negação e (num primeiro momento) libera o sentido como fantasma,
assombração, simulacro de sentido, como se o próprio da literatura fosse ser
espectral, não assombrada por si mesma, mas porque ela portaria este
prenuncio de todo sentido que seria sua obsessão, ou mais facilmente porque
ela se reduziria a não se ocupar de nada mais do que simular a redução da
redução, seja esta fenomenológica e assim longe de anulá-la (mesmo se lhe
acontece de aparentar fazê-lo) incrementando-a, segundo o interminável, de
tudo o que a esvazia, e a rompe.
84
A partir de uma analítica da escritura literária, do sentido do literário em geral,
Blanchot pôde se lançar a uma espécie de crítica da escritura para além da fenomenologia.
Pois se a tarefa fenomenológica é poder aparentemente neutralizar o mundo enquanto campo
84
“L’absence de livre” in: BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris, Gallimard, 1969, pp. 447-449.
97
universal de forças, colocando-o entre parênteses, Blanchot parece sim, colocar a própria
tarefa fenomenológica entre parênteses.
A partir da, ou melhor, junto à constituição mesma do Neutro enquanto operador
crítico, ou enquanto conceito, Blanchot pôde estabelecer uma espécie de operatória da
linguagem crítica sobredeterminando a linguagem. Talvez pudéssemos adiantar que essa
tarefa crítica que se relaciona ao neutro deveria, para poder ser descrita ou desdobrada numa
reflexão positiva, ser relacionada à questão de um pensamento (do) neutro enquanto
possibilidade da fenomenologia se desdobrar sobre si mesma como objeto híbrido, campo de
reflexão da filosofia que se volta sobre seu objeto-sujeito, o que se procura fazer
criticamente a partir da leitura de L’être et le Neutre à partir de Maurice Blanchot de
Marlène Zarader.
Talvez melhor fosse conseguir relacionar a possibilidade da maquínica do
pensamento (do) neutro (le pensée au neutre) que opera Blanchot, com a questão da voz
narrativa e de seu estatuto digamos, por enquanto ,“ontológico”, com as reservas que uma
certa suspeita sobre o termo obriga a deixar como marca.
Pois aqui então emergem algumas questões fundamentais. Até que ponto o estatuto
de um “sujeito narrador” opera constitutivamente na construção da maquínica de um
pensamento (do) neutro blanchotiano? Quem é esse narrador que ao se “transvalorar”
85
pela
linguagem estabelece uma relação de algum modo desconhecida com um certo
encadeamento da narrativa, do récit ou do relato ficcional no sentido mais geral do que se
possa entender por esse fenômeno da escrita, ou da escritura literária de que trataremos com
Blanchot e Clarice Lispector.
Falaremos sobre a voz narrativa a partir de Blanchot, para em seguida acompanhar
esse mesmo crítico em sua análise sobre o caráter fragmentário da escritura de Nietzsche.
Pois me parece que a questão sobre o fragmentário pode aproximar e relacionar a questão de
uma leitura nietzscheana sobre certo caráter de “efeito de efeitos do jogo das forças”. Na
verdade, falaremos antes do caráter fragmentário da escritura de Nietzsche para depois ou
85
Wottling comenta o par conceitual valor/avaliação em Nietzsche: “O valor se opõe em Nietzsche à simples
representação. Não há efetivamente separação entre o teórico e o prático: Os valores são opiniões
interiorizadas traduzindo preferências fundamentais de um tipo de vivente dado, a maneira pela qual ele
hierarquiza a realidade fixando aquilo que ele experimenta (éprouve),(eventualmente de forma errônea) como
prioritária, necessária, benéfica, ou ao contrário desfavorável. É este trabalho de apreciação que sublinha mais
98
mesmo durante essa descrição, possamos penetrar numa possível relação do fragmentário
com o caráter neutro da voz narrativa.
Em “Nietzsche et l’écriture fragmentaire”
86
, há uma espécie de destrinchamento do
caráter operacional do fragmentário e da unidade, do múltiplo e do Uno. Blanchot começa
descrevendo um paradoxo da operação de escritura nietzscheana, esta, ao mesmo tempo em
que detentora de uma direção de unidade, de dialética, de “sistema”; também seria
produzida numa cadência fragmentária, que escaparia à totalidade, observada basicamente
na forma da expressão do aforismo
87
.
Nesse sentido, Blanchot afirmará que “La parole fragmentaire, celle de Nietzsche ,
ignore la contradiction”. E com Jaspers, Blanchot dirá “que l’on ne comprend bien
Nietzsche, qu’on ne rend justice à sa pensée que si, chaque fois qu’elle afirme avec
claramente o termo de avaliação ou de apreciação do valor (Wertschätzung)”(Tradução nossa). WOTLING,
Patrick. Le vocabulaire de Nietzsche. Paris, Ellipses, 2001, p.51.
86
BLANCHOT, Maurice. “Nietzsche et l’Écriture Fragmentaire”, “IX. L’experience-limite”, in: L’entretien
infini. Paris, Gallimard, 1969, pp. 227-256. Há uma tradução em espanhol deste texto na WEB em
http://www.nietzscheana.com.ar/blanchot.htm acessado em 02/11/2008 às 10:21 h. Segue a referência
bibliográfica relativa a esta tradução. «La ausencia del libro. Nietzsche y la escritura fragmentaria». Buenos
Aires, Caldén, 1973. Seria necessário dizer que se notam algumas situações estranhas nessa tradução em
relação ao original que utilisamos. Por exemplo, a existência de uma frase que não existe no original de
L’entretien infini. Trata-se da última frase da citação que veremos em seguida na próxima nota e na qual se
pode ler a frase traduzida em espanhol: “El pensamiento de Nietzsche, en ese estado, se unifica en el
pensamiento del todo como multiplicidad infinita cuya expresión irrebasable es el Eterno Retorno” e que não
existe no original.
Segundo as referência bibliográficas de Christophe Bident, em Maurice Blanchot: Le partenaire invisible, não
existe nenhuma outra publicação de Blanchot que contenha os textos que compõem a Parte II de L’entretien
infini, intitulada “II. L’experience-limite” e subtitulada “Nietzsche et l’écriture fragmentaire” que junto a
“Niezsche aujourd’hui” e “Passage à la ligne”, formam o tríptico de textos que compõem a sub-seção
“L’expérience-limite” que curiosamente tem o mesmo título da Parte II. O volume em espanhol da Caldém de
Buenos Aires parece ter agrupado a Parte III de L’entetien infini, intitulada “L’absence de livre” à subseção
correspondente a nossa citação na próxima nota.
87
O aforismo operaria talvez certo maximum de desejo especulativo, em um minimum de processo
metodológico encadeado e estruturado numa linha especulativa sistêmica. Lógica do fragmento, diria que o
próprio do fragmento na forma do aforismo é operar uma retórica que desse conta do múltiplo jogo das forças
da maquínica “pensamento-escritura filosófica” pela via de uma forma de expressão constelada, fragmentada, e
pulverizada em proposições desdobradas sobre si mesmas. Anti-obra, ou anti-livro, o aforismo opera um
trânsito infinito entre um dentro e um fora, pois cada tematização é especulada em sua singularidade aforística
e ao mesmo tempo se desdobra para fora de si própria em direção a outros aforismos, que vão, ao mesmo
tempo, se elaborar, realaborar ou transmutar a partir do escape por outras linhas de força, que gerarão novas
modalizações aforísticas, outras sutilizações da força especulativa demultiplicada nessa rede. Fluxo e refluxo
das forças de sentido que se agenciam mutualmente em diferentes camadas ou planos de reflexão, retornando
sob novos signos, o aforisma elabora em sua maquínica certa perspectiva da idéia de eterno retorno. Relação
como que imediata e diferencial entre Uno e Múltiplo.
99
certitude, on cherche l’affirmation opposée avec laquelle cette certitude est en rapport”
88
.
Mas em seguida acrescenta aquilo que veremos se tratar de uma questão fundamental. A
questão que escapa sutilmente e de uma forma oblíqua, vale dizer, que não se deixa
apreender sem desvio, a questão do Eterno Retorno e da experiência que lhe põe a prova,
les mettre à l’épreuve”.
Mais, ici, il faut à nouveau distinguer. Il y a le travail critique: la critique de la
Métaphysique qui est principalemnt distingué par l’idéalisme chrétien, mais mais qui
est aussi présente dans toute philosophie spéculative. Les affirmations contradictoires
sont un moment du travail critique. : (...) Toutefois Nietzsche n’ignore pas que là où il
est, il est obligé de penser, il est obligé de parler, á partir du discur qu’il récuse : (...)
les contradictions (...) elles le visent lui-même, dans sa pensée même, elles sont
l’expression de sa pensée energique qui ne peut se contenter de ses propres verités
sans les tenter, les mettre à l’épreuve, les dépasser puis y revenir. Ainsi, la volonté de
puissance peut-elle être tantôt un principe d’explication ontologique, disant l’essence,
le fond des choses et tantôt l’exigence de tout dépassement et se dépassant elle-même
comme exigence. Tantôt l’Éternel Retour est une verité cosmologique, tantôt
l’expression d’une décisionéthique, tantôt la pensée de l’être entendu comme devenir,
etc. Ces oppositions disent une certaine verité multiple et la necessité de penser le
multiple quand on veut dire vrai selon le valeur, - mais multiplicité qui a encore
rapport avec l’un, qui est encore affirmation multiplié de l’un.
89
Conceito que de algum modo poderia ser percebido como “atrator” desse movimento
paradoxológico de Nietzsche (que tem sua expressão singular também em Blanchot) do
fundo de um vórtice como uma imagen que aglutinaria o fragmentário das contradições que
se embatem na fala nietzscheana, o Eterno Retorno é o conceito que exprimiria, a um
tempo, essa qualidade de potência afirmadora, que faria de todo ato, filtro de uma expressão
corporal de pura aceitação da vida, aceitando ou banindo todo efeito de forças ativas ou
reativas, na forma de uma vontade de potência e/ou ressentimento e negatividade.
88
Op. Cit., p. 230. “O que não se comprende bem Nietzsche e não se faz justiça a seu pensamento, a não ser
que a cada vez que ela [la parole fragmentaire] afirma com certeza, procure-se a afirmação oposta com a qual
esta certeza está em relação.”
89
Idem. Esta é a citação a que acabamos de nos referir em relação ao problema da frase excedente na tradução
espanhola. “Mas nesse ponto é necessário mais uma vez distinguir. Existe o trabalho crítico: a crítica da
Metafísica que está representasda principalmente pelo idealismo cristão, mas que está presente também em
toda filosofia especulativa. As afirmações contraditórias são um momento do trabalho crítico. [...] Entretanto,
Nietzsche que aí onde ele está situado, ele é obrigado a pensar, ele é obrigado a falar, à partir do discurso que
ele recusa. […] as contradiçoes […] lhe concernem em seu próprio pensamento, são expressão de seu
pensamento enérgico o qual não pode contentar-se [...] sem tentá-las, sem pô-las à prova, sem as ultrapasar e
retornar sobre elas. Desse modo, a Vontade de Potência pode tanto ser um princípio de explicação ontológica,
que expressa a essência, o fundo das coisas, como também a exigência de todo ultrapassamento que se
ultrapassa asi mesmo como exigência. O Eterno Retorno é tanto uma verdade cosmológica, como a expressão
de uma decisão ética, como o pensamiento do ser compreendido como devir, etc. Essas oposições nomeiam
uma determinada verdade múltipla e a necessidade de pensar o múltiplo quando se quer dizer a verdade de
acordo com o valor - mas multiplicidade que tem ainda relação com o um, que é ainda afirmação multiplicada
do Um”.
100
Mas aqui entraria um questionamento que poderá ser respondido mais adiante. Como
poderíamos associar a questão do Neutro a essa espécie de campo-filtro “vórtico” de forças
no interior de um corpo? Vale dizer, a própria experiência que aborda de todos os lados a
relação do movimento existencial do corpo em seu trânsito ou rastro no mundo como corpus
e de sua necessidade de inscrição, em nosso caso específico, de inscrição literária.
Entendemos um “sujeito” enquanto corpo atravessado por forças afectivas,
consciência e inconsciência de si, ou volitividade de uma consciência de si para fora-de-si,
diferença identitária em direção a e em repulsão da comunidade que o circunda e que o
abisma e em solipsismos vertiginosos, mas também em encontros possíveis, mais ou menos
efêmeros, poderia se ver pertencente - e aqui entraria o conceito amplo de escritura como
construção de um campo de possibilidades ou de emergências dessa imagem impensada ou
impensável, talvez borrada na volição de sua própria presença ao mesmo tempo fática e
imaginada, apenas esboço de uma atitude poética em programa, ou em procedimento
incessante, sempre oblíquo - ficcional? O que seria a imagem de si se não a impossibilidade
de nexo característico sem estereotipia, esta força de coesão falseadora e necessária a certa
construção de si entre os outros e com os outros?
Este “sujeito” ou imagem de si que se exterioriza, operaria pela escritura certa
finalidade estética existencial dada na repetição de um procedimento poético, leia-se de
escritura literária, o qual reatualizaria, como experiência de individuação, uma relação
exterior, diríamos mesmo cósmica, porém, essa reatualização não movimentaria a não ser
um eixo interno, subjetivamente lançado ao exterior de outro movimento mais sutil, esse,
agora teatralizado como poética de algum modo (in)operante ou neutra no sentido de uma
ação específica objetiva, eclodida e cindida como virtualidade do próprio gesto ficcional.
Escritura enquanto possibilidade de desaceleração do vórtice, materialização dos
traços que pertencem a um “sujeito de escritura” que coexistem em um narrador?
Talvez seja necessário continuar acompanhando Blanchot, que lê Nietzsche, para
posteriormente associarmos a noção de escritura fragmentária à questão do estilo enquanto
forma de expressão atualizadora em um campo de possibilidades estéticas.
Pensar a partir daí, então, talvez, num conceito de estilo enquanto máquina-estética,
maquínica da escritura como trânsito constitutivo entre sujeito e objeto de escritura,
máquina de escritura que se poderia operar criticamente numa relação de diferenciação
101
constitutiva entre um sujeito-indivíduo/sujeito-singular, (aquele que desaparece e reaparece
enquanto fato e direito de um sentido do estilo) numa operação talvez já impossibilitada
para um conceito platônico de representação (idéia, cópia, simulacro), mas talvez ainda
possível para uma idéia performativa de crítica, acompanhando aqui Deleuze nessa idéia de
uma reversão do platonismo (simulacro enquanto potência do falso) e positivação do
simulacro
90
.
Em outras palavras, seria possível a essa idéia de performação crítica pensar o estilo
enquanto tarefa de escritura e de pensamento indissociáveis um do outro, ou seja, que essa
idéia de performatividade, associada no conceito de épreuve de escritura, está relacionada à
dimensão de uma espécie de nervura de forças (in)orgânicas que emergiriam como relação
própria ao programa estético de um trabalho “ficcional” da linguagem, seja este literário,
crítico ou ensaístico.
Havíamos pensado até agora em dar um sentido para um conceito de relação. A
intuição partira da questão de que as forças sempre estão em relação, e que talvez
conseguindo elaborar uma descrição do que ocorre entre as bordas interpenetráveis de forças
diferenciáveis entre si, poder-se-ia chegar próximo de uma relação conceitual que se
reaproximaria da questão do jogo das forças estéticas à estratégia de um pensamento (do)
neutro.
90
Cf “Platão e o simulacro”, in: DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 259.
Ver-se-á neste texto capital para o entendimento da insuficiência de uma idéia pura de representação
“mimética”, uma relação constitutiva entre os conceitos de máquina, de simulação, de simulacro e do eterno
retorno nietzscheano. “Na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da diferença interiorizada, é a
identidade do diferente como potência primeira. O mesmo e o semelhante não têm mais por essência senão ser
simulados, isto é, exprimir o funcionamento do simulacro. (...) A simulação é o próprio fantasma, isto é, o
funcionamento do simulacro enquanto maquinaria, máquina dionisíaca. Trata-se do falso como potência,
Pseudos , no sentido em que Nietzsche diz: a mais alta potência do falso. Subindo a superfície, o simulacro faz
cair sob a potência do falso (fantasma) o Mesmo e o Semelhante, o modelo e a cópia.(...) Que o Mesmo e o
Semelhante sejam simulados não significa que sejam aparências e ilusões. A simulação designa a potência para
produzir um efeito. (...) A simulação assim compreendida não é separável do eterno retorno; pois é no eterno
retorno que se decidem a reversão dos ícones ou a subversão do mundo representativo. (...) O segredo do
eterno retorno é que não exprime de forma nenhuma uma ordem que se opõe ao caos e que o submete. Ao
contrário ele não é nada além do que o caos, potência de afirmar o caos. (...) À coerência da representação, o
eterno retorno substitui outra coisa, sua própria cao-errância. É que entre o eterno retorno e o simulacro, há um
laço tão profundo, que um não pode ser compreendido sem o outro. O que retorna são as séries divergentes,
isto é, cada qual enquanto desloca sua diferença com todas as outras e todas enquanto complicam sua diferença
no caos sem começo nem fim. O circulo do eterno retorno é um círculo sempre excêntrico para um centro
sempre descentrado. (...) O eterno retorno é pois efetivamente o mesmo e o semelhante mas enquanto
simulados, produzidos pela simulação, pelo funcionamento do simulacro (vontade de potência).(...) ele não
pressupõe o Mesmo e o Semelhante, mas, ao contrário, constitui o único Mesmo daquilo que difere, a única
102
Pois a nomeação ou conceitualização do neutro para Blanchot teria como função
estratégica a possibilidade, como já dissemos, de operar uma suspensão ou uma
sobredeterminação da própria tarefa fenomenológica (passagem de époché em surépoché)
91
.
De um modo um tanto quanto precipitado, abstraímos que a tentativa de operar um conceito
puro de relação pudesse fazer reverberar como especulação sobre o sentido da relação em si
mesma, a própria questão da existência de uma imagem ou força neutra no seio das relações
(possibilidade de detecção de uma “emergência” do neutro).
Finalmente, que um conceito de relação pudesse ter uma espécie de idiossincrasia,
ou um “em si” passível de ser simulado a partir de uma especulação teórica. Tarefa inútil
talvez, ou de qualquer modo equivocada, pois justamente passamos a acreditar que não há
possibilidade de se isolar a relação enquanto relação a si, justamente por se tratar de uma
operação entre séries de forças sem origem e sem finalidade absoluta.
Diria neste momento que a especulação sobre um conceito de relação a si poderia ser
descrito apenas enquanto necessidade estratégica. É todo o programa de Diferença e
Repetição de Deleuze que aí parece emergir. O que entra em relação numa relação é a
possibilidade de dois ou mais termos operarem regimes de repetição e diferença no nível de
suas forças. Reduzir um conceito de relação a si seria um retorno ao desejo ou ao sonho
metafísico de uma circunscrição absoluta ou fundacional de um princípio dos princípios.
Daí que utilizamos muitas vezes a metáfora do vórtice no sentido de algo
absolutamente móvel, turbilhonado em sua expressividade oca e caótica, mas liberando
semelhança do desemparelhado. Ele é o fantasma único para todos os simulacros (o ser para todos os entes).”
(Pp. 268-270)
91
Seria necessário marcar a intenção desse neologismo de Surépoché que criamos para informar o caráter
singularíssimo e dispersivo a um só tempo da noção-conceito de Neutro para Blanchot. Gostaríamos de
apontar com o neologismo tanto uma leitura crítica por parte de Blanchot da dialética hegeliana e da
fenomenologia de Hursserl, quanto a marca de uma potência produtora e filiativa tanto quanto derivada de
outras obras como as de Levinas e Derrida, principalmente, que exercem uma contrução e uma descontrução
formidáveis em relação a Husserl. Surépoché indicaria de algum modo essa potência de neutralização
(im)própria ao neutro. Neutralização paradoxalmente ativa e passiva, suspensiva e sobresuspensiva de todo
caráter atributivo e semântico de sua própria potência de sobresuspensão do sentido. Não há melhor definição
do Neutro senão aquela dispersa pela própria obra ficcional blanchotiana, principalmente quando não se trata
de definir numa potência eminentemente especulativa e filosófica essa atividade (in)operante de uma
surépoché” do neutro.
Porém, Blanchot expõe de maneira bastante operativa uma conceitualização do Neutro em Le pas au delà, (pp.
101-7). É a partir desse fragmento que encontramos a seguinte afirmação sobre o neutro: “Il [le Neutre]
neutralise (se) neutralise, ainsi evoque (ne fait qu’évoquer) le mouvement de l’Aufhebung, [réléve ou
“superação” hegeliana] mais s’il suspende et retient, il retient seulement le mouvement de suspendre, cet-à-dire
la distance qu’il suscit par le fait qu’occupant le terrain, il la fait disparaître” (pp.105-6). (Os comentários entre
colchetes e a marca em itálico são nossos.)
103
numa relação paradoxal uma atividade centrífuga que seria de algum modo reativada no
retorno centrípeto ocasionado pelo próprio sistema. É uma imagem que buscamos sem
esquecer de suas inerentes insuficiências. Talvez o neutro, em Blanchot, participe dessa
imagem apenas no que diz respeito ao jogo intensivo desse turbilhonamento. Não vale no
conceito de neutro de Blanchot nenhuma imagem que não opere uma lógica digamos não
newtoniana das forças. Trata-se do paradoxo e das conseqüências que um regime de aporias
pode fazer funcionar. Sobre a questão da relação ou do relacional da relação, o que se
buscava era a questão do sentido. Pois que qualquer descrição das forças é apenas uma
expressão de direito de “um” certo momento, ou evento das forças (proposição sobre as
forças), que já não remete às forças enquanto o próprio fato de seu jogo, sempre anterior e
posterior (atributo do estado das coisas).
Daí que, com Deleuze, a partir da Lógica do Sentido, podemos relacionar o termo
aliquid, ao qual Blanchot alude, junto à questão do sentido. Deleuze escreve:
Consideremos o estatuto complexo do sentido ou do expresso. De um lado não existe
fora de sua expressão. Daí porque o sentido não pode ser dito existir, mas somente
insistir e subsistir. Mas por outro lado, não se confunde de forma nenhuma com a
proposição, ele tem uma “objetividade” completamente distinta. O expresso não se
parece de forma nenhuma com a expressão. O sentido se atribui, mas não é
absolutamente atributo da proposição, é atributo da coisa ou do estado de coisas. [...]
O atributo não é um ser e não qualifica um ser; é um extra-ser. Verde designa uma
qualidade, uma mistura de coisas, uma mistura de árvore e de ar em que uma clorofila
coexiste com todas as partes da folha. Verdejar, ao contrário, não é uma qualidade na
coisa, mas um atributo que se diz da coisa e que não existe fora da proposição que o
exprime designando a coisa.
Inseparavelmente o sentido é o exprimível ou o expresso da proposição e o atributo
do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma face para as proposições.
[...] É exatamente a fronteira entre as proposições e as coisas. É este aliquid, ao
mesmo tempo extra-ser e insistência, este mínimo de ser que convém às insistências.
É neste sentido que é um “acontecimento”: com a condição de não confundir o
acontecimento com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas. Não
perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento é o
próprio sentido. O acontecimento pertence essencialmente à linguagem, ele mantém
uma relação essencial com a linguagem; mas a linguagem é o que se diz das coisas.
92
92
DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1969, 2003, pp. 22-23. Impossível não
reparar no ano da primeira publicação do livro de Deleuze que é o mesmo ano de publicação de L’entretien
infini de Blanchot, 1969, de onde retiramos a longa citação e onde aparece o termo aliquid, o qual desencadeia
a pesquisa ou certa estratégia especulativa que procuramos fazer funcionar neste momento. Diria que a
discussão sobre a máquina conceitual do neutro em Blanchot passa por uma preocupação programática ou
tática de leitura de Deleuze por parte de Blanchot ou vice e versa. Seria necessária uma pesquisa com intuito
mais genético para aceder a dados mais concretos e conclusivos. Na verdade, sabemos das mutuas citações que
ocorrem nas duas obras. Diríamos também que essa correspondência citacional é um signo para pensarmos
tanto a potência filiativa nietzscheana quanto uma possível relação ou desejo de construção em cada um desses
104
Lewis Carrol, segundo Deleuze, através da escritura de uma narrativa fantástica, não
estaria apenas “representando” situações e paradoxos lógicos a partir de uma obra literária,
mas sim, construindo através da história uma rede de sentidos que se performariam
“imediatamente” e, diríamos, também teatralmente, a partir da linguagem ficcional.
É curioso constatar que toda obra lógica diz respeito diretamente à significação, às
implicações e conclusões e não se refere ao sentido a não ser indiretamente. [...] Ao
contrário, a obra fantástica se refere imediatamente ao sentido e relaciona diretamente
a ele a potência do paradoxo. O que corresponde aos dois estados do sentido, de fato e
de direito, a posteriori e a priori, um pelo qual o inferimos diretamente do círculo da
proposição, outro pelo qual o fazemos aparecer por si mesmo desdobrando o círculo
ao longo da fronteira entre as proposições e as coisas.
93
Quando nos remetemos à questão que Deleuze falava sobre o sentido passível de ser
pensado apenas a partir de um corte empírico, não era a isso que ele se remetia? Ou seja,
qual um anel de Möebius que deva ser cortado para que se verifique uma “torsão” intrínseca
em sua extensão ou superfície, seja a partir da experiência com uma escritura fantástica, o
sentido emerge através de um acontecimento singular. Que uma forma idealizada de aceder
ao sentido o faz ser determinado enquanto pertencente a um círculo e não a esse espaço
paradoxal do qual ele faz parte por sua própria “natureza” neutra, aporética. E mais uma vez,
sobre essa questão, outra imagem-conceitual de Deleuze: “Mas aqui não se trata de um
círculo. Trata-se, antes, da coexistência de duas faces sem espessura, tal que passamos de
uma a outra margeando o comprimento”
94
Como uma figura paradoxal que se confundisse com seu fundo, essa especulação
procura perceber certo estatuto ontológico da imagem (se isto é ainda possível), talvez o
pensamento (do) neutro não seja outro que essa expressividade de uma performance
expressiva da imagem.
Em outras palavras, quanto à descrição de um programa ou regime de escritura
blanchotiana, diríamos que o fragmentário nietzscheano sob a forma aforística foi
desdobrado ou redobrado em Blanchot e remetido, nesta pesquisa, a toda a uma complexa
lógica operatória do sentido elaborada por Deleuze. Espera-se circunscrever um território
conceitual que possa situar, numa espécie de errância estratégica, um campo comum de
pensadores do que chamamos em outro lugar de uma ontologia energética situada pelo lado da estética e da
filosofia no mesno nível do pensamento físico e matemático contemporâneo.
93
Idem, p. 23.
94
Idem, p. 23.
105
preocupações que se tocam e se resvalam num mútuo jogo de forças onde possamos
relacionar um sentido comum programático ou filiativo sem, contudo, pensarmos numa
ordem rígida de estrutura, mas antes acedendo à complexidade da variância e da
singularidade das preocupações e das estratégicas teóricas em cada uma de suas construções
e problematizações específicas.
Com o intuito de criar uma perspectiva crítica sobre a escritura, tal como a entendem
Blanchot e Deleuze - e Derrida posteriormente -, se continuarmos seguindo um certo projeto
especulativo, estabeleceremos um possível nexo entre a questão da escritura fragmentária, o
eterno retorno e a questão do sentido para, a partir desse movimento, diría maquínico,
pensar sobre a possibilidade de uma economia crítica do estilo enquanto campo de
experiência atual da crítica. Nesse sentido, o ensaístico talvez possa ser pensado como o
campo de experiência ou de performação de sua própria escritura, vale dizer, o próprio de
um espaço literário onde certa prova-ção conceitual e estética teria lugar. De que modo essa
épreuve pode ser percebida em quanto acontecimento?
Para tanto, nos serviríamos da imagem que Deleuze aproximou da questão do
sentido, a saber, e reiterando, a imagem de um corte ou de uma cisão do anel de Moebius.
Também nos serviríamos da imagem das ondas do mar. Não operaremos o questionamento
especificamente matemático, topológico do anel de Möebius, visto que este exigiria uma
pesquisa a parte, apesar de que certamente essa preocupação seja importante. Aliás, essa
tarefa exigiria outra tese. A idéia seria a de aproximar esses conceitos lógicos e topológicos
da leitura que faz Blanchot de uma descrição da estratégia que operaria uma escritura
fragmentária associada à imagem do eterno retorno.
De algum modo, intuimos que exista a possibilidade de associação do neutro a uma
espécie de maquínica da imagem do eterno retorno. Para Deleuze, o eterno retorno sempre
retorna algo numa forma diferencial. Mas essa transformação seria como que imperceptível
(um devir-imperceptivel?), fora de um posicionamento filosófico que consiga estabelecer
nexos com uma economia crítica dos valores.
Como se poderia pensar em termos críticos e/ou literários, para além de uma lógica
ou de um sistema comunicativo (emissor, sinal, receptor), um regime de forças atravessando
meu próprio corpo? Como posso operar com o mínimo de desperdício os enfrentamentos
106
diários e repetitivos com as forças e que, em certo sentido, meu corpo deixe passar sem
ressentimento as forças que são aí agenciadas na forma das mais variadas afecções?
Pensemos que o anel de Möebios possa funcionar para nós como a imagem possível
e talvez necessária para nos aproximarmos de certa operação estratégica de cisão e de dobra
do sentido e conjuntamente da idéia ainda não explorada de um pensamento do fora
95
. De
algum modo, para se perceber uma idéia do Neutro blanchotiano ou de uma experiência
eventual do sentido, foi necessária a construção de uma imagem operacional, alegórica,
maquínica: cortar em um ato a experiência abstrata e incessante desse objeto geométrico de
apenas uma face. Lembremos que Deleuze fez alusão à interpenetração de faces sem
espessura, uma para as coisas, uma para as proposições.
Pensemos agora na imagem de uma reverberação incessante das ondas do mar como
possibilidade de se pensar aproximativamente a idéia do eterno retorno, sem pretender
esgotar suas possibilidades teóricas e estéticas (aludindo e incrementando, neste termo, um
sentido para além da ética, ou de uma ética por vir), mas pelo menos como via de acesso a
uma idéia de interpenetração atualizadora entre unidade e fragmentário.
Nietzsche operaria uma escritura que, para além de Hegel, e diferentemente de uma
superação sintética (reléve) que marcasse uma interrupção e relançamento dialético no
circuito do pensamento, ocasionaria a emergência de uma espécie de cisão na tarefa do
pensamento. Momento onde uma reincidência de uma diferença eternamente reiterável teria
lugar
96
.
95
Remetemos-nos a Da clausura do Fora ao Fora da Clausura de Peter Pal Pelbart, que citamos também em
outro lugar. Nesse livro, Pelbart faz a inter-relação entre a problemática e a imagem do Fora em Blanchot e a
reflexão de Foucault e Deleuze dentro do marco da discussão de uma diferença constitutiva e/ou ontológica
entre conceitos como o de loucura e desrazão, como campos de uma experiência de tensionamento sui generis
no que hoje se constitui como o saber bio-político. Esse tema pode-se ler em Blanchot, por exemplo, na parte
III de L’entretien Infini intitulada “L’absence de livre”.
96
Citamos necessariamente Deleuze : “Enquanto a diferença é submetida às exigências da representação, ela
não é nem pode ser pensada em si mesma. Deve ser examinada de perto a seguinte questão: foi ela “sempre”
submetida a essas exigências e por quais razões. [...] De todo modo, a diferença em si mesma parece excluir
toda a relação do diferente com o diferente, relação que a tornaria pensável. Parece que ela só se torna pensável
quando domada, isto é, quando submetida ao quádruplo cambão da representação: a identidade no conceito, a
oposição no predicado, a analogia no juízo, a semelhança na percepção. Se há, como o foi tão bem monstrado
por Foucault, um mundo clássico da representação, ele se define por essas quatro dimensões que o medem e
coordenam. Sãos as quatro raízes do princípio de razão [...]. Toda e qualquer outra diferença que não se enraíze
assim será desmesurada, incoordenada, inorgânica: grande demais ou pequena demais, não só para ser pensada,
mas para ser. Deixando de ser pensada, a diferença dissipa-se no não ser. Daí se conclui que a diferença em si
permanece maldita, devendo expiar ou então ser resgatada sob as espécies da razão que a tornam passível de
107
A imagem do corte do anel moebiano seria para nós e apenas uma aproximação
metafórica à própria imagem de uma abertura à exterioridade do pensamento, ou seja, que
apareceria ali, ao invés de um trabalho de síntese, a relação permeada por uma crítica geral
da representação do pensamento, no sentido do que procuramos entender por poética ou
estética do neutro em Blanchot.
A escritura fragmentária nietzscheana, segundo Blanchot, atuaria como estratégia
interna ao modo especulativo metafísico, ou seja, de um certo modo ela pode ser percebida
como um modo retórico e/ou performático onde ocorre uma transformação dramática do
próprio modo de pensar o pensamento - mesmo que nesse espaço de afronta do conhecido e
do desconhecido, do consciente e do inconsciente, surja uma figura monstruosa
indeterminada, campo de diferenciação da própria diferença, espaço ou dimensão
potencialmente neutra –, desenvolvendo, como movimento teatral, uma relação performática
e energética ao nível da (re)presentação especulativa da própria linguagem.
Diríamos ainda que essa relação é da ordem de uma experiência-limite do
especulativo em sua facticidade de escritura, ou em outros termos, que essa relação
propriamente retórica eperformática da linguagem passa a uma potência propriamente
estética segundo a própria tensão oriunda do jogo de forças que o fragmento dramatiza no
interior da obra de Nietzsche.
Nesse sentido, com Blanchot, a escritura fragmentária de Nietzsche, operaria
constitutivamente:
D’un autre coté, elle marque davantage que la ruptura. Si l’idée de dépassement –
entendue, sois dans un sens hégélien, soit dans un sens nietzschéen: création qui ne
conserve pas, mais détruit – ne saurait suffire à Nietzsche, si penser ce n’est pas
seulement outrepasser, si l’affirmation de l’éternel retour s’entend (d’abord) comme
l’échec du dépassement, est-ce que la parole fragmentaire nous ouvre à cette
ser vivida e pensada, que fazem dela o objeto de uma representação orgânica. O maior esforço da filosofia
talvez consista em tornar a representação infinita (orgíaca). Trata-se de estender a representação até o grande
demais e o pequeno demais da diferença; de dar uma perspectiva insuspeita à representação, isto é, de inventar
técnicas teológicas, científicas, estéticas que lhe permitam integrar a profundidade da diferença em si; trata-se
de fazer com que a representação conquiste o obscuro; que compreenda o esvanecimento da diferença pequena
demais e o desmembramento da diferença grande demais; que capte a potência do atordoamento, da
embriaguez, da crueldade e até mesmo da morte”. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luis
Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal, 2006, pp. 365-6. Esse desafio da filosofia ao qual se refere
Deleuze, nós o observamos ocorrer no que chamamos de experiência limite da literatura.
108
“perspective” nous permet de parler dans cette direction? Peut-être, mais d’une
maniére inattendue.
97
Essa “fala”, essa escritura:
Elle n’est pas annonciatrice; en elle-même, elle n’annonce rien, ne represente rien; ni
prophétique ni scatologique. Tout a déjá été annoncé, lorsqu’elle s’énonce, y compris
l’éternelle répétition de l’unique, la plus vaste des affirmations. Son rôle est plus
étrange. C’est comme si, chaque fois que l’extreme se dit, elle appelait la pensée au
dehors, (non pas au delà), lui désignant par sa fissure que la pensée est dejà sortie
d’elle-même, qu’elle est hors d’elle, en rapport – sans rapport – avec un dehors d’où
elle est exclue dans la mesure où elle croire pouvoir l’inclure et, chaque fois,
nécessairement, en fait vraiment l’inclusion où elle s’enferme.
98
Imagem de uma invaginação recorrente do que a escritura fragmentária, ao abrir-se
numa operacionalidade “aforística” - vale dizer, que tende a blocos de fragmentos que
buscam condensar totalidades sem fechá-las em si mesmas, o fragmentário ou o aforístico
em Nietzsche (uma economia do estilo em Nietzsche?) – se direciona, segundo Blanchot, a
uma estratégia “estratigráfica”, quer dizer, que a própria escritura, ou a estratégia e a tática
deste modo de escrita, interpenetra-se como a máquina conceitual do eterno retorno
99
, ou a
97
Op. Cit., p. 237. “Por outro lado ela marca algo mais que ruptura. Se a idéia de ultrapassamento
comprendida, seja no sentido hegeliano, seja no sentido nietzscheano: criação que não conserva, senão que
destrói – não bastaria a Nietzsche, se pensar não é somente trans-passar, se a afirmação do eterno retorno se
entende (de início) como fracasso do ultrapassamento, nos abriria a fala fragmentária esta “perspectiva”, nos
permitiria falar nesta direção? Talvez, mas de uma maneira ineperada”. (Tradução nossa)
98
Idem., pp. 237-8. “Ela não é premonitória, nela mesma, ela nada anuncia, nada representa; nem profética,
nem escatológica. Tudo já foi anunciado, quando ela se enuncia, e inclusive a eterna repetição do único, a mais
vasta das afirmações. Seu papel é mais estranho. É como se, cada vez que o extremo se diz, ela chamasse o
pensamento do fora (não para além), lhe designando por sua fissura que o pensamento já saiu dele mesmo, que
ela está fora dela, em relação – sem relação – com um fora de onde é excluída na medida em que ela crê poder
a incluir e, a cada vez, constitui de fato, a inclusão onde ela própria se encerra”. (Tradução nossa)
99
Sabemos da complexidade da problemática do eterno retorno. Na verdade, em Diferença e Repetição,
Deleuze conclui essa obra de imensa envergadura tratando especificamente da esquematização do eterno
retorno nietzscheano como uma forma pura do tempo dada a partir de três modos de repetições atravessadas
por uma força de diferenciação sempre possível no seio do complexo especulativo tratado no livro (repetições
do hábito, da memória e da morte). Nessa conclusão, Deleuze afirma a arte como “lugar de coexistência de
todas as repetiçôes” (p. 399). Num dos capítulos da parte conclusiva, “A forma do tempo e as três repetições”,
Deleuze estipula uma especulação que separaria basicamente uma relação do tempo enquanto forma pura e
enquanto relação a conteúdos empíricos: “[...] os conteúdos empíricos são móveis e se sucedem; as
determinações a priori do tempo são, ao contrário, fixas, [...] coexistindo na síntese estática que opera sua
distinção em relação à imagem de uma ação formidável. [...] as coisas se passam muito diferentemente do
ponto de vista da forma pura ou da linha reta do tempo, pois, agora, cada determinação (o primeiro, o segundo
e o terceiro; o antes, o durante e o depois) já é repetição em si mesma, sob a forma pura do tempo e em relação
à imagem da ação. O antes, a primeira vez, não é menos repetição do que a segunda ou a terceira vez. Cada vez
sendo em si mesma repetição, o problema não está sujeito às analogias da reflexão em relação a um suposto
observador, mas deve ser vivido como o das condições interiores da ação em relação à imagem formidável. A
repetição já não incide (hipoteticamente) sobre uma primeira vez que pode escapar dela, e que de todo modo
lhe permanece exterior; a repetição incide imperativamente sobre repetições, sobre modos ou tipos de
repetição. A fronteira, a “diferença” se deslocou singularmente: ela já não esta entre a primeira vez e as outras,
entre o repetido e a repetição, mas entre estes tipos de repetição. O que se repete é a própria repetição. Bem
mais o “uma vez por todas” não qualificaria mais um primeiro que escaparia da repetição, mas, ao contrario,
109
máquina conceitual da transvaloração, ou a máquina conceitual do super-homem, etc.,
formando uma espécie de sistemática paradoxal no seio do movimento próprio da escritura
fragmentária.
Pensamos na imagem de ondas sem fim rebentando em rochedos praticamente
imóveis, que num movimento mais longo e inacessível a qualquer fato de experiência
empírica, remete à transformação evidente nos confins de um porvir da terra. Transformação
incessante lançada à evidência futura. Essa evidência futura e, no entanto imediata, não
um tipo de repetição que se opõe a um outro tipo que opera uma infinidade de vezes (assim se opõem repetição
cristã e repetição atéia, a Kierkegaardiana e a nietscheana, pois em Kierkegaard é a própria repetição que opera
uma vez por todas, ao passo que, segundo Nietzsche, ela opera por todas as vezes; e não há aqui uma diferença
numérica, mas uma diferença fundamental entre dois tipos de repetição)”. (pp.405-6)
Mas há ainda uma força seletiva ou um poder de seleção e que ocorre num modo ético, digamos, e que se
elabora sobre as três repetições. Esse poder seletivo é introduzido pela diferença no seio da repetição quando
esta se incide sobre as repetições. Deleuze continua: “[...] tudo depende da distribuição das repetições sobre a
forma, a ordem, o conjunto e a série do tempo. [...] De acordo com um primeiro nível, a repetição do Antes
define-se de maneira negativa e por insuficiência: repete-se porque não se sabe, porque não se recorda, etc.,
porque não se é capaz da ação [...]. Portanto o “se” significa aqui o inconsciente do Isso como primeira
potência da repetição. A repetição do Durante define-se por um tornar-se-semelhante ou um tornar-se-igual:
tornar-se capaz da ação, tornar-se igual à imagem da ação, e agora o “se” significa o inconsciente do Eu, sua
metamorfose, sua projeção num Eu ou eu-ideal como segunda potência da repetição.” (pp. 406-7)
A terceira repetição é a que faz referência ao eterno retorno nietzscheano. Nessa repetição opera uma terceira
forma da força seletiva. A terceira repetição é o espaço de certa ética do porvir, a qual reúne na forma de
síntese disjuntiva uma relação complexa com as outras duas repetições. Em outro sentido, o próprio complexo
especulativo de Diferença e Repetição é remetido a essa forma disjuntiva do tempo e que emerge da imagem
paradoxal de uma curvatura no limite da linha pura do tempo. Como a imagem de uma situação “fora dos
eixos”, essa terceira força enceta uma situação desestabilizadora de uma lógica cíclica apesar de operar como
repetição; ela é da ordem de uma repetição paradoxal que torna impossível a repetição das outras duas
repetições.
Citamos Deleuze: “Certamente seria possível conceber que as duas repetições encontrassem num ciclo em que
formariam duas partes análogas; também que elas recomeçassem à saída do ciclo, encetando um novo
percurso, ele próprio análogo ao primeiro, finalmente que essas duas hipóteses intracíclica e intercíclica, não se
excluíssem, mas se reforçassem e repetissem as repetições em diferentes níveis. Mas em tudo isso tudo
depende da natureza do terceiro tempo: a analogia exige que um terceiro tempo seja dado, como o círculo do
Fédon exige que seus dois arcos sejam completados por um terceiro em que tudo se decide com seu próprio
retorno. [...] Pois se o terceiro tempo, o futuro, é o lugar próprio da decisão, pode muito bem ser que, por sua
natureza, ele elimine as duas hipóteses intracíclica e intercíclica, desfaça ambas, coloque o tempo em linha
reta, endireite-o e dele extraia a forma pura, isto é faça-o sair dos “eixos” e, terceira repetição, torne impossível
a repetição dos dois outros. [...] Então a diferença entre as repetições torna-se a seguinte, em conformidade
com a nova fronteira: o Antes e o Durante são e permanecem repetições, mas repetições que só operam uma
vez por todas. É a terceira repetição que as distribui segundo a linha reta do tempo, mas também que as
elimina, as determina a operar apenas uma vez por todas, guardando o “todas as vezes” somente para o terceiro
tempo. [...] Há duas repetições para um só repetido, mas só o significado, o repetido repete-se, abolindo suas
significações como suas condições. A fronteira já não está entre uma primeira vez e a repetição que ela torna
hipoteticamente possível, mas entre as repetições condicionais e a terceira repetição. [...] Só há eterno retorno
no terceiro tempo: é aí que o plano imóvel se anima de novo ou que a linha reta do tempo, como que levada
por seu próprio comprimento, reforma um anel estranho, que de modo algum se assemelha ao ciclo precedente,
mas que desemboca no informal e só vale para o terceiro tempo e para o que lhe pertence. [...] só o
incondicionado retorna como produto do eterno retorno. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de
Janeiro, Graal, 2006, pp. 407-8.
110
performará de algum modo uma atitude estética diferenciada, que toma a forma de uma ética
do porvir? Não está no incessante dessas rebentações uma espécie de imagem esquiva de
uma aparente neutralidade do movimento das ondas? Que as ondas esculpissem nas rochas
numa velocidade fiel e deslocada de um empirismo imediato, não poderia servir de
aproximação a esse trabalho incessante da escritura (no horizonte do eterno retorno),
enquanto iterabilidade própria no seio da linguagem? Todas essas perguntas parecem fazer
girar ou mesmo envolver aquele aliquid como palavra-curinga. Qual o sentido daquele ou
desse aliquid que retorna diferencialmente algo estranho e paradoxalmente reincidente?
Qual uma espuma que se reinfinitiza em sua repetição, tudo, na dimensão que tentamos
aproximar aqui, parece ser sempre diferentemente igual. Mas o homem em sua faticidade
passa, e uma certeza sobre esse transpassamento escorregadio e sem origem, retorna às
vezes, fazendo reiterar de um modo um tanto dúplice, invaginado num “pensamento
exterior” - Bataille diria em outro sentido, talvez, “interior”
100
- uma observação sobre uma
neutra diferença entre os dias. Essa diferença é a camada multifolheada, sutil e móvel que o
trabalho da poesia se preocupa em construir e que, como nos lembra Derrida ao escrever
sobre Francis Ponge, está no rastro do próprio processo poético, em filigrana e espalhado
pelo ateliê, gestado nos inumeráveis rascunhos do artista.
De algum modo, portanto, a fala fragmentária, ou a escritura do fragmento
nietzscheana:
Elle a bien “partie liée” avec la revelation de l’Éternel Retour. L’Éternel retour dit le
temps comme éternelle repetition, et la parole de fragment répète cette repetition en la
destituant de tout éternité. L’éternel retour dit l’être du devenir, et la repetition le
répète comme l’incessant cessation de l’être. L’éternel retour dit l’éternel retour du
même, et la repetition dit le détour où l’autre s’identifie au même pour devenir la non-
identité du même et pour que le même, en son rétour que le détourne, toujours l’autre
que lui même. L’éternel retour dit, (...) l’eternelle repetition de l’unique, et elle la
répete comme la répétition sans origine, (...) Et, ainsi, répétant à infini la répétition,
elle la rend en quelque sorte parodique, mais aussi la soustrait à tout ce qui a pouvoir
de répéter : à la fois parce qu’elle la dit comme affirmation inidentifiable,
irrepresentable, impossible à reconnaître et parce qu’elle la ruine en la restituant, sous
l’espece d’un murmure indefini, au silence qu’elle ruine à son tour en la faisant
entendre comme la parole qui, du plus profond passé, du plus loin de l’avenir, a
toujours déjá parlé comme parole toujours encore à venir.
101
100
BATAILLE, Georges. A experiência interior. Trad. Celso Libânio Coutinho, Magali Montagné e Antônio
Ceschin. Série Temas, V 18. São Paulo, Ática, 1992.
101
Op. Cit., pp. 239-240 “Ela ‘está ligada’ com a revelação do Eterno Retorno. O Eterno Retorno diz o tempo
como eterna repetição, e a fala fragmentária repete esta repeticão a destituindo de eternidade. O Eterno Retorno
diz o ser do devir, e a repetição o repete como a incessante cessação de ser. O Eterno Retorno diz o eterno
111
O eterno retorno nietzscheano se relaciona à disseminação do sentido operado pela
escritura no seio da linguagem. Pois o que se repete é o que se diferencia a partir do mesmo
conjunto material de signos. Iterabilidade derridiana e repetição de Deleuze. Um Mesmo e
um Outro
102
mais que uma simples relação dúplice, se diferenciam a partir da distância que
ao mesmo tempo em que os torna alheios um ao outro, os incrementa pelo laço constitutivo
que os faz sempre relativamente aproximados. Não é simplesmente uma questão retórica ou
lógica, mas, por um viés relativo ao sentido, as oposições não se dialetizariam a não ser
como operacionalidade lógica das proposições e dos predicados. Toda distância é também
uma relação diferencial de proximidade. E o que se aproxima também opera um
distanciamento reverso ou inverso em relação a uma determinada perspectiva. Essa é toda a
introdução de Lógica do sentido de Deleuze.
Mais adiante encontraremos a questão do jogo das forças novamente reincidindo
sobre a questão da fala fragmentária enquanto forma de expressão do eterno retorno, quando
Blanchot aponta para Derrida ao remeter-se à metáfora mais constitutiva dessa problemática
da escritura nietzscheana: a metáfora da claridade e da obscuridade em relação ao
conhecimento. O que nos leva, em outro momento, ao desdobramento das noções de Dia,
Noite e Outra-Noite em Blanchot.
Sabemos que nesse texto sobre Nietzsche, Blanchot remete-se tanto a Derrida quanto
a Deleuze. Mas um pouco antes, ele introduz a questão da claridade apolínea e da
obscuridade dionisíaca sobre a qual Nietzsche não deixa de fazer funcionar uma dialética
que progressivamente é ela mesma desestabilizada pela lógica própria do fragmento, do
aforismo. Sua desconfiança aí, partiria das primeiras relações da metafísica enquanto uma
retorno do Mesmo, e a repetição diz o rodeio onde o Outro se identifica com o Mesmo para chegar a ser a não-
identidade do Mesmo e para que o Mesmo chegue a ser nesse retorno que o rodeia, sempre outro que ele-
mesmo. O Eterno Retorno diz, (...) eterna repetição do único, e a repete como repetição sem origem (...) E
dessa forma, repetindo até o infinito a repetição, a faz de certa forma paródica, mas ao mesmo tempo a subtrai
de tudo o que tem poder de repetir: ao mesmo tempo porque ela a diz como afirmação não identificável,
irrepresentável, impossível de reconhecer, e porque a arruina ao restituir-la, sob as espécies de um murmúrio
indefinido, ao silêncio que ela arruina por sua vez fazendo-o escutar como a fala que, desde o mais profundo
passado, desde o mais longínquo porvir, sempre já tem falado como fala sempre ainda por vir”.
102
Cf. DESCOMBES, Vincent. Le Même et l’Autre. Quarante-cinq ans de Philosophie Française (1933-1978).
Paris, Minuit, 1979. Sob ou sobre o signo de uma crítica descritiva de uma sorte de máquina especulativa
“dialética” desde o curso de Kojéve sobre Hegel passando por Sartre, Meurleau Ponty, Althusser, Foucault,
Michel Serres e as filosofias da diferença com Derrida, Lyotard e Deleuze, este livro opera uma descrição
crítica da maquínica diferencial do Mesmo e do Outro enquanto movimento de desdobramento operativo da
filosofia francesa de 1933 a 1978.
112
espécie de metafórica do claro e do escuro. Blanchot afirma, “Le soleil est la surabondance
de clarté qui donne vie, et le formateur qui ne retiene la vie que dans la particularité d’une
forme. Le soleil est la souveraine unité de lumiére, il est bon, il est le Bien, l’Un supérieur
qui nous fait respecter comme le seul lieu véritable de l’être tout ce qui est ‘au-dessus’ ”
103
.
O sol relaciona a visibilidade e a claridade com o bem, o alto e o verdadeiro, enfim,
com o visível, com a forma, o formal. Nas primeiras obras de Nietzsche haveria ainda uma
aproximação ainda fortemente dialética a esse ideal apolíneo da forma em oposição ao
abismo informal e obscuro do “terror” Dionisíaco
104
. Porém, Nietzsche em seguida irá se
deslocar para uma interpretação dionisíaca do obscuro, do informe e do múltiplo, ao invés
de permanecer ligado a uma especulação dialética e fundada em uma unidade solar, reino
apolíneo da forma.
Nietzsche cherche peu à peu à liberer la pensée en la rapportant à ce qui ne se laisse
comprendre ni comme clarté, ni comme forme. Tel est en définitive le rôle de la
Volunté de puissance. Ce n’est pas comme pouvoir que la puissance de volunté
s’impose en principe, et ce n’est pas comme violence dominatrice que la force deviene
ce qu’il faut penser. Mais la force échape a la lumiére, elle n’est pas ce qui serait
seulement privée de lumiére, l’obscurité aspirant encore au jour, c’est, scandale des
scandales, à toute referente optique qu’elle se dérobe; et, en consequence, elle a beau
n’agir que sous la détermination et sous les limites d’une forme, toujours la forme, -
l’arrangement d’une structure – la laisse échapper. Ni visible, ni invisible.
105
Aí se daria um momento crucial. A nosso ver, essa problematização que Blanchot
explora, a saber, sobre um estatuto ontológico da luz enquanto metáfora constitutiva de uma
história da metafísica da presença traz a tona uma série de discussões que poderiam ser
desdobradas, se não aqui, em algum outro momento. É toda a complexidade da questão
sobre uma reflexão sobre o ser-aí (Dasein) heideggeriano atribuido à esfera da linguagem e
que junto ao estatuto de uma espécie de energética das forças e das significações poderia
especular sobre as possíveis condições éticas e estéticas da produção literária.
103
Op. Cit., pp. 239-40 “O sol é a superabundância da claridade que dá a vida e o formador que só retêm a vida
a partir da particularidade de uma forma. O sol é a soberana unidade da luz, ele é bom, é o bem, o Um superior
que nos faz respeitar como único lugar verdadeiro do ser, tudo aquilo que esta ‘em cima’”. (Tradução nossa)
104
Op. Cit., p. 240.
105
Idem. “Nietzsche busca pouco a pouco, procura liberar o pensamento relacionándo-o com o que não se
deixa compreender nem como claridade nem como forma. Tal é em definitivo o papel da Vontade de Potência.
Não é como poder que se impõe em princípio o poder da vontade, e não é como violência dominadora que a
força se converte no que é indispensável pensar. Mas a força escapa à luz não é algo que somente estaria
privado de luz, a obscuridade que aspira ainda ao dia; é escândalo dos escândalos, algo que escapa a toda
referência ótica e, em consequência, se bem que sempre atúa exclusivamente sob a determinação e nos limites
de uma forma, sempre a forma – o arranjo de uma estrutura – a deixa escapar. Nem visível nem invisível.”
(Tradução nossa)
113
Pois, a luz que ao tornar visível revelaria a forma e abriria o espaço da formalização
da idéia, sempre se localiza de um modo quase imponderável, numa espécie de estranha e
indeterminada origem sombria
106
. Ponto cego originário de toda possibilidade de articulação
formal do pensamento, mas que de algum modo é ainda articulável como forma e
expressividade de um pensável, mesmo que somente a partir do desvio para um pensamento
ou uma experiência limite da linguagem.
Diríamos experiência, sobre a própria expressividade do pensamento dada na
escritura, esta, agora, articulada a um programa de especulação sobre as condições históricas
e filosóficas de expressão do pensamento, seus modos, estilos e cartografia de forças;
expressão das relações e interações possíveis entre diferentes estratégias do pensamento, que
poderiam ser pensadas a partir de uma certa arqueologia ou genealogia sobre as condições
de formação do próprio pensamento.
Nesse ponto diríamos que um pensamento (do) neutro ou uma poética do neutro,
como nos parece ser outra acepção talvez até mais imanente da questão, se produz como
singularidade do pensamento blanchotiano sobre a literatura em particular como modo de
acesso sui generis à própria problemática heideggeriana sobre o ser e a linguagem, ou em
outras palavras, à crítica geral da representação. Talvez essa aproximação à problemática do
ser da linguagem em relação ao literário não seja realizada de fato enquanto programa
específico e rigoroso, mas certamente ela ocorre na nossa pesquisa ao menos de forma
fragmentária e obedecendo à necessidade de pontuações determinadas à respeito de suas
relações com o tema.
Porque, voltando à questão do estatuto ontológico da luz, essa impossibilidade de
voltar-se ao fundamento primordial da própria luz, é justamente o que remeteria a toda a
problemática da força enquanto complexo de forças, multiplicidade de forças que se
106
A esse respeito chamamos a atenção para o capítulo intitulado “A diferença e o fundo obscuro” in:
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Graal, 2006, p. 55. É o espaço de emergência de
uma variação, dimensão abstrata de possibilidade de que algo ocorra a partir de uma relação paradoxal entre
forma e fundo. Quando, porém, o fundo detém a forma e a faz emergir de si, mas que essa emergência se
remete ao fato impossível do movimento contrário, ou seja, que a forma se desgarre plena e separada do fundo.
É o fundo e essa profundidade informe que faz coexistir uma forma que daí retorna. O fundo obscuro não
perde nada ao possibilitar a emergência da forma e, ao contrário, sempre coexiste a ela. O exemplo de Deleuze
é o do relâmpago na obscuridade do céu tormentoso. O relâmpago sai desse fundo e se torna, em seu
acontecimento, indiferenciado daquilo que, entretanto, dele se distingue. “Dir-se-ia que o fundo sobre a
superfície sem deixar de ser fundo”. (Cf. p.55)
114
relacionam entre si numa incontornável pluralidade. A única nomeação possível para essa
qualidade múltipla do relacionamento das forças seria seu caráter de diferença entre forças.
Blanchot cita Derrida:
« Comment comprendre la forceo u la faiblesse en termes de clarté et d’obscurité » (J.
Derrida). La forme laisse échaper la force, mais l’informe ne la reçoit pas. Le chaos,
l’indifférence sans rivage, d’où tout regard se détourne, ce lieu metaphorique
qu’organise la désorganisation, ne lui sert pas de matrice. Sans rapport avec la forme,
même quand celle-ci s’abrite dans la profondeur amorphe, refusant de se laiser
atteindre par la clarté et par la non-clarté, la « force » si elle exerce sur Nietzsche
l’attrait auquel il répugne (…) c’est parce qu’elle interroge la pensée en termes qui
vont l’obliger á rompre avec son histoire. Comment penser la « force », comment dire
la force?
La force dit la différence. Penser la force, c’est la penser de par la différence. (…) qui
dit la force la dit toujours multiple; s’il y abatí unité de force, il n’y en aurait point.
107
Blanchot cita Deleuze: “Deleuze a exprimé cela avec une simplicité decisive: ‘Toute
force est dans un rapport essenciel avec une autre force. L’être de la force est pluriel, il
serait absurde de le penser au singulier’”
108
. Mas Blanchot esclarece que essa pluralidade na
verdade remete ao relacionamento entre forças distintas que estariam sob uma relação
constitutiva de distanciamento. Esse complexo de distanciamentos uns em relação aos outros
poderia ser descrito em termos de “l’intensité de leur différence”
109
.
Ainsi, la distance est ce qui separe les forces, est aussi, leer corrélation et, (…) ce quid
u dehors les distingue, mais ce que du dedans constitue l’essence de leer distinction.
(…) ce que les tient à distance, le dehors, est leer seule intimité, ce par quoi elles
agissent et subissent, “l’élement différentiel” qui est le tout de leer réalité, n’étant
donc réelles qu’autant qu’elles n’ont pas de réalité en elles-mêmes, mais seulement
des rapports: rapports sans termes. Or, qu’est-ce que la Volunté de Puissance? “ Ni un
être, ni un devenir, mais un pathos”: la passion de la différence.
110
107
Idem., pp. 240-241. “‘Como comprender a força ou a fraqueza em termos de claridade e obscuridade?’” (J.
Derrida) A forma deixa escapar a força, mas o informe não a recebe. O caos, o indiferenciado sem limites, de
onde se desvia todo olhar, esse lugar metafórico que organiza a desorganização, não lhe serve de matriz. Sem
nenhuma relação com a forma, inclusive quando esta se abriga na profundidade amorfa, negando-se se deixar
alcanzar pela claridade e pela não-claridade, a “força” exerce sobre Nietzsche um atrativo para o qual ele
também sente repulsão [...] pois ela interroga o pensamento em termos que vão obrigar-lo a romper com sua
história. Como pensar a “força”, como dizer a “força”?
A força diz a diferença. Pensar a força é pensá-la pela diferença. [...] Quem diz a força, sempre a diz multipla;
se houvesse unidade da força a força não se daria.
108
Idem., p.241. “Deleuze exprimiu isso com uma simplicidade decisiva. ‘Toda força está em uma relação
essencial com outra força. O ser da força é plural, seria absurdo pensá-lo no singular’”.
109
Cf. Idem: “a intensidade de sua diferença”
110
Idem: “[...] Desse modo, a distância que separa as forças é também sua e [...] é não somente o que desde o
fora as distingue senão o que desde dentro constitui a essência de sua distinção. [...] O que as têm a distância
desde o fora é a penas sua intimidade, na qual atuam e subsistem, não sendo, contudo reais dado que não têm
115
Essa espécie de “quântica” dos jogos de forças em Nietzsche, operada a partir de
uma discussão teórica voltada para a crítica literária, deverá nessa estratégia conceitual,
poder fazer aflorar uma liberdade maior para pensar-se o relacionamento constitutivo de um
pensamento sobre a diferença, a escritura enquanto campo dessa operacionalidade da
diferença e a possibilidade de construção de um trajeto de pesquisa que possa acompanhar
essa trama.
Nosso intuito, a partir dessa primeira parte da pesquisa tem sido, o de pensar a
estratégia “fundamental” blanchotiana do conceito-noção de Neutro, ou ainda, de um
pensamento ou uma poética do neutro, relacionada ao modo de operação crítica com o qual
Blanchot descreve a escritura fragmentária a partir de Nietzsche, visto a potência filiativa e
“produtora” de teorias que advém da escritura dramático-filosófica nietzscheana.
Nesse percurso, a questão do sentido foi relacionada a partir de Deleuze, criando
desse modo uma camada intrusa - mas não menos importante - criando uma certa
superposição estratigráfica de conceitos que deverão operacionalizar-se de forma
anacrônica, numa intenção de fazer saltar as linhas de continuidade e suas rupturas e
dessemelhanças no que diz respeito ao tema mais amplo da possibilidade de se pensar uma
noção de experiência crítica limite a partir de Nietzsche, aquilo que chamamos épreuve,
tanto crítica quanto literária.
Trataria-se de um gesto pós-hermenêutico de uma épreuve crítica baseado na
reflexão sobre o conceito de estética literária que se situaria para além do estabelecimento
estrutural de um jogo de significações interno ao texto, segundo o qual haveria certo desejo
de domínio dessas mesmas significações. Pensar um sistema literário é, para nós, tentar
perceber uma cartografia das forças cênicas do texto sem, contudo, deixar irromper
indiscretamente um certo domínio sobre essas significações, pois que se trataria justamente
de acompanhar o texto a partir de uma leitura que faria jogar (l’enjeu) certas noções ou
conceitos entre um texto e outro.
Nesse sentido diríamos que há a intenção de descrição de uma operatória das forças
internas ao texto, e que funcionariam como “gênese” para uma descritividade do conceito de
realidade em sí mesmas, somente relações, relações sem termos. Ora, o que é a Vontade de Potência? “Nem um
ser, nem um devir, mas un pathos”: A paixão da diferença.”
116
Vontade de Potência nietzscheano, em direção a uma certa formalização de um conceito de
experiência ou de “dramática” do pensamento em Nietzsche. Essa experiência dramática de
pensamento será desde sempre uma experiência-limite, visto se tratar de um questionamento
filosófico que parte da própria desconfiança em relação a uma potência metafísica de
presença a si, originada a partir de uma especulação crítica sobre o conceito de idéia em
Platão.
O conceito de épreuve que procuramos estabelecer, estaria relacionado a uma
reflexão sobre o momento em que surge a desconfiança em Nietzsche sobre o conceito de
forma enquanto único caminho, verdade e fim da claridade, do sol, do Uno. A partir de um
desvio especulativo e de certa forma dialético, Nietzsche opera um giro sobre essa filiação
da luz do dia enquanto origem e meio para a verdade apolínea. Nietzsche parece ter
desviado o olhar para o lado obscuro e informe da noite, no espaço que poderíamos chamar
dionisíaco. Esse giro faz com que Nietzsche não apenas passe a desconfiar da metáfora da
claridade do dia enquanto caminho para a verdade e para a forma, mas passe a desconfiar da
própria possibilidade de se operar de forma potente uma finalidade da verdade filosófica. O
que teria possibilitado que o filósofo construisse uma espécie de sistema filosófico
paradoxal, onde, a própria forma de operacionalidade estratégico-narrativa funcionaria como
parte integrante de uma espécie de dramatização tática da linguagem.
Se a Vontade de potência nietzscheana funciona como a possibilidade de certa
filtragem no seio das repetições diferenciais - e aqui remetemos à nota explicativa a respeito
das três repetições de Deleuze -, se essa vontade é justamente a vontade de que tudo se
repita afirmativamente, é porque Nietzsche pensa uma relação fundamental das forças no
homem enquanto relação de afirmação incondicional e incessante de suas escolhas. Ou,
diríamos, “aja em cada vez como se fosse por todas as vezes”, desse modo há um
empreendimento ou um investimento de potência autêntico no que diz respeito à vontade de
uma ação. Bem, essa afirmação é uma espécie de pathos, uma “paixão da deferença”,
porque é a própria relação da diferença que carrega no jogo de suas forças uma carga, que
para Nietzsche não será nunca negativa, pois força pensada em sua dinâmica de repetição
afirmativa operada no porvir.
117
A esse respeito nos remetemos ao caráter transgressivo e orientado para o futuro nas
descrições dramático e aforísticas de Nietzsche. Lembremos também quando Deleuze, ao
explicar a dinâmica do terceiro tempo que se dá como terceira repetição, remete ao exemplo
das obras de De Flore, O testamento por vir, de Vico, A idade dos homens e de Ballanche, O
homem sem nome, como exemplos de obras que procuraram criar uma espécie de terceira
repetição como diferença dinâmica e seletiva em relação às repetições anteriores.
Deleuze explica que essas obras têm todas em comum, uma potência de repetição
que incidiria como uma diferença entre duas outras repetições que elas comentam, e que, no
caso de De Flore, se trataria da repetição ou da constituição de um terceiro tempo ou de uma
terceira repetição em relação ao Velho e ao Novo testamento. Esse tempo dado numa
terceira repetição é a relação de forças específicas operada na maquínica do conceito de
eterno retorno. Um testamento porvir, no caso de De Flore, mostraria que “há duas
significações para um só significado”, que o essencial seria, nesse sentido, o terceiro
testamento, onde “há duas repetições para um só repetido, mas só o significado, o repetido,
repete-se, abolindo suas significações como suas condições”
111
.
Essa relação de forças no seio do complexo de diferença e repetição que se dão no
âmbito da noção de eterno retorno, tem toda sua complexidade realizada numa relação que
chamamos de ética do porvir, pois ela se remete à reflexão especulativa sobre o tempo das
condutas humanas em geral pensado em sua forma histórica e que desembocaria no instante
anacrônico de reflexão crítica contemporânea, seja de Nietzsche, nesse caso, seja nas
relações de diferença e desdobramento histórico que daí decorrem, enquanto
problematização e diferenciação no seio da própria linha filiativa nietzscheana, a qual
tratamos especificamente a partir da obra crítica de Blanchot e que se distribui na forma de
outras ramificações nas outras obras que aqui tratamos sob o signo geral e provisório de pós-
estruturalismo.
Blanchot descreve esse relacionamento disjuntivo e paradoxal operado num terceiro
tempo das forças:
L’intimité de la force est exteriorité. L’exteriorité ainsi mise en affirmation n’est pas
la tranquile continuité spatiale et temporelle, continuité donc la logique du logos – le
111
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luis Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro, Graal,
2006, pp. 408.
118
discurs sans discurs – nous donne la clé. L’exteriorité – temps et espace – est toujours
extérieure à elle-même. Elle n’est pas correlative, centre des correlations, mais institue
le rapport à partir d’une interruption que n’unit pas. La différence est la retenue du
dehors; le dehors est l’exposition de la différence; différence et dehors désignent la
disjonction originelle – l’origine qui est la dsjonction même et toujours disjointe
d’elle-même. La disjonction, là où temps et espace se rejoindraient en se disjoignant,
coïncide avec ce qui ne coïncide pas, le non-coïncidant qui par avance détourne de
toute unité.
112
Complexidade de um pensamento que deve ser necessariamente paradoxal, pois se
trata de uma relação pensável para além de uma estratégia circular hermenêutica, essa
formalização paradoxológica de Blanchot procura descrever um certo âmbito de sobre-
coalescência entre as forças que aí se “vorticizam” ou turbilhonam no interior de uma
maquínica do eterno retorno, ali onde de algum modo, uma ética ou uma estética de um
homem por vir, se desdobraria sem promessa.
De même que haut, bas, noble, innoble, maître, esclave n’ont pas par eux mêmes de
sens ni de valeurs établis , mais affirment la force dans sa différence toujours positive
(…) de même la force toujours plurielle semble (…) ne se proponer que pour mettre la
pensée à l’épreuve de la différence, celle-ci n’étant pas dérivé de l’unité pas plus
qu’elle ne l’implique. Différence qu’on ne peut cependant dire premiére, (…) mais
différence que toujours et ainsi se me donne jamais dans le present d’une presence, ou
une se laisse saisir dans la visibilité d’une forme. Diferant en quelque sorte de différer
et, dans ce redoublement qui la soustrait à elle même, s’affirmant comme la
discontinuité même, celle qui est en jeu là où est à l’oeuvre la dissimetrie comme
espace, la discrétion ou distraction comme temps, l’interruption comme parole et le
devenir comme le champ “commun” de ces trois rapports de déhiscence.
113
112
Idem., pp. 241-242. “A intimidade da força é sua exterioridade. A exterioridade assim aformada não é a
tranquila continuidade espacial e temporal, continuidade, portanto que o discurso do logos nos dá a chave -
discurso sem discurso. A exterioridade – tempo e espaço – é sempre exterior a si mesma. No é correlativa,
centro de correlações, mas institui a relação a partir de uma interrupção que não une. A diferença é a retenção
da exterioridade; o exterior é a exposição da diferença, diferença e exterior designam a distância original – a
origem que é a disjunção mesma e sempre disjunta de si mesma. A disjunção, ali onde o tempo e o espaço se
juntam desjuntando-se, coincide com o que não coincide, o não coincidente que de antemão desvia de toda
unidade”.
113
Idem. “Tal como alto, baixo, nobre, ignóbil, senhor, escravo não têm em si mesmos sentido, nem valores
estabelecidos, mas afirmam a força em sua diferença sempre positiva [...] também a força sempre plural, [...]
parece propor-se unicamente submeter o pensamento à prova da diferença, não sendo esta derivada da Unidade
nem tão pouco a implicando. Diferença que não se pode, contudo chamar primeira [...]. Mas diferença que
sempre difere e dessa forma não se dá nunca no presente de uma presença, ou não se deixa apreender na
visibilidade de uma forma. Diferindo em certa forma de diferir e, nesse desdobramento que a subtrae a si
mesma, afirmando-se como a discontinuidade mesma, a própria diferença. Aquela que está em jogo ali onde
atua a dissimetria como espaço, a discreção ou a distração como tempo, a interrupção como fala e o devir
como campo “comum” dessas outras três relações de dehiscência.”
119
Nessa metáfora final retirada da botânica (deiscência)
114
, talvez possamos nos
aproximar dessa vertigem paradoxal que faz Blanchot especular a partir de uma relação
apresentada como forma de uma operação conceitual abstrata, e que faria emergir, da
superfície paradoxologica e invaginada dessa estratégia de escritura, um certo sentido
oriundo de uma imagem casual das forças e contingências da natureza.
Que efeitos biológicos poderiam gerar traços de imagens possíveis de serem aqui
pensados? A reprodução das flores não seria de algum modo eclosão desse caos
constantemente reorganizado momentaneamente na ebulição de forças que surgem em
algum rasgo do tempo, ou no acontecimento do qual emerge um traço ou uma linha abstrata
do devir? Um devir-eclosão de um desabrochamento de flores neste caso. No espaço
microscópico onde se desenvolve em uma temporalidade específica todo um processo de
divisões celulares, ocorrem deslocamentos, disposições, distribuições de forças que se
arrastam umas às outras. Mas mesmo aí, ainda haveria essa imagem que traria a tona o que
jamais poderia ser circunscrito nessa espécie de selvageria proto-ontológica, onde irrompem
e corrompem-se mutuamente as forças como efeitos complexos da matéria em realção ao
tempo. Aí onde a matéria, nessa relação indiferenciada, se impõe descritivamente como
relação energética, como relação e diferença de potenciais. Aí vemos o termo deiscência
como metáfora, ou melhor, maquínica conceitual de uma espécie de espasmo de abertura
dado na emergência da experiência ou de um fato singular, como o que ocorre nessa relação
de descrição do complexo teórico da diferença e da repetição enquanto descrição imanente
de processos dinâmicos da matéria do próprio pensável em perspectiva com o pensamento
nietzscheano.
Não poderiamos deixar de associar essa especulação de Blanchot a todo o complexo
teórico de Diferença e Repetição. Em seguida, de forma mais direta, Blanchot aproxima a
dimensão deiscente da diferença à escritura. Aí também ele chamará Mallarmé como
pensador que também estaria entendendo a diferença enquanto campo espaço-temporal que
se esparramaria, ou se “abriria”, por sobre suas próprias bordas evanescentes, por sobre seus
próprios limiares, disseminantes de um sentido em constante desfiguração.
114
Deiscência: “Fenômeno em que um órgão vegetal (fruto, esporângio, antera etc.) abre-se naturalmente ao
alcançar a maturação”. Dicionário eletrônico Huoaiss
120
La différence n’est pas régle intemporelle, fixité de loi. Elle est, comme le découvre à
peu près à lça même époque Mallarmé, l’espace en tant qu’ “il se espace et se
dissemine” et le temps: non pas l’homogeneité orientée du devenir, mais le devenir
lorsqu’ “il se scande, s’intime”, s’interrompt et, dans cette interruption, ne se continue
pas, ais se dis-continue; d’où il faudra conclure que la différence, jeu du temps et de
l’espace, est le jeu silenciex des rapports, “le dégagement multiple” que régit
l’écriture, c’est qui revient à affirmer hardivement que la différence, essencielement
écrit.
115
Quando Blanchot afirma que a diferença escreve, ele relaciona diretamente a questão
da escritura fragmentária à operacionalidade da escritura enquanto jogo das diferenças ou, se
preferirmos, enquanto jogo das forças que se dá necessariamente como diferença das
intensidades ou do distanciamento dinâmico entre as forças. Ou seja, a partir da reflexão
sobre o modo de operação da escritura nietzscheana, a questão da diferença em Blanchot
desemboca numa operação descritiva mais ampla. Esta, vê na filosofia de Nietzsche um
aparato ou complexo conceitual que de uma forma “dobrada” ou desdobrada inversamente,
inscreveria suas problemáticas mais agudas na própria forma e força de expressão que as
descreve.
Talvez pudéssemos ver aí, nessa “dobradura” de escrituras, também a escritura
blanchotiana se diferenciando dinamicamente em relação à escritura nietzscheana, numa
espécie de reação de folheamento de estilos atravessados por um “eixo” transversal que
poderia ser relacionado justamente com as preocupações comuns referentes ao modo de
reflexão filosófica que teria, numa crítica à metafísica da presença “a si”, seu “solo” comum,
mesmo que esse solo ou fundo, ou mesmo que essa “fundação” pensada em sua “origem”
ontológica perca, a cada investida reflexionante, seu “falso” atributo originário. Isso seria o
que quiz dizer Derrida ao remeter a escritura da desconstrução à possibilidade de, a partir de
uma desestabilização do modo de operação da metafísica da presença a si, alcançar, somente
aí, um “plus” de significação. Que não seria simplesmente como estabelecer um discurso
não-metafísico, pois se trataria justamente de pôr em “diferance”
116
um modo de
Dehiscencia: “Apertura espontanea de las anteras o los frutos, para dar salida, respectivamente, al polen o a las
semillas”. María Moliner, Diccionario de Uso Español versión electrónica.
115
Op. Cit., p. 243. “A diferença não é regra intemporal, fixação de lei. É como descobriu Mallarmé mais ou
menos nessa mesma época, o espaço enquanto ‘se espaça e se dissemina’ e o tempo: não a homogeneidade
orientada do devir, mas o devir quando este ‘se interrope, se intima’, e nessa interrupção não continua, mas se
des-continua; daí sendo necessário concluir que a diferença, jogo do tempo e do espaço, é o jogo silencioso das
relações, ‘a múltipla desenvoltura’ que rege a escritura, o que equivale a afirmar audaciosamente que a
diferença, essencialmente, escreve”.
116
Sabe-se a relação “diferencial” que tem o “a” que substitui o “e” na palavra francesa différence. Pois se trata
justamente para Derrida de afirmar essa indiferença fonética entre a letra “e” e a letra “a” . É a própria marca
121
pensamento filosófico que se constituiu enquanto a própria matéria (ideática certamente,
mais que empírica) do pensamento. Operar um jogo de diferenças no seio desse “modus
operandi” da filosofia enquanto metafísica da presença, seria portanto a tarefa ininterrupta
da desconstrução.
É daqui que retomamos a leitura que faz Blanchot de Nietzsche, no momento em que
poderemos restabelecer um questionamento sobre o desconhecimento constitutivo sobre a
luz enquanto metáfora da possibilidade do pensamento emergir a partir da forma dada pela
claridade da luz do dia que ilumina as coisas e as faz aparecer como uma espécie de falso
em-si.
Esse desconhecimento constitutivo sobre o próprio aliquid da luz, poderia ser
aproximado do questionamento de Derrida, na Gramatologia, da constituição indecidível do
suplemento enquanto possibilidade de deriva do sentido. Tal é a relação que a derivação de
Derrida sobre o texto de Rousseau faz trabalhar, ou mehor, faz a economia crítica. Se
Rousseau elabora toda uma oposição entre a verdade de uma essência da Natureza e o
suplemento necessário, mas perigoso de uma escritura de Cultura (desde sempre cópia e
representação decaída da Natureza) onde o homem deve aprender a situar-se como numa
pedagogia geral indispensável, Derrida lerá no trabalho de auto-reflexão rousseauniano a
produção e a experiência mesma da escritura enquanto suplemetarização não opositiva, mas
sim âmbito (des)originário de deriva do sentido; espaço de possibilidade de um efeito de
de um traço de reflexão que remeterá à tarefa da escritura da desconstrução de, como já foi afirmado, conseguir
um “plus” de significação a partir de um trabalho de desestabilização da própria tradição filosófica metafísica.
Parte dessa tarefa iniciada por Derrida da desestabilização dos binômios de oposição tal como fala/escrita. Por
essa desestabilização podemos entender a “economia crítica do suplemento” que Derrida faz emergir no
trabalho de leitura dos textos de Rousseau. Pois o suplemento aí é percebido como já fazendo parte de toda
essa economia que desestabiliza uma dicotomização entre a presença e ausência de objetos de desejo
explorados por Rousseau e operados pela frustração. Pela escritura e na operação suplementar de “realização”
do desejo (escritura, onanismo), Rousseau, na leitura que faz Derrida, exorbita um sentido que escorrega entre
a presença e a ausência do objeto, ali mesmo onde a escritura emerge como o que suplementa, extenua e rasura
uma oposição entre sujeito e objeto fenomenologicos. “O gozo da coisa mesma é assim trabalhado em seu ato
e em sua essência, pela frustração. Portanto não se pode dizer que tenha uma essência ou um ato (eidos, usia,
energeia etc.). Aí se promete esquivando-se, aí se dá deslocando-se algo que não se pode sequer denominar
rigorosamente presença. Tal é a coerção do suplemento, tal é excedendo toda a linguagem da metafísica, esta
estrutura “quase que inconcebível para a razão”. Quase que inconcebível: a simples irracionalidade, o contrário
da razão é menos irritante e embaraçoso para a lógica clássica. O suplemento enlouquece porque não é nem a
presença nem a ausência e enceta desde logo tanto nosso prazer quanto nossa virgindade. “[...] a abstinência e
o gozo, o prazer e a sabedoria, igualmente escaparam-me” (Confessions, p. 12)” Cf. DERRIDA, Jacques.
Gramatologia. Trad. Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro. São Paulo, Perspectiva, 1999, pp.189-
190.
122
escritura que pode apresentar-se, segundo nossa intenão crítica, enquanto épreuve de uma
experiência de escritura, para além de um sentido metafísico de uma presença “a si”.
Sobre o perigoso suplemento a que se refere Rousseau, como sendo a ordem decaída
de uma representação da natureza enquanto verdade, Derrida afirmará - numa oposição entre
a mineração e a agricultura, com uma percepção de algum modo trágica sobre a cegueira
advinda do espaço da mineração, ou melhor, da crítica dos efeitos insalubres dessa
atividade, em contraposição a um idílio da vida campestre e da agricultura - para o autor das
Confessions: “a violência que nos leva em direção às entranhas da terra, o momento do
cegamento mineiro, isto é, da metalurgia, é a origem da sociedade”
117
. Daí a associação
desse obscurecimento à ordem de reserva irredutível que se dá em relação ao suplemento,
este, como sabemos traduzindo a própria maquínica simbólica operada pela e na escritura,
pela e na linguagem.
O cegamento produz, portanto aquilo que nasce ao mesmo tempo que a sociedade: as
línguas, a substituição regrada das coisas pelos signos, a ordem do suplemento. Vai-se
do cegamento ao suplemento. Mas o cego não pode ver, em sua origem aquilo mesmo
que produz para suprir sua vista. O cegamento do suplemento é a lei. E antes de mais
nada, a cegueira a seu conceito. Além do mais, não é suficiente nela referenciar o
funcionamento para ver o seu sentido. O suplemento não tem sentido e não se dá a
nenhuma intuição. Nós não o fazemos, pois aqui, sair de sua estranha penumbra. Nós
afirmamos a sua reserva.
A razão é incapaz de pensar esta dupla infração à natureza: que haja carência na
natureza e que por isso mesmo algo se acrescente a ela. Aliás, não se deve dizer que a
razão é impotente para pensar isto; ela é constituída por essa impotência. Ela é o
princípio de identidade. Ela é o pensamento da identidade a si do ser do ser natural.
Ela não pode sequer determinar o suplemento como seu outro, como o irracional e o
não-natural, pois o suplemento vem naturalmente colocar-se no lugar da natureza. O
suplemento é a imagem e a representação da natureza. Ora a imagem não está nem
dentro nem fora da natureza.
118
Se o suplemento é perigoso para Rousseau porque de algum modo arruínaria a
ordem hierárquica valorativa na natureza enquanto meio-dia da razão, para Derrida esse
perigo é a força própria do suplemento enquanto espaço e operatória potente da escritura
entendida como campo de possibilidade do pensamento se apresentar como jogo de forças
(des)originário.
Haveria então, num certo sentido, como que uma cegueira ou um desvio lógico
constitutivo na ordem do suplemento, o qual é associado a uma penumbra, o que lemos em
117
Idem, p. 182.
118
Idem, pp. 182-183.
123
Blanchot a partir de sua avaliação teórica da estranha claridade que originaria a
possibilidade de uma economia geral do sentido enquanto metafórica ótica irredutível à
possibilidade do próprio conhecimento.
Diríamos mais uma vez que é nesse espaço do desvio, de interpenetração polarizada
de luz e sombra, nesse campo de perspectiva oblíquo e refratário, onde toda origem se perde.
Ou seja, nesse espaço-tempo da escritura onde certas forças podem se apresentar
necessariamente a partir de um movimento próprio às suas diferenças de intensidade, é nesse
plano ou dimensão operatória que percebemos uma ressonância reflexiva – na que
reconhecemos uma filiação com o pensamento nietzscheano - comum entre Blanchot,
Bataille, Foucault, Derrida e Deleuze.
Blanchot relança uma pergunta de Nietzsche:
Porquoi, dit-il, ce rapport du jour, de la pensée et du monde? (…) Mais purquoi, entre
toutes les métaphores possibles, la métaphore optique predomine-t-elle?
[…] La lumiére éclaire; cela veut dire que la lumiére se cache, c’est là sont trait
malicieux. […] ce qui est eclairé se présente en une presence immeéiate que se
découvre sans découvrir ce qui la manifeste. La lumiére efface ses traces; incvisible,
elle rend visible; elle garatit la connaissance directe et assure la presence pleine, tandis
qu’elle se retient elle-même dans l’indirect et et se suprime comme presence. […] La
clarté: la non-limiére de la lumiére; le non-voir du voir. La lumiére eest ainsi
trompeuse (au moins) deux fois: parce qu’elle nous trompe sur elle, et nous trompe en
donnant pour immédiat ce qui ne l’est pas […] Le jour est un faux jour, non pas parce
que il y aurait un jour plus vrai, mais parce que la verité du jour, la verité sur le jour,
est dissimulé par le jour; c’est à cette condition seulement que nous voyons clair: à
condition de ne pas voir la clarté elle-même. Mais le plus grave, […] reste la duplicité
par laquelle la lumiére nous fait nous confier à l’acte de voir […] et nous propose
l’immediation comme le modéle de la connaissance, allors qu’elle même n’agit qu’en
se faisant, à la dérrobé, médiatrice, par une diqlectique de l’illusion où elle se joue de
nous.
119
119
Op. Cit., p. 244. “Por que, diz ele, esta relação entre o dia, o pensamento e o mundo? (...) Mas por que entre
todas as metáforas possíveis predomina a metafora ótica?”.
[...] A luz ilumina, isto quer dizer que a luz se oculta, aí reside seu caráter malicioso. [...] o que está iluminado
se apresenta numa presença imediata, que descobre sem descobrir o que a manifesta. A luz apaga seus traços,
invisível, torna visível; garante o conhecimento e assegura a presença plena, enquanto se retém a si mesma no
indireto e se suprime como presença. […] claridade: a não-luz da luz; o não-ver do ver. Nessa forma a luz é
enganosa (ao menos) duplamente: porque nos engana sobre ela e nos engana dando por imediato o que não é
[...]. O dia é um falso dia não porque haja um dia mais verdadeiro, mas porque a verdade sobre ele está
dissimulada pelo dia; é somente sob esta condição que vemos claramente: à condição de não ver a claridade
mesma. Mas o mais grave […] continua sendo a duplicidade com que a luz nos faz entregar-nos ao ato de ver
[…] e nos propõe a imediatez como o modelo do conhecimento, enquanto que essa mesma luz atua fazendo-se
dissimuladamente mediadora, por uma dialética de ilusão que joga conosco”.
124
Nessa parte do texto, Blanchot afirmará que Nietzsche - a partir dessa constatação
sobre o caráter de dissimulação
120
da claridade onde se dão as formas - parece ter pensado,
120
Dissimulação/Ambiguidade. Veremos o quanto esses conceitos são capitais na economia crítica que
desenvolve Blanchot a partir da reflexão sobre o Neutro e um pensamento (do) neutro. Na verdade é toda essa
a problemática que também nos interessa. Pois a partir do conceito, ou melhor, da noção de neutro, ou seja,
dessa nomeação necessariamente paradoxal do que não poderia ser pensado senão na forma de uma espécie de
traição de um sentido fenomenológico, Blanchot passará a operar o que o termo tem de ambiguamente
impregnado em seu sentido, a saber, o que escapa ao sentido e se desdobra numa complexa operacionalidade
que se desenvolve ao longo de sua obra, como analiza por um viés fenomenológico Marlèné Zarader em L’être
et le Neutre a partir de Maurice Blanchot. Essa experiência de reflexão que se estabelece a partir do
desdobramento do conceito de neutro em L’entretien infini, deve, a nosso ver, se desencadear na importante
problematização da “tese”, que é justamente tentar situar o desenvolvimento da passagem de uma
conceitualização de experiência-limite a um conceito operacional de épreuve (prova-ção) enquanto modo
próprio de leitura sobre o literário na ficção blanchotiana e clariciana.
Que não seja entendido que se pretende solidificar um conceito para posteriormente faze-lo funcionar como
uma ferramenta simples. Diria antes, que a tentativa é a de no desenvolvimento da reflexão que foi afirmada
como desejo desta pesquisa, talvez fazer do conceito de épreuve enquanto prova-ção de experiência literária,
uma espécie de “máquina-crítica” que funcione na medida mesma de sua produção e que possa ao mesmo
tempo em que se afirma como produção, também poder se evanescer se sua experiência conceitual não
continue a operar sua potência mesma de épreuve. Talvez pudéssemos dizer, com Derrida, potência
suplementar.
A noção de dissimulação a que se remete Blanchot em toda sua obra crítica, e de maneira pontual nos anexos
de O Espaço literário, poderia ser pensada como o conceito que atrai para si a problemática mais complexa no
sentido ontológico. Ali onde a finitude para Heidegger é marco da possibilidade do conhecimento, para
Blanchot abre um outro desdobramento, pois que o sentido da morte para este, é dúplice, e como analisa
Zarader, poderia ser melhor nomeado enquanto potência ou “artimanha” (ruse) de Thanatos (p. 247).
Dúplice porque existiriam duas mortes, uma que estabelece o marco heideggeriano da finitude enquanto
possibilidade do ser-para-a morte, possibilidade do conhecimento do ser em direção ao não-ser, e outra que
estabelece a relação própria do pensamento (do) neutro blanchotiano, justamente por se tratar dessa outra-
morte, que se faz possibilidade do impossível, ou seja, momento limite onde o conhecimento dessa fatuidade
premente se faz limiar de uma evanescência, ali onde o (im)próprio desse evento é uma pura perda onde já não
é possível nenhum pensamento, nenhuma positividade e nenhuma negatividade, diria que esse evento abre o
próprio espaço do neutro que seria uma espécie de vórtice especulativo possível enquanto experiência-limite
da própria literatura. Ou seja, o espaço de suspensão e de ambigüidade de todo sentido possível, pois o sentido
escapa sempre para outro sentido possível e onde o sentido é cooptado pela força da fascinação. Fascinação
que é para Blanchot o próprio conceito para se pensar uma maquínica da imagem, ou uma especulação sobre o
simbólico em-si. A fascinação fala em nome da imagem. Ora associa a imagem às coisas do mundo, ora faz
operar uma relação com as coisas “a partir de sua ausência e pela ficção”.
Mas justamente aquilo que distinguimos, na ambigüidade, segundo Blanchot, em “ora isso, ora aquilo outro”, a
ambigüidade o faz sempre como sua própria maquínica de sentido. “Aqui o sentido não escapa para outro
sentido, mas, no outro de todos os sentidos e, por causa da ambigüidade, nada tem sentido, mas tudo parece ter
infinitamente sentido (...)” (Op. Cit., p. 265) Diríamos que, em nosso caso, esse campo de experiência-limite
(épreuve), observada apenas como gesto ou postura de abstração, é o que deflagra a potência de dissimulação
operada por um pensamento sobre a imagem literária.
A economia crítica da dissimulação se estabeleceria enquanto desdobramento de toda uma reflexão sobre o
sentido do Ser enquanto dissimulado, ou seja, para além de uma ontologia da identidade a-si do Ser operada a
partir de uma dialética do ser e do não-ser, Blanchot operará uma economia crítica sobre a imagem enquanto
objeto privilegiado para a reflexão da dissimulação
e da ambigüidade enquanto conceitos operatórios no cerne
da imagem (o que continua a fazer Nancy) esta, entendida como noção capital de uma ontologia estética da
ficção e da linguagem literária.
Diríamos que aquém do não-ser haveria a aparição infinitamente dissimulada do Ser. E que para além desse
Ser dissimulado, a repetição diferencial dessa própria dissimulação. Nas palavras de Blanchot, essa questão se
apresenta do seguinte modo: “A ambigüidade diz o ser enquanto que dissimulado [...]. Para que o ser realize a
125
ou melhor, teria produzido uma escritura radicalmente desestabilizadora justamente a partir
dessa suspeita, e por seu caráter fragmentário.
Pois, pelo fragmento, e poderíamos aqui pensar em termos estratégicos, Nietzsche
conseguiu criar uma reduplicação do que coexistiria enquanto dissimulação no cerne da
relação entre sujeito e objeto de conhecimento. Se a luz dá a ver, mas na condição de sempre
dissimular a origem dessa potência de formalização da imagem do objeto, é porque a própria
origem do conhecível detém aquém e para além de si mesma (campo imanente de
ambigüidade da luz, imediatamente onda e partícula) uma potência que pré-ontologicamente
se dissimularia como a própria situação de a-fundamento
121
do logos.
Estranha descontinuidade que a luz remete a si e que ao marcar uma presença
ambígua e dissimulada, se subtrai numa irredutibilidade de origem e que instaura uma
impossibilidade lógica de qualquer acesso fundamentado a causalidade primeira.
Eis aí, por analogia, uma ordem dos efeitos dessa especulação teórica que intenta
fazer ressoar uma indeterminação originária do sentido do logos a partir de uma metafórica
da luz enquanto elemento de constituição da razão suficiente e o movimento intrínseco do
contínuo e do descontínuo como encadeamento irredutível ao próprio sentido do
sua obra é preciso que seja dissimulado: trabalha dissimulando-se, é sempre reservado e preservado pela
dissimulação, mas também subtraído a ela; dissimulação tende então a tornar-se a pureza da negação. [...]
Logo, a ambigüidade não consiste somente no movimento incessante pelo qual o ser retornaria ao não-ser e o
não-ser devolveria ao ser. A ambigüidade já não é o Sim e o Não primordial em que o ser e não-ser seriam
pura identidade. A ambigüidade essencial estaria, antes, em que - antes do começo - o não-ser não está em
igualdade com o ser, é somente a aparência da dissimulação do ser. A dissimulação seria mais “original” do
que a negação. De modo que se poderia dizer: quanto mais essencial é a ambigüidade, menos a dissimulação
pode recuperar-se em negação.” BLANCHOT, M. O Espaço literário. Rio de Janeiro, Rocco, 1987, p.265.
121
A respeito do conceito complexo de “effondement” nos remetemos ao capítulo “Do fundamento ao sem-
fundo” in DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Trad. Luis Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro,
Graal, 2006, pp.379-382. Nesse sentido esse problema da fundação de uma indeterminação originária se
coaduna ao problema da ambigüidade essencial em Blachot. Pois, para Deleuze, “fundar é determinar o
indeterminado. Mas essa operação não é simples. Quando ‘a’ determinação se exerce, ela não se contenta em
dar forma, em informar matérias sob a condição das categorias. Alguma coisa do fundo sobe à superfície, e
sobe sem tomar forma, insinuando-se entre as formas, existência autônoma sem rosto, base informal. Na
medida em que ele se encontra agora na superfície, este fundo chama-se profundo, sem-fundo. Inversamente,
as formas se decompõem quando se refletem nele, tudo o que é modelado se desfaz, todos os rostos morrem,
subsistindo apenas a linha abstrata como determinação absolutamente adequada ao indeterminado, como
relâmpago igual à noite, ácido igual a base, distinção adequada à obscuridade inteira: o monstro. [...] Eis
porque o par matéria-forma é bastante insuficiente para descrever o mecanismo da determinação; a matéria já é
informada, a forma não é separável do modelado da species ou da morphé, o conjunto está sob a proteção das
categorias. De fato, este par é totalmente interior à representação e define seu primeiro estado, que Aristóteles
fixou. Já é um progresso invocar a complementaridade da força e do fundo como razão suficiente da forma, da
matéria e de sua união. Mas ainda mais profundo e ameaçador é o par da linha abstrata e do sem-fundo que
dissolve as matérias e desfaz o que é modelado. É preciso que o pensamento, como determinação pura, como
linha abstrata, afronte esse sem-fundo que é o indeterminado” (pp. 380-1).
126
especulativo enquanto escritura em seu sentido geral de expressividade e
(re)presentatibilidade do real.
Uma escrita fragmentária não teria em si, na forma de sua expressão, justamente
essa espécie de poder que demarcaria sua construção de sentido possível a partir das
descontinuidades entre suas partes? Na gestualidade deste percurso especulativo procura-se
operar também a partir da expressividade fragmentária e intenta-se a performação de uma
espécie de máquina-de-escritura-crítica composta, aberta e fundada numa economia dos
efeitos e não das causas.
Il semble que Nietzsche pense ou plus exactement écrit […] sous un double soupçon
qui incline à un double refus: refus de l’imédiat, refus de la mediation. […] Double
rupture, d’autant plus dominatrice qu’elle ne peut jamais s’accomplir, qu’elle ne
s’accompli que comme soupçon.
122
Necessidade do desvio, rechaçar o imediato e a mediação não levará Nietzsche a
criar uma operatória filosófica oblíqua? Se a luz, ao apresentar as formas do mundo por uma
irredutível dissimulação, reafirma seu caráter ambíguo, é porque sua própria matéria carrega
em si a potência da dissimulação, jogo de forças irredutível à unidade. O próprio mundo
passa, a partir de seu caráter iluminado pela potência dissimulativa da luz, a ser ele mesmo
de algum modo inapreensível, no sentido de compreensibilidade causal. O mundo se
apresentando enquanto desdobramento de formas dissimuladas pela potência ambígua da
luz, se produz como um texto sem pretexto.
Continuemos nesse percurso especulativo sobre a potência do fragmentário em
Nietzsche a partir da reflexão de Blanchot:
Le monde? Un texte? Le monde renvoie le texte au texte, comme le texte renvoie le
monde à l’affirmation du monde. Le texte: assurement une metaphore, mais qui s’il
pretend n’être plus la métaphore de l’être, n’est pas davantage la metaphore d’un
monde liberé de l’être: métaphore tout au plus de sa propre métaphore.
123
Nos interessaria marcar esses traços de irredutibilidade entre as imagens do mundo
enquanto texto sem origem (no sentido do a-fundamento constitutivo de uma razão
122
Idem, pp. 244-245. “Parece que Nietzsche pensa, ou mais precisamente, escreve [...] sob uma dupla suspeita
que o inclina a uma dupla rejeição: rejeição do imediato e rejeição da mediação […]. Dupla ruptura, tanto mais
dominante quanto que nunca pode realizar-se, desde que só se realiza como suspeita”.
123
Op. Cit., p. 250. “O mundo? Um texto? O mundo remete o texto ao texto, tal como o texto remete o mundo
à afirmação do mundo. O texto: certamente uma metáfora, a qual, contudo, se esse texto não pretende
continuar sendo a metáfora do ser, não é tão pouco a metáfora de um mundo liberado do ser: metáfora no
máximo liberada de sua própria metáfora”.
127
suficiente) e do texto enquanto escritura crítica e vontade de interpretação performativa
(para delimitar uma diferença de intenção a qualquer desejo de comprensão hermenêutica).
Nesse sentido, entendemos esse mundo como um objeto especulativo sem causa
absoluta e empiricamente válida para os “fins” de um conhecimento que pretenderia
compreender justamente as forças e o jogo irredutível de suas diferenças, aí onde esse
mundo é já o descontínuo do próprio texto ao qual há uma espécie de referência infinita.
Daí que o próprio texto que funcionaria como referência irredutível ao mundo, mais
que refletir-se ou projetar-se no mundo, emergeria como pura estratégia do fragmento, no
sentido de performação originária e dramática, diríamos, teatral, de um processo de
abismamento, ou em outras palavras, processo de mise en abîme da escritura justaposta entre
texto e mundo, entre um mundo e um texto incessantemente reimplicados um ao outro. Este,
entendido como teatralizado, performado em sua relação representativa de modo a se pensar
o próprio mundo como texto a ser experimentado e não apenas como decalagem
compreensivamente hermenêutica.
Texto, mundo, acaso, sentido. Como pensar no conceito de performação como a
própria possibilidade especulativa dessa continuidade e descontinuidade entre termos?
Como a escritura fragmentária de Nietzsche pode operar uma tal performação, uma tal
teatralidade da escritura?
Aproximamos-nos do fim do texto de Blanchot sobre a escritura nietzscheana, no
momento que diz respeito à importância de uma teoria da interpretação das forças,
performada a partir de uma estratégia da escritura fragmentária.
Um pouco antes, quando Blanchot lembrava de uma dupla suspeita de Nietzsche
quanto à verdade das formas do mundo (sempre “iluminadas” pela luz dissimulada do dia) e
daí justamente à necessidade de uma escritura fragmentária, Blanchot remarcava o signo
dessa dupla suspeita como sendo da ordem de uma rejeição tanto do imediato quanto da
mediação. Essa suspeita, segundo pensamos, seria pensada na direção do sentido do
verdadeiro. Ora, para Nietzsche, em sua filosofia perpectivista, falar e escrever vão em
direção do desconhecido. Para Nietzsche, pensar aponta para o projeto mais geral de
128
introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor
124
. É todo o programa filosófico de
Nietzsche que se esboça a partir dessa afirmação.
Blanchot, seguindo o comentário, marcará também o jogo de supostas oposições e
dependências que demanda uma filosofia (a de Nietzsche, mas que valerá analogamente à
sua própria escritura crítica) que estrategicamente deve se posicionar numa certa operação
interminável, pois teria sua potência afirmada na suspeita sobre o valor do dado de
realidade, ou melhor, na suspeita sobre o sentido do verdadeiro. Ele comenta:
Double rupture, d’autant plus dominatrice qu’elle ne peut jamais s’accomplir, qu’elle
ne s’accompli que comme soupçon.
125
124
Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, Quadrige/PUF, 1962, p.1.
125
Op. Cit. P. 245. Segue agora o fragmento que não consta no original e o qual comentaremos:
“Y sospecha que es todavia una mirada, lo oblicuo de la visión directa. El vacío de la evidencia, la ficción de lo
verdadero, la duplicidad de lo único, el alejamiento de la presencia, la carencia del ser: esto es poco si es
además necesario sospechar de la sospecha, volver a hallar en la perfídia de los ojos semicerrados (‘que
guiñan’) la confianza de la entera claridad, en la mentira el ímpetu de lo verdadero, en el Otro inclusive lo
Mismo, en el devenir siempre el ser. Y en el habla que denuncia todo esto, el sentido que no es más que la luz
que siempre se anuncia, a través de la transparencia de una forma estable, como visible”. Cf. Op. Cit.
BLANCHOT, Maurice «La ausencia del libro. Nietzsche y la escritura fragmentaria». Buenos Aires, Caldén,
1973. Colección El hombre y su mundo, 12, dirigida por Oscar del Barco. Texto digitalizado em
http://www.nietzscheana.com.ar/blanchot.htm Acessado em 04/11/2008 às 9:06 hs. Sem paginação.
Existe ainda mais duas referências a esse texto: Em BLANCHOT, Maurice. “Nietzsche y la escritura
fragmentaria”, Ed. Letrae tomado de la revista Eco de Bogotá, s/d. via internet, p. 57, e em BLANCHOT,
Maurice. “Nietzsche y la escritura fragmentaria” en La risa de los dioses, Barcelona, Caldén, 1977, in:
http://www.nietzscheana.com.ar/bibliografia.htm acessado em 04/11/2008 às 09:40 hs.
Como dizíamos, mais uma vez nos deparamos com a estranha situação de um “fragmento” de texto que não se
encontra no original de L’entretien infini. Gostaríamos de lançar algumas questões sobre esse fato. É um bom
momento para pensarmos essa relação com o problema da escritura fragmentária e na suspeita constitutiva do
pensamento de Nietzsche que desdobra Blanchot. Pensar nessa inclusão textual que segue o mesmo estilo e
lógica da escritura blanchotiana levaria a crer que a versão espanhola partiu de uma outra fonte original (que
não pudemos constatar) ou que houve a consciente inclusão de uma “falsificação”, um “enxerto” no texto.
Outra questão é que também foi retirada uma nota final do texto de Blanchot na qual ele faz referência a outros
importantíssimos pensadores (Foulcault, Deleuze, Fink, Granier, Derrida), aos quais o texto estaria vinculado
constitutivamente. Falta ainda uma nota, a da página 239.
A tradução do texto é a nosso ver, absolutamente válida. Daí a pergunta: que tipo de situação interpretativa
poderia emergir desse evento? Que o tradutor anônimo do texto teve o desejo de operar uma interpretação
própria tendo uma sobrevida apócrifa sob o texto de Blanchot? Que apenas acrescentando um pequeno
fragmento “exterior” ao texto original (no caso de premeditação), e de algum modo seguindo a “lógica” da
reflexão blanchotiana, ele poderia estar consignando uma relação “neutra” ao texto? Não seria um movimento
semelhante de ruptura que parece estar entranhado na reflexão que faz Blanchot sobre a escritura fragmentária
de Nietzsche? Não no sentido de falsificação, mas no sentido de que a própria escritura fragmentária é uma
espécie de possibilidade de desdobramento infinito do mundo, espaço onde a emergência das leituras se dobra
incessantemente sobre si mesma, fazendo emergir da interpretação efeitos de sentido possíveis, para além de
qualquer determinação de finalidade ou de causalidade. Pois esse fato de um fragmento “diferente” aparecer no
meio do texto de Blanchot, não deverá transformar mais essa reflexão do que o sentido de desdobramento que
a própria noção de escritura fragmentária desencadeia.
Cito agora o trecho suprimido na edição argentina e que marca a orientação teórica de Blanchot junto a alguns
pensadores importantes para nossa tese: “Ces pages sont écrites em marges des livres de Michel Foucault,
Gilles Deleuze, Eugen Fink, Jean Granier (Les mots et les choses, Nietzsche et la philosophie, La philosophie
129
Texto, mundo, acaso, sentido. Essas eram as palavras que orientavam o
acompanhamento que fazíamos sobre o texto de Blanchot. Pois de algum modo, ou melhor,
a partir do programa nietzscheano, estas palavras delineiam uma rede de conceitos que se
referem a operacionalidade da escritura fragmentária.
Eu não poderia deixar de fazer ressurgir o tema que perseguimos neste capítulo, a
saber, a especulação sobre uma noção de experiência (de pensamento, de escritura) em
Nietzsche que possa se relacionar posteriormente com uma noção de experiência-limite com
o mundo, mais especificamente, com o literário enquanto expressão de/do mundo e com a
linguagem em geral, a qual, nessa relação, denominamos como o regime ou o programa
crítico, o conceito de épreuve de uma experiência de escritura literária.
Porém essa pesquisa sobre a possibilidade de encontrarmos uma noção de
experiência-limite acha-se vinculada como um desdobramento necessário a uma certa
retroatividade sobre a experiência de linguagem da própria crítica com a qual a pesquisa se
relaciona.
Pois de algum modo, o intuito de aproximação a uma noção de escritura
fragmentária em Nietzsche, deve fazer operar retroativamente sobre esta própria pesquisa de
“tese”, sua vinculação constitutiva, que percebe no questionamento sobre a escritura
fragmentária a qual Blanchot lê em Nietzsche, uma das formas de sua expressão crítica.
Blanchot interpreta Nietzsche a partir de uma estratégia que o lê como produzindo
um texto crítico-teatral
126
. Há uma dramatização na escritura nietzscheana. Não é
simplesmente um filósofo que vê com suspeita os dados de realidade que foram
interpretados historicamente a partir de formas específicas e ideológicas, segundo suas
épocas e seus modelos de entendimento moral. Também, mas a escritura fragmentária
de Nietzsche, Le jeu comme symbole du monde, Le probléme de la vérité dans la philosophie de Nietzsche), et
de plusieurs essais de Jacques Derrida, réunis dans le livre: L’écriture et la différence.” Cf., p. 255.
126
É o que já remarcamos numa advertência anterior: as notas se multiplicam em sua potência própria e
maquínica de inserções aleatórias dadas a partir do jogo de repetição, revisão e releitura inerente ao processo
da escritura crítica. O tema de um texto crítico teatral se desdobra atualmente, pelo menos na atualidade virtual
desse comentário, no conceito de teatralidade maquínica que procuraremos fazer funcionar na segunda parte.
Esse conceito é fruto das leituras de Deleuze sobre Nietzsche, da continuidade da especulação que segue neste
momento e do trabalho sobre a noção de teatralidade que lemos com Christophe Bident em Le Geste Théatral
de Roland Barthes. Ainda acrescentaria que há associado à demarcação conceitual de uma teatralidade
maquínica nos recits de Clarice e Blanchot, o conceito de voz narrativa blanchotiano, desenvolvido no trabalho
130
deveria a partir de sua maquínica própria, permitir que houvesse a produção de personagens
conceituais, de máquinas conceituais-fragmentárias que juntas funcionassem
incessantemente na produção de uma dramatização crítica que pudesse, para além de “dar
conta” dos processos infinitos de um devir-mundo, operar uma espécie de seleção valorativa
das forças que se orientam como produtoras de sentido e de valor. Ora, uma leitura crítica
eficiente sobre o jogo das diferenças entre as forças deveria pré-supor que a superfície mais
efervescente desse jogo incessante de forças seria a própria linguagem.
Mas a linguagem pode ser operada de modos diversos, e em cada um desses modos
seria necessário discernir as possibilidades de transgressão de sua própria lei.
Valeria dizer que uma escritura fragmentária deverá, a partir de sua estratégia de
dramatização, operar retroativamente a suspeita sobre a validade de seus pressupostos,
fazendo com que a partir dessa postura específica sobre uma condição valorativa e histórica
da verdade, possa guardar ou reter um tipo de “plus” de significação conquistado a partir do
movimento seletivo de uma crítica do valor e do sentido na filosofia.
Essa espécie de círculo hermenêutico deveria ser, antes que quebrado, posto no
limite de seu suposto funcionamento, segundo a lógica de uma desconstrução incessante de
seu modo de operação, ou seja, se trataria aí de entender como, a partir de um
questionamento genealógico sobre a filosofia, passar a um questionamento do sentido e dos
jogos de força na obra artística ou filosófica, avaliados constantemente segundo relações de
valor.
Uma filosofia da vontade, portanto, é o que equacionaria a expressividade dramática
da escritura fragmentária de Nietzsche. O sentido de uma coisa é a relação desta coisa com a
força que aí tem lugar. O valor de algo é a hierarquia das forças que se exprimem em algo na
qualidade de fenômeno complexo. A esse respeito Deleuze afirma:
Le concept de force est donc, chez Nietzsche, celui d’une force qui se rapporte à une
autre force: sous cette aspecte, la force s’appelle une volunté. La volunté (volunté de
puissance) est l’element différentiel de la force.
(...) Quoi qu’il em soit à cet égard, nous pouvons marquer la progression du sens à la
valeur, de l’interpretation à évaluation comme tâches de la genealogie : le sens de
quelque chose est le rapport de cette chose à la force qui s’en empare, la valeur de
de Dominique Rabaté sobre o Recit francês da modernidade e que são referencializado mais adiante a partir de
dois de seus livros, a saber: Vers une littérature de l’épuisement, e Poetiques de la Voix.
131
quelque chose est la hierarchie des forces qui s’expriment dans la chose en tant que
phénomène complexe.
127
Proposição do enigma em lugar do mistério, o mundo, ou o devir-mundo seria um
texto sem pretexto. É o desdobramento infinito das interpretações que acabam tomando
certas formas de expressão que se repetem, mas que jamais o esgotam em seus modos. Daí a
linguagem operando a partir de uma estruturação dinâmica, conjunto finito de signos
operando inter-relações ilimitadas entre si. Derrida se refere a esse funcionamento
maquínico da linguagem a partir do conceito de iterabilidade.
Nesse sentido, pensar sobre um conceito como o de iterabilidade, que pensamos
orientar-se numa linha de filiação especulativa direta com a escritura fragmentária de
Nietzsche, estabeleceria uma relação de diferença conceitual entre a noção de infinitude e
ilimitação, a qual daria conta, esta última, da coexistência entre relações de finitude e
infinitude no campo da especulação filosófica que passaria a se preocupar com a linguagem
e seu funcionamento estrutural, sua importância em termos imanentes à própria reflexão
ontológica e metafísica.
Este devir-mundo, segundo uma terminologia deleuziana, esse texto sem pretexto, ou
sem origem a não ser o próprio jogo das diferenças das forças entre si, ou seja origem sem
origem pois iterabilidade própria no seio da linguagem, é enigma, e dá-se como escritura
fragmentária, que realiza, nessa maquínica da linguagem, a própria intenção ou desejo
enquanto linguagem. Daí nosso intuito de valorar ou de conceitualizar os conceitos de
épreuve ou prova-ção enquanto experiência singular de incessante desdobramento do
sentido.
Épreuve, portanto funcionando como o que restitui e marcaria um plus de
significação que deverá ser, sem cessar, posto a prova a partir de uma espécie de estética do
(in)operante, vale dizer, especulação ou valoração da tarefa de um pensamento (do) neutro.
Blanchot marca ou faz operar em sua obra, e diríamos inclusive que ele orienta um tom
quase teatral a essa relação dramática da escritura fragmentária nietzscheana. Essa
teatralidade se impõe como uma relação sutil que se dá como encontro entre o acaso e a
contingência de uma intenção de escritura em sua emergência crítica, ou numa palavra, em
seu acontecimento.
127
Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris, Quadrige, PUF, 1962, 1999, pp.7 e 9.
132
Nesse sentido, vemos na relação filiativa de Blanchot com uma escritura
fragmentária de potência semântica ilimitada e de estratégia estrutural a-sistêmica, a
sobredeterminação pós-estruturalista a partir de uma interpretação da obra, como tarefa de
uma ética do porvir ligada à tarefa crítica enquanto trabalho de escritura, enquanto relação
de tensão inerente a uma estética ou poética do neutro.
Énigme, solution de toutes les énigmes -, s’il est la différence qui est en jeu dnas le
mouvement d’interpréter et comme c’est qui, en celui-ci, le porte toujours à différer, à
repeter en differant, si enfim, dans l’infini de son éparpilement (en cela Dionysos),
dans le jeu de sa fragmentation et, […] dans le débord de ce qui le soustrait, il afirme
ce plus de l’affirmation, qui ne se tient pas sous l’éxigence d’une clarté, ni ne se
donne dans la forme d’une forme, ainsi texte qui n’est certes pas déjà écrit, pas plus
que le monde n’est une fois pour toutes produit, mais ne se séparant pas du
mouvement d’écrire dans sa neutralité, il nous donne l’écriture, ou plutôt, par lui,
l’écriture se donne comme ce qui, détournant la pensée de toute visible et de toute
invisible, peut la libérer du primat de la signification entendue comme lumiére ou
retrait de la lumiére, et peut-être la libérer de l’exigence de l’unité, c’est-á-dire du
primat de toute primauté, puisque l’écriture est différence, puisque la différence écrit.
128
Mas esse enigma marca, com o peso efêmero do sentido de sua finalidade
inconclusa, o ritmo quebrado da questão sobre a possibilidade do conhecimento de que
Nietzsche suspeita. Pois se o mundo é texto sem pretexto, não o será na forma de uma
matéria de deciframento inconcluso e porvir. O mundo não seria, de maneira nenhuma,
matéria para uma hermenêutica paciente e metódica direcionada a uma finalidade
teleológica desejada como verdadeira.
Essa escritura fragmentária nietzscheana que marcamos criticamente como a
possibilidade estratégica de se fazer funcionar como uma máquina-estética, deverá operar
justamente o paradoxo de uma linguagem que critica em seu próprio modo maquínico,
certos pressupostos metafísicos. Pois a linguagem está constitutivamente implicada numa
operação própria ao sentido do Ser, pois é esse mesmo sentido dado e atribuído pela própria
linguagem. Nessa circularidade inerente ao ser da linguagem não se trataria justamente de
128
Op. Cit., p. 247. “Enigma, solução de todos os enigmas - se a diferença que está em jogo no movimento de
interpretar e está nele como o que leva sempre a diferir, a repetir definindo-se, se, enfim, no infinito de sua
dispersão ( e nisto, Dionísio), no jogo de sua fragmentação […] no transbordamento do que o subtrai, afirma
este mais da afirmação que não se mantém sob a exigência de uma claridade, nem se dá na forma de uma
forma, então este texto que certamente não foi ainda escrito, do mesmo modo que o mundo não foi produzido
de uma vez por todas, esse texto, sem separar-se do movimento de escrever em sua neutralidade, nos dá a
escritura, ou melhor, por ele se dá a escritura como aquilo que ao separar o pensamento de todo visível e
invisível pode liberá-lo da primazia da significação, comprendida como luz ou retirada da luz, e talvez liberá-lo
133
perceber um certo transbordamento de sentido, um plus de significação, que portaria o
devir-mundo em relação ao Ser. Pois seria o caso, justamente, de fazer operar a partir de
uma maquinária estético-filosófica, essa diferença entre os ritmos que impõe uma crítica da
linguagem sobre o mundo e o próprio mundo enquanto território móvel e fragmentário, ou
seja, enquanto devir-mundo contido numa ilimitação, numa iterabilidade inerente à
linguagem, constituidora ela própria da possibilidade de mundo. Já não funcionaria a
imagem de como entrar ou sair de um círculo hermenêutico, mas sim de se obsrvar o
momento adequado ou de escolha de um corte da continuidade de séries significantes na
forma metafórica que desenvolvemos um pouco antes. Vale dizer, fazer da tarefa crítica uma
espécie de processo de corte, torsão e religação na figura da fita de Möebius, processo o qual
aludiria ao movimento incessante de resignificação da obra, seja da obra literária no interior
da crítica, seja da crítica como suplemento da obra artística.
Lemos então junto a Deleuze e Blanchot, as figuras de acaso, fragmento e enigma,
como sendo os termos que Nietzsche em Assim falou Zaratustra teria feito ressoar como
conceitos numa verdaeira maquínica estético-filosófica. Pois nessa obra haveria uma espécie
de método dramatizado, onde personagens conceituais atuariam num teatro de significantes,
fazendo jogar fragmentariamente, no acaso, nas imagens e proposições ali performadas, um
sentido lançado ao porvir, sentido que de algum modo subsistiria e se insistiria na forma
própria do enigma.
É nesse sentido que Blanchot coloca a questão:
Brisées, fragments, hasard, énigme, Nietzsche pense ces mots ensemble,
particulierment dans Zarathoustra. Sa tentation alors est double. D’abord il ressent
comme une douleur, errant parmi les hommes, de ne les voir que sous la forme de
débris, toujours morcelées (…) il se propose donc, par l’effort de l’acte poétique, de
porter ensemble et même de conduire jusqu’à l’unité – l’unité de l’avenir – ces fracas,
morcelements et hasards de l’homme: ce sera le travail du tout, l’accomplissement de
l’intégral. (…) Mais son Dichten, sa décision poétique, a aussi une direction toute
différente. Rédempteur du hasard (…) sauver le hasard ne veut pas dire le faire rentrer
dans la série des conditions; (…) ce le garder sauf de toute ce qui empêcherait de
l’affirmer comme le hasard effrayant, cela qui ne saurait abolir le coup des dés. Et, de
même, déchifrer (interpreter) l’énigme, est-ce simplement faire passer l’inconnu au
connu ou tou tout au contraire le vouloir comme énigme dans la parole même que
l’élicide, c’est-à-dire, par délà la clarté du sens, l’ouvrir à ce langage autre qui ne régit
pas la lumiére ni n’obscurcit l’absence de lumiére? Ainsi, brisées, fragmentsne
doivent pas apparaître comme les moments d’un discurs encore incomplet, mais
da existência da Unidade, vale dizer, da primazia de toda primazia, posto que a escritura é diferença, posto que
a diferença escreve”.
134
comme ce langage, écriture d’éffraction, par lequel le hasard, au niveau de
l’affirmation, reste aleatoire et l’énigme se libére de l’intimité de son secret pour, en
s’écrivant, s’exposer comme l’énigme même que maintient l’écriture, parce que celle-
ci la reprend toujours dans la neutralité de sa propre énigme.
129
Essas três palavras ou conceitos darão conta, daí até o final do texto de Blanchot, de
toda a complexidade do tema da escritura fragmentária nietzscheana. Há pouco, em nota
anterior, remetemos à “falta”, na tradução castelhana, de uma nota final do texto original de
Blanchot. Essa nota indica os autores aos quais o crítico francês se refere direta ou
indiretamente em seu texto. Nesse sentido, poderíamos ler sua crítica como que coexistindo
também nas margens desses outros livros. Valorando uma rede de conexões e de filiações
com outros críticos, Blanchot estabelece uma relação mais ou menos formal com um
espectro de teorias desenhado pelo trabalhos dos nomes citados. Talvez surja aí, justamente,
e de forma indicativa, uma das questões teóricas que tentamos expor. Ou seja, que uma
crítica sobre o modo de funcionamento dado pela escritura de Nietzsche, seria uma crítica
do próprio valor e do sentido, enquanto crítica do valor do sentido e do sentido de valor.
Pretendemos, focando o texto de Blanchot sobre a escritura fragmentária de
Nietzsche, desencadear, junto ao texto blanchotiano, uma descrição crítica do sentido de
uma escritura fragmentária como exemplo de uma operatória contemporânea de teorias
críticas que acabam por transbordar de algum modo preocupações teóricas que
institucionalmente eram pensadas a partir de preocupações eminentemente filosóficas.
Bataille, Foucault, Derrida e Deleuze, dentre outros, elaborarão singularmente em
suas obras estilos críticos que de algum modo se correlacionam ao tema da escritura
fragmentária, de uma crítica da diferença e da identidade do mesmo enquanto conceitos
129
Op. Cit., p. 250. “Fragmentos, acaso, enigma, Nietzsche pensa essas palavras em conjunto, particularmente
no Zaratustra. Sua tentação é então dupla. De um lado, sofre, errante entre os homens, ao vê-los somente sob a
forma de fragmentos, sempre divididos […]. Então se propõe, graças ao esforço poético, levá-los junto e
inclusive conduzir até a unidade – unidade do porvir - esses fracassos, esses depojos e acasos do homem […]
seria este o trabalho do todo, o cumprimento do integral. […] mas seu Dichten, sua decisão poética, tem
também uma direção totalmente distinta. Redentor do acaso: […] salvar o acaso não quer dizer fazê-lo entrar
na série das condições […] é guardá-lo a salvo de tudo o que o impediria de afirmar-se como o acaso pavoroso,
aquele que não poderia abolir o lance de dados. E igualmente, descifrar (interpretar) o enigma, não sería
simplemente fazer passar o desconhecido ao conhecido, ou o contrário, querê-lo como enigma na fala que o
elucida, ou seja, abrir-lo mais além da claridade do sentido, a essa outra linguagem que não rege a luz nem
obscurece a ausência de luz? Desse modo, estilhaçados, os fragmentos não devem aparecer como momentos de
um discurso ainda incompleto, mas como essa linguagem, escritura de fratura, pela qual o acaso, no nível da
afirmação, continua aleatória e o enigma se libera da intimidade de seu próprio segredo ao escrever-se,
expondo-se como o próprio enigma que mantém a escritura, dado que esta volta a abrigá-lo sempre na
neutralidade de seu próprio enigma”.
135
constitutivos de um pensamento pós-estruturalista que não deixaria de ter no próprio
estruturalismo uma gênese direta e se constituírem como desenvolvimento programático,
como espaço de desdobramento e deslocamento teóricos.
Esse retorno ou pausa no encadeamento da descrição do texto de Blanchot foi
necessário para podermos situar a originalidade do texto tematizado aqui. É que Blanchot,
nas duas páginas finais, desenvolverá uma sintese das questões que norteiam a filosofia
contemporânea e que seriam em grande parte o próprio desencadeamento das pesquisas dos
autores que acabamos de citar.
Os conceitos de fragmento, de acaso e de enigma serão abordados de modo que a
escritura - não apenas a fragmentária, mas a escritura em geral enquanto conceito
potencializado no espectro de teóricos citados - comportará em sua operatória
130
a
complexidade e dinamismos funcionais necessários para o discernimento das questões que
os conceitos de diferença e de repetição engendram a partir da tematização de uma crítica
da linguagem.
Se o mundo é texto sem pretexto, é meio e desborde, transbordamento do sentido de
seu fundamento, se é um mundo onde só há (a)fundamento de sua origem, é porque o meio
de acesso ao mundo ou a sua significação faz parte de sua própria gênese (des)originária.
Esse meio que é também o próprio mundo, seu devir de invaginação na qualidade de uma
operatória infinita de sua interpretação, pois a linguagem que o indica, aponta e descreve é
constitutiva de sua própria abertura e deriva de sentido, de sua falta de origem e da
inexistência de uma finalidade que não pertença já ao processo de a-fundamento e de
deslocamento incessante do próprio sentido.
Se o mundo é mundo de efeitos de forças e não de causas primeiras que
fundamentariam efeitos posteriores teleologizados a partir de um logos fundamental
organizador, é porque ele estabelece sua impossibilidade de ser interpretado a não ser que se
parta de uma suplementarização de seu próprio transbordamento, ou seja, que uma
130
O conceito de operação é constitutivo (capital) nessa pesquisa, como o demonstra inclusive sua
reincidência. Blanchot em O Espaço literário, alude naquele momento teórico de sua obra, justamente a
questão da obra enquanto conceito de uma espécie de sistema aberto lançado ao porvir das leituras. É todo o
tema do labor e do trabalho em Heidegger que Blanchot operaria de outra forma, reafirmando o caráter da obra
enquanto espaço de disseminação do sentido, território ou espaço de possibilidade da escritura literária se
136
intepretação do mundo pressupõe uma relação de neutralização de um desvelamento
positivo de seu elemento desconhecido. Toda tarefa de conhecimento e de atribuição de
sentido correlaciona, em seu próprio movimento, um desdobramento do sentido do valor no
valor do sentido exposto no modo da escritura em geral. A intenção posta na tarefa artística
é, como também na tarefa teórica ou filosófica, espaço de elaboração do sentido e campo de
desdobramento de forças, diríamos pré-ontológicas, que procuramos pensar sob uma
estratégia de observação de seu processamento estético na forma da produção da literatura.
Uma experiência-limite da literatura, como observamos no caso dos textos de Clarice
Lispector e Maurice Blanchot, poderia nos informar sobre certo excesso que é,
paradoxalmente, também falta essencial de sentido, devido ao processo específico de
enunciação do que chamamos de voz narrativa dos textos ou “récits” que tratamos
posteriormente no espaço dedicado à prova-ção crítica.
Essa suplementarização de um excesso de sentido e que se dá na mesma medida por
uma falta de sentidos essenciais, só pode efetuar-se na forma de escritura enquanto jogo
incessante da própria imanência do mundo a partir das formas iteráveis da linguagem.
A frase: “a diferença escreve”, significa que o que difere no jogo das forças pode ser
atraído por formas momentâneas de repetição no seio da maquínica que elabora a escritura.
E inclusive, essa atração em relação a uma repetição essencial do signo, re-elabora, por seu
lado, novas afirmações de diferença que desencadeiam processos invaginados de repetição
diferencial das forças tornadas linguagem, ou seja, tornadas expressão de sentido nas cadeias
comunicativas as mais diversas.
Uma estética deleuziana se preocuparia desde as informações genéticas no interior
dos processos biológicos às expressões artísticas e os jogos políticos desencadeados e
expressos pela linguagem verbal ou plástica. Numa estética geral energética como a que é
desenvolvida em Diferença e Repetição, coexiste a economia geral das forças passível de ser
pensada nos termos de uma crítica geral da representação, operada como verdadeira
ontologia energética do sentido e do valor.
elaborar, se desdobrar, se invaginar a partir de seus próprios pressupustos (des)originários, de sua relação
(a)fundada numa certa história da metafísica da presença. Laborar, elaborar, fabular.
137
O questionamento ontológico que parece ainda permanecer no final do texto de
Blanchot, parte da questão de que a própria linguagem se defronta com seu limiar, com sua
(in)operância de sentido positivo - vale dizer, limiar no sentido de um limite de atração a
uma exterioridade catastrófica, ou seja, a abstração especulativa eminentemente
contemporânea que pensa um abismo ou uma espécie de limite intransponível no seio da
episteme. Na verdade veremos que esse limite intrasponível foi transposto no sentido de
uma reflexão sobre o caráter da linguagem no pensamento do ser como imanência absoluta,
dado pela crítica da linguagem em seu sentido mais amplo de crítica geral da representação.
Nesse sentido, pensamos o conceito de limiar como o espaço crítico possível de uma
épreuve às vezes radical a que a literatura acede nos termos de uma criação dramática de
figuras e maquínicas operadas por personagens conceituais ou por vozes específicas que
figuram tanto a crise de uma passagem do limite ao limiar como a própria complexidade dos
temas associados aos processos de conhecimento e das formas históricas da representação
que uma obra como a de Foucault pôde desenvolver tamm de forma não tanto
fragmentária como a-sistemática.
Não seria demais afirmar que esse limiar que se impõe como horizonte obscuro,
campo de cesura e indeterminação, para além de um horizonte de conhecimento
hermenêutico, também fornece o lastro paradoxal para que o conhecimento possa sobrevoar
esses e outros abismos que emergem como paisagens talvez mais apropriadas a um desejo
de descrição possível do Universo. Pois este Universo não seria, como o aponta Blanchot,
justamente um incessante retorno a uma unidade, mas pensável somente a partir do espaço
que abre iteravelmente a linguagem?
L’Univers (ce qui est tourné vers l’Un), le Cosmos ( avec la présomption d’un temps
physique orienté, continu, homogéne, quique irreversible et évidement universel et
même suruniversel), loin de réduire l’homme par sa sublime majesté à ce néant qui
effrayait pascal, ne seraient-ils la sauvegard et la verité de la presence humaine
(…)?
131
A escritura fragmentária de Nietzsche elabora e inscreve uma analogia possível para
Blanchot. Analogia esta que perceberia o mundo comparável metaforicamente à
131
Op. cit., p. 252. “O Universo (o que está voltado para o Uno), o Cosmos (com a presunção de um tempo
físico orientado, contínuo, homogêneo, ainda que irreversível e evidentemente univesal e inclusive
subreunivesal), longe de reduzir o homem em sua sublime magestade a esse nada que apavorava Pascal, não
seria a salvaguarda e a verdade da presença humana (…)?”
138
potencialidade da escritura enquanto iterabilidade. Valeria relembrar que o que é iterável
(iter, alter, outro) é o elemento diferenciante que se articula no jogo de combinações
ilimitadas possíveis dos elementos finitos (signos) da linguagem.
Interpretar as transformações dos jogos de força do mundo será operar as
possibilidades de combinações, mas limitadas a determinadas formas de expressão do
sentido. Seria elaborar o pensamento através de possíveis máquinas-estético-filosóficas que
abrem, por assim dizer, novas rachaduras e campos de indeterminação na extensão em curva
da paisagem do pensamento e da linguagem.
Interpreter: l’infini: le monde. Le monde? Un texte? Le texte: le mouvement d’écrire
dans sa neutralité. (…) Jetés en avent, ils ne se séparent pas encore de l’ensemble. Ils
le prolongent par la rupture; ils disent cette poursuite-rupture en vertu de laquelle,
mouvement disjoint, ils se disent. Isolés comme par discrétion, mais par une discrétion
déjà indiscrète (trop marqué); se suivant, et de telle sorte que cette succession n’en
soit pas une, puisque, sans autre rapport qu’un signe qui ponctue, signe d’espace, par
où l’espace s’indique comme temps d’indication, ils se disposent aussi, (...) dans une
simultaneité réversible-irréversible; se succédant mais donnés ensemble,
(…)s’échangeant selon une réciprocité qui les égalise, selon une irreciprocité toujours
prête à se renverser: ainsi portant à la fois et refusant toutes les façons du devenir,
comme toutes les positions de la pluralité espatiale. C’est qu’ils s’écrivent, (…) par
cette différence qui toujours écrit.
132
Aí mesmo, nesse espaço flutuante e potencialmente constituído pela própria
indeterminação sempre renovada do conhecimento, é que procuramos a elaboração de certa
perspectiva descritiva sobre uma economia crítica do estilo. Procuramos, portanto,
exatamente nesse lugar onde Blanchot elabora, a nosso ver, uma visada sobre o pensamento
do estilo, ou do que chamaríamos, de outro modo, de elaboração das formas de expressão
imanentes performadas na escritura. Procuramos, então, a partir desse espaço, onde dentro
de certas determinações estruturadas, mas descentradas, ocorrem ritmos próprios de
canalização e expressão formal, discernir como são desencadeados modos próprios de
132
Op. Cit., p. 252. « Interpretar: o infinito: o mundo. O mundo? Um texto? O texto: o movimento de escrever
em sua neutralidade. […] escribir en su neutralidad. [...] Lançados à frente esses termos não se separam ainda
do conjunto. O prolongam pela ruptura: dizem essa continuidade ruptura em virtude da qual, movimento
disjuntivo, eles se dizem. Isolados como por discreção já indiscreta (muito marcada), seguem-se, e o fazem de
tal maneira que essa sucessão não se dá, posto que, ao não ter nenhuma outra relação fora do signo de
pontuação, signo de espaço – no qual o espaço se indica como tempo de indicação, se dispõe também […] em
uma simultaneidade reversível-irreversível; se sucedem porém dados em conjunto […] se intercambiam de
acordo com uma reciprocidade que os iguala, de acordo com uma irreprocidade sempre pronta a inverter-se.
Desse modo, ao mesmo tempo levando e recusando todos os modos do devir, como todas as posiçoes da
pluralidade espacial. É porque eles se escrevem […] nessa diferença que escreve sempre”.
139
percepção de uma potência neutra pré-existente ao jogo das forças inerente à constituição
iterável da linguagem e, portanto, da escritura.
A linguagem, a partir da constituição imanente da escritura em sua estruturação
descentrada e junto às formas de sua organização interna, como a pontuação, o ritmo e o
relacionamento próprio às suas partes (estilo?), teria em seu modo de atração, ou em sua
maquinária, a possibilidade de operar o elemento diferenciante - para Derrida, différance -
que estaria constituivamente relacionado ao jogo das forças em geral e ao processo obscuro
entre o conhecido e o desconhecido como propriedade do jogo e do acaso, da contingência e
do enigma.
O ritmo e a pontuação para Blanchot poderiam ser pensados como a própria
inscrição da différance numa espacialidade forjada pelos signos no seio da operação da
escritura a qual espaça o tempo e temporaliza a fala (devenir-parole) instaurando uma
dimensão aiônica da escritura, por assim dizer. Essa é uma das vias de acesso a uma
descritibilidade da noção de Neutro. Uma outra, veremos, será o discernimento de uma
potência neutra a partir de uma topologia da enunciação narrativa literária
133
. Nessa
economia do descontínuo, portanto, haveria uma espécie de operacionalidade neutra que
carregaria a inscrição ambígua do elemento diferenciante. Esta espacialidade devorada por
uma inscrição rítmica que absorve no paradoxo a própria continuidade de suas diferenças,
inscreveria, numa espécie de vínculo diferencial, o próprio tempo no sentido de uma relação
inerentemente constituída com o espaço enquanto as duas dimensões fundamentais da
existência enunciativa no ser da linguagem.
Des mots juxtaposés, mais dont l’arrangement se confie à des signes qui sont des
modes d’espace et qui font de l’espace un jeu des rapports où le temps est en jeu: on
les nomme signes de ponctuation. Comprenons qu’ils ne sont là pour remplacer des
phrases axquelles ils emprunteraient silencieusement un sens. (Peut-être cependant
pourrait-on les comparer au mystérieuse sive de Spinoza : deus sive natura, causa sive
ratio, intelligere sive agere, par lequel s’inaugurent une articulation un mode
nouveaux, notamment par rapport à Descartes, même s’il lui semble lui être
emprunté.) (…) Leur valeur n’est pas de répresentation. Ils ne figurent rien, sauf le
vide qu’ils animent sans le déclarer. Ce en effet le videde la différence que, par leur
accent, ils retiennent, l’empêchant, sans lui donner de formede se perdre dans
l’indétermination. D’un côté leur rôle est d’élan; de l’autre, (et ce le même), de
suspens, mais la pause instituée a pour caractére remarcable de ne pas poser les termes
133
Sobre a voz narrativa como imanência da potência do neutro na literatura, conferir: “La voix narrative (le
“il” le Neutre)” in: BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris, Gallimard, 1969, p. 556. Conferir também
os livros de Dominique Rabaté: Vers une littérature de l’épuisement e Poetiques de la Voix.
140
dont ils assurent ou arrêtent le passage et de ne pas non plus le déposer: comme si
l’alternative du positif et du négatif, l’obligation de commencer par affirmer l’être,
quand on veut le dénier, étaient ici, enfin, énigmatiquement rompues.
134
O estilo que poderia estar atrelado às marcas de suspensão, de justaposição, de
cadência e ritmo, enfim, da respiração e da forma de expressão de um texto, não poderia ser
percebido enquanto uma forma particular de emergência de uma relação de forças? De
emergência ou materialização textual de um determinado jogo de escolhas, de uma forma
idiossincrática de expressão de temas, de assuntos, de autores e ou linhas de pensamento?
Mas ao mesmo tempo como equacionar os dois pólos aparentemente excludentes da
questão, vale dizer, o pólo da contingência e o pólo da liberdade? Existirá uma forma mais
ou menos ordenada de se colocar esse problema?
Blanchot não está preocupado com a tematização do estilo por si mesma, mas sim
com a possibilidade de aglutinar uma série de assuntos operados por vários outros teóricos,
numa tematização bem precisa de um determinado “estilo” de escritura fragmentária em
Nietzsche. Como lançamos a suspeita acima, talvez deveríamos repensar a possibilidade
mesma de se desejar levar muito mais longe a questão do estilo numa perspectiva mais
geral.
Blanchot, ao questionar certos posicionamentos da fenomenologia de Husserl, da
filosofia de Heidegger e da crítica em geral, teria tido a necessidade de inscrever-se
enquanto produtor de uma crítica que se faria necessariamente singular tanto no conteúdo
quanto na forma de expressão.
A própria paradoxologia em que opera seu discurso - uma falsa impressão de
inoperância e de recorrente contradição conceitual - se faz absolutamente necessária para
134
Op. Cit., p, 64. No original, p. 253. “Palavras justapostas, mas cuja distribuição se confia a signos que são
modos do espaço e que fazem deste um jogo de relações onde o tempo está em jogo; os chamamos signos de
pontuação. Compreendamos que não estão ali para substituir frases as quais emprestariam silenciosamente um
sentido. (Talvez, contudo, poderiamos compara-los com o misterioso sive de Spinoza: deus sive natura, causa
sive ratio, intelligere sive agere, pelo qual se inaugura uma articulação, um novo modo, especialmente em
relação a Descartes, mesmo se parece ter sido emprestado dele). [...] seu valor não é um valor de representação.
Eles nada figuram, salvo o vazio que animam sem declará-lo. O que eles retêm com seu acento é co-efeito, o
vazio da diferença, impedindo-o sem dar-lhe forma de perder-se na indeterminação. De um lado, seu papel é de
impulso: de outro (e é o mesmo), de suspensão, mas a pausa por eles instituida tem como caráter singular não
instituir os termos com os quais eles asseguram ou bloqueam a passagem: como se a alternativa do positivo e
do negativo, a obrigação de começar por afirmar o ser, quando se quer negá-lo, fosse por fim enigmaticamente
rompida”.
141
desdobrar os temas relativos à possibilidade de uma linguagem crítica contemporânea
assumir verdadeiramente os riscos e certas determinações de princípio a que um estatuto
criticista para além do fenomenológico impõe.
O estilo paradoxológico blanchotiano se apresenta, assim, como verdadeira
performação e desdobramento ativo da escritura fragmentária nietzscheana. Tanto na
expressão temática, como na própria apresentação de um estilo que se potencializa no
paradoxo e na ambigüidade e que se repete sob diferentes perspectivas no interior da obra
crítica, inscreve a operacionalidade singular de um pensamento que se assume como
ultrapassamento de forma e fundo.
A pontuação, o ritmo e o espaçamento entre os signos para Blanchot inscreverão,
portanto, a própria capacidade performativa da escritura, emergindo nesse momento de sua
reflexão como “pré-sentido” a partir de uma especulação que a faz aparecer como o
elemento diferenciante que remete e instaura uma espécie de descontinuidade como algo que
atravessaria ou constituiria o próprio Ser da linguagem - desde que pensemos num Ser
descontínuo, múltiplo, fragmentado e que retornaria incessantemente a uma unidade
paradoxal dessa dispersão - por inteiro e em todas as suas partes. Dessa forma, esse Ser da
linguagem, passa, a partir da expressividade dada na escritura em geral, a resvalar com
propriedade a possibilidade mesma de interpretação infinita dada pelo devir-mundo em
ressonância e apelo à linguagem.
[…] Le “différer” de la diférence est porté par l’écriture, mais n’est jamais inscrit par
elle, exigeant au contraire de celle-ci qu’à la linite elle n’inscrive pas, que, devenir
sans inscription, elle décrive une vacance d’irrégularité que nulle trace ne stabilise
(n’informe) et qui, tracé sans trace ne soit circonscrite que par l’effacement incessant
de ce que la détermine.
Différence: elle ne peut être que différence de parole, différence parlante que permet
de parler, mais sans venir elle même, directement, au langage – ou y venant, et alors
nous renvoyant à l’étrangeté du neutre en son détour, cela qui ne se laisse pas
neutraliser; Parole qui toujours par avance, en sa différence, se destine à l’exigence
écrite. Écrire: trait sans trace, écriture sans transcription. Le trait d’écriture ne sera
donc jamais la simplicitéd’un trait capable de se tacer en se confondant avec sa trace,
mais la divergence à partir de laquelle commence sans commencement la poursuite-
rupture. Le monde? Un texte?
135
135
Op. Cit., pp. 254-255. “O ‘diferir’ da diferença é levado pela escritura, mas jamais é inscrito por ela. Exige
desta, ao contrário, que, no limite, ela não inscreva a não ser o devir sem inscrição, descreva uma vacância de
irregularidade que traço algum estabilize (não lhe dê forma) e que, traço sem marca, somente esteja circuncrita
pelo eclipsamento incessante do que a determina.
Diferença: a diferença pode apenas ser diferença de fala, diferença falante, que permite falar, mas sem ela
aceder diretamente à linguagem – ou aí acedendo, nos reenvia então à estranheza do neutro em seu volteio,
142
É todo o tema do neutro que se elabora não especificamente ou tecnicamente (coisa
tavez impossivel visto seu caráter de quase-conceito ou como o diz Christophe Bident, sua
posição de afecto-concepto
136
), mas em seus pontos teóricos que o remetem a um espaço
(des)originário, de variação continua e paradoxal em relação ao “ato” de escritura. Seria
necessário comprender que se trata de uma abstração sobre um espaço de manobra teórico
que acede diretamente ao tema da desconstrução da hierarquia fala/escrita.
Não se tratava desde o início de se pensar (em, com) Nietzsche/Blanchot numa
forma de elaboração de uma escritura que pudesse fazer ressoar e inscrever uma certa
performação de um jogo de forças pré-ontológico? A diferença, pensada como esse
elemento precursor sombrio
137
estaria tanto no cerne da diferença de potencial entre as
àquilo que não se deixa neutralisar. Fala que sempre previamente, em sua diferença, destina-se à exigência da
escrita. Escrever: traço sem marca, escritura sem transcrição. O traço da escritura não será então jamas a
simplicidade de um traço capaz de traçar-se confundindo-se com sua marca, mas a divergência a partir da qual,
começa sem começo a continuiade-ruptura. O mundo? Um texto?”
136
Cf. o texto de Christophe Bident Le mouvements du neutre, (inédito), onde podemos ler a seguinte
exposição relativa ao Neutro : « Pourtant, ce qu’il faut ajouter aussitôt, c’est, d’abord, que Blanchot n’a jamais
véritablement défini ce concept, et ensuite, que nous sommes tous en droit de nous demander s’il ne s’agit pas
plutôt d’un percept, pour reprendre les distinctions de Deleuze. Si le neutre se joue ainsi de l’obscur, il joue
aussi sur lui-même : largement indéfini, il ne s’affiche pas comme un concept clair, clarifiant, clarificateur,
opérateur, opératoire ; vacillant sans cesse de la littérature à la philosophie, de la philosophie à la littérature, il
n’est peut-être, finalement, ni un concept ni un percept, ni l’un ni l’autre. »
O qual traduzimos: “Entretanto, o que é necessário acrescentar sem demora é, de início, que Blanchot jamais
definiu verdadeiramente este conceito, e em seguida, que estaríamos todos no direito de nos perguntar se não
se trataria antes de um percepto, para retomar as distinções de Deleuze. Se o neutro se joga desse modo do
obscuro, ele se joga também sobre ele mesmo: largamente indefinido, ele não se coloca como um conceito
claro, esclarecedor, clarificante, operador, operatório; oscilando sem cessar da literatura à filosofia, da filosofia
à literatura, ele não é talvez, finalmente, nem um conceito, nem um percepto, nem um nem outro”
137
Cf. “O Precursor Sombrio e o ‘Diferenciador’” in DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de
Janeiro, Graal, 2006, p. 174. Queremos apenas apontar uma possibilidade de ressonância entre a imagem do
Neutro de Blanchot e o complexo teórico de Diferença e Repetição de Deleuze. Se o ritmo e o espaçamento na
escritura são considerados como momentos onde uma descontinuidade pode emergir unindo em sua relação de
diferença uma unidade variável do sistema lingüístico, então percebemos uma relação do papel do Neutro
enquanto imagem do funcionamento de dinamismos internos ao sistema da escritura. Algo se passa numa
constituição ou numa inscrição da escritura enquanto sistema e é nesse sentido que uma certa (in)operância do
neutro gera o próprio espaçamento necessário ao movimento de diferença e repetição que se elabora na
escritura. Mas diríamos apenas para sintetizar essa idéia comparativa, que o Neutro é a imagem que reúne
numa maquinária alegórica ampla uma série de questões complexas da filosofia da diferença de Deleuze
aplicadas às preocupações teóricas e literárias de Blanchot. O precursor Sombrio tem um papel fundamental na
teoria deleuziana. Ele agência o próprio movimento de uma diferença das diferenças entre séries heterogêneas.
Esse agente assegura a comunicação entre as séries em sistemas intensivos. Há uma diferenciação necessária
no interior do que se difere entre as séries heterogêneas que devem ter graus variáveis de semelhança entre si.
O precursor sombrio estabeleceria o próprio nexo paradoxal entre os papéis da diferença, da semelhança e da
identidade. O exemplo é mais uma vez o do raio. Deleuze diz:
“O raio fulgura entre intensidades diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio, invisível, insensível,
que lhe determina, de antemão, o caminho invertido, como no vazio. Do mesmo modo todo sistema contêm
143
forças, como nos desdobramentos que certos sistemas poderiam tomar ao se expressarem em
formas determinadas. A possibilidade de se pensar esse jogo incessante de emergências de
formas de expressão a partir de uma noção de fragmentário na escrita, imporia como um tipo
de pivô-teórico ou como uma verdadeira maquínica teórica, a noção-conceito de Neutro.
Porque nesse limite, na dimensão de abstração em que opera um pensamento ou,
melhor, uma poética do neutro, é necessário - para aceder ao questionamento abismal sobre
a suspeita de que a linguagem não remete ao Ser se não sempre “dissimulando-o”, ou
melhor, determinando-o novamente numa retransferência metafísica da presença - produzir
mais que um instrumental conceitual que consiga operar desvios funcionais nos jogos de
força e em suas “representações” na linguagem, fazer-se performar uma eficiente maquínica
signica teatralizada por uma postura e uma gestualidade critica e literária que acedam em
suas retransferências ao que nomeamos até aqui junto a Blanchot e Bataille, na singularidade
de sua amizade, de experiência limite da literatura.
seu precursor sombrio, que assegura a comunicação das séries que o bordam. [...] Não existe dúvida de que
uma identidade do precursor e uma semelhança das séries que ele põe em comunicação. Mas este “há”
permanece perfeitamente indeterminado. A identidade e a semelhança serão aqui condições ou, ao contrário,
efeitos de funcionamento do sombrio precursor que projetaria necessariamente sobre si mesmo a ilusão de uma
identidade fictícia e projetaria sobre as séries que ele reúne a ilusão de uma semelhança retrospectiva? Então,
identidade e semelhança seriam tão-somente ilusões inevitáveis, isto é, conceitos da reflexão que dariam conta
de nosso inveterado hábito de pensar a diferença a partir de categorias da representação.”
Percebe-se a partir dessa explanação de Deleuze o quanto Blanchot, que afirma em nota no fim de seu texto
sobre Nietzsche, estar pensando, a seu modo, essa intensa relação do jogo de diferenças que opera e (se) opera
na linguagem e no pensamento e no qual Blanchot performa ou poderíamos dizer, segundo o que pretendemos
pensar, teatraliza a partir das ‘figurações do neutro’* em seu pensamento e em sua poética.
* Cf. nossa Dissertação, Figurações do Neutro: Uma leitura de A maçã no Escuro e Água viva de Clarice
Lispector, UFSC, 2005, onde tratamos da questão do neutro blanchotiano relacionado a outros dois textos de
Clarice Lispector.
144
Da relação entre experiência no sentido fenomenológico e épreuve crítica
no sentido de um pensamento da diferença.
Veremos também que a questão da experiência no sentido que a pensa Foucault –
cuja importância já apontamos numa nota introdutória - norteará a busca por uma relação de
possibilidade “filiativa” entre os teóricos comentados nesta pesquisa. Basicamente,
Blanchot, Bataille, Foucault, Derrida e Deleuze.
Esquematicamente, esse fio condutor que nomeamos épreuve poderia ser indicado
como o índice da suspeita sobre a possibilidade de conhecimento objetivado a partir um
sujeito bem fundamentado em sua identidade a si e sobre o qual já havíamos pensado sob
uma perspectiva crítica dos conceitos de sentido e de valor em Nietzsche que lemos com
Deleuze.
Se certas experiências de linguagem poderiam indicar uma relação limite com certo
campo de inteligibilidade proposto pela fenomenologia, ali onde a psicanálise e a lingüística
proporiam outras entradas ou questionamentos ao próprio estatuto do sujeito, trataria-se daí
em diante, de partir de um sujeito descentrado, ou seja, em diferença incessante com um
“em si” absoluto impossível ao objeto, de onde uma espécie de subjetividade transcendental
passaria a ser considerada relacionada com outras formas de constituição de verdade, com
outras formas de experiência do pensamento que pudessem comportar, por exemplo, uma
critica às experiências de fragmentação do eu, de descentramento, enfim, desse campo
egológico
138
do sujeito que não mais se sustenta a não ser como crítica fundamental da
própria representação de si.
Que tipo de experiência-limite, ou melhor, que forma de épreuve sobre uma crítica
da própria filosofia foi possível acompanhar a partir do ensaio de Blanchot sobre Nietzsche?
Não seria essa forma de expressão, denominada por Blanchot escritura-fragmentária, uma
138
Cf. o importante livro de MORALI, Claude. Qui est moi aujourd’hui? Evreux, Fayard, 1984. Esse livro que
é citado por Blanchot em M. Foucault tel que je l’imagine, reunido em Une voix venue d’ailleurs (Paris,
Gallimar, 2002, p. 139) e que tem prefácio de E. Levinas parece, por afirmação do próprio crítico, ter marcado
de forma incisiva Blanchot no que se refere a essa questão tão complexa quanto essencial para a sua obra. De
fato, nessa obra há toda uma elaboração sobre uma possível constituição do Eu e seu transbordamento do
horizonte fenomenológico de Husserl.
145
necessidade estratégica “performativa” no sentido do alcance a uma visada especulativa
sobre o jogo das forças em que se encontra o próprio pensamento?
Ou perguntaríamos: que experiência pode ter lugar na forma desse jogo de diferença
incessante do pensamento, que é a propriedade maquínica própria da escritura funcionando
para nós na forma dessa prova-ção ou épreuve de uma experiência limite do pensamento?
Aí procuramos instaurar uma elaboração reincisiva e repetitiva da questão de uma
crítica geral da representação da forma pura de mimesis, a partir de estratégias de
pensamento da diferença. Ou observamos ainda a questão de uma sobredeterminação dessa
mesma crítica da representação no interior-exterior da máquina de escritura funcionando aí
como a possibilidade mesma da própria crítica operar como seu limite teórico, justamente
quando essa crítica percebe a experiência-limite da literatura como a forma expressiva de
um jogo arqui-originário entre o que lemos como obra literária no sentido blanchotiano e o
conceito de épreuve que convocamos neste espaço de embate crítico como uma máquina-
conceito numa relação de imanência com a própria experiência estética literária.
Pois, para Blanchot, lembremos, a experiência da literatura, ao menos com a que ele
se relaciona e a que ele experimenta (prova) têm uma relação diríamos corpórea, ou seja,
opera, para além de uma relação transcedental sobre a objetividade de seu objeto, uma
imanência que se dá, como pensamos a partir da exposição da subjetividade em seu limite de
interrelação, como o traço de uma diferença ontológica (explorado pela poética do neutro)
da própria imagem do literário como inscrição do campo paradoxal da presença no devir (ou
porvir incessante da obra em seu movimento de referência em deslizamento ou de
esgotamento). A imagem mitológica de Orfeu e de Eurídice, nesse sentido, e que justamente
atravessa a sua própria obra, é emblemática quando se pensa na fuga e na evanescência
imanente em que a literatura trabalha e (des)vela, na forma conceitual do desoeuvrement, ou
desobramento.
Esse desobramento e desvelamento do sentido na literatura opera e circunscreve de
forma sempre volátil uma região ou um campo de fenômenos estéticos, afectivos,
energéticos e expressivos, mas não absolutamente fenomenologizáveis no sentido de uma
apreensão lógica e fundamentada; onde a mesma pretendida objetividade do fenômeno se
esgota em proveito de um “acercamento” falível e dispersivo (essa é a potência própria do
146
relacional, do “entre”) do limite daquela fuga ou evanescência imanente da referência da
fuga e do sentido sígnicos, que co-presentemente desenham um espaço, ou melhor, um
espaçamento que é conceitualmente a possibilidade de apreensão sempre provisória da
temporalidade no devir, pela força da expressividade que a arte engendra em sua
constituição ontológica específica, fluída e calcada na expressividade do jogo e do relacional
enquanto (im)potencialidade da forma, esta que almeja sempre a fixação da volubilidade
imanente das forças.
Desse panorama mais ou menos estabelecido, continuamos a questionar:
A literatura não se imporia a si mesma como campo ou o espaço privilegiado de
relação, ou diríamos de “mediação”, onde se desenvolveria justamente uma singular
possibilidade performativa, ou possibilidade de “prova-ções” da experiência no limite de
atuação da linguagem literária? Ali mesmo onde o que se experimenta se prova (épreuve)
corporalmente numa certa retroatividade entre uma subjetividade rachada pelo confronto do
inconsciente e a abertura com o insituável e inerente descentramento das forças físicas,
discursivas, ou biológicas em ação nos limites do que entendemos por experiência do
pensamento, vale dizer, com aquilo a que chamamos o “exterior” ou o “fora”, funcionando
aí como a abertura imponderável e premente do desconhecido do próprio pensamento? Dito
de outro modo, a literatura no sentido de sua experiência limite se relacionaria àquilo para o
qual o pensamento é atraído: a seu precursor sombrio, a seu espaço de criação como
diferença “nucleada”, paradoxalmente, em seu movimento de algum modo centrífugo e
centrípeto?
Como diria Deleuze, esse espaço literário blanchotiano, que perseguimos
teoricamente, pode ser pensado como um devir-fêmea, devir-animal, devir-coisa, devir-
mundo ou devir-anônimo que se dobraria escorregadio e invaginado entre o ato da escritura
e seu puro teor simbólico. Seria essa dinâmica do espaço literário, que aqui é exposta, como
uma neutra ebulição do corpo ao seu fora, dado pela e na escritura, onde se desenvolveria o
próprio campo de (im)possibilidade de um sujeito identitário a si? O que se daria ou se
doaria entre o sujeito e a escritura? Será a pergunta valida no sentido de sua possibilidade de
acesso representativo pelo pensamento? Ou será o próprio espaço de um sujeito larvar ou
147
rachado ao qual Dleuze se refere ao falar dos sistemas intensivos
139
? Não haveria na
literatura a possibilidade de contrução de espaços dramáticos onde sujeitos ou personagens
conceituais se tornariam forças larvares possíveis de se fragmentarem por entre esses
mundos limite que a ficção produz. Uma experiência limite da literatura não cria justamente
o espaçamento necessário no corpo organizado do “escritor” para se multiplicar numa
relação extrema com outra forma de saúde do corpo, corpo agora entendido como uma outra
necessidade, necessidade de se desorganizar novamente numa fragmentação paradoxal que
não o atingiria em seu tempo biológico ou crônico, mas sim em seu tempo simbólico ou
múltiplo?
Que tipo de dramatização do pensamento seria efetuada nessa escritura fragmentária
que aponta Blanchot na dupla inscrição de seu estilo ensaístico crítico e no próprio
movimento desdobrado filiativamente pela escritura nietzscheana?
139
Cf. “O que é um sistema?”, in: DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro, Graal, 2006, pp.
173-4. “Quando a comunicação é estabelecida entre séries heterogêneas, toda sorte de conseqüências flui no
sistema. Alguma coisa ‘passa’ entre as bordas; estouram acontecimentos, fulguram fenômenos do tipo
relâmpago ou raio. Dinamismos espacio temporais preenchem o sistema, exprimindo ao mesmo tempo a
ressonância das séries acopladas e a amplitude do movimento forçado que as transborda. Sujeitos povoam o
sistema, ao mesmo tempo sujeitos larvares e eus passivos. São eus passivos, porque se confundem com a
contemplação de acoplamentos e ressonâncias; sujeitos larvares, porque são o suporte ou o paciente dos
dinamismos. Com efeito [...] um puro dinamismo espacio temporal só pode ser sentido no limiar do vivível,
em condições fora das quais ele acarretaria a morte de todo sujeito bem constituído, dotado de independência e
de atividade. [...] Não é certo, neste sentido, que o pensamento, tal como ele constitui o dinamismo próprio do
sistema filosófico, possa ser relacionado como no cogito cartesiano com um sujeito substancial acabado, bem
constituído: o pensamento é sobretudo destes movimentos terríveis que só podem ser suportados nas condições
de um sujeito larvar”. Desejamos, mais uma vez, que este tipo de nota citacional colabore para promover uma
relação teórico filiativa entre a imagem do complexo filosófico de Deleuze e a imagem do neutro blanchotiana.
É isso o que esperamos ir se arranjando no decorrer desta especulação fragmentária sobre uma experiência
limite da literatura em Blanchot e Clarice Lispector. Veremos até que ponto é possível fazer “maquinar” uma
expressividade desta região limítrofe ou limiar da experiência de subjetivisação na literatura com a exigência
crítica exposta no conceito de épreuve. Até que ponto poderemos falar de uma espécie de constituição larvar
dos personagens ou da voz narrativa nessas literaturas é o que se intenta fazer operar a partir de se pensar uma
performatividade dramática ou teatral no interior do récit clariciano e blanchotiano. Como se dá a relação
intrínseca do trabalho do corpo e da voz que se observa numa teoria dramática e metodológica do teatro
contemporâneo, como percebemos em um documentário sobre o diretor teatral Antunes Filho e sua exploração
dos conceitos de voz, corpo e ressonância nos trabalhos de pesquisa do Centro de Pesquisa Teatral - CPT
SESC SP e dos grupos Macunaíma e Prêt-à-porter. Confira o documentário “O teatro segundo Antunes Filho”
assistido em SESC TV dia 11/05/2008. Confira também a página do CPT SESC SP onde há uma breve
introdução à técnica e ao método de Antunes Filho no endereço eletrônico:
http://www.sescsp.org.br/cpt/areas.cfm?cod=15 (pág. Visitada em 13/05/2008 as 11:21 hs)
148
O pensamento do neutro blanchotiano não derivaria ou se constituiria numa
reciprocidade intrínseca e extrínseca do crítico ao filosófico e ao literário, ou do ensaístico
que aí se exerceria como potência expressiva singular em relação ao ficcional
140
?
Uma experiência crítica de épreuve ou de prova-ção de uma literatura limitie como a
de Clarice Lispector e Maurice Blanchot procura relacionar uma espécie de sobre-
performatividade a respeito das performatividades ou teatralidades possíveis de serem lidas
a partir do modo de construção próprio das imagens e das cenas que se procura relacionar
por uma terceira via não dialética e sintética, mas de algum modo, sintética e disjuntiva.
Procura-se, portanto, dentro do que entendemos por disjuntividade sintética dessa
épreuve crítica, estabelecer nexos críticos como o de instauração de uma cartografia dos
jogos gestuais e corporais dos personagens e da própria voz narrativa (voz ou escritura
entendidos como gestualidade corpórea essencial trans-substancialisada no desejo fabulativo
ou ficcional), no intuito da se tentar uma outra performação ou prova-ção possível à
teatralidade maquínica em relação a qual coexiste uma constituição paradoxal do sujeito
singular, mas cindido nessa experiência de escritura.
140
De algum modo, um outro feixe da pesquisa se coloca justamente nesses termos. Como elaborar uma justa
argumentação para a descrição do processo de uma economia crítica do estilo? Pois o estilo seria como o
fantasma de um processo indeterminável fora de sua própria deriva. Ou seja, ao mesmo tempo em que
localizaria, na imanência da linguagem, uma singularidade onde um traço tomaria corpo (continuidade de um
estilo) emergiria de uma multiplicidade de outros traços e marcas de estilo (influência e ruptura). Como
descrever a singularidade de uma técnica de escrita, de um corpus de atitudes ficcionais, sem imediatamente
reconduzi-lo a um regime de comparações referentes a uma gênese? Não haveria uma necessidade intrínseca
de comparações e de jogos analíticos entre estilos de escritura literária, filosófica ou ensaística? Operar uma
economia crítica do estilo não será estabelecer necessariamente nexos possíveis entre textos diferentes? Nexos
possíveis poderão querer dizer aqui relações filosóficas entre o literário como modo de performação e o
filosófico como retorno dessa performação a partir de uma ambigüidade na relação da forma da expressão com
o conteúdo temático, semântico de uma literatura. Talvez devesse supor que uma economia crítica do estilo
nada mais seria do que outra forma de nomear o processo descritivo-performativo da própria crítica literária
contemporânea via desconstrução e crítica clínica deleuziana. É que o intuito era o de descrever o processo
abismal no qual a própria crítica literária mergulha a partir das problematizações que emergem dos temas pós-
estruturalistas. Perceber finalmente como pode se dar o sentido da crítica literária a partir do momento em que
o próprio sentido enquanto conceito depende tanto de uma análise filosófica inscrita no território literário
quanto possivelmente de uma análise literária do alcance de problematizações filosóficas sobre a obra.
Desde essa especulação é que passamos a reparar nas possíveis conseqüências de uma semiótica do gesto ou da
teatralidade performática associada às preocupações conceituais referidas desde o início da tese. Uma
maquínica conceitual pode ser relançada ao movimento estético da própria narrativa e deveremos pensar
segundo quais movimentos podemos traçar uma escolha ou recorte transversal da possível intenção filosófica
da narrativa e sua performance teatrológica que constituiria o excesso significante próprio ao literário e sua
potência poética neutra como no caso das literaturas de Blanchot e Bataille e possivelmente em Lispector.
149
Se há um Corpus da escritura que movimenta o processo complexo e desoriginário
da experiência fragmentária e limite da escritura, ele passaria talvez por um processo de
individuação incessante do próprio sujeito. Esse processo, que se repete pela inscrição da
linguagem sob o modo de uma voz narrativa, configura, num espaço maquínico da literatura,
um ou mais corpos ficcionais, estes desdobrados ou duplicados na escritura pela própria
experiência de sua dramaticidade dada numa economia paradoxológica que chamamos, com
Blanchot, Recits.
Aí se elabora ou emerge um palco virtual entre um corpo escritural e um corpus
literário e onde um sujeito ficcional instável dado na imagem dramática de uma terceira
síntese do tempo (eterno retorno) realabora o próprio corpo em corpus de escritura. Essa
imagem é operada, portanto, como o investimento, a ficcionalização ou experiência
teatralizada de um sujeito larvar no espaço interseccionado aberto pela experiência limite da
literatura, exposta em nosso caso pelas obras literárias de Lispector e Blanchot,
especificamente em A Paixão segundo G.H e Thomas L’obscur.
CAPÍTULO II
Da crítica clínica de Gilles Deleuze como acesso a uma economia das forças
estéticas presentes em um corpus literário.
O Limite não está fora da
linguagem, ele é o seu fora: é feito
de visões e audições não
linguageiras, mas que só a
linguagem torna possíveis. (Deleuze,
Crítica e Clínica, p. 9)
Michel Foucault lembrava em seu ensaio Theatrum philosophicum
141
que “um dia,
talvez, o século seria deleuzeano”. A julgar pelo número de comentaristas e pela intensidade
141
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, I – 1974-1975, Quarto. Paris, Gallimard, 2001, pp. 943-72.
150
da reverberação dessa obra em vários domínios do conhecimento, podemos concordar com
Foucault. Na verdade as ressonâncias entre os dois filósofos não param de ser analisadas e
redimensionadas continuamente. De qualquer modo, nesta pesquisa o que importa são as
ressonâncias dos dois filósofos franceses mais em relação a Nietzsche e por conseqüência a
Blanchot.
Diria que essa ressonância é nuclearmente da ordem de um perspectivismo crítico
imanente ou, em outros termos, que essa relação filiativa é vinculada à crítica fundamental
dos valores nietzscheana. Nietzsche possibilitou a construção de uma perspectiva anti-
metafísica - pelo menos numa certa acepção ou intenção - do conhecimento como
possibilidade de crítica do próprio estatuto epistemológico da filosofia ou, em outras
palavras, que essa postura crítica abriria uma via de acesso a uma interpretação dinâmica da
própria instituição da filosofia enquanto possibilidade de acesso a um modo compreensivo
de suas formações discursivas.
Crítica do conceito de verdade, portanto, que leva a compreender a filosofia como
tendo uma historicidade passível de ser pensada positivamente (e é nesse plano que se
desenvolve uma complexidade semântica e lógica no nível das forças morais e
interpretativas que se elaboram na instituição do sentido e do valor na filosofia) no sentido
do estabelecimento de uma crítica radical das formas e das técnicas que a instituição
filosófica demarca em seu processo institutivo e constitutivo.
Nas palavras de Deleuze, a filosofia de Nietzsche traça uma forma de anti-dialética
absoluta. Nesse sentido, sua filosofia teria a preocupação de abalar três balisas dialéticas:
l’idée d’un pouvoir du négatif comme príncipe théorique qui se manifeste dans
l’opposition et la contradiction; l’idée d’une valeur de la soufrance et la tristesse, la
valorisation des « passions tristes », comme principe pratique qui se manifeste dans la
scission, dans le déchirement ; l’idée de la positivité comme produit théorique et pratique
de la negation même.
142
Deleuze se preocupará em perceber a filosofia nietzscheana de forma operativa a
partir da descrição de sua maquínica conceitual interna elaborada como uma introdução
filosófica dos conceitos de sentido e de valor operados em sua reatribuição recíproca.
142
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. 3
e
. ed. Paris, Quadrige, PUF, 1999, contra-capa.
151
Há pouco, esboçamos a suspeita de que o termo de uma economia crítica do estilo
não seria mais do que uma certa interpretação de um momento epistemológico específico da
própria crítica literária. Esse momento foi nomeado como estando relacionado diretamente à
teoria desconstrucionista derridiana e à crítica clínica deleuziana. Nesse sentido, o conceito
de estilo pensado até agora seria como um conjunto dinâmico ou modular de forças
expressivas que permitiria relacionar a tarefa de uma crítica literária ao sentido de sua
operatória, ou a ética de sua intenção elaboradas no espaço teórico que filiamos com
Nietzsche, Blanchot e numa amplitude mais geral e dispersiva, com o pós-estruturalismo.
Por outra via, a partir da demarcação teórica citada e da leitura de Proust e os signos
de Deleuze optou-se por uma aproximação à crítica clínica
143
deleuzeana pela possibilidade
que esta postura crítico-filosófica fornece de equacionar a questão da arte à questão da
própria tarefa crítica ou filosófica.
O texto de Proust, por exemplo, será lido por Deleuze como verdadeira possibilidade
de uma experiência das forças discursivas pensadas enquanto materialidade e expressividade
sígnicas, o que o filósofo chama de estilo. Ali onde todo um campo de subjetivação entra em
jogo como trabalho artístico, como agenciamento de forças, Deleuze pensa essa produção-
produtividade tendo lugar na própria imanência do texto proustiano. Nesse sentido, o signo
deverá ser pensado como verdadeiro índice de extensibilidade de forças reais (físicas e
psíquicas) e não como uma espécie de peça ou marionete significante de uma verdade
simbólica e psíquica submersa no interior da obra.
Deleuze com Nietzsche e Espinosa.
Pensar a relação complexa da arte enquanto campo de afecções onde ocorre um jogo
complexo de forças, exige um acompanhamento passo a passo dos capítulos II e III de
Nietzsche et la philosophie. Em seguida, será necessário adentrar na reflexão e na leitura que
faz Deleuze de Spinoza, para relacionar o conceito de afecção que é o “nódulo” onde ocorre,
143
Uma das últimas obas de Deleuze, Critica e clínica, surgida na década de 90, estabelece como recolho de
ensaios o que contemporaneamente “resume” a operatória crítica deleuzeana. Essa operatória é o que se
intentará descrever neste capítulo.
152
digamos, o evento artístico enquanto materialidade e expressividade imanentes, indiciárias e
reais, num sentido diferente da mera representação simbólica da expressão artística.
Pois se trata justamente na filosofia de Deleuze de criar estratégias e táticas para se
poder pensar o evento enquanto conceito, vale dizer, dar uma imagem conceitual ao que
coexiste como virtualidade, possivelmente em muitos casos esse evento é ainda um
conglomerado de forças ainda totalmente desorganizadas. A partir da reflexão sobre afecção
enquanto “nódulo” onde se eventualizariam as forças, vale dizer, campo ou plano de
imanência onde “atravessa” o real, pensaremos os modos espinozistas em que esse “ser” das
forças se atualiza, se apresenta.
O marco teórico e organizacional para se pensar toda a estratégia deleuzeana sobre o
afecto e as forças, segundo Anne Sauvagnargues
144
se situa na compreensão do sentido
semiológico e ético dessa estratégia, baseada num entendimento agudo da vocação
sintomatológica da arte em relação ao sentido e ao valor que podem tomar uma filosófica
como a de Nietzsche e Spinoza.
Esses dois sentidos, semiológico e ético, que são como a comprensão geral de uma
filosofia das forças e uma estética da arte enquanto sintomatologia das forças no indivíduo,
estão relacionados a uma outra compreensão conceitual.
O conceito de hecceité é uma verdadeira máquina conceitual que cria a imagem
operatória dessa organização semiológica e ética das filosofias de Nietzsche e Spinoza. Esse
conceito equaciona dois eixos: um forma uma semiótica geral e o outro propõe uma ética e
uma ontologia da potência
145
. A esse diagrama, digamos assim, e apartir dos anos 80,
Deleuze dá o nome de éthologie, seguindo uma compreensão da filosofia spinozista pensada
principalmente a partir de sua leitura da Ética
146
. Na verdade, o conceito de hecceité advém
a partir dessa operatória conceitual etológica, como uma homenagem aos estudos
morfogenéticos de Simondon.
144
SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et L’art. Paris, Puf, 2005.
145
Cf. Ibid., p. 59.
146
Idem .
153
Hecceité fará operar, portanto, uma compreensão “da força segundo a semiologia e a
ética, o signo e o afecto, definindo a vocação da arte como sintomatologia, captura de forças
e imagem”
147
.
Um resumo do pensamento da filosofia de Deleuze em relação à arte pode
simplificar a compreensão da relação diagramática dos eixos semiológico e ético-ontológico
que operam a complexidade estética deleuziana.
Cito Sauvagnargues:
Deleuze pense L’art comme composition de rapports des forces matériels, et cette
composition comme hecceité, selon la longitude d’un rapport des forces, ou vitesse, et
la latitude de la puissance ou affect : L’ensemble des éléments matériels qui
appartienent à un corps sous tel rapport de mouvement et de repos, de vitesses et de
lenteurs, sont dits longitude ; l’ensemble des affects intensifs dont ces corps est
capable, sous tel pouvoir ou degré de puissance, latitude. Or, cette détermination
duelle de vitesses et de lenteurset ses variations intensives de puissance, la division en
longitude et latitude de l’hecceité, cette à dire, la complementarité entre typologie des
signes et éthique.
148
Uma sintomatologia é o resultado da operatória diagramática exposta nos termos
desses dois eixos, um semiológico, relativo à ordem dos signos e expresso pela longitude, e
o outro ético e ontológico, relativo à diferença de potência nos afectos, expresso pela
latitude.
A noção de sintomatologia deveria então ser compreendida nesses termos, a partir da
complexidade que lhe é própria e que segundo Sauvagnargues tem a ver com todo o
desenvolvimento da crítica deleuziana à psicanálise desenvolvida junto com Felix Guattari e
que tem seu desenvolvimento intrinsecamente relacionado a uma crítica clínica que surge
junto a leitura minorativa
149
de Sacher-Masoch e Kafka: pour une littérature mineur
150
.
147
Op. Cit., p. 60.
148
Op. Cit., pp. 60-1.
149
O que se entende por minorativo tem a ver com a estratégia de avaliação de um autor como no caso da
leitura que fazem Deleuze e Guattari de Kafka. “Minorar” tem a ver com perceber no que uma produção
literária como a de um autor já tornado um clássico como Kafka, deve a uma série de relações de tensão e
diferença em relação aos complexos agenciamentos institucionais e subjetivos que produzem essa obra.
Minorar tem a var com perceber uma produção literária como um conjunto de reações complexas que fazem
diferir, nessa própria obra, relações de força coletivas, familiares, míticas, lingüísticas e psicológicas que
muitas vezes indicam um trabalho literário de resultante paradoxal, potencialmente transgressivo por sua
singularidade problemática e de algum modo absolutamente potente de colocar em jogo a própria instituição
literária como fundação e legitimação de uma “alta” cultura crítica e literária. Minorar é fazer emergir ou
submergir, de outro modo, uma potência minoritária, ou seja, é perceber que em um regime de forças
discursivas, como o que entra em jogo na obra de Kafka, é possível compreender que uma resultante de sentido
dessas forças não necessita acomodar a uma crítica absorvedora uma série de valores majoritários e
154
Com efeito, essa relação diagramática que expomos opera uma compreensão ousada do
sintoma na qual se estende um arco da sintomatologia nietzscheana se conectando à
ethologia spinozista e fazendo a economia crítica da interpretação freudiana.
Em effet, tel signe, ou symptôme de rapport de forces ne renvoie aucunement à um
signifiant, seulement à um état de la puissance, ou plus exactement, à un rapport des
forces (sémiologie) qui correspond à un certain affect (ontologie et éthique). (…)
Comme le signe, l’image elle aussi, est un rapport de forces composé des vitesses et
capable d’affects, et c’est ce que permet a Deleuze de developper une semiotique,
comme typologie des images et des signes.
151
Sauvagnargues continua e indica numa frase uma espécie de corolário teórico da
filosofia de Deleuze que procuramos, em última instância, desenvolver como a própria
operatória de uma épreuve crítica baseada numa concepção teatrológica alegórica ou
maquínica da voz narrativa na produção ficcional de Clarice Lispector e Blanchot.
Citamos:
Si tout chose renvoie à um rapport de forces, une compositions d’actions et reactions,
de vitesses et de lenteurs, on peut évaluer l’état de ces forces, lê rapport différenciel
des forces em presence. (…) Le concept de force est nécessairement pluriel, puisque
toute force se trouve « dans un rapport essenciel avec une autre force »(…) Ces
rapport entre signe et image, forces et forme trace dans l’ouvre de Deleuze une
diagonale qui connect Nietzsche à Foucault en passant par Spinoza. Une telle
sémiologie de la force détermine une conception de la forme qui renouvelle
entiérement la philosophie de l’art, en même temps qu’elle expulse le signe duplan
transcendant du sens pour l’exposer sur le plan matériel des forces. Il n’est plus
question de signifiant ou de signifié, ni des formes ou de matières, mais de forces et
des materiaux, conformement au principe simondien de la modulation. Seuls comptent
en art les materiaux capables de detecter des forces de plus en plus intenses et les
affects qui dégagent ces configurations, « percepts » ou « visions » de l’art. Comme
l’affect désigne ce mode éthologique de la puissance qui correspond a tel état des
forces, ou image, on peut alors définir l’art comme l’affect de l’image et proposer
trois jalons qui concourent à cette définition. Nietzsche et la volonté de puissance ;
Spinoza, et l’hecceité, nouvelle cartographie des corps ; l’image comme matière en
voie de subjectivation des belles analyses sur le cinema.
152
É, portanto, a partir de uma maquínica conceptual deleuzeana preocupada em
estabelecer os nexos avaliativos de uma concepção sobre as forças estéticas em ação nos
diversos registros da arte que procuramos pensar uma definição de certa forma móvel tanto
universalmente válidos Como, por exemplo, a psicanalização imposta como regime de totalização e
discernimento absoluto da obra e do indivíduo, do indivíduo na obra ou da obra no indivíduo. Há sempre algo
a mais que pode explodir nesse controle, como no caso de Kafka, o uso minoritário da língua majoritária, o
alemão; que pode extrapolar ou se transversalizar em outras linhas de fuga, como o diria Deleuze.
150
DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Felix. Kafka: Pour une littérature mineure. Paris, Minuit, 1975, 2005.
151
Op. Cit., p. 61.
152
Op.cit., pp. 61-2.
155
de uma épreuve critica, quanto de sua relação epistêmica com o “programa pós-
estruturalista”, se assim podemos dizer.
Esta relação tática e estratégica deverá ser desenvolvida sob o modo de uma relação
da imagem ficcional e literária pensada a partir de sua posição valorativa em termos de
produção de sentido tomando como referência as formas expressivas postas em movimento
pela própria voz narrativa atuante na forma do registro cartográfico de uma gestualidade
geral e teatral no interior das ficções, as quais identificaremos a um estudo focado no caráter
retórico do récit clariciano e blanchotiano entendidos, nesse plano, como modelos singulares
de operação da voz narrativa configurativa, para nós, dessa teatralidade ou dramática posta
em cena na performatividade dessas ficções.
Uma cartografia dos gestos ou da posição dramática de certas imagens dessas ficções
intenta estabelecer os nexos e as diferenças de intensidade do movimento desses gestos
como forma de configuração possível de outra cartografia; esta, relativa a posteriore, como
pretendendo discernir a passagem do sentido à sensação nos termos de uma crítica clínica
ou sintomatológica.
A leitura de uma crítica baseada numa épreuve do sentido literário nessas ficções
estará relacionada, em ultima instância, aos modos de operação da imagem como função
alegórica ou maquínica nos textos. A imagem, funcionando nesse plano, como conceito
operador de uma passagem na crítica contemporânea, de uma relação transcendente e
simbólica do signo, para uma preocupação imanente e signalética do registro deste mesmo
signo literário agora compreendido em suas posições de força e de sentido no campo da
produção crítica e literária.
153
153
O corte na fita Möebios ao qual aludimos anteriormente, não procura estabelecer a não ser esse nexo
metafórico em double bind; que uma crítica do valor e do sentido na ficção não pode operar a não ser
retrocedendo sobre seu próprio funcionamento idealizado, re-a-fundando seus limites a partir da potência
propriamente imanente e transcendental da literatura. Uma desconstrução pura e simples da literatura e não do
movimento da crítica sobre esta, nos pareceria forçar uma leitura às avessas da imanência própria do literário.
Daí a metáfora de um corte, um redobramento e uma colagem na fita de Möebios. Remeter a imagem do
double bind ao seu movimento de constituição é perceber como a desconstrução deve se balizar finalmente
sobre um critério transcendental que se funda ou se a-funda na afirmação do próprio Derrida de um carácter
indesconstrutível da justiça. É desse movimento que partimos ao propor a produção de um acontecimento do
corte, de retroação ao movimento crítico que se impõe aqui, no sentido de re-orientar uma leitura sobre a
potência singular da literatura como performação sui generis do pensamento, diferentes e absolutamente
singulares dos discursos críticos e filosóficos, por mais que estes busquem numa certa emulação se
apropriarem dessa potência inerentemente dissimulativa da linguagem literária.
156
A esse respeito deveríamos ir com mais calma na direção de se pensar o sentido
próprio de uma imagem moral ou ética nos textos trabalhados. Este seria o caso das
preocupações existenciais e ontológicas possivelmente identificadas em certas imagens ou
cenas dos textos. O problema da angústia, do perdão e mesmo da existência de uma posição
moral ou ética, mesmo sendo esta imagem possivelmente e propositalmente difícil de ser
apreendida enquanto posição de potência do sujeito (figurado ou desfigurado), serviriam de
metas ou ao menos propósitos iniciais para se configurar uma preocupação mais objetiva em
termos de uma épreuve crítica ou de uma economia critica do estilo dos autores trabalhados.
Deleuze com Nietzsche. Da relação das forças equacionadas enquanto
Crítica.
No capítulo II “Actif et reatif”, de Nietzsche et la philosophie, Deleuze dá uma
explicação da máquina
154
conceitual nietzscheana absolutamente eficaz e raramente vista na
história da filosofia. Quando se diz “Deleuze com Nietzsche” se quer expressar a
154
Em L'Anti-Œdipe (Paris, Minuit, coll. « Critique », 1973) primeiro tomo da série subtitulada Capitalisme et
Squizophrénie
à qual segue Mille Plateaux (Paris, Minuit, coll. « Critique », 1980) segundo tomo da série,
Deleuze e Guattari promovem uma retomada crítica do que eles consideram o erro de conceber o desejo como
falta. O insconsciente é entendido enquanto imagem de usina produtora de significação, máquina de produção
e não como teatro onde se representaria de modo puramente simbólico certa transferência das significações do
inconsciente ao consciente pela via estrita das significações psicológicas recebidas pelo par simbólico
estrutural “papai e mamãe”. « l'inconscient n'est pas un théâtre, mais une usine, une machine à produire »,
« l'inconscient ne délire pas sur papa-maman, il délire sur les races, les tribus, les continents, l'histoire et la
géographie, toujours un champ social ».
Esta imagem de usina produtora e de máquina de produção está associada a uma complexa transversalidade de
planos de saberes e poderes a todo um sistema coletivo capitalistico também (re)produtor de significação
indissociado do indivíduo e vice versa. A idéia de produção de subjetividade é a idéia que advêm da imagem
da usina e está relacionada institucionalmente e constitucionalmente à idéia de sistema complexo como
produtividade simbólica e sígnica, ou seja, maquínica, imanente a um jogo de produções e performações
significantes e significadoras no indivíduo e em sua interrelação coletiva. Daí a idéia de máquina sígnica,
possibilitando acesso a esses processos imanentes de produção de significado e significação no sistema
complexo de uma experiência geral das trocas. Ou seja, consciente e incosciente, indivíduo e coletividade são
termos que operam em processo permanente de construção e desconstrução do sentido na história. A esse
movimento imanente, pois baseado numa semiótica do signo e do sentido na experiência histórica, é que se
refere dinamicamente um conceito de máquina. Por extensão, o utilizamos de maneira mais ampla,
significando basicamente uma “operatória” conceitual específica que se relaciona a um “sistema” ou “modo”
de pensamento como no caso de Nietzsche e em suas derivações filiativas como no caso do pós-estruturalismo.
157
idiossincrasia de sua leitura como verdadeira maquínica
155
de um agenciamento
156
conceptual mútuo possibilitado no encontro dessas filosofias.
De fato, toda a complexidade do pensamento nietzscheano pôde ser de algum modo
resumida e estruturada, sem perda de densidade e alcance nesse livro capital - para nosso
intento teórico - que é Nietzsche et la philosophie.
Logo no início do capítulo II, compreendemos o nexo relacional que faz Deleuze das
filosofias de Nietzsche e Espinoza. O primeiro texto desse capítulo se intitula “Le corps”, e
a partir dessa primeira direção, poderemos compreender a complexidade da maquínica
conceitual integrada na concepção das forças.
Remetendo-se a Espinoza, Deleuze escreve: « nous parlons de la conscience, et de
l’esprit, (...) mais nous ne savons pas de quoi un corps est capable, quelles forces sont las
siennes ni ce qu’elles preparent. »
157
.
Segundo Deleuze, Espinoza abrirá a via para a filosofia pensar a imanência como
campo de possibilidades reais
158
para o pensamento chegar a uma relação positiva de uma
155
Maquínica é o termo que indica como idéia dinâmica o devir próprio a esse processo complexo dos
agenciamentos coletivos de enunciação a que a máquina do signo: significante/significado/referente se remete
enquanto produção dinâmica e imanente do sentido.
156
Agenciamento seria a própria capacidade de se perceber as trocas e as junções possíveis dentro do processo
complexo e imanente em que o sentido é produzido como resultado dinâmico de produção coletiva de
subjetivação num sistema complexo como esse conceitualizado por Deleuze e Guattari de capitalistico e não
simplesmente capitalista, justamente para marcar uma compreensão dinâmica e imanente introjetada e
exteriorizada desse processo geral das trocas simbólicas e sígnicas que se desenvolve como normatização e
recalque num modelo econômico geral e global.
157
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. 3
e
. ed.. Paris, Quadrige, PUF, 1999, p. 44.
158
O que chamamos real, nestes termos, tem relação com essa via do pensamento filosófico imanente que abre
Espinoza. Ao pensar o corpo como campo de possibilidades positivas da filosofia, Deleuze com Espinoza e
com Nietzsche constrói grande parte da maquínica (estratégica e tática) de sua filosofia. Vale dizer que sua
filosofia esta bastante relacionada com um viés empirista, se imbricando de forma reapropriativa, crítica e
criativa de uma certa operatória científica do conhecimento. Deleuze, justamente por agenciar maquínicas
conceituais, digamos, anti-metafísicas, recriará toda uma rede conceitual funcionalizada numa relação de
diferença produtiva em relação às ciências físicas e biológicas. Esse é o caso da importante teoria da Heccéité,
que Deleuze opera a partir de uma leitura de Duns Scot, Gilbert Simondon e Geoffroy Saint Hilaire, lidos a
partir dos conceitos deleuziano-espinosistas de indivíduo e individuação, enquanto processos modais e não
substanciais. Cf. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’art. Paris, PUF, 2005, pp. 60, 66 e 67. “À heccéité
concerne um modo de individuação que não se confunde precisamente com aqueles de uma coisa ou um
sujeito”. “A heccéité propõe uma filosofia modal e não substancial da individuação: todo indivíduo se compõe
de uma infinidade de partes extensivas que lhe pertencem sob uma relação característica. A singularidade desta
relação determina uma individualidade corporal única, estado de forças, ‘movimento e repouso’” (DELEUZE
et GUATTARI. MP, p. 318, n. 24).
Seria importante fazer a ponte com o que dissemos anteriormente a respeito do sujeito larvar na observação do
conceito de sistema intensivo de Deleuze. A literatura nessa pesquisa é tratada como sempre fazendo parte
desse tipo de sistema intensivo onde a constituição de imagens e de personagens obedece a regras de
158
descritibilidade possível à realidade física e psíquica do mundo. Pois a partir de um
pensamento sobre o corpo e de como ocorreria ou aconteceria a complexidade de relações
possíveis das forças que atravessam os corpos, a filosofia poderia almejar uma operatividade
imanente à complexidade de variáveis que atravessam todo acontecimento fenomenal.
Desse modo é que Deleuze pensa a partir de um conceito modal de indivíduo e não
mais substancial. Ontologia pura de Espinosa, o Ser é pensado como posição única
absolutamente infinita que contêm todos os entes dados como infinidade de modos de ser.
Essa Ética espinosista é chamada, como já o dissemos, e numa língua deleuzeana,
Ethologia
159
.
Pensar o indivíduo de uma perspectiva modal, ou seja, do modos, significará pensar
a partir do jogo das relações de força que coexiste em graus diferentes entre um indivíduo
e/ou uma multiplicidade qualquer. Ou seja, para a ontologia espinozista, os entes são
infinitos modos possíveis do Ser. Por tanto, isso significa pensar a partir da pergunta “o que
pode um corpo?”, como e sob que formas as forças que afetam um corpo também são
afetadas e compostas nessa afetação? Pois há um movimento dinâmico e cinético na
composição dessas forças no corpo ao mesmo tempo em que há um “poder” do corpo de
ser afetado e de afetar ao ser afetado. Ação e reação devem ser pensados a partir de uma
relação compósita heteróclita cinética e dinâmica e não como pertencentes a uma certa
linearidade causal teleológica. Daí também a necessidade de se pensar com Deleuze a
questão da multiplicidade. Pois numa Ética espinozista, como no conceito de vontade de
sobrevivência dos sujeitos aptos ao movimento intensivo da produção ficcional, meio caminho para
velocidades e posições de força do inconsciente e do delírio, da embriaguez e da festa como ao mesmo tempo
da angústia e da inconformação existencial voltada talvez ao expurgo consciente ou à catarse criativa da
ficcionalização literária dessas mesmas forças.
159
Sobre este assunto, Deleuze esclarece em seu curso sobre Espinosa: “L’Ontologie pure de Spinoza se
présente comme la position unique absolument infinie. Dès lors, les étants, cette substance unique absolument
infinie, c’est l’être. L’être en tant qu’être. Dès lors, les étants ne seront pas des êtres, ce seront ce que Spinoza
appelle des modes, des modes de la substance absolument infinie. Et un mode c’est quoi ? C’est une manière
d’être. Les étants ou les existants ne sont pas des êtres, il n’y a comme être que la substance absolument
infinie. Dès lors, nous qui sommes des étants, nous qui sommes des existants, nous ne serons pas des êtres,
nous serons des manières d’être de cette substance. Et si je me demande quel est le sens le plus immédiat du
mot éthique, en quoi c’est déjà autre chose que de la morale, et bien l’éthique nous est plus connue aujourd’hui
sous un autre nom, c’est le mot éthologie.(…) Une science pratique des manières d’être. La manière d’être
c’est précisément le statut des étants, des existants, du point de vue d’une ontologie pure. En quoi c’est déjà
différent d’une morale ? On essaie de composer une espèce de paysage qui serait le paysage de l’ontologie. On
est des manières d’être dans l’être, c’est ça l’objet d’une éthique, c’est-à-dire d’une éthologie.» DELEUZE ,
Gilles. Curs integrale Vincennes, Spinoza, 1978/1981, p. 48. www.webdeleuze.com
159
potência nietzscheano, o que está em jogo é justamente um certo corte possível nesse devir
multidinâmico de forças que se realizam nos corpos. Mais uma vez, há um poder do corpo
em afetar e de afetar ao ser afetado. Há um refluxo ou uma reatividade compósita e
complexa que interage também num dado momento da afetação ativa sobre um corpo que
poderia ser pensado apenas passivo, num sentido lógico ou aristotélico das forças. Esse
elemento é exemplificado largamente por Deleuze com os exemplos do ressentimento na
filosofia nietzscheana como estado impotente e obtuso das forças.
Acreditamos que uma noção capital para a compreensão da questão do ativo e do
reativo numa economia das forças, a partir da filosofia de Nietzsche, seja a noção de Infinito
atual.
Deleuze nomeia a ultima parte do Curs sur Spinoza de Vincennes, ministrado entre
1978 e 1981, de L’infini actuel – éternité. Trata-se aí da explicação da noção nuclear em sua
filosofia de indivíduo e/ou individuação – e que poderíamos pensar como diretamente
relacionada à noção de hecceité operada por Deleuze em outros textos que já mencionamos
seguindo as referência de Anne Sauvagnargues em Deleuze et L’art.
Após ter definido toda a importância da noção filosófica de limite, passando pela
questão do cálculo infinitesimal
160
, ou seja, de toda a implicação lógica do pensamento
160
Deleuze irá, logo em seguida, desenvolver três tipos de relações que engendrariam as possibilidades da
questão do indivíduo como dimensão do infinito atual. Após ter exposto a relação fracionária, 2/3, por
exemplo, como relação entre dois números inteiros dados que gerariam um terceiro “complexo de números”,
pois não inteiro e que tende a um limite. Após ter descrito uma
segunda relação, dita algébrica, por exemplo
ax+by = etc., ou relação de x/y como possibilidade de relação entre “variáveis”, já mais independentes dos
termos de sua operação (não mais 2/3, mas x/y), Deleuze expõe o terceiro tipo de relação possível nessa
descrição do pensamento espinozista. Trata-se da relação do “cálculo diferencial” que operaria uma
independência agora total com os termos da operação, porém mantendo uma relação mesmo após os termos
infinitamente pequenos, ou que tendem a zero, terem “evanescido”. « Ce qu’il y a de très nouveaux avec le
rapport différentiel, c’est qu’on fait comme un troisième pas. Lorsque je dis dy sur dx, vous vous rappelez ce
qu’on a vu : dy par rapport à y égal zéro ; c’est une quantité infiniment petite. Dx par rapport à x égal zéro ;
donc je peux écrire, et ils écrivent constamment au XVIIe siècle, sous cette forme : dy sur dx = 0 sur 0. Or le
rapport 0 sur 0 n’est pas égal à 0. En d’autres termes quand les termes s’évanouissent, le rapport subsiste. Cette
fois-ci les termes entre lesquels le rapport s’établit ne sont ni déterminés, ni même déterminables. Seul est
déterminé le rapport entre ses termes. C’est là que la logique va faire un bond, mais un bond fondamental. Est
découvert un domaine, sous cette forme du calcul différentiel est découvert un domaine où les relations ne
dépendent plus de leurs termes : les termes sont réduits à des termes évanouissants, à des quantités
évanouissantes, et le rapport entre ces quantités évanouissantes n’est pas égal à 0. Au point que j’écrirais, là je
rends tout très sommaire : dy sur dx = z. Qu’est-ce que ça veut dire « = z » ? Ça veut dire, bien sûr, que le
rapport différentiel dy sur dx, qui se fait entre quantités évanouissantes de y et quantités évanouissantes de x,
ne nous dit strictement rien sur x et y, mais nous dit quelque chose sur z (…) Lorsque le rapport s’établit entre
termes infiniment petits, il ne s’annule pas en même temps que ses termes, il tend vers une limite ».
160
matemático do século XVII sobre a questão espinozista, e também obviamente relativas à
filosofia e à matemática leibniziana, Deleuze entra na explicação do infinito atual.
Há toda uma complexidade que Deleuze explica passo a passo com absoluto rigor e
leveza. Pois aos poucos se percebe que grande parte desses temas da filosofia de Espinoza
estão relacionados a uma operatória fundada sobre a noção paradoxal do conceito de
indivíduo que seria composto por infinitas partes simples. O infinitamente pequeno que
tende a zero mas não é zero, é funcionalizado no indivíduo como uma espécie de atualização
ininterrupta dos graus de sua força de coesão. Graus de intensidade em que um indivíduo se
relaciona com seu meio. Essa intensidade é a relação entre o que me desorganiza ou o que
não me desorganiza no sentido de um embate de uma individualidade, de um “corpo” com
as oscilações múltiplas e transversais dos potenciais de afecção e de afecto que me
atravessam enquanto indivíduo em um processo de individuação.
Não há possibilidade de se pensar as partes infinitamente pequenas
161
que formam
um corpo, justamente porque elas só podem ser percebidas enquanto conjuntos ou coleções
que operam como “arranjos” de relações de forças entre si.
O infinito atual
162
é o conceito que operacionalizaria um estatuto entre o indivíduo
(corpo) considerado enquanto finitude e “indefinitude” vale dizer, entendimento de uma
DELEUZE , Gilles. Les curs de Gilles Deleuze. Spinoza, 1978/1981 – Integralité - Curs Vincennes. Pp . 92.
Site internet – www.webdeleuze.com
161
« l’infiniment petit, c’est-à-dire : qui n’a pas d’existence distributive, mais qui entre nécessairement dans
une collection infinie, eh bien, entre termes infiniment petits, il ne peut y avoir qu’un type de rapport : des
rapports différentiels. » DELEUZE , Gilles. Les curs de Gilles Deleuze. Spinoza, 1978/1981 – Integralité -
Curs Vincennes. Pp .90. Site internet – www.webdeleuze.com
162
. « Le fini ça signifie, avant tout, ça renvoie à, si je cherche la formule du fini, c’est : il y a un moment
vous devez vous arrêter. C’est-à-dire : lorsque vous analysez quelque chose il y aura toujours un moment où il
faudra vous arrêter. l’analyse rencontre une limite, cette limite c’est l’atome. L’atome est justiciable d’une
analyse finie. (…) L’indéfini, c’est si loin que vous alliez, vous ne pourrez pas vous arrêter. C’est-à-dire : si
loin que vous portiez l’analyse, le terme auquel vous arriverez pourra toujours être, à son tour, divisé et
analysé. Il n’y aura jamais de dernier terme.(…)
Or cette idée dun infini actuel, c’est-à-dire ni fini ni indéfini, ça revient à nous dire quoi ? Ça revient à nous
dire : il y a des derniers termes, il y a des termes ultimes — vous voyez, ça c’est contre l’indéfini, ce n’est pas
de l’indéfini puisqu’il y a des termes ultimes, seulement ces termes ultimes ils sont à l’infini. Donc ce n’est pas
de l’atome. Ce n’est ni du fini ni de l’indéfini. L’infini est actuel, l’infini est en acte. En effet, l’indéfini c’est,
si vous voulez, de l’infini, mais virtuel, à savoir : vous pouvez toujours aller plus loin. Là ce n’est pas ça ; ils
nous disent : il y a des termes derniers. Les corps les plus simples pour Spinoza. C’est bien des termes ultimes,
c’est bien des termes qui sont les derniers, que vous ne pouvez plus diviser. Seulement, ces termes ce sont des
infiniment petits. Ce sont des infiniment petits, et c’est ça, l’infini actuel. Voyez que c’est une lutte contre deux
fronts : à la fois contre le finitisme et contre l’indéfini. Qu’est-ce que ça veut dire ? Il y a des termes ultimes,
mais ce ne sont pas des atomes puisque ce sont des infiniment petits, ou comme Newton dira, ce sont des
161
noção do corpo observada como o conjunto das infinitas coleções de partes infinitamente
pequenas. Em outros termos, “indefinitude” como a impossibilidade de uma conclusão
analítica sobre esse processo de espacialização temporal “invaginado” enquanto existência
finita (cessação progressiva da atividade e da relação de forças “intra-extra” corpo) e infinita
em sua relação de atualização sucessiva. Vale dizer que o corpo é processo de uma
infinitude atual, no sentido de uma paradoxal junção entre finitude e infinitude analítica de
seu processo mutuamente interno e externo, ou seja, processo do corpo em sua relação com
as forças complexas que o atravessam em todas as direções. Talvez uma conceitualização
advinda de uma ciência como a Ecologia, poderia ser útil para pensar essa relação
“metabólica” do corpo e da exterioridade do meio que o atravessa. É nessa direção que
acreditamos que aponta um conceito como o de Caosmosis no pensamento de Felix Guattari.
Noção do séulo XVII, seja operada por Leibniz ou por Espinoza, Deleuze lembra
que essa noção de infinitude atual ou essa relação de conjuntos infinitos ou coleções de
partes infinititamente pequenas será redescoberta, a partir de outras operatórias ou de outras
maquínicas conceituais, pela matemática moderna.
Essas ínfimas pequenas partes ou essas “evanescências” têm a característica de não
ter interioridade. As coleções dessas ínfimas partes “evanescentes” têm interioridade, mas
não as partes, elas mesmas as mais simples, extremas, últimos termos, e que dizem respeito
a essa parte finita do compósito finito-indefinido dado pela noção de infinito atual.
Esses termos extremos, essas partes mais simples, não têm nenhuma interioridade.
Elas terão uma “verdadeira matéria de exterioridade”
163
. Pois se essas partes extremas têm
apenas relações de exterioridade umas em relação às outras em seus conjuntos ou em suas
coleções, como poderemos diferenciar cada indivíduo, distributivamente, uns em relação aos
outros, se são conjuntos dessas partes? Elas tem relações extrínsecas, “rapports
d’exteriorité”. “São uma matéria modal, matéria modal de pura exterioridade”, dirá Deleuze.
Elas reagem umas em relação às outras estritamente sobre relações de exterioridade.
A diferença entre os indivíduos que são conjuntos dessas matérias modais se dará
pela diferença de potencial que reage em cada relação entre os conjuntos de partes
évanouissants, des termes évanouissants. »DELEUZE , Gilles. Les curs de Gilles Deleuze. Spinoza, 1978/1981
– Integralité - Curs Vincennes.Pp .86,87. Site internet – www.webdeleuze.com
162
infinitamente pequenas. Deleuze caracteriza essa diferença a partir da pergunta sob qual
“aspecto” ocorre essa relação entre os conjuntos infinitamente pequenos. Ou seja, qual modo
ou sob qual grau coexiste esse potencial que “reúne” ou agrega e desagrega os conjuntos de
matérias modais.
Essa diferença de potencial se dá na forma de uma relação de movimento ou
repouso. É sob a forma da diferença entre movimento ou repouso que ocorre a diferenciação
entre os indivíduos que a primeira vista compartilhavam, todos, um mesmo e indiferenciado
universo de possibilidades de conjuntos de partes infinitamente pequenas. Mas é numa
relação diferente de uma lógica cartesiana, afirma Deleuze. Não é uma relação
massa/velocidade
164
. Inclusive Deleuze irá afirmar que Espinoza não se refere a essa
operatória com o termo “rapport”.
Poderiamos pensar projetivamente ou prospectivamente a partir desses temas, o
quanto e com qual intensidade a filosofia de Espinoza opera na construção da filosofia
deleuziana, pensando, por exemplo, nos conceitos ou noções de atual e de virtual
165
ou no
conceito de heccéité que de algum modo conjuga essas duas instâncias numa relação, diria,
de espacialização do tempo ou de circunscrição eventual do real, ou seja, noção do
acontecimento enquanto uma espécie de “tomada cinematográfica”, enquadramento
perspectivo e dinâmico de traços dessas confluências de relações de força tomados em seu
sentido de resultante potente ou impotente quanto ao “estado” de atualização dessas forças,
seja aqui em sua ampla circuncrição, talvez na verdade, ampla elíptizacão, de uma
dimensão estética das forças.
163
Idem, p.88.
164
Cf. Op Cit., p .89.
165
Em DELEUZE, Gilles. PARNET, Claire. Dialogues, Champ Flamarion, 1996. numa espécie de entrevista
reescrita “a quatro mãos”com Claire Parnet, onde se tem uma espécie de “resumo” do pensamento de Deleuze,
há como anexo no final do livro, o celebre texto L’actuel et le virtuel. Remeto apenas às quatro primeiras
linhas.... “A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos
virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual é envolvido por uma bruma de imagens virtuais” P.179.
Nos interessara como relacionar a perspectiva sobre a arte de Deleuze às analises que desejamos relacionar aos
textos de Clarice Lispector e Maurice Blanchot. De como poderemos traduzir uma perspectiva econômica
energética sobre a arte à economia especifica e aberta do texto literário. Constelar os elementos do texto na
medida mesma em que esses elementos se jogam internamente e externamente à uma certa cartografia que
constantemente é atraída para fora de si pela multiplicidade de eventualizações possíveis de uma leitura critica.
No limite, a critica pode ser atraída para uma situação onde a força dos elementos que operam o sentido do
texto literário desorganizaria e implodiria toda inserção ou corte critico que não consiga dinamizar o próprio
texto em sua potencia autentica e singular.
163
Assim, gostaríamos de deixar registrado aquilo é a relação que procuramos
estabelecer com essa descrição de uma filosofia energética e sintomatológica de uma
estética em seu sentido mais amplo como dimensão ou campo de atuação afectivca.
Gostaríamos de marcar aquilo que Deleuze faz ressoar logo no início do capítulo sobre o
Ativo e o reativo, em Nietzsche et la Philosophie, quando ele se remetia à necessidade de se
comprender de forma imanente o que se passa com um corpo e o que este pode fazer
acontecer. « Nous em sommes à la phase ou le conscient devient modeste. »
166
Deleuze
continua :
Rappeler la conscience à la modestie nécessaire, c’est la prendre pour ce qu’elle est :
un symptôme, rien que le symptôme d’une transformation plus profonde et de
l’activité des forces d’un tout autre ordre que spirituel. […] Qu’est-ce que la
conscience ? Comme Freud, Nietzsche pense que la conscience est la région du móis
afecté par le monde extérieur
167
. Toutefois la conscience est moins définit par rapport
à l’extériorité, en termes de réel que par rpport à la superiorité, en termes de valeurs.
Cette différence est essenciale dans une conception générale du conscient et de
l’inconcient. Chez Nietzsche, la conscience et toujours concience d’un inferieur par
rapport au supérieur auquel il se subordonne ou « s’incorpore ». La conscience n’est
jamais conscience de soi, mais conscience d’un moi par rapport au soi qui, lui, n’est
pas conscient. Elle n’est pas conscience du maître, mais conscience de l’esclave par
rapport à un maître qui n’a pas à être consient. « La conscience n’apparaît d’habitude
que lorsqu’un tout veut se subordonner à un tout supérieur… La conscience naît par
rapport à un être dont nous pourrions être fonction. Telle est la servilité de la
conscience : elle témoigne seulement de la formation d’un corps supérieur ».
168
Portanto, para Deleuze, lendo Nietzsche e Espinoza:
[...] toda força é uma relação com outras forças seja para obedecer, seja para
comandar. Aquilo que define um corpo é a relação entre forças dominantes e forças
dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico, biológico, social,
político. Duas forças quaisquer, sendo desiguais, constituem um corpo desde que elas
entrem em relação: é por isso que o corpo é sempre fruto do acaso, no sentido
nietzscheano, e aparece como a coisa mais “surpreendente”, na verdade muito mais
surpreendente do que a consciência e o espírito. Mas o acaso, relação da força com a
força, é também a essência da força; não nos perguntaríamos, portanto, como nasce
um corpo vivo, pois que todo corpo é vivo como produto “arbitrário” das forças que o
compõem
169
. O corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto de uma pluralidade de
forças irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, unité de domination.
Em um corpo, as forças superiores ou dominantes são chamadas ativas, as forças
inferiores ou dominadas são chamadas reativas. Ativo e reativo são, precisamente, as
qualidades originais que exprimem a relação da força com a força. Porque as forças
que entram em relação não têm uma quantidade, sem que cada uma ao mesmo tempo
tenha a qualidade que corresponde a sua diferença de quantidade como tal.
166
Citado a partir de Volunté de Puissance, VP II, 261.
167
Citado a partir de Volunté de puissance, VP, II, 253; e Le gai Savoir, GS, 357.
168
Op. Cit. VP, II, 227.
169
Deleuze marca em nota: Sur le faux probléme d’um commencement de la vie: VP, II, 66 t 68. – Sur le rôle
du hasard : VP, II 25 et 334.
164
Chamaremos hierarquia esta diferença de forças qualificadas, conforme a sua
quantidade: forças ativas e reativas.
170
É o que pretendemos relacionar finalmente como fundo geral e móvel, essa relação
de forças afectivas que entram em ressonância numa atividade como a produção do
ficcional. Do sentido da experiência literária como campo de atuação possível para essa
economia estética operada na produção do universo da ficção e elaborado com voz narrativa
produtora de uma teatralidade nessa espécie de forclusão do processo literário. Uma poética
do neutro nesse sentido terá um papel potenciammente crÍtico no sentido de fazer ressoar
mais uma vez essa série de correlações possíveis entre uma indiscernível e irredutível
economia transcendental subjetiva de um corpo escrevente e uma economia estética
imanente do corpus ou o do corpo ficcional dado na materialidade da obra. Planos da
consciência e da inconsciência da obra operados nesse sentido, a partir de um corte
necessário ou da constituição arbitrária de uma relação entre essas forças estéticas dadas em
A paixão segundo G.H e Thomas L’obscur.
Como vimos, junto aos temas do eterno retorno em Nietzsche, lidos com Deleuze em
Diferença e repetição, uma seleção ocorre a partir de uma situação avaliativa das resultantes
desse jogo complexo das forças observado aqui no sentido amplo da estética como dimensão
material dessas resultantes energéticas em termos afectivos, perceptivos e conceptivos que
podemos fazer ressoar na leitura de uma obra ficional e ensaística de Blanchot e Clarice
Lispector. Essa “seleção” em um regime de forças afectivas e ou estéticas, para nós terá a
forma da possibilidade de fazer ressoar como épreuve crítica uma leitura expressiva sobre
um certo critério teatral e gestual a partir da noção de voz narrativa e de cena ficcional no
interior-exterior dessas obras, desses relatos ou desses textos, como quisermos, pois se trata
justamente de pensar essas ficções como campos de força ou como planos de experiência ou
de experimentação.
Para nós, existe toda uma relação complexa nos modos de compreensão do sistema
complexo das forças e uma Estética ou poética do Neutro em Blanchot. Se a escritura
fragmentária em Nietzsche é posta em relação com o problema da obra em Blanchot, é
porque a partir do problema filosófico sobre o fragmento remete à relação das forças no
170
Op. Cit. DELEUZE, Gilles, Nietzsche et la Philosophie. Paris, PUF, 1962, 1999, p. 45. (Tradução nossa)
165
sentido do jogo de atrações e repulsões presente numa filosofia preocupada com sistemas
complexos como à que se dedica Deleuze. Uma poética do Neutro tem em seu processo
epistêmico - se podemos assim nos referir a essa complexa filiação teórica - uma relação
interna de sentido que pôde ser associada ao jogo de forças, mas que poderia ser entendido
como poética das forças ou economia das forças em um dado sistema.
O Neutro seria, portanto, um conceito “curinga” “Joker”, conceito ou personagem
conceitual “jogador” em um sentido muito específico, pois pode fazer ressoar uma série de
situações filosóficas complexas, com uma amplitude de usos ou de modos expressivos, mas
basicamente, e em maior intensidade no caso de Blanchot, quanto a uma referência à matéria
da linguagem ficcional e literária e das relações muitas vezes transgressivas ou no limite,
dessa experiência ficcional ou literária com a filosofia. A essa experiência limite a
chamamos de épreuve ou prova-ção crítica.
A noção de Neutro operaria como articulação ou “chave” teórica, organizando uma
ontologia singular do processo eminentemente performático do estilo blanchotiano
171
, estilo
este paradoxológico e neutralizante em sua própria retórica, de um sentido proposicional
conclusivo, relação à qual Blanchot não poderia aceder, visto que seu programa estético-
crítico, se podemos assim nos dizer, procura, como afirmamos, provocar uma espécie de
sideração suspensiva sobre o sentido, desde a criação de imagens literárias alusivamente
descritivas dos limites e limiares de uma “experiência do impossivel”
172
até a própria
171
Para dar apenas um exemplo, nos remeteríamos ao sentido intraduzível e paradoxal de um título como Le
pas au dela, traduzido em inglês por The step not beyond. Trad. Lycette Nelson. Suny Series,
Intersections:
Philosophy and Critical Theory) State University of New York Press.
172
L’impossible e L’experience interieur são dois textos, e nessa acepção queremos aceder a potência própria e
fragmentária dessas produções - de Georges Bataille - que apresentam de forma aguda o programa estético-
crítico desse escritor, pensador e crítico que segundo Christophe Bident pode ser considerado como um
verdadeiro amigo de Maurice Blanchot. Amigo, palavra que devemos ter a sutileza para a compreendermos no
sentido que doa a reflexão blanchotiana, pode ser pensada como o espaço onde um (re)encontro pode ter lugar
numa repetição, forjando aí, nesse espaço, seja pelo diálogo ou pela escritura, o campo de forças onde uma
série de preocupações ontológicas pode ser tensionada na medida de uma responsabilidade infinita e de uma
discreção absolutas dadas pelo evento desse reencontro desejado. Responsabilidade infinita pela singularidade
e mortalidade do outro, que doa ou remete à exata medida da impossibilidade do alcance fenomenológico
sobre o evento desse rencontro, sempre anterior à finitude inescapável e porvir que sobrevirá, como distância
infinita, à morte. A admiração e o respeito pela atividade intelectual e artística de cada um e em relação a cada
um, se desenvolve no sentido de uma mútua troca de experiências de pensamento que tematizam uma e outra a
singularidade e os efeitos estéticos e ontológicos de uma experiência que transborda todos os limites de uma
razão lógica, justamente por sua potência questionadora, mas, de algum modo, acolhedora ou potencializadora
de uma necessidade tanto mais estética e literária quanto o é o limite dialético ou sintético de um pensamento
puramente filosófico. Mas essa amizade se abre numa relação também limite e daí sua potência extrapolada
pelo pensamento e pela escritura, amizade segundo a qual: “Tous deux savent le mot d’Aristote: “Amis, il n’y
166
performação retórica e semântica que daí se desdobra. O diálogo, para Blanchot, é remetido,
pela escritura, ao infinito de sua sobredeterminação neutra, a partir da potência criadora e
sobreafirmativa (afirmação da afirmação lançanda à exterioridade do próprio devir do
pensamento na imagem de uma negatividade absoluta faticizada como experiência-limite da
morte) que libera a experiência da literatura em tanto experimentação de uma multiplicidade
invaginada por sua própria impotência conclusiva ou totalizante. Como se o programa
dialético fosse implodido por sua incapacidade de aproximação ao fato puro do pensamento
como fatalidade e finitude, e dessa direção trágica não poder escapar senão pela comicidade
irrisória que dai decorre. Desse processo retorna um sentido sempre em reprocessamento de
suspensão reativa, elaborando uma poética ou uma estética do neutro como performance
ficional e ensaística que tentamos fazer ressoar numa outra filiação explorando-a como o
sentido de uma experiência crítica de épreuve de escritura.
a point d’amis”, savent qu’il n’y apoint d’amis, parce que la mort, l’impossible l’empeche. Mais ils savent
aussi que toute amitié possible, au bout du possible, transcende l’amitié, comme toute littérature possible, esta
u-delà, forcée et contrainte de la littérature. “Amitié: amitié pour l’inconnu sans amis”, dira Blanchot. Amitié
imediate pour la parte d’inconnu em l’autre pur l’autre en sa parte d’inconnu, invisible a tous, visible par aucun
autre ami, mais sue par ce nouvel ami, cet ami au-delà de l’ami. Cette amitiée pour son mourrir, pour son écrire
donne la capacite de s’y substituer, de s’y déléguer; elle est salut, relais, accompagnement de la pensée. Cette
amitié écartée engendre aussi une affirmation politique. À ceux qui pensent la mort comme événement
fondateur de la communauté, la mort de chacun, em chacun crée la communauté de ceux qui n’ont pás de
communauté, une communauté au-delà de toute communauté.” BIDENT, Christophe. Le Partenaire invisible.
Champ Vallon, Seyssel, 1998, p. 175.
167
Sobre o eterno retorno como conceito articulador de uma noção ampla de
corpo e corpus ficcionais.
Comme le monde de l’art
est lié à l’absence, le temps
de l’art a rapport à
l’étérnelle répétition. M.
Blanchot, L’Amitié.
173
Seguindo a descrição crítica que faz Deleuze do pensamento nietzscheano, chegamos
ao ponto onde o filósofo marca a relação fundamental da ciência em relação ao pensamento
do eterno retorno. A ciência teria uma relação de forças com o pensamento do eterno retorno
de tipo reativo. Como ressentimento, a ciência perceberia o eterno retorno seja pela
perspectiva mecanicista, que afirmaria esse conceito, seja de uma perspectiva
termodinâmica que o negaria.
L’affirmation mecaniciste de l’éternel retour et sa negation thérmodynamique ont quelque
chose de commun : Il s’agit de la conservation de l’energie, toujours interprétée de telle
manière que les quantités d’énergie n’ont pas seulement une somme constante, mais
annulent leur différences. (…) L’idée mécaniste affirme l’éternel retour, mais en supposant
que les différences de quantité se compense ou s’annulent entre l’état initial et l’état final
d’un système reversible.(…) L’idée thérmodynamique nie l’eternel retour, mais parce
quelle découvre que les differences de quantité s’annulent seulement dans l’état final du
systéme, en fonction des propriétés de la chaleur. (…) Les deux conceptions communient
dans une même hypothèse, celle d’un état final ou terminal, état terminal du devenir. Etre
ou néant, être ou non-être également indifférenciées.
174
Tanto as perspectivas mecanicistas quanto a termodinâmica equacionariam o
problema do eterno retorno passando ao largo de sua força desconcertante, a saber, que esse
conceito elabora ininterruptamente um retorno diferencial do mesmo. A ciência, numa
preocupação funcional de tornar o movimento da matéria compreensível ao nível inteligível
e repetitivo da função, compreenderia o devir múltiplo indiferenciado numa certa linha de
finalidade onde as variáveis de força se indiferenciam ou tenderiam a uma identificação
forçada por essa mesma lógica. Como se o devir pudesse chegar a termo. É um problema de
perspectiva. Uma problemática de qualquer modo epistemológica e, talvez, de como
perceber ou colocar o problema em termos estratégicos ou, diríamos, heurísticos.
L’éternel retour, selon Nietzsche, n’est pas du tout une pensée sur l’identique, mais une
pensée synthétique, pensée absolument différent. (…) Ce principe est celui de la
reproduction du divers en tant que tel, celui de la repetition de la différence : Nous ne
173
BLANCHOT, Maurice. L’Amitié. Paris, Gallimard, 1971, p. 44.
174
Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, PUF, 1962, p. 52.
168
comprenons pas l’éternel retour tant que nous ne l’opposons pas d’une certaine maniére à
l’identité. L’éternel retour n’est pas la permanence du même, l’état de l’équilibre ni la
demeure de l’identique. Dans l’éternel retour c’est ne pas le même ou l’un que reviennent,
mais le retour est lui-même l’un que se dit seulement du divers et de ce qui différe.
175
Ou seja, diríamos que o eterno retorno é o próprio retornar como um-múltiplo que se
“espirala” num movimento de repetição diferencial sobre si mesmo atraindo e expulsando
através desse vórtice impensável em-si, mas imaginável para-fora-de-si, tudo o que se
relaciona com seu jogo de forças infinito, múltiplo e interminável.
Definição aparentemente metafísica, talvez melhor fosse pensar em como a ciência
ou a arte ou o pensamento, afinal, produz matérias e materiais que se relacionam de certa
forma com o espaço e o tempo (matérias ou materiais de sentido que se espacializam como a
própria linguagem) mas não sem eclipsar, pela própria noção identitária de suas resoluções
pragmáticas, aquela parcela ou resto ínfimo que sempre continuaria reagindo
imperceptivelmente ao acaso enquanto parcela paradoxal de um devir-múltiplo-geral,
digamos assim, até o momento do acidente ou da saturação de seu embate entrópico, quando
eclodiria o acontecimento do conceito e da liberdade de uma descrição do conceito em seu
jogo próprio e maquinal na composição que o anima no plano de imanência.
Ligado a isso, havíamos pensado por um momento na noção de desastre
blanchotiana. Desastre, no nosso caso, como o próprio do sentido se tornar sentido
impossível no acontecimento de uma finalidade última e impensável da morte, evento que a
ciência, nesse caso, não pode ou não tem nenhum ganho pragmático ou estratégico em
investigar esse lapso do continuun que é o próprio do acaso, força desastrosa reiteradamente
renovada. Essa eclosão do impensado ou, em outras palavras, desse devir-acaso no seio do
desastre é o “resto” inapreensível, ou o evento próprio da hecceité deleuzeana, que a
termodinâmica equaliza solidificando o próprio devir no quadro estático de uma formulação
apodítica.
Mas esse desastre, no sentido estético que buscamos, apesar ou justamente por isso,
ou seja, de sua conotação catastrófica, carrega em sua densidade mais própria ou em seu
des-velamento (leia-se o rastro de uma presença-ausência, e esse é o quid mesmo de sua
força ôntico-ontológica no sentido heideggeriano) mais próprio, a própria dimensão de um
eterno retorno soberano, o qual investigamos, a presença (leia essa presença como esse ser-
175
Idem., pp. 52-3.
169
o-aí
176
como interface entre o contínuo e o descontínuo pensados como um quid ontológico
do espaço-tempo) na manifestação artística. Arte, nesse caso, e como o diz Blanchot em
l’Amitié
177
, pensada para além da estética clássica que havia se furtado à insegurança
soberana e jubilosa do desastre pensado enquanto potência mais própria da arte.
Blanchot escreve:
L’esthétique classique n’a pas tant cherché à idéaliser les formes ou à les rendre pures,
qu’à idéaliser l’instant, à en faire un présemt absolument pur, capable de se repeter
sans s’affaiblir. De l’obscure malediction du ressassement eternel – ce temps-espace
qui nous saisit quand le monde s’éloigne – elle a fait la gloire et le bonheur d’une
repétition que rien ne semble empecher d’être toujours nouvelle. Visées remarquables.
Et tantôt elle tient à une stylisation qui tient la vie à distance sans la compromettre,
tantôt par le desir de se confondre avec l’instant vivant, de le saisir et de le rendre
insaisissable. Mais elle ne peut, quoi qu’il en soit, se passer de la representation de
l’apparence. Pourquoi ? Pour bien des raisons (la plus évident est qu’elle aspire au
monde : l’art comme ayant partie avec le néant et avec l’absence est une malediction
qui doit se compenser par une grande activité humaniste) et pour celle ici qui n’est pas
moins pressant : c’est que l’image quand elle devient representative, donne l’idée la
plus vive d’une presence qui semble pouvoir se répéter, soustraite à la douleur du
devenir. Cette répetition est affirmée déjà dans le doublement de la ressemblance ; le
semblable qui est alors sous la garde du tableau, renvoi éternellement au semblable.
178
Pensamos, então, a partir daí na noção blanchotiana de desastre e no que esta se
relaciona com o artístico. E pensamos a discussão do eterno retorno como dimensão
176
Ser-o-aí marca uma releitura da tradução do Dasein de Ser e Tempo que aparece dentro das referências de
Jean Beufret e tanto em G. Agambem em seu A linguagem e a Morte quanto em toda a ontologia da imagem
que faz J. L. Nancy. Ser-o-aí remete a essa iteração de uma singularização repetitiva nos termos do engate de
forças que está em jogo no continuum espaço-temporal; essa singularização do “o” repete a marca de uma
transvaloração dessas fgorças no sentido da determinação a cada instante e talvez mesmo encavalando-se todos
os instantes em outras formas de organização volátil, esses intantes já pensados obrigatoriamente de modo
anacrônico. Daí gostaríamos de poder pensar essa qualidade da imagem a partir de nossa estratégia que
nomeamos teatralidade maquínica da litetratura. Que tipo de regimes de organização, ou melhor, de arranjo,
poderíamos identificar na expressividade literária que buscamos sob o título de literaturas limite? Uma
resposta parece se esboçar na segunda parte deste trabalho, onde procuramos desenvolver uma espécie de
cartografia teatralógica de algumas cenas das duas ficções que procuramos não “analisar” e sim com elas
experimentar.
177
BLANCHOT, Maurice. L’Amitié. Paris, Gallimard, 1971.
178
Op. Cit., p. 46. “A estética clássica não procurou tanto idealizar as formas ou as tornar puras como idealizar
o instante, construir um presente absolutamente puro, capaz de se repetir sem se enfraquecer. Da obscura
maldição da reiteração eterna – este tempo-espaço que nos toma enquanto o mundo se distancia – ela fez a
glória e a felicidade de uma repetição que nada parece impedir de parecer sempre nova. Ambições
remarcáveis. E tanto ela alcança isso a partir de estilizações que tomam a vida a distância sem a comprometer,
tanto pelo desejo de se confundir com o instante vivo, de agarrá-lo e de torná-lo inapreenível. Mas, ela não
pode, seja como for, passar sem a representação da aparência. Porque? Por muitas razões (a mais evidente é
que ela aspira ao mundo: a arte, como tendo parte ligada ao nada e à ausência, é uma maldição que deve ser
compensada por uma grande atividade humanista) e por esta razão, que não é menos imperiosa, é que a
imagem quando ela se torna representativa, dá a idéia mais viva de uma presença que parece poder se repetir,
subtraída a dor do devir. Esta repetição é afirmada já no duplicamento da semelhança; o semelhante que está
então sob a guarda do quadro, reenvia eternamente ao semelhante”. (Tradução nossa)
170
ontológica da própria vida, como essa dimensão iterável e irredutível, pois desligada de uma
relação apodictica a um conceito de finalidade, este ainda hoje pensado como resultante
abstrato de um processo causal unidirecional. O desastre operaria numa espécie de entropia
heteróclita da imagem, ali onde toda representação vela pela paz falseada em seu apego ao
mundo das semelhanças. O semelhante remete a sua referência e nesse processo apazigua a
corrosão desenfreada e irredutível do deveir sobre o próprio continuun, desde sempre
esburacado pelas suas metamorfoses reiteráveis, rearranjado no fogo eterno do descontínuo
que paradoxalmente des-vela uma outra forma de continuidade vibrante, incomensurável e
que se repete se sobredeterminando como potência aporética do devir.
Ali onde há aceleração ou desaceleração relativa de um movimento, há um
descompasso cadenciado pelo acaso que não deixa nunca de jogar e de se maquinar e que
reivindicará, em seu próprio momento, sua parcela incalculável de atuação ininterrupta com
o sistema.
Desse ponto de vista, o que poderíamos especular a respeito e a partir da discussão
da doutrina do eterno retorno em relação à literatura de Clarice e de Blanchot ?
A princípio tínhamos em mente pensar numa economia crítica do estilo a partir do
conceito ou da noção de épreuve (prova-ção). Essa épreuve poderia operacionalizar uma
leitura das obras que pudesse perceber o movimento entre o texto enquanto materialidade
formal e expressiva (signo) e seu sentido enquanto jogo de forças interno e externo à
escritura do texto. Enfim, enquanto possibilidade do ficcional como construção de mundo
que desdobraria o próprio do corpo como desejo de escritura em uma espécie de
inorganicidade do corpo ficcional já então transfigurado ou transubstancializado em corpus
ficcional. Nele, operariam agenciamentos coletivos de enunciação que atravesariam ao
mesmo tempo esse outro corpo que se procura provar enquanto experiência crítica.
Em outros termos, essa construção ficcional dada pela escritura literária, preocupada
com a descrição de estados ou de experiências-limite, não é, de modo absoluto, senão o
corpo da própria escritura, ou seja, jogo de forças duplamente ficcionalizado e que, desde a
escritura do texto, movimenta uma tensão única, materializando, através do suplemento
textual, a intenção da obra em direção à sua ambigüidade constitutiva. Vale dizer, de matéria
abstrata subjetiva e paradoxalmente vinculada pela imanência e materialidades próprias à
171
inscrição histórica e literária que provocam as obras em um determinado corpus
institucional. Escritura literária terá, aqui, a noção de um processo de experiência que prova
ou coloca em prova-ção a impossibilidade mesma de uma representação ou relação concreta
com uma realidade objetiva em relação à ficção, que não seja, desde sempre, e em relação à
literatura, exterior ao jogo de forças neutras que se estabelecem na maquínica
potencialmente ativa de cada obra. Trata-se do jogo dos agenciamentos possíveis entre os
enunciados que tanto anunciam como se re-anunciam incessantemente em um processo de
escritura que pode ou não constituir planos de composição entre as obras.
Mas há algo de dramático nesse processo, pois justamente ao enunciar uma
conjunção única de um processo infinito de relações de forças, a obra reorganiza num
acontecimento essa ambigüidade constitutiva do sujeito enquanto canal e “depósito”
flutuante de subjetividades. Nesse sentido, é que se procura pensar o corpo da escritura e o
corpo do escritor enquanto forma imanente possuidora de certa finalidade transcendental e
paradoxal que definimos como escritura em seu sentido amplo de agenciamento abstrato de
subjetividades e que tem numa experiência limite seu plano de composição interno e externo
ao próprio movimento iterável da instituição literária.
Nesse sentido, se intenta, a partir do índice do corpo-fragmento ou do corpo
enquanto “espaço-tempo” agenciador de potências (ou impotências) canal de angústia e de
êxtase, mesmo que não se possa nessa tensão instituir nenhuma hierarquia ou ainda desse
corpo pensado em sua relação de atração e repulsão de outros corpos. Com o termo índice
gostaríamos de marcar uma referência semiótica imanente utilizada por Deleuze e instituída
originalmente, em outra acepção teórica, por Charles Peirce. Ou seja, o que marca
fisicamente o registro nessa escritura, nos termos de sua produção, ou de sua elaboração
composicional e que poderia muito bem ser transposta para o movimento maquínico ou
alegórico do que chamamos sua teatralidade posta em movimento pela voz narrativa. Daí,
gostaríamos também de pensar essa marca de imanência no movimento ou na gestualidade
desses corpos de escritura e ou corpos-máscara que são peças ou móbiles no interior de
economias ficcionais como as de Clarice e Blanchot.
Talvez, nesse sentido, gostaríamos de fazer ressoar a vinculação de uma leitura
subliminar à semiótica dos textos ficcionais trabalhados, onde uma teatralidade maquínica
172
informa essa potência própria da literatura de especular suas potencializações libidinais na
forma de uma gestualidade que se torna tanto mais rarefeita quanto a distância entre um
caráter ficcionalizador do Eu e a construção de uma matéria narrada que institui em seu
mesmo movimento o que chamamos de voz narrativa. Que agencia e doa, por sua vez, em
outro movimento, agora extático, uma potência do neutro como operatória e postura
estéticas que se transfiguram na atividade literária.
O escritor não é aquele que de um modo ou de outro tende mesmo que factualmente
para fora-de-si, vivendo ou experimentando a tensão própria de uma extemporaneidade, de
ser, ao mesmo tempo, que vinculado a uma economia geral de sua obra, também distanciado
desse movimento ao ser tematizado no que tange a sua potência política e artística, como
uma entidade subjetiva e portanto destituída de uma proximidade verdadeiramente política
com relação à sociedade ou à comunidade dita de lei ou de direito democrática?
Os verdadeiros índices de uma teatralidade maquínica da literatura não deveriam ser
procurados em um segundo momento (é o que passamos a desconfiar) nos espaços
diferenciais à própria literatura, sejam estes na descrição do comentário interno e
transcitacional de outras obras, sejam na re-materialização dessas obras em outros suportes
ou meios artísticos, exatamente ali, onde a marca de um corpo de escritura, seu estilo ou sua
economia crítica, com suas gagueiras e suas cesuras, seus traços e faltas essenciais, se
aproximariam justamente desse “fantasma excedente” e que têm, na proximidade
monstruosa do autor, diríamos, no seu caráter assombroso, sua potência em suspensão, seu
relacionamento singular em uma estranha e neutra comunidade de anônimos leitores?
Não se trata apenas de reaproximar o autor de uma voz narrativa dinâmica e
acentrada, mas de pôr em tensão o evento da emergência dessa origem paradoxalmente
fantasmática e absolutamente imanente em seu processo de comunicação abismal e
incessantemente referido a uma ausência plena de indícios e de gestos que assombram
constantemente o ilimitado de um processo semiótico de escritura e leitura literárias. Elas,
sabemos, duplicam finalmente o “real”, fazendo-o em toda a sua potência e por sua
dinâmica iterável, tornar-se cada vez mais distante da “realidade”. Ou seja, essa duplicação
investe o real de sua necessidade ontológica e simbólica, devolvendo à realidade toda sua
173
potência contestatória, reverberando o tempo em suas redes anacrónicas e repotencializando
o mundo como extemporaneidade e atopia generalizadas.
O conceito de Eterno Retorno é um complexo conceitual que deverá, como que
pairando num horizonte móvel entre um pensamento filosófico e um pensamento literário ou
dramático-ficcional, agenciar um feixe sutil de preocupações críticas ainda não solucionadas
na prática. Pois trataria-se de pensar esse retorno reiterável como vinculado ao retorno
inseparável do “ritmo” numa cadeia significante. De que maneira poderíamos abordar as
relações complexas que a atividade da escrita elabora em sua reiterabilidade? Que
problemas poderiam ser pensados a partir dessa relação iterável da linguagem com a
constituição ou desfiguração que a linguagem ficcional deseja elaborar em sua atividade?
Não existe numa escritura ficcional um caráter avaliativo ético reiterável no exercício do
desejo da escritura? Não é esse caráter avaliativo ou interpretativo que lê Deleuze no eterno
retorno como operatória dramática da filosofia nietzscheana. A repetição teatral não elabora
finalmente e paradoxalmente o corpo do ator como avaliação constante do que não pode ser
repetido na própria repetição. Finalmente, pensamos nesse horizonte móvel de sentidos do
eterno retorno no problema de uma inutilidade essencial e produtiva da literatura. Do
ficcional como a própria instância da imagem e de sua potência reiterável abstrata.
Aproximamos-nos finalmente das perspectivas também de origem nietzscheana de Bataille
sobre a noção de despesa e de economia sacrificial operada pela imagem literária ou pela
imagem estética em geral.
Com Jean-Luc Nancy, aproximamos esse ritmo de repetição diferencial à
compreensão ou à interpretação de um corpo significante, corpus da filosofia ou da
literatura.
Nous ne nous répresentons que des corps d’hystérie integrale, tétanisés par la
representation d’um autre corps – d’um corps-de-sens -, et pour le reste, en tant que
« corps » ci-gisants, simplement perdus. La convulsion de la signification arrache tout
le corps au corps – et laisse le cadavre à la caverne.
Tantôt ce « corps » est lui-même le « dedans » où la representation se forme ou se
projette (sensation, perception, image, mémoire, idée, conscience) – et dans ce cas, le
« dedans » apparaît (et s’apparît) comme étranger au corps et comme « esprit ».
Tantôt, le corps est le « dehors » signifiant (« point zéro » de l’orientation de la visée,
origine et récepteur des rapports, inconscient) , et dans ce cas, le « dehors » apparaît
comme une interiorité épaissé, une caverne comblée, bourrée d’intentionnalité. Ainsi
le corps signifiant ne cesse pas d’échanger dedans et dehors, d’abolir l’étendue dans
un unique organon du signe : cela se forme et d’où prend forme le sens. (…)
174
toujours le corps est structuré comme un renvoi au sens. L’incarnation est structuré
comme une décorporation.
179
Vale dizer, se trata de pensar o corpo como o próprio espaço (seja espaço-tempo
abstrato da narrativa, seja espaço-tempo da narratividade, ou seja, o próprio corpus do
ficcional em geral) onde há jogo de forças. Ou seja, o corpo reverbera de forma “dobrada”
ou “invaginada” numa relação indissociada entre um “em-si” no sentido do desejo de
singularidade e um para-fora-de-si no sentido da relação possível do corpo e da
subjetivação desse corpo com outrem, seja este um absolutamente outro dado na linguagem,
seja um outro como outro de si mesmo - aí onde perceberíamos a reflexividade de uma voz
narrativa em primeira pessoa ou em terceira pessoa, ou ainda como discurso indireto livre.
Ainda sobre o corpo significante e sua extensão ou “espacialização” na filosofia ou
literatura, Nancy continua:
Le corps signifiant – tout le corpus des corps philosophiques, théologiques,
psichanaliques, et sémiologiques – n’incarne qu’une chose : l’absolue contradiction
de ne pas pouvoir étre corps sans l’être d’un esprit, qui le désincorpore.
La littérature ne le fait pas moins voir. On pourrait être tenté de dire que si, dans la
philosophie, il n’ya jamais eu des corps (autre que de l’esprit), dans la littérature en
revanche) il n’y aurait que des corps (c’est qu’on affirmerait aussi de l’art en genéral).
Cependant, la littérature – et du moins, cette interpretation de la littérature (et de l’art)
qui l’a déjà comprise comme une incarnation de la philosophie… - nous présente de
trois choses l’une : Ou bien la fiction , le jeu des répresentations, qui touche,
assurément (crainte et pitié, rire et mimique), mais d’un toucher lui-même réputé
fictive, protégé, distancié et pour tout dire « spirituel » (la vrai question du toucher, et
en général de la sensibilité littéraire et artistique, la vrai question d’une esthétique rste
éntiérement à poser, ou peau s’en faut, tant que les corps sont d’abord signifiants) ; ou
bien, d’inépuisables réserves des corps eux-mêmes satrés de signification, eux-mêmes
engendrés pour signifier , et uniquement pour cela (…)y a-t-il en littérature des corps
qui ne fassent pas signes ? (…) Ou bien encore, c’est la production même (la
creation ?) de la littérature qui s’offre en personne et en corps (memoires, fragments,
autobiographie, théorie), abandonnée et bandée, hyper-signifiante comme le « corps
qui bat (qui jouit) » de l’écrivain écrit de la main de l’écrivain même (ici, Roland
Barthes), signifiant éperdument jusqu’au bord de la non-signifiance, mais signiant,
encore.
180
É nessa porosidade de uma hipotética dimensão de um “em-si” ao para-fora-de-si
que se equacionaria a tensão própria do corpo em sua extensão, ou seja, em sua irredutível
espacialização do/no tempo ou em sua relação de desdobramento significante a partir da
escritura enquanto possibilidade própria da linguagem.
179
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Paris, Metalié, 2000, p. 63.
180
Op. Cit., pp. 62-3.
175
Sobre essa passagem paradoxal ou esse retorno para fora de si do corpo significante,
apelamos a Nancy ainda:
S’il y a autre chose, um autre corps de la littérature que ce corps signifié/signifiant, il
ne fera ni signe, ni sens, et em cela il ne será pás même écrit. Il sera écriture, si
l’ « écriture » indique cela qui s’écarte de la signification, et qui, pour cela s’excrit.
L’expcription se produit dans le jeu d’un espacement in-signifiant : celui qui détache
les mots de leur sens, toujours à nouveau, et qui les abandonn à leur étendue. Un mot,
dés qu’il n’est pas absorbé sans reste dans un sens, reste essentialement étendue entre
les autres mots, tendu à les toucher, sans les rejoindre pourtant : et cela est le langage
en tant que corps.
181
Corpo de escrita e Corpus da escritura se reenviam e retornam finalmente à assunção
última de que o corpo significante é político. Corpo político, ou escritura política do corpo,
do corpus. Comunidade de língua, comunidade de corpos falantes e escreventes retornando
sobre si mesmos à possibilidade avaliativa dessa mesma circularidade ou espiralidade
significante, teatralizada no retorno abstrato da produção ficcional de tantos outros corpos.
Por outra via, mas ainda nesse mesmo sentido, procuramos também pensar numa
certa utilização de figuras de estilo enquanto catalizadoras desses processos de
espacialização do tempo que o corpo catalisa em sua existência enunciadora. Nos dois
romances, a tematização do corpo e as formas de sua expressividade serão percebidas como
a própria maquinização da espacialização do tempo ou da operacionalização do plano de
imanência dado a partir da narrativa.
É toda uma passagem que se executa nessa espacialização do tempo empreendida
pelo corpo em sua desintegração construtiva. Pois o corpo se desdobra nele mesmo para fora
de si. É toda uma entropia que se executa ininterruptamente, também na forma da escritura
que desdobra para fora do corpo no corpus de uma escritura, essa continuidade própria de
um movimento cadenciado pelo acaso, enfim, dessa continuidade latente e marcada por
interrupções a que chamamos de espacialização do tempo na extensão do corpo. Aí onde o
corpo co-participa no devir enquanto compósito de um plano de possibilidades dos corpos
em geral e de seus desdobramentos de forças. Corpo de escritura então que se elabora a
partir do movimento próprio de um ato de enunciação de si para fora de si.
Mas este “em-si” não existe de forma absoluta e se nos utilizamos desse conceito é
apenas para marcar um trânsito ou uma impossibilidade de pensarmos uma porosidade pura
181
Idem, p. 63.
176
do indivíduo em seu meio ou do próprio meio enquanto única possibilidade do indivíduo.
Indivíduo não é aqui mais que possibilidade de pensar a emergência da narrativa, quando
esta, já ao se elaborar, retorna na própria possibilidade de sua construção a impossibilidade
de uma marca de origem pura. Corpo “individual”, mas atravessado por tantas forças quais
forem as possibilidades de agenciamento enunciativo que este corpo detêm, retêm e contêm.
Caberia identificar a partir da escritura ou do texto as linhas de força que indicam as forma
ou as expressividades desse corpo em seus fluxos.
Ou seja, para pensar o corpo pensaremos nesses fluxos como certas imagens que, ao
se repetirem, diagramam blocos de pensamento que de algum modo indicariam certos
trânsitos ou desacelerações, flutuações ou cristalizações temporárias de imagens de
pensamento, ali onde uma matéria informe de sentido trabalha sua própria cadência de
relações entre a singularidade do desejo da escritura e seu movimento de descontinuidade no
próprio processo de sua enunciação. Poderíamos afirmar com Deleuze que só há enunciação
coletiva, corpus de agenciamentos coletivos de enunciação? Sim, se pensarmos que no
momento da escritura esse corpo que enuncia já enuncia a partir de um meio ou de um
campo de forças sempre plural. Mas há aí, de algum modo, a existência de uma tensão que
marcará o estilo de uma escritura. Tensão que opera no momento mesmo em que se
eventualiza a narrativa. Aí, nesse espaço de turbulência performativa da escritura, há
passagem entre a singularidade impossível de uma materialidade do corpo subjetivo dado na
escritura e sua própria origem pluralizada na imanência da linguagem enquanto escritura de
um corpus ficcional.
Um problema seria fazer operar uma crítica que acabasse “estrangulando” o
acontecimento da escritura ficcional como atrelado a uma cadeia significante exterior ao
próprio acontecimento. Cadeia significante e lógica da crítica que deve ser constantemente
permeada por uma inferência crítica sobre si própria, no sentido de explodir ou implodir o
próprio significante, constelando os sentidos possíveis do texto, como é possível ler na bela
experiência crítica barthesiana de S/Z.
177
Deleuze fala a literatura ser como que uma língua dentro da língua. Movimento que
arrancaria a linguagem de seus próprios eixos. “Gagueira”
182
da língua após ter sido injetada
por outra língua mais antiga, elaborando num sobressalto numa terceira língua do futuro,
uma língua do porvir
183
. Falava de fazer uma linguagem falar uma espécie de dialeto
particular, corpo dentro do corpo reverberando diferentemente uma qualidade dentro de
outras qualidades. Infinitização da linguagem a partir de seu próprio campo de imanência e
desdobramento empírico da crítica a partir de seu próprio campo de experimentação.
Caberia por em prática uma analítica institucional que desse conta dos modos de apreensão
de literaturas como constituidoras ou não de estereótipos normatizados e ou
institucionalizadores do que Deleuze e Guattari chamam literaturas de caráter “minorativo”
sobre o que falamos rapidamente antes.
De volta à questão das forças, tentaremos fazer operar uma leitura interpretativa de
como certas imagens do corpo e/ou dos corpos dos personagens operariam no sentido da
resolução ou da não resolução de uma problemática da narrativa como modos operandi
privilegiado sobre a existência como situação plural de forças avaliativas. Essa leitura ainda
terá que avaliar de forma sutilizada como certas estratégias ou formas expressivas jogam e
se desenvolvem em cada uma das narrativas, suas possíveis aproximações ou cruzamentos e
seus distanciamentos e diferenças de estilo no que concerne à temática geral de uma
preocupação em se fazer nessas ficções movimentar o que chamamos de experiência limite
e, por outra via, teatralidade maquínica da literatura.
Uma economia critica do estilo poderia acabar sendo percebida ou descrita aqui
como uma renomeação aplicada à teoria literária, do método de dramatização que Deleuze
descreve brilhantemente no capítulo “La Critique” que segue ao capítulo “Active et
Reactive”que acabamos de ler de Nietzsche et la Philosophie.
Trata-se de pensar uma crítica comparada a partir de uma performação terceira e
híbrida de suas vozes narrativas e de seus personagens nos dois romances. Uma linha de
182
Deleuze usa várias vezes o termo bégaiement em Diálogos com Claire Parnet, por exemplo. Essa
“gagueira” tem a ver com uma minoração da língua, um gesto de interrupção numa certa normatividade da lei,
obeservada como criatividade e gesto extremo de transgressividade no interior do próprio sistema da língua.
Uma língua dentro da língua, relacionando uma série de forças e tensionamentos como filiações e traições
dadas enquanto gestualidade própria a um estilo. Barthes falaria de idioleto.
183
Cf. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad. Peter Paul Pelbart. São Paulo, Ed. 34, 1997. p. 113.
178
relação entre os textos é justamente a forma como pode ser lida, nas duas criações literárias,
uma relação de temas filosóficos como compartilhados, seja numa possibilidade de leitura
existencial como fronteiriça a uma dimensão reflexiva teológica/ontológica, ou, seja ainda
como crítica performativa dessas próprias literaturas ao sentido do filosófico como instância
de reflexão autônoma e auto-suficiente. Ou seja, poderíamos inferir que um pensamento
estético em sentido amplo ou um pensamento sobre a vida, objetiva e/ou subjetiva pode ser
agenciado de forma autêntica e singular a partir de estratégias performáticas possibilitadas
por um tratamento expressivo do texto enquanto texto e escritura dramática e teatral.
Em certo sentido, valeria dizer que a partir de uma relação ou de um jogo aberto de
atribuições entre o sentido do corpo e de suas relações com o espaço e o tempo nas duas
narrativas, dinamizadas na forma de uma “teatralização alegórica”, procura-se fazer operar
tanto a possibilidade de uma leitura do estilo em sua dinâmica de escritura ficcional, quanto
uma interpretação avaliativa do sentido e das diferenças entre os tipos e modos de
elaboração da dinâmica performativa das vozes narrativas nas duas ficções.
Essa teatralização alegórica ou maquínica rstá baseada na leitura que fazemos do
método de dramatização nietzscheano-deleuzeano, que se elabora a partir de uma
perspectivização retórica da pergunta fundamental filosófica sobre o sentido do ser e de sua
essência. Dessa forma, o objeto de uma estética é tratado aí como devir-tipo dos
personagens, no sentido de se perceber de que forma pode-se operar uma crítica que se
desloque de uma transcendentalização do sentido estético para uma operatória imanente do
jogo de forças que se estabelece em determinado campo de experiência literária, seja, por
exemplo, a da narrativa ficcional ou especificamente o Récit (relato ficcional que
extrapolaria uma noção de gênero narrativo romanesco) enquanto experiência de escritura
que opera todo um nexo de forças entre o corpo e o corpus de uma experiência literária,
crítica e/ou crítica-literária.
Talvez, uma das problemáticas mais agudas que surgem desse campo de reflexão
seja a de uma potência ou impotência auto-bio-gráfica do Récit clariciano ou blanchotiano.
Do alcance perspectivo e analítico advindo da exploração genética dessa escritura. De certo
modo, procuramos deixar essa questão aguda e específica do bio-gráfico como extensão ou
disseminação possível do próprio caráter experiencial da épreuve. A partir desse embate se
179
coloca a questão constitutiva dos limites ou dos limiares entre experiência ou épreuve
literária e experiência ou épreuve crítica.
180
Da possibilidade de se descrever uma teatralidade narrativa, no sentido de
uma cartografia das afecções nas ficções de Clarice Lispector e Maurice
Blanchot.
Si fazemos teatro, não é para
encenar peças, mas para alcançar
tudo o que há de obscuro no
espirito, de soterrado e de
irrevelado se manifestar numa
espécie de projeção material.
(Artaud, 1926)
184
Para descrevermos uma perspectiva da investigação deleuziana sobre o capítulo
“Activo e reativo” de Nietzsche et la philosophie, fizemos uma leitura do curso sobre
Espinoza de Deleuze de 1978 a 1981. No próprio curso, Deleuze faz referência a como
Nietzsche seria de certa forma espinozista quanto a um entendimento sobre a potência no
que concerne a uma ética baseada numa interpretação sobre o efeito das forças sobre o
corpo. O aumento e a diminuição da potência para Espinoza tem a ver com o modo como
um corpo age e reage em relação a esse poder de afectação sobre essas mesmas forças e que
para Nietzsche dá-se como o sentido conceitual da Vontade de Potência. Tanto a variação da
potência num corpo quanto a vontade de potência para um e para outro filósofo se articulam
na noção complexa de Affect.
Finalmente, essa noção de afecto
185
(affect) que traduz dinamicamente as variações
de potência em um corpo ou na vontade de um corpo, não tem nada a ver com uma
conquista ou uma vontade de poder pura e simples do indivíduo. O único poder nesse
sentido tem a ver com a potência. Traduzindo a última frase: “aumentar sua potência é
precisamente compor relações tais que a coisa e eu que compomos as relações não somos
mais que duas sub-individualidades de um novo indivíduo, um novo indivíduo formidável”.
184
« Si nous faisons du théâtre ce n'est pas pour jouer des pièces mais pour arriver à ce que tout ce qu'il y a
d'obscur dans l'esprit, d'enfoui, d'irrévélé se manifeste en une sorte de projection matérielle.
185
Não traduzimos affect para o português por “afeto”, mas sim por afecto para marcar a diferença conceitual
desse conceito chave na economia das variações de força que Deleuze faz a partir das filosofias de Espinoza e
Nietzsche. Não se trata do sentido de afeto como sentimento e força psíquica simplesmente, mas sim de uma
noção meta-biofísica, se assim poderíamos dizer, tomando a precaução de entender o meta como possibilidade
de abstração conceitual e não como caráter puramente metafísico, visto se tratar no caso de Deleuze das bases
para sua filosofia de uma imanência pura.
181
Si je prends ces exemples c’est pour vous persuader quand même que, lorsque - et ça vaut aussi
pour Nietzsche - que lorsque des auteurs parlent de la puissance, Spinoza de l’augmentation et
de la diminution de puissance, Nietzsche de la Volonté de Puissance, qui elle aussi, procède…
Ce que Nietzsche appelle affect, c’est exactement la même chose que ce que Spinoza appelle
affect, c’est sur ce point que Nietzsche est spinoziste, à savoir c’est les diminutions ou le
augmentations de puissance… Ils ont en fait quelque chose qui n’a rien à voir avec la conquête
d’un pouvoir quelconque. Sans doute ils diront que le seul pouvoir c’est finalement la
puissance, à savoir : augmenter sa puissance c’est précisément composer des rapports tels que la
chose et moi, qui composons les rapports, ne sommes plus que deux sous-individualités d’un
nouvel individu, un nouvel individu formidable.
186
Nessa direção, procuramos ler as leituras de Deleuze de Nietzsche e Espinoza no que
concerne a uma economia das forças em sua dinâmica energética. Pois veremos que uma
cartografia dos gestos elaborada a partir da intuição de uma performação teatral e alegórica
nas ficções, advirá de um processo de percepção teatrológica das narrativas. Este processo
será observado ou levado a cabo por uma flutuação própria à voz narrativa (retórica,
semântica e teatrológica, afinal) e pela relação de forças internas e externas desses gestos
que podem se constituir como elementos sígnicos de reverberação do sentido.
Essa reverberação ou essa contaminação muitas vezes suspensiva do sentido pode
muito bem, por exemplo, seguindo uma terminologia barthesiana, emergir como idioletos,
biografemas e filosofemas
187
constituídos no interior do processo narrativo a partir da
passagem ou do deslizamento alegórico dessas cenas a um nível de sentido ou de
significação sobrecodificado, e do qual apenas uma leitura teatrológica de seus efeitos
186
DELEUZE, Gilles. Les curs de Gilles Deleuze. Spinoza. 1981-1984. In : www.webdeleuze.com, arquivo
pdf, p. 70 A destaque em itálico é nosso.
187
Não descreveremos aqui cada um desses importantes conceitos de Barthes; Remeter-nos-ei-mos apenas ao
primeiro aforismo, digamos assim de Roland Barthes par Roland Barthes, onde há uma alegoria que se
encaixa perfeitamente ao nosso intuito de operar uma certa economia crítica comparada a partir de uma
abordagem estética das forças na ficção. Esses conceitos estão elencados aqui somente como ilustração das
potencialidades que uma análise teatrológica do texto pode potencializar em termos do jogo de forças internos
e externos à produção ficcional. Quanto a esse aforismo, seria questão inclusive de se perguntar até que ponto
Barthes não estaria se referindo implicitamente a Nietzsche ou Deleuze... “Actif/Reactif: Dans ce qu’il écrit, il
y adeux textes. Le texte I est réactive, mû par des indignations, des peurs, ripostes intérieures, de petites
paranoïas, des défenses, des scènes. Le texte II est actif, mû par le plaisir. Mais en s’écrivant , en se corrigeant,
en se pliant à la fiction du Style, le texte I y deviant lui-même actif ; dés lors il perd sa peau réactive, qui ne
subsiste plus que par plaques (dans des menues parenthèses) » é toda a complexidade da proposta que
indagamos como trabalho de uma épreuve. De que forma podemos aceder a essa économie des forces
ficcioneles que opera de forma irredutível no processo crítico, e especificamente de crítica comparada? Uma
intuição no que concerne aos conceitos de ativo e reativo numa estética ou ética das forças no corpo é
justamente do caráter libertador do significante a partir de uma perspectiva de corte necessário das cadeias
metonímicas do texto ficcional. Esse corte operará a partir do que chamamos cartografia dos gestos no tecido
folheado do texto ficcional dado implicitamente numa estratégia de observação ou de leitura de uma
teatralidade plástica e simbólica dos textos entre si. Cf. BARTHES, Roland. Ouvres Complètes, v. IV, 1972-
1976. Paris, Seuil, 1975, 2002, p. 623.
182
poderia dar conta. Um exemplo da sobrecodificação é, a primeira vista, a questão crítica
ontológica dada pela dinâmica de uma estética do Neutro em Blanchot e as questões
relativas a uma ética existencial-teológica em Clarice.
Haveria, portanto, segundo nossa hipótese, uma teatralidade inerente ao próprio
andamento discursivo e semântico nessas ficções que extrapolaria uma descrição puramente
lingüística. Uma cartografia dos gestos procurará perceber os movimentos de deslizamento
sutis que informariam tanto uma relação conceitual possível entre os dois textos quanto suas
singularidades enquanto experiência de pensamento única dada pelo sentido de uma
experiência limite ficcional. A obra literária pensada aqui como processo de teatralização de
um devir-escritor em um devir-absolutamente-outro que se desdobraria em outros tantos
devires-máscaras no interior do processo invaginado que é o de escritura ficcional.
O intuito é de discernirmos elementos teóricos para poder pôr em movimento essa
teatralidade “insólita” entre o monólogo existencial e agônico de A paixão segundo G.H.
fixado no espaço fechado de um apartamento e a travessia ontologicamente delirante e
onírica de Thomas; travessia, ou falsa travessia operada num espaço aberto e indeterminado;
labirinto aparentemente restrito do apartamento e labirinto atópico de uma travessia
localizada apenas como meio, interstício e processo.
Tanto no espaço “fechado” quanto no espaço “aberto” das cenas relatadas numa ou
noutra ficção há uma espécie de indelimitação e infinitização das relações de força descritas
enquanto processos afectivos e teatralizados, portanto como gestos de afecção, gestos de
ficção, gestos que podem ser lidos em sua relação exterior ao texto, quer-se dizer em sua
relação de desvio dada no processo próprio da crise do sentido dos próprios personagens que
aí sobrevivem, dadas em grande parte pela flutuação e pela performance da voz narrativa
que cria o movimento das relações de força significantes na ficção.
Voltando ao tema do ativo e do reativo, procuramos condensar essa economia das
forças que carrega consigo toda uma possibilidade de interpretação ética do comportamento
humano e que, para esta pesquisa, deixemos claro, tem o alcance do previsto no conceito de
épreuve crítica. Bem que seja numa diagramação “estética” o jogo das forças ativas está
posicionado do lado de uma possibilidade criadora, potencialmente original sem, contudo,
ser primeira. É uma diferença de potencial que estabelece uma certa gradação e delimita
183
outros jogos diferenciais entre as forças, o que implica no desafio de uma criatividade na
descrição e na observação dessa plástica dos corpos ficcionais numa teatralidade performada
na voz narrativa. As forças reativas são da ordem do que reage, obviamente, mas essa reação
é implicada em outras forças e só poderá ser descrita ou interpretada - no sentido que aqui
se compreende interpretação, ou seja, como operatória dinâmica das forças reativas a partir
das ativas que são, como índice potencial, mais originais no sentido de uma relação entre
qualidade e quantidade da força. A qualidade da força referencia a diferença de potencial
entre as forças. “O que pode uma força”, o que move ou modifica uma determinada imagem
de força?
Le vrai problème est la découverte des forces actives, sans lesquelles les réactions
elles-mêmes ne seraient pas de forces. L’activité des forces nécessairement
inconscient voila ce qui fait du corps quelque chose de supérieur à tout les réactions,
et en particulier à cette réaction du moi qu’on appelle conscience. […] es forces
actives du corps, voilà ce qui fait du corps un soi, et qui définit le soi comme supérieur
et surprenant : « … Un être plus puissant, un sage inconnu – qui a nom soi. Il habite
ton corps, il est ton corps » La vrai science est celle de l’activité, mais la science de
l’activité est aussi la science de l’inconscient nécessaire. […] En fait il n’y a de
science que là où il n’ya pas conscience et ne peut pas y avoir conscience.
188
Seria um problema de referencialidade dinâmica. Com a descoberta de uma
descrição das forças ativas, o pluralismo de Nietzsche pôde diagramar de forma eficiente a
complexidade do jogo das forças reativas o qual sem essa perspectiva indicial não poderia
ser interpretado como tendo uma especificidade própria e absolutamente dinâmica, de
nuances e determinações móveis que se recalcam em termos de uma significação plena,
teleológica. Significação recalcada numa idéia de potência como poder e não como
diferença de potencial avaliada enquanto definição ética de uma potência crítica
transvaloradora das próprias “bases” identitárias de um homem idealizado enquanto
“filósofo” detentor de um poder sobre a verdade.
Mas há aí uma questão fundamental, a qual está no Anti-édipo de Deleuze e Guattari,
que seria a de uma dimensão do inconsciente como verdadeira usina produtora de
significação. Questão do inconsciente como território onde se indiciam as forças ativas,
onde se elaboraria essa atividade das forças e que, tão imersa quanto participante do próprio
188
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la Philosophie. Paris, PUF, 1962, p. 47. Deleuze cita Nietzsche em VP, II,
226. Remetemos-nos sempre à notação de Deleuze. Essa referência bibliográfica é diferente de La volunté de
puisance I et II estabelecida por Friedriche Würzbach e traduzida por Genevieve Bianquis. (Paris, Gallimard,
1995)
184
corpo, não é outra coisa do que o próprio corpo em sua dimensão de individuação em meio a
agenciamentos coletivos diversos. Haveria aí uma perspectiva ou uma perspectivação não
antinômica entre alma e corpo, entre pensamento e corpo. Essa perspectiva parte da
possibilidade do inconsciente como campo de atividade das forças ativas que referenciariam
os deslocamentos possíveis das forças reativas.
Vale dizer que essa posição ética espinozista e nietzscheana é a de uma crítica
radical à moral, que como mandante ou construtora de uma consciência racionalizante,
imporia desde sempre certa força reativa como dissimulando uma origem ativa só
encontrável no território imanente do corpo e do inconsciente.
“O que é ativo?”, pergunta Nietzsche em La volunté de puissance II
189
. Apropriar-se,
dominar, subjugar são características de forças ativas. Mas Deleuze explica, referindo-se a
Nietzsche, que esses caracteres querem dizer “impor formas, criar formas explorando as
circunstâncias”
190
.
Nietzsche critica Darwin por estar muito apoiado numa perspectiva reativa das
forças. O filósofo admirava Lamarck por ter percebido uma “força plástica verdadeiramente
ativa” no processo evolutivo, “uma força de metamorfose”. Com Nietzsche, haveria em sua
energética essa qualidade plástica da força ativa, qualidade “nobre” da força. Energia capaz
de se transformar carregando em si uma potência ativa de transformação e não, como numa
forma reativa, carregando um recalque de subjulgamento dissimulado numa (re)atividade
reificada e reposicionada no sistema plural das forças agindo nos corpos.
La puissance de transformation, le pouvoir dionysiaque, est la première définition de
l’activité . Mais chaque fois que nous marquon ainsi la noblesse de l’action et sa
supériorité sur la réaction, nous ne devons pas oblier que la réaction désigne un type
de force autant que l’action : Simplement les réactions ne peuvent pas être saisis, ni
scientifiquement comprises comme des forces, si nous ne les rapportons pas aux
forces supérieures qui sont précisément d’un autre type.
191
Na terceira parte do capítulo, “O Ativo e o reativo”, Deleuze empreende o
discernimento do qualitativo e do quantitativo das forças. Todo o problema estaria numa
tensão entre a possibilidade do caráter numérico e escalar das quantidades de força e a
impossibilidade de uma “mecânica” ir além dessa mera contabilização. Seria necessário
189
Idem., p . 48.
190
Idem., p. 48 . Cita Nietzsche em BM, 259 et VP,II, 63.
191
Idem.
185
apreender a imensa complexidade do jogo das forças tanto a partir de um índice sobre as
quantidades quanto numa arte de “interpretar” essas quantidades no relacionamento
irredutível de umas com as outras, ou seja, arte de interpretar o jogo sutil dos restos e das
equivalências entre as diferenças de potencial entre as forças.
Les forces ont la quantité mais elles ont aussi la qualité qui corresponde a la différence
de quantité : active et reative sont des qualités de la force. (…) La différence de
quantité est la essence de la force, le rapport de la force avec la force (…) Or, chaque
fois que Nietzsche critique le concept de quantité, nous devons comprendre : la
quantité comme concept abstrait tend toujours et essencialement a une identification, à
une égalisation de l’unité que la compose, à une annulation de la différence dans cette
unité ; (…) Au contraire, chaque fois qu’il critique la qualité, nous devons
comprendre : les qualités ne sont rien, sauf la différence de quantité à laquelle elles
correspondent dans deux forces au moins supposés en rapport.
192
E nessa complexa e dinâmica economia entre a qualidade e a quantidade enquanto
diferença entre forças - ou, em outro sentido, como capacidade das forças ativas que
proporcionam e propulsionam um índice de diferença de potencial sob um vasto domínio de
reações - é que se situa a operatória crítica nietzscheana. Vale dizer que essa operatória
adquire o sentido de uma ethologia
193
, no sentido que falávamos há pouco sobre um
determinado modo da filosofia deleuziana se orientar na descrição desses amplos processos
estéticos e plásticos.
Mas é quando Deleuze comenta o conceito de acaso (hazard) na descrição do
qualitativo e do quantitativo que nos parece de algum modo o momento onde essa dinâmica
ethológica ganha clareza, apesar de sua aparente obscuridade. Na verdade, essa relação do
acaso enquanto pivô lógico para o desenvolvimento da ethologia nietzscheana, segundo o
termo de Deleuze, está discernido na seqüência do estudo e em particular no capítulo sobre o
192
Op. Cit., p. 49. Nesse desenvolvimento, Deleuze cita VP, II, 46 e VP, II, 343 e, numa terceira nota, ele cita
Nietzsche a partir de VP,II, 86 e 87. Essa nota é interessante pois relaciona um importante questionamento que
envolve toda a problemática de uma referência do conhecimento enquanto centrado na consciência ou no
suposição moral do cogito como detentor único de uma “atividade especulativa irredutível a si mesma. « Dans
le monde chimique règne la perception la plus aiguë de la différence de forces. Mais un protoplasme, qui est
une multiplicité des forces chimiques, n’a qu’une perception incertaine et vague d’une réalité étrangère » ;
« Admettre qu’il y a des perceptions dans le monde inorganique, et des perceptions d’une exactude absolue :
c’est la que règne la vérité ! Avec le monde organique commencent l’imprécision et l’apparence. »
193
Nesse sentido, justamente por se tratar aqui da descrição de uma operatória sobre as forças em suas relações
qualitativas e quantitativas mais próprias, psíquicas, diria, “pré-reflexivas”; entendo ethologia como atribuída à
primeira acepção que segue: L’èthos (du grec ancien
θος thos, pluriel θη ếthê) est un mot grec qui signifie
le caractère, l’état d’âme, la disposition psychique.
Il s’écrit èthos (où « è » est la transcription de la lettre grecque êta), et ne doit pas être confondu avec le mot
éthos (du grec ancien
θος éthos, où « é » est la transcription d’epsilon) qui signifie la coutume, l’habitude.Cf.
http://fr.wikipedia.org/wiki/%C3%88thos
186
Eterno Retorno como doutrina cosmológica e física, o que se pretende desenvolver junto à
problemática da economia das forças e posteriormente no capítulo sobre a crítica em
Nietzsche et la philosophie.
Sobre o acaso como antinômico a um continuum, que só pode ser da ordem de um
continuum espaço-temporal:
Avec le hazard nous affirmons le rapport de toute les forces. Et sans doute, nous
affirmons tout le hazard en une fois dans la pensée de l’éternel retour. Mais toute les
forces n’entrent pas pour leur compte en rapport à la fois. Leur puissance respective
en effet, est rempli dans le rapport avec un petit nombre des forces. Le hazard est le
contraire d’un continuum
194
Aqui parece que Deleuze já se apropria inteiramente de Nietzsche e fala com suas
próprias palavras. Deleuze pontua exatamente o que significa essa relação do acaso como
devir cósmico que envolve os jogos de força a partir do conceito de eterno retorno
diferencial como veremos.
Les rencontres des forces de telle et telle quantité sont donc les partis concretes du
hazard, les parties affirmatives du hazard, comme telle étrangères à toute loi: les
membres de Dionysos. Or c’est dans cette rencontre que chaque force reçoit la qualité
que corresponde a sa quantité, c’est-à-dire l’affection que remplit effectivement sa
puissance. Nietzsche peut donc dire dans un texte obscur, que l’univers suppose « une
genèse absolue des qualités arbitraires », mais que la genèse des qualités suppose elle-
même une genèse (relative) des quantités
195
.
Nesse ponto Deleuze explica que sendo essas duas gêneses inseparáveis, isso
significará que não podemos a partir dessa ethologia abstrair completamente um cálculo
sobre as forças. Deve-se em cada caso avaliar sua qualidade respectiva e a nuance desta
qualidade
196
.
Aqui nos perguntaríamos qual a relação dessa percepção sobre a qualidade da força e
todo questionamento sobre um estatuo filosófico contemporâneo sobre a imagem?
Justamente porque quando abordamos uma perspectiva sobre uma descrição teatral da ficção
nos apoiamos no caráter irredutível de imagem que uma teatralidade expõe em relação à
expressividade do texto.
Será justamente o que Deleuze opera em seu estudo indicial sobre o cinema. Analisar
as nuances entre as relações de força no cinema será discernir a complexidade de estilos que
194
Deleuze faz referência ao texto sobre o « continuum », VP, II, 356.
195
Op. Cit., p. 50. VP, II, 334.
196
Idem.
187
informam sobre o tempo e o movimento numa determinada “história” dos processos
semióticos do cinema ou, em outra palavras, se tratará da produção de uma ethologia da
criação cinematográfica
197
. Nesse sentido, poderíamos desdobrar essa ethologia ou
signalética da expressão cinematográfica numa leitura da imagem enquanto teatralidade
própria ao caráter fabulatório e narrativo da ficção em geral.
De que modo os elementos cênicos em sua complexidade (descrição da “luz”, do
movimento enquanto luz e sombra, sentido da cena, diálogo, solilóquio, abordagem
filosófica, uso ou deformação da figura na narrativa, etc.) afetam a leitura em termos do
efeito dessas forças sobre o corpo? Seria mesmo possível pensar a literatura sob esses
parâmetros que se ligariam a uma passagem da luz ou dos efeitos óticos que aí se elaboram?
Diríamos que, se a imaginação pode pensar a imagem enquanto narrativa de um
processo descritivo, então caberia pensar nos modos em que a narrativa literária “cria”
imagem, ou movimento da imagem, mesmo que movimento extático, como, por exemplo, a
elucubração imaginativa de Thomas ou G.H. que pensam sobre a impossibilidade de pensar
o pensamento em si mesmo. Pois pensar o pensamento pressupõe o pensar, vale dizer, não
haveria descontinuidade que pudesse legitimar uma identidade do pensamento enquanto
objeto pensável, pois já amalgamado constitutivamente a um processo de linguagem que
pudesse remeter-se a um nível pré-reflexivo sem estar de algum modo atrelado ao próprio
status da linguagem como forma expressiva própria do pensamento.
Grande questão a de saber como a linguagem artística poderia operar movimentos de
desestabilização desse processo de continuidade do pensamento sobre o pensar não
dissociado de seu movimento “invaginado” entre pensamento como objeto e pensar como
ação reflexiva. Questão que tentamos expor a partir da hipótese de trabalho de uma relação
anacrônica entre os textos trabalhados a partir da tematização do corpo e da imagem do
corpo nessas narrativas.
O corpo despedaçado e fragmentado, o corpo rejuntado e reelaborado pelo
pensamento. Vai-e-vem infindável de uma criação e recriação do corpo no corpus. No
sentido de que, afinal, realmente e de forma imanente tudo se passa no corpo e atravessa o
corpo. É o que tentamos aproximar teoricamente na descrição sintética da especulação
197
Cf. DELEUZE , Gilles. Cinémà 1. L’image-mouvement, 1983 et Cinémà 2. L’image-temps, 1985.
188
deleuzeana sobre a ética spinozista e a estética nietzscheana. Pois o corpo é matéria do/no
devir, sujeito à (re)elaboração ininterrupta da morte como entropia constitutiva e aberta pelo
próprio corpo para fora do corpo. Ou seja, jogo e relação plural das forças como sentido
entrópico fundamental. Corpo percebido então como destinação inconclusa de si mesmo
como outro de si, devir-outro de sua própria entropia. Mas ainda mais de si-para-fora-de-si,
como afirma Jean-Luc Nancy
198
. Excritura (com x), portanto, no sentido de uma
possibilidade de se pensar o corpo como imanência do signo e de certa resultante paradoxal
das forças a partir do trabalho do pensamento funcionando como uma espécie de registro
material de estases corpóreas.
Conceito de corpo, portanto, como eclosão e imersão do sentido. Questão aí da
aproximação de A Paixão segundo G.H e de Thomas L’obscur ao tema da angústia, da
vertigem e do delírio enquanto maquínicas de sensação traduzíveis ou atravessáveis na e
pela linguagem literária. Questão do estilo finalmente e de como os regimes de
expressividade formal em Clarice e em Blanchot alcançam possibilidades desfigurantes da
forma, desestabilizantes do sentido, ressonantes e dissonantes do ritmo. Questão aguda,
finalmente, de como se pensar a força em lugar da forma enquanto teatralidade de um
sentido que deve atravessar o corpo para ser sentido e para, talvez, passar da ordem de uma
lógica do sentido para uma lógica da sensação
199
.
Procuramos pensar nesses desdobramentos quando adentramos na problemática de
certas descrições do espaço e do tempo, ou melhor, do próprio espaçamento do tempo nos
romances e na tentativa de cruzamento teórico com os autores contemporâneos citados. Fica
a provocação que deverá ter seus efeitos na prova-ção (épreuve) virtual-teatral
200
dos
198
Fazemos menção direta aqui aos livros de Jean-Luc Nancy: Corpus. Paris, Metalié, 2000 e 58 Indices sur le
corps et Extension de l’âme. Quebec, Nota Bene, 2004.
199
É todo o tema da teatralidade funcionando enquanto máquina expressiva nos textos ficcionais de Clarice e
Blanchot. Questão que procuramos fazer passar da discussão do sentido à sensação a partir de uma leitura em
termos estéticos de preocupações filosóficas que abordariam, num nível crítico, uma espécie de cartografia
energética do corpo de Nietzsche em Deleuze. Procuramos, adiante, fazer uma leitura da passagem do sentido
à sensação em Deleuze a partir das leituras de A lógica do sentido e Francis Bacon: A lógica da sensação.
200
Épreuve virtual-teatral”, pois se trata de desdobrar a crítica numa operatória anacrônica e atópica dos
espaços cênicos recriados a cada leitura, em cada narrativa. Não haverá nesses “quadros” de leitura uma
performance teatral no sentido do teatro enquanto arte do gesto no espaço cênico, enquanto ato dramatúrgico.
O que se intenta é justamente “anacronizar” ainda mais a possibilidade dessa crítica como construção de pontes
e passagens perfuradas entre as duas escrituras. Como os corpos (dos personagens, das descrições espaço-
temporais) reagem e são experimentados nesses textos? Será como, afinal, recosturar esses corpos em outro
corpus de escritura, desdobrado e ramificado pelas relações de força, por descontinuidades que não fazem se
189
personagens e da ambiência cênica de A paixão segundo G.H. junto aos personagens e à
atmosfera obscura, suspensiva e fantástica de Thomas L’obscur.
Mas antes, uma pequena entrada descritiva numa experiência crítica de Roland
Barthes.
não construir um futuro virtualizado em outra continuidade de texto, que, entretanto, rejeitando seu próprio
porvir, ao mesmo tempo em que recria sua própria intenção, recria sua própria possibilidade enquanto processo
de escritura.
190
Uma experiência crítica (épreuve?) em Roland Barthes. Algumas
considerações teóricas da noção de teatralidade maquínica na ficção de
Clarice e Blanchot.
Qu'est ce que la théâtralité ? C'est le théâtre moins le texte,
c'est une épaisseur de signes et de sensations qui s'édifient sur
la scène à partir de l'argument écrit. (Barthes, Mitologies)
Que pode haver certamente um estranhamento sobre essa noção, não há duvida.
Porém, gostaríamos de iniciar uma pequena explanação a respeito de certa configuração
teórica que dê sustentação à noção de teatralidade na literatura e nos textos ficcionais que
provocam ou convocam ao que viemos nomeando épreuve de escritura ou épreuve crítica.
Primeiro, retomando uma analítica barthesiana sobre o termo. Se a teatralidade é o teatro
menos o texto refluindo uma espessura de signos e sensações que se edificam sobre a cena,
isso se dá a partir do argumento escrito. Teatro menos texto parece ser uma equação
totalmente desqualificatória para o uso que fazemos de teatralidade nesta pesquisa. Porém, é
necessário ter em mente que essa equação é justamente o que nos possibilitaria pensar que
há algo no texto que informa uma gestualidade e que pode ser distanciada nessa operação.
Há também uma constituição de sentido que se dá pela via de uma signalética e de uma
economia de sensações. Finalmente, um argumento dado no texto, reverte a equação sobre o
próprio sentido desse expurgo do texto num móvel conceitual que seria o âmbito mesmo de
uma teatralidade no que se refere à relação imagética, performática e “cênica” desdobrada
no momento de sua performance e de sua plástica próprias. Plástica que entendemos dar-se
também como fabulação e imaginário pela leitura no processo ficcional.
É nesse sentido “expurgado” de uma aritmética dura que elaboraria a teatralidade
como resultante de um teatro sem o texto, que nos referimos ao termo teatralidade na
literatura. No mesmo movimento, ou pelo menos na mesma direção, é que nos remetemos à
análise que faz Christophe Bident dessa pseudo axiomática e de sua relação com certa
gestualidade crítica do próprio Barthes que lê Brecht junto a uma semiologia do teatro
oriental.
C’est à un rapport historique à la scène que le théâtre, selon Barthes, doit d’abord
accorder son geste. Cette proposition brechtienne redouble la définition inaugurale de
la théâtralité : « le théâtre moins le texte », soit non pas le théâtre à l’exclusion du
texte, mais le théâtre avec le texte, sur un mode minorisé, sur un mode mineur.
191
Car nulle interprétation ne serait plus réductrice, en l’occurrence, que l’algébrique, et
il serait facile de renverser la soustraction pour en démontrer la vanité logique : que
signifierait, par exemple, que le théâtre soit la théâtralité plus le texte, ou que le texte
soit le théâtre moins la théâtralité ? Il ne faut donc pas lire la formule de Barthes au
pied de l’équation. On peut la lire elle aussi comme un geste, reproduit plus tard en
ouverture aux Éléments de sémiologie : « la Langue, c’est donc, si l’on veut, le
langage moins la Parole » (II, 639). Si l’on ne peut évidemment superposer un à un les
termes de ces deux soustractions, on notera que le geste définitionnel de Barthes
s’accomplit ici et là dans le sens d’une abstraction (la théâtralité, la langue) identifiée
au retrait d’une pratique concrète (la parole, le texte) dans le corps ou le lieu d’un
système (le langage, le théâtre).
201
Por outra via, será preciso dizer que a partir do que chamamos de cartografia dos
gestos nas ficções de Clarice e de Blanchot, procuramos fazer ressoar o movimento próprio
do conceito de neutro blanchotiano e aquilo que observa Barthes como diferença entre uma
plástica ou gestualidade teatral dos teatros ocidental e oriental, basicamente em L’empire
des signes.
Pois, procuramos observar justamente uma economia signalética das sensações nas
ficções em questão. Essa economia signalética opera a partir de um cruzamento de noções
sobre o papel performativo da voz narrativa para Blanchot bem como o desenvolvimento da
noção de Récit levado a cabo no livro de Dominique Rabaté Vers une literature de
l’épuisement.
Nesse sentido, procuramos fazer uma breve incursão crítica sobre as questões que
envolvem o conceito de Neutro blanchotiano e as análises barthesianas sobre uma diferença
semiológica do teatro oriental em relação ao teatro ocidental
202
, tomando como ponto de
referência a leitura de Le geste théâtral de Roland Barthes de Christophe Bident
203
.
De fato, como Barthes faz notar, existiria uma diferença semiológica básica entre o
teatro ocidental, preocupado com o segredo, o guardado, o dentro como sagrado de uma
subjetividade e o teatro oriental que operaria a partir de uma relação de exposição ou,
diríamos, de neutralização dessa dimensão de representação dos “sentimentos” e dos
“conflitos” interiores do personagem-ator. Pois, no teatro Bunraku os atores aparecem
manipulando suas marionetes, ou seja, fazem parte do espetáculo como agentes visíveis na
ação sobre as marionetes com participação semiologicamente atuante.
201
BIDENT, Christophe. Le geste théâtral de Roland Barthes. Texto inédito, p. 51.
202
Três textos de L’empire des Signes centrados na análise dessa diferença são, por exemplo: “Les trois
écritures”, “Anime/inanimé” e “Dedans/Dehors” in: BARTHES, Roland. Oeuvres complètes, V.III. Paris,
Seuil, 2002, pp. 390-9.
203
BIDENT, Christophe. Le geste théatral de Roland Barthes. Texto inédito.
192
Diferentemente do teatro ocidental, onde há uma preocupação de união da voz, do
gesto e da ação performativa no corpo do ator, preocupação que pode tornar a atuação
potencialmente alocada a uma certa tensão dissimulativa, no teatro Bunraku há três
escrituras separadas e que se desenvolvem ao mesmo tempo em três espaços do espetáculo.
Le Bunraku pratique donc trois écritures séparées, qu’il donne à lire simultaneament
en trois lieux du spectacle : la marionnette, le manipulateur, le vociférant : le geste
effectué le geste effectif, le geste vocal. La voix enjeu réel de la modernité, substance
particulière de langage, que l’on essaye partout de faire triompher. Tout au contraire,
le Bunraku a une idée limitée de la voix ; il ne la supprime pas , mais il lui assigne une
function bien défini essentiellement triviale. (…) ce que la voix extériorise, en fin de
compte ce n’est pas ce qu’elle porte (les « sentiments »), c’est elle-même, sa propre
prostitution ; le signifiant ne fait que se tourner astucieusement comme un gant.
Sans être éliminée (ce qui sera une façon de la censurer, c'est-à-dire d’en désigner
l’importance la voix est donc mise de côté (scéniquement les récitants occupent une
estrade latérale). Le Bunraku lui donne un contrepoids, ou mieux, une contremarche :
celle du geste. Le geste est double : geste émotive au niveaux de la marionnette (des
gents pleure au suicide de la poupée-amante), acte transitif au niveau des
manipulateurs. Dans notre art théâtral, notre acteur feint d’agir, mais ses actes ne sont
jamais que des gestes : sur la scène, rien que du théâtre.(…) le Bunraku (c’est sa
définition), sépare l’acte du geste : il montre le geste, il laisse voir l’acte, il expose à la
fois l’art et le travail, réserve à chacun d’eux son écriture.
204
Essa diferença semiológica entre os teatros ocidental e oriental, que Barthes assinala,
tem a ver, para nossos propósitos, com a entrada que procuramos dar à questão da voz
narrativa instituída no Récit. Procuramos pensar a performance específica da voz narrativa
nos textos de ficção citados, procurando compreender uma gestualidade própria dessa voz,
seja na construção da cena seja na performação limite do que alegoricamente pode ser
descrito a partir de uma certa cartografia dos gestos e da gestualidade do corpo dessa voz ou
do corpo dos personagens que se movem em torno ou a partir da orientação dramática que se
desdobra na e pela voz narrativa.
Uma teatralidade maquínica discernida em termos literários tomaria de empréstimo
uma noção de cisão semiológica da encenação na reflexão barthesiana e aplicaria essa
conceptualidade numa amplitude teórica mais abrangente que se imporia aqui como a
orientação teórica de uma filosofia “dramática” nietzscheana, passando pela leitura e criação
conceitual de uma poética do neutro em Blanchot e também se direcionando a uma leitura
das filosofias da diferença, tanto desconstrutiva de Derrida como numa posição energética
ou signalética da arte em Deleuze.
204
Cf .L’empire des signes. “Les trois écritures”, in BATHES, Roland. Ouvres complètes, V.III. Paris, Seuil,
2002, pp. 390-4.
193
Se teatralidade é pensada aqui obrigatoriamente no desvio em relação à acepção
física do conceito de espaço cênico, é porque procuramos desdobrar a iniciativa de certa
“alegorização” produtiva da potência teatral no que se relaciona tanto às perspectivas
imanentes contemporâneas sobre a arte quanto ao desejo de se pensar a crítica literária como
movimento necessariamente vinculado à dinâmica performativa da literatura enquanto tal.
Da lógica do Sentido à Lógica da Sensação.
Deleuze descreve o jogo intenso das forças que coexiste numa experimentação
artística ou numa experiência de arte. Esse jogo de captação e repulsão de forças que se
agenciam numa experiência de pintura ou musical. A princípio, no capítulo “L’histerie” de
Francis Bacon: Logique de la Sensation Deleuze diferenciou, segundo certos parâmetros,
certa configuração ou ethos próprio a cada arte, relacionando uma atividade basicamente
histérica à pintura e uma relação esquizofrênica ligada a certas experiências musicais.
Pois bem, no começo do capítulo “Peintre les forces”, ele faz o inverso, descrevendo
certos movimentos de contraponto dos efeitos de captação ou repulsão de forças na
produção e na expressividade artísticas em geral. A arte deve, na produção paradoxal de
duas formas expressivas, operar por “contraponto” estabelecendo, no limite, uma relação
com “matérias” ou materiais onde certa configuração dessas forças expressivas indica aquilo
que ela pode descrever apenas na relação limite com o corpo e sua sensibilidade.
Nessa relação limite, o que ocorre é justamente a indicação do que ela, ao poder
mostrar, ou seja, uma indicação em “reversão” ou “exclusão”, digamos assim, daquilo que
ela não alcança possibilita uma arte que põe em evidência um momento de reverberação
(reversão, inclusão ou exclusão de afectos) sobre algo indemonstrável, sobre algo invisível
ou insonoro, por exemplo.
D’un autre point de vue, la question de la séparation des arts, de leur autonomie
respective, de leur hiérarchie éventlle, perd toute importance. Car il y a une
communauté des arts, un problème commun. En art, et en peiture comme en musique, il
ne s’agit pas de reproduire ou d’inventer des formes, mais de capter des forces. (…)
C’est une évidence. La force est en rapport étroit avec la sensation : il faut qu’une force
s’éxerce sur un corps, c’est-à-dire sur un endroit de l’onde pour qu’il y a sensation. Mais
si la force est la condition de la sensation ce n’est pourtant pas elle qui est sentie,
puisque la sensation « donne » toute autre chose à partir des forces qui la conditionnet.
Comment la sensation pourra-t-elle suffisament se retourner sur elle-même, se détendre
194
ou se contracter, pour capter dans ce qu’elle nous donne les forces non donnés, pour
faire sentir des forces insensibles et s’élever jusqu’à ses propres conditions ? C’est ainsi
que que la musique doit rendre sonores des forces insonores, et la peinture, visibles, des
forces invisibles. Parfois ce sont les mêmes : Le Temps, qui est insonore et invisible,
comment peindre ou faire enteindre le temps ? Et des forces elementaires comme la
pression, l’inertie, la pesanteur, l’attraction, la gravitation, la germination ?
205
Gostaríamos de poder relacionar essa atividade de contraponto a um sentido estético
inexpresso de algum objeto artístico e desse “limite descritivo” numa relação de produção
estética com o conceito de teatralidade maquínica na literatura. Se o sentido de algum modo
é suspenso nas ficções que iremos trabalhar, porque não pensarmos que essa suspensão do
sentido passa a ser descrita ou reverberada pela via da sensação? Não poderíamos pensar
que uma cena de angústia ou de incompreensão agônica do narrador ou de um personagem,
como na literatura de Clarice e de Blanchot, não poderia abrir justamente a via para um
caráter poético descrevendo-se a si próprio numa expressividade em contraponto, quer dizer,
que uma cena onde o sentido não pára de ser atacado ou minado em sua figura comum
indicativa, desenvolveria, por isso mesmo, uma capacidade de se alegorizar como
impensável ou região informe, mesmo que, paradoxalmente efetivizada num regime
expressivo perfeitamente formal e inteligível?
Não ocorreria, também por contraponto, uma passagem do sentido à sensação
justamente onde minha compreensão desse bloco cênico ou dramático, onde minha leitura
desse sentido em implosão se daria como uma espécie de flutuação desse mesmo sentido a
um regime de sensações angustiantes ou agressivas, maníacas, ou talvez mesmo
depressivas? O neutro afinal não opera como esse lugar de suspensão de sentido e de
instauração de uma sensação apática ou de indeterminação constitutiva de um estado
particular de inteligibilidade, justamente a instauração de uma região onde há a
possibilidade de se pensar o pensamento? Mesmo e inclusive se essa possibilidade de
pensamento é da ordem paradoxal do impossível.
Afinal, até onde o corpus de uma escritura não fabrica ou agencia um regime
específico de interdições do sentido como forma expressiva singular de uma passagem do
sentido à sensação, ou diríamos, do inteligível e normativo de uma interpretação
representativa, ao sensível e dramático de uma interpretação performativa da linguagem e de
uma estética própria ao corpo enquanto canal irredutível às forças da própria linguagem?
205
« Peindre les Forces » in : DELEUZE, Gilles. Francis Bacon : Logique de la sensation. Paris, Seuil, 2002,
195
É o que procuramos desenvolver a partir do conceito de épreuve crítica na segunda
parte do trabalho de tese, quando procuramos perceber, a partir de certas maquínicas
alegóricas, uma produção performativa dos sentidos. Ali, o mesmo sentido pode se deformar
em sensação ativa ou reativa, segundo a lógica ou poética do neutro a que nos referimos
anteriormente e que deve ser descrita enquanto cartografia de gestos ou movimentos dessas
forças e que são elaboradas como teatralidade dramática nas cenas, seja a partir do
envolvimento direto dos personagens, seja no movimento geral da voz narrativa que a todas
as forças organiza numa sobredeterminação geral de sua própria performação.
Procuraremos ser breve na tentativa de pensar a hipotética passagem de uma Lógica
do Sentido para uma Lógica da Sensação. Na décima segunda série Sobre o Paradoxo,
Deleuze parece retornar ao mote que o faz iniciar toda sua especulação sobre o sentido e a
lógica, o sentido e a linguagem tomando como referência a performatividade destas questões
operadas nas ficções de Lewis Carrol.
Pois bem, o conceito de paradoxo para Deleuze diz respeito ao um trabalho do
pensamento e da lógica sobre o impensável e o impossível. Em suas palavras:
A força dos paradoxos reside em que eles não são contraditórios, mas nos fazem
assistir à gênese da contradição. O princípio de contradição se aplica ao real e ao
possível, mas não ao impossível do qual deriva, isto é, aos paradoxos, ou antes ao que
representam os paradoxos.
206
Os paradoxos de sentido têm, sobretudo, a particularidade de irem em dois sentidos
ao mesmo tempo e portanto se opor à doxa, ou seja, se opor aos dois aspectos da doxa, o
bom senso e o senso comum. O bom senso marca uma capacidade de gerar uma direção de
sentido e de estabelecer nexos lógicos na produção de um sentido do tempo que vai do
passado para o futuro. Em suas palavras:
[...] esta direção é facilmente determinada como o que vai do mais deferenciado ao
menos diferenciado, da parte das coisas à parte do fogo. Segundo ela, orientamos a
flecha do tempo, uma vez que o mais diferenciado aparece necessariamente como
passado, na medida em que ele define a origem de um sistema individual e o menos
diferenciado como futuro e como fim. Esta ordem do tempo, do passado ao futuro, é
pois instaurada com relação ao presente, isto é, com relação a uma fase determinada
do tempo escolhida no sistema individual considerado.
207
p. 57.
206
DELEUZE, Gilles. A lógica do Sentido. Trad. Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo, Perspectiva, 2003, p.
77.
207
Op, Cit., p. 78.
196
O bom senso teria uma função essencial que seria a de prever. O bom senso “é
essencialmente repartidor”, ele reparte as coisas no espaço e no tempo entre “de um lado e
de outro lado”.
A essência do bom senso é de se dar uma singularidade, para estendê-la sobre toda a
linha dos pontos ordinários e regulares que dela dependem, mas que a conjuram e a
diluem. [...] Os caracteres sistemáticos do bom senso são pois: a afirmação de uma só
direção; a determinação desta direção como indo do mais diferenciado ao menos
diferenciado, do singular ao regular, do notável ao ordinário;a orientação da flecha do
tempo, do passado ao futuro de acordo com essa determinação; o papel diretor dessa
orientação; a função de previsão que assim se torna possível; o tipo de distribuição
sedentária, em que todos os caracteres precedentes se reúnem.
208
Por outro lado, Deleuze relaciona o bom senso e a distribuição que ele opera à
determinação da significação. Mas o bom senso não desempenharia nenhum papel numa
doação de sentido. O bom senso dependeria em sua distribuição sedentária - que Deleuze
ilustra com o exemplo agrícola e a constituição histórica da propriedade e dos cercados, ou
seja, de espaços regrados e fechados - de uma distribuição de outra ordem, mais livre,
ilimitada, por exemplo, a dos espaço abertos fora de qualquer circunscrição sedentária.
O paradoxo em sua essência não poderia ser pensado como simplesmente nessa outra
direção do futuro ao passado. Do menos diferenciado ao mais diferenciado. O paradoxo não
poderia ser pensado como pertencente à simples inversão do sentido da flecha do tempo.
De tal forma que a potência do paradoxo não consiste absolutamente em a seguir a
outra direção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo
tempo, as duas direções ao mesmo tempo. O contrário do bom senso não é o outro
sentido; o outro sentido é somente a recreação do espírito, sua iniciativa amena. Mas o
paradoxo como paixão descobre que não podemos separar duas direções, que não
podemos instaurar um senso único, nem um senso único para o sério do pensamento,
para o trabalho, nem um senso invertido para as recreações e os jogos menores.
209
Alice, de Lewis Carrol, pergunta sempre: “Em que sentido, em que sentido? Não
tendo nunca resposta, pois: “é próprio do sentido não ter direção, não ter ‘bom sentido’, mas
senpre as duas ao mesmo tempo em um passado futuro infinitamente sub-dividido e
alongado”
210
.
Deleuze faz menção aos conceitos de Tempo Cronos e Aion. Para tanto, o filósofo
cita o físico Boltzmann: “Para o universo inteiro, as duas direções do tempo são portanto
impossíveis de distinguir, da mesma forma como no espaço não há nem acima nem abaixo
208
Op. Cit., pp. 78-9.
209
Op. Cit., p. 79.
210
Idem, pp. 79-80.
197
(isto é, nem altura, nem profundidade)”
211
. A partir daí, Deleuze diferencia uma metafísica
do tempo com os conceitos de Cronos e Aion:
Cronos é o presente que só existe, que faz do passado e do futuro suas duas dimensões
dirigidas, tais que vamos sempre do passado ao futuro, mas na medida em que os
presentes se sucedem nos mundos ou sistemas parciais. Aion é o passado-futuro em
uma subdivisão infinita do momento abstrato, que não cessa de se decompor nos dois
sentidos ao mesmo tempo, esquivando para sempre todo presente. Pois nenhum
presente é fixável no Universo como sistema de todos os sistemas ou conjunto
anormal. À linha orientada do presente, que “regulariza” em um sistema individual
cada ponto singular que recebe, opõem-se a linha de Aion, que salta de uma
singularidade pré-individual a outra e as retoma todas uma nas outras, retoma todos os
sistemas segundo as figuras da distribuição nômade em que cada acontecimento é já
passado e ainda futuro, mais ou menos ao meso tempo, sempre véspera e amanhã na
subdivisão que os faz comunicar.
212
Já no senso comum, o sentido que se diz comum, tem a ver com uma “função”, “uma
faculdade de identificação” “órgão” onde há uma “identificação com a forma do Mesmo”
213
.
O senso comum identifica, reconhece, não menos quanto o bom senso prevê.
Subjetivamente, o senso comum subsume faculdades diversas da alma ou órgãos
diferenciados do corpo e os refere a uma unidade capaz de dizer Eu: é um só e mesmo
eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe, etc.; e que respira, que dorme, que anda,
que come... [...] Objetivamente, o senso comum subsume a diversidade dada e a refere
à unidade de uma forma particular de objeto ou de uma forma individualizada de
mundo: é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio, toco, o mesmo que percebo
imagino e do qual me lembro... e é no mesmo mundo que respiro, ando, fico em
vigília ou durmo, indo de um objeto para outro segundo as leis de um sistema
determinado. Aí ainda a linguagem não parece possível fora de tais identidades que
designa. Vemos muito bem a complementaridade entre as duas forças, a do bom senso
e a do senso comum.
214
Certa lógica da identidade e da permanência lógica de uma topológica do próprio
entendimento do sentido é exposta a partir da complementaridade do bom senso e do senso
comum. Deleuze fechará essa série dando a perceber a potência de doação de sentido que
advêm do sentido do paradoxo enquanto uma espécie de região que nós chamaríamos, com
um pouco de receio, de pré-ontológica, ou no mínimo, de região onde haveria uma certa
turbulência neutra e constitutiva, onde o sentido se extrapola a si próprio como tempo
aiônico em saltos e instituindo uma saída para fora dos eixos crônicos de um tempo
produzido pela complementaridade das duas forças instauradoras de um tempo do presente a
si, tempo normativo e cronológico, tempo das medias e entre os limites infinitamente
grandes e infinitamente pequenos. Meio termo dado no real onde se instauram velocidades
211
Idem, p. 80.
212
Idem, p. 80.
213
Idem.
214
Idem, pp. 80-1.
198
médias passíveis de uma espécie de estabilização dinâmica a que poderiamos voltar a
chamar de doxa.
É preciso que a qualidade seja ao mesmo tempo parada e medida, atribuída e
identificada. É nessa complementaridade do bom senso e do senso comum que se
estabelece a aliança do eu, do mundo e de Deus – Deus como saída última das
direções e princípio supremo da identidade. Da mesma fora o paradoxo é a subversão
simultânea do bom senso e do senso comum: ele aparece de um lado como os dois
sentidos ao mesmo tempo do devir-louco, imprevisível; de outro lado, com o não
senso da identidade perdida, irreconhecível. Alice é aquela que vai sempre nos dois
sentidos ao mesmo tempo. [...] Como é que Alice poderia ainda ter senso comum, uma
vez que não tem mais bom senso? A linguagem parece, de qualquer maneira
impossível, não tendo mais sujeito que se exprima ou se manifesta nela, nem objeto a
designar, nem classes e propriedades a significar segundo uma ordem fixa.
215
É no momento quando o sentido entra na esfera do paradoxo e que a linguagem
parece não poder dar conta dessas aporias intermináveis que suspendem o sentido que há
justamente doação de sentido. Como dizíamos acima em relação à lógica da sensação, mas
agora em outra relação conceitual, há uma emergência de sentido que surge justamente no
limite de sua falta e na aparência ou simulacro de sua impossibilidade.
É contudo aí que se opera a doação de sentido, nesta região que precede todo bom
senso e senso comum. Aí, a linguagem atinge sua mais alta potência com a paixão do
paradoxo.
216
Se uma paixão do paradoxo elabora a possibilidade de pensarmos no que a
linguagem que aí se incrementa pode (o que pode esse corpo de língua autonomizado numa
captura de forças, esse corpus literário?), afecta ou articula em termos das forças que aí se
conjugam ou se repelem; se o sentido no que emerge como doação, para além de uma região
de limitação dada pelo bom senso ou de uma instauração de identidade dada numa linha de
(re)conhecimento do eu, do mundo e do limite aí exposto como Deus na forma do senso
comum, então procuramos nos remeter à passagem possível de uma lógica do sentido a uma
lógica da sensação como estratégia operativa “entrópica”, digamos, para pensarmos tanto a
imagem literária como produtora de sensação quanto essas sensações que daí advêm.
Essa relação complexa que tentamos expor ao nos remeter do sentido à sensação
deveria poder aportar uma espécie de donação de sentido (diríamos extático, vertiginoso,
talvez delirante, quem sabe) que se articularia no cruzamento diagonal de uma intenção
reflexiva e de uma experimentação eminentemente plástica e dramática do ficcional
215
Idem, p. 81.
199
enquanto tal, daquilo que viemos chamando, desde o início, de teatralidade maquínica da
literatura.
216
Idem.
200
Parte II
201
Nota sobre uma compreensão do sentido de corpo e corpus a partir de
Corpus
217
de Jean-Luc Nancy.
Citações:
“Mas a experiência de pesagem
218
(pesée) se oferece de início como corpus, não
como corpo-de-sentido-e-de-história. Ela abre ao sentido possível de um corpo pelo corpo
proliferante, pelo corpus criador deste corpo (a criação como corpus: sem criador, logos
empírico, variedade aleatória, ordenação extensível, modalização permanente, ausência de
plano e de fim – somente a criação será o fim, o que quer dizer também, somente o corpo,
cada corpo, cada massa e cada intersecção, interface de corpo, cada um, cada uma e toda
comunidade desobrada
219
(désoeuvrée) faria os fins infinitos da técnica do mundo dos
corpos)
220
.
217
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Paris, Métailié, 2000.
218
Pesée: pesagem, peso, força, quantidade, pressão, densidade, são todos sentidos possíveis que procura trazer
a imanência própria do que a relação corpo-corpus traz de uma idéia tetradimensional do jogo de suas
superfícies e profundidades do que poderíamos chamar de investigação critico teórica sobre a possibilidade de
uma economia critica dos afectos numa possível “semio-energética” da literatura ou uma ontologia do espaço
literário como passagem de uma lógica do sentido a uma lógica da sensação se o terço ontologia nesse sentido
pudesse ser pensado estritamente de forma imanente.
Profundidade e superfície no sentido de uma extensibilidade do virtual e do atual numa complexidade onto-
bio-política a que a crítica deveria transversalisar. Evidentemente, Nancy opera aí no sentido das problemáticas
múltiplas e complexas que possam surgir da reflexão sobre as relações éticas e políticas entre um sentido
indecidível de corpo e corpus como da intersecção dinâmica de todo indivíduo ou processo de individuação
com o coletivo assim como com as forças que se entremeiam no seio da comunidade como espaço de
tensionamento complexo onde se agenciam outros tantos processos de coletivização. O Sentido aqui abrange
justamente a complexidade de uma onto-bio-política e não de uma “sociologia”. O sentido desta dinâmica
infinitizante entre corpo e corpus se expande e retrocede até os confins do pensável como corpo do próprio
pensamento, visceralmente e sangüineamente o pensamento deste corpus adentra a miríade homeostática de
um ser da imanência como ser de uma corporeidade imanente-transcendental (transcendental no sentido dessa
figuração da linguagem necessária e da própria poética que daí emerge como possibilidade corpórea da própria
filosofia). É essa imagem de uma corporeidade do pensamento metaforizado ou poerformado por Nancy como
Corpus, que procuramos fazer ressoar diretamente em nossa imagem de uma teatralidade maquínica da
literatura, suas possibilidades cartográficas dirão respeito à expressividade e à força formalizada pelas imagens
literárias, a partir do que chamamos de voz narrativa e voz narradora e sua relação com as problemáticas do
sujeito e da escritura de si como relato auto-bio-gráfico ou alterográfico.
219
Désoeuvrée, derivado do conceito blanchotiano de desoeuvrement e em sua tradução portuguesa
desobramento. Nancy, inspirado pela reflexão blanchotiana, abarca uma concepção teórica e uma experiência
da modernidade que percebe o trabalho e a produção da obra, do corpo e corpus da obra, do sujeito e seu obrar-
se a si e para fora de si no mundo (obrar-se como experiência concreto-subjetiva em dupla via) como relação
não-pacífica entre a construção de subjetividade e a pressão por uma objetividade do sentido cada vez mais
relativizada pela decadência de uma positividade humanista baseada numa metafísica da presença a si como
razão histórica e onto-teo-lógica determinante. Nas palavras de Peter Pál Pelbart: “Oscilação inconclusa, eis a
obra da modernidade: desobramento. O desobramento, já o vimos, é o que, como o neutro, anula o tempo,
dissolve a história, desbarata a dialética e a verdade, abole o sujeito e faz soçobrar uma ordem. Se quisermos
ver aí um "trabalho" da desrazão, no sentido de uma demolição, nada mais justo.” Cf. Pelbart, Peter Pál. Da
Clausura do fora ao Fora da Clausura. São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 177.
220
« Mais l’experience de pesée s’offre d’abord comme corpus, non pas comme corps-de-sens-et-d’histoire.
Elle ouvre au sens possible d’un corps par le corpus proliférant, par le corpus créateur de ce corps. (La
202
“Mas a experiência aqui não é outra coisa que o corpus destas pesagens, destas
pesagens que pesam sem serem pesadas nem medidas por nada, que não depositam em lugar
algum seus pesos, não se apaziguam por nenhuma medida. Experitur: um corpo, uma psyché
tenta, é tentada, tocada, ela ensaia, ela se arrisca, ela é riscada, ela é forçada a vir àquilo que
ela “já” é, mas “já” em sua vinda, não pressuposta, existente por essência impressuposta.
Ela vêm, ela vai imediatamente, já, no instante, e isso toma toda uma existência, até as
bordas: nada menos do que nascer e morrer, circunscrever, inscrever e excrever ao mesmo
tempo o lugar múltiplo de um corpo. Experitur: isso vai e isso vêm ao longo dessas bordas,
confins e fins sem fim bordejados a outros fins, recomeços de si, ao modo do acolhimento
dos outros, toques dados e recebidos, pesagens sopesadas, inumações (levées), lábios,
pleuras, vozes, visões, maneiras de ser no extremo de si e dos outros, bem antes de ser a si
ou a qualquer outra coisa”
221
.
“Experiência não é saber, nem não-saber. Experiência é travessia, transporte de
borda a borda, transporte incessante de uma borda à outra em toda a extensão do traçado que
desenvolve e que limita uma a-realidade (aréalité)”
222
.
“Um corpo é para si mesmo, também sua voragem, sua degradação, e inclusive até o
pus purulento, até a paralisia. A existência não comporta somente o excremento (como tal,
elemento cíclico): mas um corpo é também e se faz sua própria excreção. Um corpo se
espaça, um corpo se expulsa, identicamente. Ele se escreve e se excreta (il s’excrit) como
corpo: espaçado, ele é corpo morto, expulsado, ele é corpo i-mundo. O corpo morto de-
limita o i-mundo e retorna ao mundo. Mas o corpo que se expulsa afunda o i-mundo em
pleno mundo. E nosso mundo faz os dois: dupla suspensão do sentido” (p. 92).
“Numa escritura, o corpo é propriamente o que não se pode ler nela” (p. 76).
“Não se pode pensar isso ou nada. Mas pensar isso, é ainda nada”
223
.
“Pensar em retirada de pensar. Tocar esse grama, esta série, esta extensão. O
pensamento se toca, sem ser si, se se voltar a si. Aqui (mas onde é aqui? ele não é
localizável, ele é a localização tendo lugar, o ser vindo aos corpos) aqui, portanto, não se
trata de juntar uma “matéria” intacta. Não se opõe imanência a transcendência. De maneira
geral não opomos, os corpos não opõem nem se opõem. Eles são postos, depostos, pesados.
Não há matéria intacta – ou então não haveria nada. Ao contrário há o tato, a posta e a
creation comme corpus : sans créateur, logos empirique, variété aléatoire, ordonnance extensible, modalisation
permanente, absence de plan et de fin – seule la creation sera la fin, ce que veut dire aussi, seuls les corps,
chaque corps, chaque masse et chaque intersection, interface de corps, chacun, chacune et toute leur
communauté désoeuvrée ferait les fins infinies de la techné du monde des corps.) » (p. 87)
221
« Mais l’experience n’est autre chose, ici, que le corpus de ces pesées, de ces pesées qui pèsent sans être
pesées ni mesurées par rien, qui ne déposent nulle part leurs poids, ne s’apaisent d’aucune mesure. Experitur :
un corps, une psyché, tente, est tentée, touchée, elle fait l’essai, elle se risque, elle est risquée, elle est pousée a
venir à ce qu’elle est « déjà », mais « déjà » dans sa venue, non pressuposée, existant par essence
impréssuposée. Elle vient, elle va toute de suite – déjà, à l’instant, et cela prend toute une existence – jusqu’au
bords : rien de moins que naître et mourir, circonscrire, inscrire et excrire à la fois le lieu multiple d’un corps.
Experitur : ça va, ça vient le long de ces bords, confins et fins sans fin bordées à d’autres fins,
recommencements de soi autant qu’abords des autres, touches donnés et reçus, pesées soupesées, tombées,
levées, lévres, plévres, voix, visions, maniéres d’être aux bouts de soi et d’autres bien avant d’être à soi ou à
quiconque. » (p. 88)
222
« Expérience n’est pas savoir, ni non-savoir. Expérience est traversée transport de bord à bord, transport
incessant d’un bord à l’autre tout le long du tracé qui developpé et qui limite une aréalité. » (p. 98)
223
« On ne peut pas penser à moins c’est ça ou rien. Mais penser ça, c’est encore rien. » (p. 95)
203
deposição, o ritmo de ida e vinda dos corpos no mundo. O tato desligado, particionado dele
mesmo”
224
.
“A extensão (L’étendue) da Psyché é esta transpiração e esta agitação íntimas do
corpus do mundo. Podemos não os compreender ou sentir como imundos? Por mais que
nosso mundo compreenda que não é mais tempo de se querer Cosmos, não menos que
Espírito sobre dimensionando à Natureza, parece que não se pode a não ser tocar em si a
abjeção do imundo. Isso não é apenas o efeito ambivalente de todos os narcisismos. De fato,
desde que o mundo é mundo, ele se produz (se expulsa) também como imundice. O mundo
deve se relançar i-mundo, porque sua criação sem criador não pode se conter ela mesma.
Um criador guarda, retém sua criação e se relaciona a ela. Mas a criação do mundo dos
corpos não traz nada e não retorna a ninguém. Mundo quer dizer sem princípio nem fim: e
isso que quer dizer espaçamento dos corpos é o que, por sua vez, não quer dizer a não ser a
infinita impossibilidade de homogeneizar o mundo com ele mesmo, e o sentido com o
sangue. As aberturas do sangue são identicamente aquelas do sentido – hoc est enim... -, e
esta identidade não é feita a não ser que da absoluta rejeição-de-si que é o mundo dos
corpos. O sujeito de sua criação é esta rejeição. A figura da ecotécnica propaga em todos os
sentidos a proliferação mundial e o contágio imundo é bem a figura desta identidade e sem
dúvida, está ela por terminar ela mesma esta identidade” (pp. 93-94).
“Um corpo se expulsa: como corpus, espaço espasmado distendido, rejeição-de-
sujeito ‘imundo’, se for necessário guardar a palavra. Mas é assim que este mundo tem
lugar”
225
(p. 94).
“Com o corpo falamos disto que é aberto e infinito, disto que é o aberto do próprio
fechamento, o infinito do próprio finito”
226
.
“Toda questão esta aí: Um corpo é extensão. Um corpo é exposição. Não somente
que um corpo é exposto, mas um corpo consiste em se expor. Um corpo é estar exposto. E
para estar exposto, é necessário estar extendido
227
.
Comentários:
Talvez o conceito ou a palavra “fora” (dehors), tão presente nas reflexões pós-
estruturalistas sobre o estatuto filosófico do corpo em nossa contemporaneidade, seja
224
« Penser en retrait de penser. Toucher ce gramme, cette série, cette étendue. La pensée se touche, sans être
soi, sans se revenir à soi. Ici (mais où est ici ? Il n’est pas localisable, il est la localisation ayant lieu, l’être
venant aux corps), ici, donc il ne s’agit pas de rejoindre une « matiére » intacte : On n’oppose pas
d’immanence à la transcendence. De maniére generale, on n’oppose pas, les corps n’opposent ni s’opposent.
Ils sont posés, déposées, pesées. Il n’y a pas de matiére intacte – ou bien il n’y aurait rien. Au contraire il y a le
tact, la pose et la dépose, le rythme de l’allée-venue des corps au monde. Le tact délié, partagé de lui-même. »
(p. 102)
225
« Un corps s’expulse : comme corpus, espace espasmé distendu, rejet-de-sujet, « immond » ; s’il faut garder
le mot. Mais c’est ainsi que ce monde a lieu. » (p. 94)
226
« Avec le corps nous parlons de ce qui est ouvert et infini, de ce qui est l’ouvert de la clôture même, l’infini
du fini lui-même. » (p. 109)
227
« Toute l’affaire est là : un corps, c’est de l’extension. Un corps, c’est de l’exposition. Non pas seulement
qu’un corps est exposé, mais un corps, cela consiste à s’exposer. Un corps c’est être exposé. Et pour être
exposé, il faut être étendu (…) » (p. 109)
204
justamente a possibilidade teórica de se poder operar essa injunção ou co-participação da ex-
tensão
228
e da ex-posição de um “ser-fora-de-si” (être hors-de-soi). E toda uma topológica
do corpo é o que se elabora enquanto amplo conceito de Corpus de uma historicidade de um
pensamento, diríamos, onto-bio(s)-zo(é)-lógico
229
.
228
Pensamos no termos extension e extensif no sentido derivado e co-presente à palavra étendue
constantemente mencionada por Nancy como atributo de espacialização conceitual do ser pensável enquanto
ente substancializável no tempo. O que é extenso seria a própria potência ôntico-ontológica do ser enquanto
matéria de abstração em um plano conceitual.
Em LALANDE, André. Vocabuleire Téchnique et critique de la philosophie. « Quadrige ». Paris, PUF, 1926,
2006. é dada a referência específica: “Etendue: D. Audhenung; E. A, B. : Extension (...) A. Qualité des corps
d’être situes dans l’espace* et d’em occuper une partie. B. Cette partie elle-même. C. Metaphoriquement,
caractére de ce qui s’étend plus au moins loin (…). Critique : Sur l’usage de ce mot chez Descartes, voir
principes, II 10-15, ù il distingue d’abord l’espace, l’étendue, le lieu intérieur et le lieu extérieur. Mais ces
distintions ne sont, pour lui, que traditionneles et provisoires. Il conclut ainsi : « Nous ne distinguons jamais
l’espace d’avec l’étendue en longueur, largeur et profondeur, mais nous considerons quelque fois le lieu
comme s’il était en la chose qui est placée quelquefois aussi comme s’il en était dehors. L’intérieur ne différe
en aucunne façon de l’espace, mais nous prenons quelquefois ou pour la superficie qu’il environne
immédiatement lachose placée…, ou bien pour la superficie en général, qui n’est point partie d’un corps plutôt
que d’un autre. » Ibid., II, 15. (…) Dans le langage de la philosophie contemporaine, étendue s’employe le plus
souvent au sens B. « Une étendue est une ligne, un surface ou un volume limités.L’étendue est ainsi par
rapport à l’espace, pris dans son ensemble c’est que la durée*, au sens A, est par rapport au temps. Cf. Op. Cit.,
304. (T) [Todo fragmento de texto em francês que vier seguido da marca (T) tem sua tradução na seção de
traduções no fim da tese.
Seria importante marcar nessa referência a Descartes, o sentido que lê Nancy nesse corpus teórico cartesiano
que ele observa como reverberação matemática e/ou metafísica de uma presença a si constantemente
reincidente filosófica e artisticamente no próprio corpus de uma experiência estética mais abrangente como a
européia. Observa-se um ponto fulcral que percebe a impermanência do corpo como matéria de extensão
dobrada e invaginada pela própria duração de sua entropia. O corpo se daria aí como baliza de relativização e
de jogo de tensão entre uma necessidade ideológica ou teológica histórica e os pressupostos conceituais e
filosóficos que são, na extensão desse corpus de questionamento, passíveis de desconstrução.
Nessa espécie de topológica de um pensamento da imanência do corpo, um “dentro” e um “fora” são pensados
e articulados como atributos qualitativos e intensivos que se invaginam na duração da própria (im)permanência
entrópica do corpo. Esse corpo é figurado elemento significante e é o que é desconstruído como uma espécie
de possibilidade crítica limite em relação ao espaço logocêntrico e eurocêntrico que historicamente foi
possibilitado em grande medida pelo discurso teológico cristão. O exemplo mais incisivo feito por outro crítico
e que me vêm em mente nessa mesma direção é o livro de Didier Huberman “L’image Ouverte”, Gallimard,
Paris, 2007.
Nossa proposta é a de seguir esse raciocínio no que se relaciona à reverberação dessa problemática no que
chamamos de escritura literária e que, de um modo ou de outro, pode ser avaliado em confluência à
desconstrução de uma imagem de corpo sagrado ou sublimado. Fazemos isso em referência específica aos
modos e à gestualidade própria que podemos ler como teatralidade dos corpos nos personagens e nas ficções
de Clarice e de Blanchot. Cf. Corpus, pp. 7-9.
229
Fica a referência ao pensamento onto-bio-político, de Georgio Agambem, que procura discernir a extensão
de uma diferença entre uma programática política de uma referência filológica dos termos gregos Bios e Zoé
caracterizadores da diferença entre um pensamento da vida considerada passível de uma organização biológica
e metafísica e um conceito de vida indomável, situando-se no limite mesmo do controle político sobre um
corpus bio-politizado na forma de uma tradição logocêntrica do pensamento. Em nosso caso, procuramos
relacionar a instituição literária - entendida como campo de possibilidades de uma extensão disseminada sobre
esses dois campos filológicos de referência - a uma programática onto-bio-política; justamente onde a vida se
revelar como uma espécie de variância entrópica, modo de criação e corrupção criativa e paradoxal, no sentido
de uma criação ficcional que desse campo de forças se desdobra como experiência limite ou experiência de
205
Pois como operar tecnicamente ou filosoficamente para além de uma metafísica do
corpo como imanência da alma, essa injunção ou co-participação da extensão e da exposição
do ser-fora-de-si, que deve de algum modo chegar a extrapolar e “intrapolar” ao mesmo
tempo esse falso dualismo metafísico do corpo e da alma?
O fora (dehors) seria uma sobre-abertura, no sentido heideggeriano, e indicaria que
algo quando se projeta para uma exterioridade também já possibilita um refluxo de
interiorização nesse movimento. É uma dobra, uma espécie de curvatura na extensão dos
corpos no mundo, um domínio de co-participações de forças, de tensões e de afecções que
não se resolvem simplesmente sobre ou a partir do traço atributivo de uma representação
direta, metafórica.
O corpo é uma potência ou um campo de potências de dinamizações múltiplas entre
forma expressiva e matéria; na verdade, seria mais como uma formalização material na
extensão dos corpos no mundo ou uma materialização formal dessa mesma extensão a um só
tempo. No entanto, todo corpo é uma singularidade. Tecnicamente, o fora opera esse
deslocamento incessante e necessário do que formaliza e materializa a presença expositiva e
extensiva do corpo. O corpo, pensado agora a partir de uma imanência que o percebe em sua
própria entropia com relação ao mundo e não mais considerado apenas em um movimento
abstrato e fechado de um “ser-em-si” puro do corpo, mesmo que dialetizado sobre algum
campo transcendental ou plano de subjetividade fenomenológica.
Mas, o fora é pensado na abertura e no escorregamento dessa paradoxal
singularidade em travessia e em troca incessante com um jogo de forças cósmicas e archi-
tectonicas
230
fractais que o faz vibrar ou ressoar e que vibra tamm na conjunção da
devires-outros, sejam devires-animais, devires-corpóreos ou incorpóreos ou mesmo devires-imperceptíveis
como podemos ler nesses termos, desde uma conceptualidade filosófica deleuzeana.
230
Cf. Corpus, 36-39. A menção a esse termo de l’archi-tectonique dos corpos se encontra na seção intitulada
“Aréalité”. Arealidade ou caráter e natureza do que têm a propriedade do do ar (area); tem também em francês
por acidente, segundo Nancy, esta proximidade com o que sugere uma falta de realidade, ou “uma realidade
tênue, leve, suspensa: aquela de uma separação que localiza um corpo ou (está) no corpo. Pouco de realidade
do “fundo”, com efeito, da substancia, da matéria ou do sujeito. Mas esse pouco de realidade faz todo o real
aréal onde se articula e se joga aquilo que foi nomeado archi-tectonique dos corpos.” (minha tradução). Essa
expressão, com toda a dificuldade que a beleza do neo-logismo pôde criar, me parece remeter ao pensamento
dessa imanência própria ao pensamento onto-bio-político ocidental que Nancy desenvolve em Corpus. A
intensão crítica que se perceberá nessa pesquisa, acabou por se tornar uma espécie de desdobramento no
âmbito da literatura da reflexão de Nancy sobre essa cartografia ontológica do corpo em um Corpus bio-
político se assim podemos dizer, tendo como linha reflexiva, a hipótese de se pensar o movimento dessa
imanência do corpo em relação a criação literária a partir de uma imagem conceitual que desse conta do
transito entre coexistente entre o corpo enquanto voz narrativa e uma teatralidade literária que possibilitaria
206
singularidade do corpo próprio com a eventualidade imprópria e aberta do acaso. Vale dizer,
a própria abertura é pensada como conceito imanente e sob o domínio de uma rede de
relações sensório transcendentais, energético e pulsionais; enquanto uma espécie de curva na
extensão múltipla dos outros corpos no mundo, o fora é uma tópica dessa abstração da
imanência como invaginação do próprio pensamento.
Corpo e Corpus são as duas versões coalescentes para essa in-junção do corpo na
extensão e na exposição do ser-fora-de-si. O ser-fora-de-si é a dimensão onde há uma
exposição da própria extensão do corpo, o espaço onde um espaçamento tem lugar como
duração de um corpo na extensibilidade de sua existência entrópica. O corpo então se
escreve e se excreta a um só tempo a partir da palavra-conceito “corps excrit” de Nancy. Ele
é Corpus finalmente como con-junção possível de sua própria matéria-tempo dada na
linguagem enquanto expressão metamórfica de um pensamento sobre o próprio corpo
(in)corpóreo ou imaterial do pensamento.
Pois é disso que se trata segundo Nancy. Para se falar do corpo, seria necessário criar
a possibilidade de um discurso “ex-corpore”, de modo que o corpo saia de si mesmo e se
exponha a si próprio nesse movimento para fora de si. Mas isso, Nancy diria não é coisa
para o discurso, no sentido do que é mantido (tenu). Pois que o corpo, não é de algum modo
aquilo que pode ser mantido ou concentrado num discurso “sobre” o corpo. É nesse sentido
que Nancy cita a conferência de Artaud, Pour em finir avec le Jugement de Dieu, como
sendo um discurso verdadeiramente “sobre” o corpo ou um discurso “ex-corporado” do
corpo, mas também como um limite do discurso. Portanto, não é assunto do discurso como
tal a não ser “mimar” uma “ex-corporação”.
Para Nancy:
A questão é, antes, que o discurso, que é por ele mesmo necessariamente incorporal
(essa palavra vem de nossa tradição: para os estóicos, tudo é corpo, salvo o discurso
ou aquilo que é dito, o “lekton”, que é o “incorporal”). Toda questão de um discurso
sobre o corpo, é que o incorporal do discurso toca (touche), de qualquer modo, o
corpo.
231
pensar a instituição do ficcional como uma espécie de gestualidade inerente a produção desse mesmo mundus-
corpus que Nancy diz ser o mundo do “ povoamento proliferante dos lugares (dos) corpos”, não tendo este
mundo nada a ver com uma relação da semelhança, do fantasma, do simulacro e do espetáculo. Mas é esse
mesmo mundo tecno-mundializado da imagem que deve ser percebido no desvio próprio e imanente que
apresenta Nancy a partir de uma inventiva e densa leitura, como dissemos, onto-bio-política do corpo como
espaço vertiginoso da multiplicidade do acontecimento estético e de sua promessa à finitude e que o abre
ontologicamente à responsabilidade de sua própria travessia.
231
Idem. p. 111.
207
Nesse sentido - ou seja, de se pensar o corpo enquanto produtor de uma espécie de
imagem invaginada ou dobrada de um pensamento sobre si em tanto matéria de uma
imanência expressiva e excrita e, por outra parte, de pensá-lo transubstanciado em Corpus
de uma escritura - diria que a literatura libera numa certa contenção progressiva, esse corpus
enquanto um complexo Eu-eu-outro codificado e transpassado ou de-limitado enquanto
corpo extenso em relação a outros corpos desde então “in-corporados” e re-incorporados na
extensão própria de um espaço literário absolutamente perpassado por uma potência de
maquinação ou de jogo entre a incorporeidade discursiva e o próprio da extensibilidade,
instaurado no Corpus mais amplo, que também nomeamos, com Artaud e Deleuze, o corpo
sem órgãos da literatura.
Caberá intentar fazer a cartografia de uma gestualidade e de uma teatralidade própria
à criação sígnica, maquinal ou alegórica desse corpo na extensão de sua matéria narrada (de
seus incorporais enquanto imaginação e fabulação). E através dessa imanência expressiva
dada pela voz narrativa, constituir uma espécie de retorno ao solo transcendental da própria
matéria narrada, ali onde uma plástica eminentemente dramática dessa gestualidade é a
expressão re-in-corporada numa extensão sulcada e trançada, aberta e ilimitada no acaso de
sua re-excrescência operada por outros corpos ou corpus de leitura e escritura. Pois, não
seria a literatura uma escritura e uma excreção próprias do corpo biológico e do corpo do
sentido existencial?
Se o que não se pode ler numa escritura é justamente o corpo, então procuramos ler
os restos móveis e dinâmicos desse corpo que em sua plástica e teatralidade dramática
retorna corpus de uma escritura literária. É esse viés fantasmagórico mesmo o que nos
interessa enquanto excrevinhação ou excrementação de si mesmo para fora de si enquanto
trabalho em direção ao outro de si e ao outro de todo corpo.
Corpo que se lança fora-de-si (delírio próprio ao ato imaginativo do ficcional, ou
seja, o espaço imponderável do real constituído enquanto realidade mesma do ato criativo)
na reversão e invaginação próprias que a fundação de um espaço literário promove na
construção de um Corpus de sentido limite, ali onde uma voz narrativa se excreve ou se
expurga enquanto necessidade de duplo retorno ao mundo. Retorno do corpo morto em sua
excreção na palavra que sempre é significante de uma ausência essencial da atribuição do
208
sentido. E vinda sempre do espaçamento delimitador do próprio sentido que aí se atribui um
movimento de inscrição, mesmo que excrescente, do refluxo essencial do que não tem
sentido senão no seu próprio instaurar-se finalmente incorpóreo. Desenlace sucessivo
constituído pela linguagem, meio caminho entre imanência e transcendência absolutas,
jamais totalitário, pois firmado no inconcluso de toda finalidade que já não esteja de-
limitada na indiscernível experiência da finitude.
Se há uma dramática gestual em direção a uma gestualidade própria dos personagens
Thomas e G. H. em direção a uma relação com um i-mundo no interior do próprio mundo, é
que essa relação imunda no cerne do mundano pode reverter o sentido ao âmago aberto de
uma idéia de sagrado, impelindo uma teatralidade dramática destes corpos literários em
direção à infinitude do próprio mundo como espaço i-limitado de confronto com uma
exterioridade sem-lei da criação ficcional. Há, de algum modo, reversão angustiosa e
suspensiva do sentido nesse processo, pois como excrescência própria do confronto do
corpo no corpus do mundo, não há con-formação pacífica possível das forças nesse processo
de ficcionalização do corpo, mas instituição dramática de uma imagética ficcional que
promoveria a entropia própria à consumação erótica de um corpo insublimável no plano de
imanência que configura um Corpus literário no mundo.
Este Corpus, que deve ser compreendido aqui com Jean-Luc Nancy como um
conceito, sem dúvida, mais amplo e, inclusive, conotando o sentido de uma imanência
incorpórea por sua multiplicidade de atualização entrópica e sucessiva, será, num sentido,
derivado, para nós, do que chamaremos também de corpo-sem-orgãos-da-literatura,
emprestando a nomenclatura que Deleuze retoma de Artaud.
Corpo e Corpus de uma literatura comparada, portanto, será o que gostaríamos de
compor junto às noções deleuzeanas de corpo sem órgãos da língua ou da literatura e de
literatura menor, percebendo o atravessamento irredutível de certas linhas de força que
procuraremos associar ao movimento interno de uma gestualidade ou de uma teatralidade
dramática nos textos ficcionais de Clarice Lispector e de Maurice Blanchot.
Diríamos então que uma noção de Corpus, enquanto extensibilidade do desejo num
espaço virtual de produção de escritura, se atualizará na mesma medida em que um certo
jogo do acaso produz reverberação daquele atravessamento das linhas de força que
procuraremos cartografiar enquanto uma teatralidade no interior-exterior das ficções.
209
Essa teatralidade que intentamos desdobrar como intersecção de dois movimentos
ficcionais literários será finalmente da ordem do que Anne Sauvagnargues resume como a
elaboração de uma noção ampla e onto-energética da arte para Deleuze na forma de uma
diagramação inter-seccionada e entrelaçada das três linhas básicas de forças da teoria
deleuzeana-guattariana: a linha molar, linha molecular e linha de fuga. Diríamos, seguindo
esse mesmo raciocínio, que se trata, na síntese teórica de Sauvagnargues, de uma “tábua das
categorias do devir”, expostas principalmente em L’anti-oedipe, Rhizome e Mille Plateaux:
Três linhas se entrecruzam e compõem todos os corpos. A linha dura corresponde às
formações molares, procede por sobrecodificação generalizada. A linha relativamente
mole de códigos e de territórios entrelaçados, que corresponde às linhas moleculares,
passa sempre através das linhas molares, “como o tecido molecular onde mergulha
este agenciamento”. Ela implica um movimento de desterritorialização. Em terceiro
lugar, a linha de fuga decodifica e desterritorializa: A arte compreende uma tal linha
de fuga, desde quando ela é levada à excelência do gênio, mas como as linhas de fuga
supõem o território que elas desterritorializam, a arte como os outros corpos mistura
constantemente estas três linhas. As máquinas desejantes em O anti-édipo, os
agenciamentos de Mil Platôs se compõem dessas linhas e formam uma cartografia dos
corpos.
232
Encontrar uma sobrecodificação possível das linhas de força no interior-exterior (na
dobradura de uma estética da ficção) dessas ficções, ao mesmo tempo em que elas
subcodificam, num movimento intercalado e entrecruzado, outras linhas de significação ou
mais amplamente de sentido dos textos, é o desafio que agora se impõe como a própria linha
de fuga justaposta à necessidade dúplice (da crítica e do objeto) de criação dos corpos
imaginários dessas experiências literárias às quais chamamos limite. Pois justamente
operando na curvatura imponderável de suas criações poéticas, esses textos, ambientalizam
em performance, uma possibilidade de despersonalização do próprio sujeito produtor de
uma subjetividade que já não é simplesmente programática no sentido do estabelecimento de
uma ficção irredutível ao real, mas busca sim, na sobrevalorização neutra de seu próprio
movimento teatral e dramático (a leitura e portanto também a crítica é potência semi-
232
Cf .SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et L’art. Paris, PUF. 2005, p. 193 « Trois lignes s’enchevêtrent,
et composent tous les corps. La ligne dure correspond aux formations molaires, procede par surcodage
generalisé. La ligne rélativement souple de codes et de territorialités entrelacées, qui corresponde aux lignes
moleculaires, passe toujours à travers les lignes molaires, « comme le tissu moleculaire où plonge cet
agencement ». Elle implique un mouvement de déterritorialisation. Troisièmement, la ligne de fuite décode et
déterritorialise : l’art comprend une telle ligne de fuite, lorsqu’il est porté à l’excelence du génie, mais come les
lignes de fuite supposent le territoire qu’elles déteritorialisent, l’art, comme les autres corps mélange
constamment ces trois lignes. Les machines desirantes de L’anti-Œdipe, les agencements de Mille Plateaux se
composent de ces lignes qui forment une cartographie des corps. »
210
aleatória entre necessidade e desejo) a nervura existencial que poderia, no limite, operar um
eterno retorno desses corpos imaginários à fonte desejante e absolutamente a-centrada de
sua mesma impossibilidade de se fazer finalidade e conclusão de seu próprio desejo criador.
O sentido que gostaríamos de tentar expor em nossa reflexão sobre o corpo, o corpus
e a experiência de escritura que desse espaço de transição pode ser provada numa relação
com o ficcional e o literário, é de um modo abrangente o do corpo como o espaço onde se dá
uma experiência limite. Há no corpo, portanto, a própria experiência do tempo, que em
nossa hipótese será aproximada e mesmo investida do sentido do que chamamos e
chamaremos de: épreuve d’écriture.
Pois será a partir da literatura que observaremos toda uma cartografia dos gestos
desse corpo, formulando nesse movimento descritivo, sem jamais obedecer a nenhuma lei de
estruturação esquemática, uma teatralidade, onde o que chamamos experiência-limite, com
Blanchot, poderá ser percebida enquanto plasticidade e dramaturgias inerentes ao
movimento submerso desse corpo de desejo que porta em nossa hipótese a potência própria
do que será pensado como a voz narrativa, portadora da potência poética do neutro como
“l’atteint d’une affirmation infini.”
233
233
Cf. Os capítulos “L’affirmation et la Passion de la Pensée negative” e “Le jeu de la pense”, essenciais para
o entendimento da problemática da experiência limite tal qual comentada por Blanchot a partir da reflexão
absolutamente original que perpassa toda a obra de Bataille e que encontra no livro L’experience interieur
publicado por Gallimard em 1943, sua formulação mais aguda. Esperamos poder descrever a relação
conceitual de experiência limite na literatura de Clarice Lispector e Maurice Blanchot, bem como sua
reverberação através dos outros conceitos supracitados, no decorrer da pesquisa. Uma primeira formulação de
Blanchot sobre a questão da experiência limite bataillana e nomeada experiência interior, pode ser lida no
seguinte trecho: “A experiência limite é a resposta que encontra o homem quando este se põe radicalmente em
questão. Esta questão que compromete todo o ser exprime a impossibilidade de um término do questionamento
ou de qualquer consolação ou qualquer verdade que seja, nem em relação ao interesses ou resultados da ação,
nem às certezas do saber e da crença. Movimento de contestação que atravessa toda a história, que tanto se
fecha em sistema, tanto atravessa o mundo e se finaliza em um para além do mundo onde o homem se confia a
um termo absoluto (Deus, Ser, Bem, Eternidade, Unidade) - em todos esses casos se renuncia”. BLANCHOT,
Maurice. L’entretien infini. Paris, Gallimard, 1969, pp. 300-323. Como esse absoluto pode ser liberado de seu
dogma e compreendido? Blanchot aproxima essa pergunta da noção de impossível de Bataille. Ele explica:
essa palavra [o impossível], “é necessário entender rigorosamente, é necessário entender que a possibilidade
não é a única dimensão de nossa existência e que nos é talvez dado “viver” cada evento que se passa em nós
mesmos como uma dupla relação, uma vez como aquilo que compreendemos, discernimos, suportamos e
controlamos (seja isso dificilmente e dolorosamente) relacionando isso a algum bem, a algum valor, vale dizer
em última instância, à Unidade; uma outra vez, como aquilo que se subtrai a todo emprego e todo fim, muito
mais como aquilo que escapa a nosso poder de fazer a experiência (l’épreuve), mas a experiência daquilo que
nós não poderíamos escapar: sim, como se a impossibilidade, aquilo ao qual nós não podemos mais poder, nos
esperasse por trás de tudo o que vivemos, pensamos e dizemos, por pouco que estivéssemos próximos dessa
211
Transcrição do Prefacio à edição em espanhol de 58 indicios sobre el
cuerpo, Extensión de Alma.
234
Res extensares cogitans: cosa extensa, cosa pensante. Sustancia de partes
exteriores las unas a las otras, sustancia sin partes, reunida en relación a si (sentir, concebir,
juzgar, querer, imaginar, también amar…). Hemos tomado la costumbre de concebirlas de
un modo apresurado y perezoso, como dos cosas puestas la una junto a la otra, extrañas la
una a la otra, incluso exclusivas y opuestas. Eso es sin embargo, malentender la lección de
Descartes. Pues este ultimo no distingue estas dos res tan claramente sino a fin de mostrar
cuán independientes son sus realitates respectivas la una de la otra, hasta el punto de que no
existe la menor dificultad para pensarlas unidas según lo que él llama, con una extrema
precisión, una unión sustancial: no una tercera res, sino la unión de las dos primeras que son
las únicas (como Spinoza, en particular, lo recordará, designándolas como los dos atributos
de la única sustancia).
Esta unión sustancial se deja concebir por poco que se perciba claramente que la cosa
pensante, no siendo extensa, es decir, para nada exterior a sí misma, puede fácilmente, e
incluso del modo más natural o evidente del mundo (una evidencia para la que no es
necesario forzar el espíritu por método, dado que ella va de suyo en la vida ordinaria),
mezclarse con la cosa extensa en todos sus puntos. De hecho, el cogito puntual, extraño a la
exterioridad, opera en cada punto del cuerpo. Se extiende así, si se quiere, conforme a una
extensión (o una especie de materialidad) muy singular, que es la propiedad del “en ninguna
parte” – o de la parte nula – en todas las partes.
Pero en este sentido, la cosa extensa tampoco es simplemente exterior ni extraña a la
cosa pensante. Es su lugar de ejercicio, o mejor aun, es su ejercicio mismo. Para relacionarse
consigo misma [à soi] en todas sus operaciones, la cosa pensante debe separarse de la pura
puntualidad. Debe extender-se. Al extenderse, se desvía de sí – no se divide
verdaderamente, no se corta, sino que se desvía. De este desvío, debe regresar, volver a “sí
misma. Pero esa vuelta pasa por un afuera. Solamente allí ella podrá constituirse en
“adentro” y en egoidad. El “adentro”, desde el comienzo, está formado por el desvío-afuera,
es propiamente abierto desde afuera. Es igual una habitación cuya puerta no se abriría más
que desde afuera…
Si siento, es que resiento – en mí o para mí – el efecto sensible de algo del afuera, lo
que solo es posible si yo mismo me dirijo al contacto de ese afuera, yo mismo, pues, fuera
de mí para ser en mí. Aun cuando dudo de todo, es el último resto de la representación del
afuera – aunque sea fantasmático u onírico y aunque sea sometido a la más severa duda
sobre su realitas – lo que permite relacionarme conmigo en el modo de la evidencia de un
ego sum.
Desde que se enuncia, ego se separó de sí, por poco que sea, al igual que un cuerpo,
en efecto, separó sus labios para pronunciar la frase “yo soy”. De inmediato, esta frase
significa: “yo soy, incluso si no hay nada más en el mundo, cosa real capaz de distinguir-se
espera, sem jamais faltar a isso que exige esse excesso, essa excedência; excesso de vazio, excedência de
negatividade, que é o coração infinito da paixão do pensamento.” (pp. 307-308, tradução nossa).
234
NANCY, Jean-Luc. 58 indicios sobre el cuerpo, Extensión del Alma. Trad. Daniel Álvaro. Buenos Aires,
La cebra, 2007, p. 9.
212
de sí para ponerse; me pongo en mí mismo, en mi distinción puntual, porque puedo pasar
por el mínimo de desviación que me relaciona conmigo”.
El cuerpo está, pues, envuelto en el cogito. Está envuelto allí, de manera paradojal,
como su desenvolvimiento, es decir, también como su exterioridad o como esta ex-posición
según la cual sólo su simple posición es posible. Por consiguiente, cuerpo es extraño
[étranger] al espíritu sólo si esta extrañidad [étrangèreté] – y esta extrañeza [étrangeté] – se
inscriben en el corazón de la intimidad egoica y le permite así relacionarse consigo mismo
[à soi] al tiempo que se relaciona con el mundo (en verdad, estas dos relaciones son
indisociables).
La sustancia extensa es la extensión y la exterioridad de la sustancia pensante, que
sin este afuera no podría constituir-se en interioridad. Mejor aun: conviene deshacerse del
esquema de un interior opuesto a un exterior. No hay más que un existente, que puede
considerarse bajo el aspecto de su puntualidad o bien bajo aquel de la exposición de esta
puntualidad. Expuesto, el punto de coincidencia a sí se repite indefinidamente a largo de
todas las dimensiones a través de las cuales ejercita su propiedad de sentido (sentir, asentir,
resentir). Ego es el punto de sentido – a la vez incalculablemente multiplicado y siempre
idéntico en su retirada inextensa – de la configuración (lineal, voluminosa, motriz, plástica)
que se llama un cuerpo. O bien, para intentar decirlo de manera más ajustada, ego es el un
de “un cuerpo” y cuerpo constituye el sentido de este un sin el cual éste se aboliría en la
nulidad de su inextensión.
Jean-Luc Nancy, agosto de 2007
Comentário:
Faremos um breve comentário em relação a esse prefácio, texto que curiosamente se
publicam primeiro fora da França. A primeira publicação saiu num número da Revista de
Comunicação e Linguagens (n. 33, Lisboa, 2004) e a segunda, em italiano, nas atas dos
Fundamenta de Veneza em 2002, mas logo em seguida surgindo em Po&sie (n. 99, Paris,
2002) e também saindo em um volume com Antonia Birnbaum, “Exister, c’est sortir du
point”, em Cahiers du Portique, Metz, 2004. No mesmo ano foram publicados
conjuntamente em Montreal pela editorial Nota bene, seguido de um texto de Ginette
Michaud, intitulado “Appendice”. Por último esses textos foram reunidos na terceira edição
de Corpus (Paris, Métaillé, 2006), livro de 1992 e reeditado, corrigido e aumentado, em
2000.
213
Já havíamos comentado algumas passagens de Corpus que achamos esclarecedoras
para aproximar e relacionar alguns pontos (talvez operando alguns conceitos desse livro em
outra modulação de leitura, aproximando ou variando algumas de suas imagens) relevantes
do que chamamos de uma ontologia da imagem de Nancy e que se daria a partir de uma
energética do corpo e do corpus enquanto atributos de uma “pluralidade singular do ser”.
Esse prefácio escrito em agosto de 2007 nos permitiu ter a chance de compreender
melhor e mesmo de nos aproximarmos a uma leitura mais contundente do que chamamos
teatralidade maquínica da literatura e épreuve crítica na pesquisa que desenvolvemos.
Durante toda a pesquisa procuramos abordar imagens conceituais relativamente
diferentes, segundo cada um dos autores estudados que trataram todas desse “espaço” ou
desse intervalo diferencial ôntico-ontológico que condiciona uma troca relacional
“constitutiva” (ou “essencial” com ênfase nas aspas) entre uma res extensa e uma res
cogitans no sentido que nos oferece Nancy. Procuramos sempre perceber a força paradoxal
que se exerce nesse intervalo e a medida em que a própria linguagem é nesse campo limite
atravessada pela mesma potência de desobramento (désoeuvrée) ou, como chamamos em
outro lugar, potência (in)operante. Pois as literaturas que lemos de Clarice Lispector e
Maurice Blanchot não fazem senão teatralizar essa relação intervalar e desobrada entre a
coisa pensável e a coisa extensível na forma de uma literatura que chamamos limite e que se
dá a partir de uma expressividade ou força teatrológica da qual gostaríamos destacar as
figurações ou modulações de uma experiência que chamamos épreuve crítica.
Se uma egologia (e pensamos também no livro de Claude Morali) em Nancy pudesse
ser seguida de perto, naquilo que há de potente nessa estratégia de reflexão ou de épreuve,
ela abarcaria o que chamamos de potência do (in)operante, no sentido das imagens que são
tratadas nos textos que trabalhamos e que indicam uma possibilidade de pensarmos na
experiência (in)corpórea de um corpus que se desobra (désoeuvre) no intervalo (dos signos,
dos corpos, dos textos, da eclosão da existência) enquanto uma economia crítica dos afectos
na literatura.
Um índice ou vários índices importantes dessa economia seriam as próprias imagens
poéticas que implicariam ou descreveriam cenas de uma fragmentação do sentido e da
identidade do corpo operada pela expressividade agônica da voz narrativa desses textos
214
(corpus das obras de Clarice e Blanchot gravitados em torno a A paixão segundo G.H. e
Thomas l’Obscur) e das situações ou cenas-limite invocadas em seus personagens.
De que modo indiciar movimentos advindos de uma certa expressividade da relação
das próprias imagens e das condições paradoxais, incisivas ou de suspensão do sentido que
possam ocorrer nesse movimento dos corpos no seio da própria narrativa?
Escolheremos cenas que chamamos “inaugurais”, menos por sua hipotética carga
principiadora (mesmo que inegavelmente iniciadoras de séries e ou figurações a partir da
própria narrativa) do que por sua condição paradoxal de prenunciação, pressentimento e
eventualização do que chamamos de experiência literária.
As séries (desdobramento das cenas que indicam um complexo expressivo de uma
imagem afectiva) que procuraremos acompanhar na seqüência do desdobramento dessas
cenas inaugurais deveriam poder ser confrontadas entre si, entre os textos escolhidos para
serem lidos enquanto performances dessas linhas de criatividade e ficção (res fabula) que
são desdobradas na forma de poéticas-limite de uma existencialidade em processo ficcional.
Trabalho e desobramento (désoeuvrement) da imagem de um Eu-eu-outro (je-moi-autre) na
transferência incessante que se produziria como teatralidade de um corpo-corpus literário,
espécie de teatralidade enquanto alterografia (autrebiographie) de si como ser-para-fora-de-
si (être-hors-de-soi). A imagem de uma teatralidade teria a vantagem de se elaborar como
ambiência e espaçamento heterológico (hétérologie) do sentido e do processamento desse
intervalo relacional da “coisa extensa” e da “coisa pensável”, indiscerníveis na confluência
de uma leitura que se basearia numa idéia-performance ou numa épreuve imanente sobre o
pensável e o fático. Dando-se inexoravelmente como uma ontologia da imagem na forma de
um embate e de uma lógica das sensações sobredeterminantes e desfigurantes de uma
dialética do sensível e do inteligível. Esse é de algum modo o traço de uma teoria ontológica
da imagem que não pode mais se contentar com uma simples desaceleração da experiência
no devir, mas deve procurar “performar” uma relação diferencial ôntico-ontológica no seio
da experiência do pensamento, ou seja, o que chamamos por simplificação de épreuve da
própria experiência. Essa épreuve é o que a literatura-limite atinge por sua capacidade de
tornar o intervalo indiscernível da res extensa e da res cogitans, essa região de espaçamento
e temporalização crônico-aiônica que poderíamos chamar de res fabula ou coisa ficcional.
Compartilhando tanto uma existência contínua quanto descontínua no seio de um inter-
215
relacionamento dos existenciais imanente-transcedentais corpo-corpus-mundo, sendo corpus
a dimensão homoestática
235
da própria linguagem enquanto excrição corpórea de matérias e
imateriais.
A partir das imagens ficcionais limites de Clarice e de Blanchot acedemos à ordem
de uma modulação tanto vertical quanto horizontal das forças dadas nessa literatura pela
forma e a expressividade dos movimentos e das cenas que aí são operados por uma voz
narrativa que se interpenetra numa substancialidade da própria matéria narrada, aí
esburacando essa própria matéria, pela via e pela instauração de movimentos e imagens,
figurações e poéticas que se impõe mais como teatralidade afectiva do que por uma
descritibilidade de estados mesmo que poéticos. Nesse ponto, é como se o nível poético
ganhasse uma outra configuração da experiência operado como figuração do sensível e pelo
alcance das imagens que tocam os limites de situações de abjeção ou de impossibilidade de
pacificação inteligível, como, por exemplo, o relato de situações absolutamente paradoxais e
de performance de estados que só podem ser experimentados em sua significação caótica, e
mesmo bizarra, como no caso da cena do enterramento por si próprio de Thomas no capítulo
IV da primeira versão de Thomas L’Obscur.
Ou ainda, quando Thomas, um pouco antes dessa cena da escavação da própria cova,
e como procuramos desenvolver em outro lugar, quando em mais um encontro feliz, como
dizíamos há pouco, a respeito de um texto de Barthes sobre Bataille, enfim, quando
reencontramos uma cena em que baratas (cafards) sobem pelas costas de Thomas;
exatamente no momento em que o personagem se mistura em uma afectividade ambivalente
ou paradoxal em relação às palavras de um texto que ele lê em seu quarto.
Qual a imagem abjeta desse inseto que veremos teatralizar toda a agudez da épreuve-
limite de G. H., essa cena é armada exatamente no momento em que a voz narrativa de
desdobra no movimento propriamente de desvio do “eu” em direção ao “ele” e vice versa, (e
aí lembramos toda a questão do neutro blanchotiano em seu sentido gramatológico ou
semiótico mais imanente). A partir desse movimento, a coisa ficcional pode ter lugar no
235
Regulação bio-física dos corpos para manutenção anti-entrópica do sistema vital. O uso do termo é uma
estratégia para alcançarmos a potência reguladora imanente do termo, no sentido mais amplo que lemos o
pensamento de Nancy, qual seja, de uma ontologia da imagem (a partir de Blanchot) como necessidade bio-
política do ser humano na contemporaneidade. Giorgio Agambem trabalha essas questões por um viés ainda
mais próximo de Heidegger. Sloterdijk, por outro lado nos parece operar como limiar entre Heidegger,
filosofia francesa da diferença e o pensamento oriental.
216
limite de atração ou distanciamento, ou um e outro e em seu desvio. Como a teatralização da
épreuve de uma experiência do (im)pensável ou por outra, do encontro permeado e
atravessado pela imagem tensa e absolutamente performada dessa maquínica teatral do
próprio intervalo entre a coisa extensa e a coisa pensável, que não deixamos de tentar
descrever o movimento a partir da aproximação à poética do neutro de Blanchot:
Il entra avec son corps vivant dans les formes anonymes des mots, leur donnant sa
substance, formant leurs rapports, offrant au mot être son être, possédé après chaque
mot par le serpent de la phrase. Pendant des heures il se tient, comme un mort, avec à
la place des yeux de temps en temps les mots yeux : il était immobile, fasciné et
dévoilé. Pourtant, même lorsqu’il se fut abandonné et que, regardant son livre, il se vit
avec dégoût sous la forme du texte qu’il lisait, il garda la pensée qu’en lui, privée de
sens et presque de vie demeurait des mots obscurs qui veillaient profondément. Ces
mots poursuivaient une vie sourde qu’il nourrissait tout en y restant étranger. Dans
l’état incompréhensible où il se trouvait, alors que le mot il et le mot Je montait sur lui
comme des gigantesques cafards et, juchés sur ses épaules, commençait un
interminable carnage, il reconnaissait le travail de puissances indéfinissables qui,
âmes désincarnées et anges de mots, l’exploraient.
236
Essa cena não poderia apresentar melhor todo o movimento que procuramos
descrever pelas modulações de alguns representantes do pensamento contemporâneo,
preocupados em performar possibilidades de uma experiência do pensamento que possa
atravessar de pólo a pólo as falsas extremidades do pensável e nesse trajeto cruzar de cada
lado dessa linha infinita seus próprios limites. Essa cena também teatraliza certa perspectiva
limiar sobre um pensamento fenomenológico que torna-se cada vez mais o discernimento de
seu limite e a necessidade de sua transvaloração para uma experiência do limite e de uma
lógica da sensação e da imanência do estético como território do pensável e variação
contínua de si mesmo em direção aos seus limites.
Ou na cena inaugural de A paixão segundo G.H. onde a perda da terceira perna
teatraliza maquinalmente uma sobre determinação de uma falta em sua excedência
amputada e faltosa. Excedência que é a própria imagem da épreuvée (prova-da em sua
imanência sensacional digerida e experimentada enquanto reverberação da relação afectiva,
236
Cf. BLANCHOT, Maurice. Thomas l’Obscur. Gallimard, Paris, 2005, P. 45. “Ele entrara com seu corpo
vivo nas formas anônimas das palavras, lhes dando sua substância. Formando suas relações, oferecendo à
palavra ser seu ser, possuído junto a cada palavra pela serpente da frase. Durante horas ele esteve como um
morto, de tempo em tempo, em lugar dos olhos, palavras-olhos: ele estava imóvel, desvelado e fascinado.
Contudo, do mesmo modo em que ele se viu abandonado, e que, olhando seu livro, ele se viu com desgosto,
sob a forma do texto que ele lia, o pensamento que nele, privado do sentido e quase da vida, permaneciam
palavras obscuras que o velavam profundamente. Estas palavras perseguiam uma vida surda que ele nutria
restando nela totalmente estrangeiro. No estado incompreensível no qual ele se encontrava, no momento em
que a palavra ele e a palavra Eu nele subiam como baratas gigantes e, agarradas em sua costas, iniciavam uma
217
pulsional e não apenas material de um corpo-corpus) da experiência corpórea limite.
Vejamos o seguinte trecho de Clarice:
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei
onde engastar meu novo modo de ser – se eu for adiante nas minhas visões
fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária,
assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava
de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei
a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas.
Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da
terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por
mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
237
Essa cena é a própria teatralidade maquínica de uma passagem pela literatura, da
experiência do intervalar como presença paradoxal da vontade enquanto vontade de
performação da angústia. O angustioso deveria poder ser vivenciado na repetição de sua
emergência, mas é absolutamente necessário que ele se dê como instauração de uma
teatralidade que o forje em sua consistência intervalar, ou em sua eclosão ambivalente. O
impasse gera de início o espaço onde pode se dar o espaçamento (l’éloignement) desse
deslizamento, da linha de fuga ou do desvio da extensibilidade da coisa angustiosa
encenada, dramatizada numa temporalidade do pensável enquanto atualização ficcional. A
imagem bizarra que corresponde ao movimento de uma perda de algo aparentemente
desnecessário pode teatralizar o sentido da própria ausência como presença e materialidade
do relato dado na potência do poético.
Nessa imagem ou nesse jogo de imagens, o poético pode lidar com a dinâmica do
pulsional que se exerce no domínio paradoxal do intervalo. Um incorpóreo ficcional (perda
de uma terceira perna) dado como imagem dessa teatralidade limite do pensável, se investe
interminável carnificina, ele reconhecia o trabalho de potências indefiníveis que, almas desencarnadas, e anjos
de palavras, o exploravam.” (Tradução nossa. O itálico emcafard” é nosso)
237
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 1998. P.11-12. “Si je me reconnais et
reconnais mon authenticité, je serai perdue parce que je ne saurais pas où insérer ma nouvelle façon d’être – si
je progresse dans mes visions fragmentaires, le monde entier va devoir se transformer pour que j’y prenne
place.
J’aí perdu une chose qui était essentielle pour moi et qui désormais, ne l’est plus. Elle ne m’est plus nécessaire,
tout comme si j’avais perdu une troisième jambe qui jusqu’alors me rendait la marche impossible mais faisait
de moi un socle stable. J’aí perdue cette troisième jambe. Et je suis redevenue c’est que je n’avait jamais été.
J’aí retrouvé ce que je n’avait jamais eu : rien que deux jambes. Je sais que c’est avec deux jambes seulement
que je peux marcher. Mais l’absence de cette troisième jambe inutile me manque et m’effraie, c’est cette
jambe-là qui faisait de moi une chose sur laquelle je pouvais compter sans même avoir besoin de m’en
218
de uma potência de figuração fantasmática que é em suma a articulação estética de um
movimento próprio de uma literatura pensante.
Para além de uma qualidade linear e narratológica da cena e, ainda, da localização de
uma idéia diegética que deveria ser desdobrada, há uma complexa dramaticidade poética do
neutro - como originariamente e teoricamente em Blanchot - que justamente, suspende a
inteligibilidade dialética de um desdobramento lógico da cena, para a constituição de uma
teatralidade literária que será de certo modo “barroca”, tendendo a uma dramaticidade
agônica maquinalmente repetitiva e literalmente ou performativamente sem desfecho que
não instaure novamente, pelo grafismo dos seis traços no final do relato, o retorno possível
dessa cena fantasmática à origem infinitamente reencontrada nos seis traços de seu gesto
(re)inicializante (le geste ressassant)
238
.
Diríamos que essas duas cenas poderão, na parte II da tese, aceder a uma
potencialização de desdobramento expressivo de sua cartografia de afectos a respeito das
quais procuraremos épreuver criticamente a teatralização maquínica que para nós tem lugar
nesses dois textos de Maurice Blanchot e de Clarice Lispector e que performam ou
experimentam, no limite das figurações homeostáticas (L'homéostasie), o próprio de uma
indeterminação recorrente entre a instauração do afectivo e do emotivo como intercâmbio e
polarização insolúvel no seio do intervalo entre a coisa pensável e a coisa extensível, ou
seja, abre e acede ao fora como aproximação do (im)pensável, como literatura-limite.
Voz narrativa e voz narradora em L’entretien infini de Maurice Blanchot.
Em um determinado momento do texto, já quase no final do capítulo intitulado “La
voix narrative (le “il”, le neutre)” de L’entretien infini, há a indicação de uma diferença que
aparece apenas em uma frase entre parênteses, marca própria ao comentário, qual seja: “La
inquiéter. » Cf. LISPECTOR, Clarice. La passion selon G.H., Traduit par Claude Farny, des Femmes,
Paris, 1998. p. 21-22.
238
Comentamos em outro lugar, a lamentável troca desses traços por reticências na tradução da edição francesa
da editora Des Femmes que contudo, eficientemente traduz Claude Farny, sob o título de La Passion selon
G.H. que aqui referimos.
219
voix narrative (je ne dit pas narratrice) tient de la son aphonie”
239
. Blanchot diferencia a voz
narrativa - tema de todo o capítulo dedicado justamente a essa discussão e suas relações
com a figura conceitual do neutro - de uma voz narradora (voix narratrice).
Essa diferença se dá no contexto da importância maior de todo o desenvolvimento
especulativo sobre o estatuto complexo e diferido da posição ou da topológica, dessa
verdadeira maquínica móvel e dinâmica que significa a voz narrativa no conjunto do
pensamento blanchotiano.
Blanchot parte do estatuto de impersonalidade relacionado com uma topológica do
uso da terceira pessoa no relato (a passagem do “eu” ao “ele” como modo próprio de uma
significação fabular narrativa) que põe em jogo historicamente a narrativa épica, passando
por sua mutação semiológica moderna na forma do romance de Cervantes e transformando-
se, finalmente, nas formas contemporâneas do relato (Récit), conhecidas em geral como
associadas à dissolução da posição e do estatuto ontológico do narrador que se desenvolve
até nossa contemporaneidade.
A voz narrativa não é a voz narradora no sentido específico em que essa última é
associada ao modo particular e retórico com que a “história” pode se particularizar numa
239
Cf. BLANCHOT, Maurice. L’entretien Infini. Paris, Gallimard, 1969, p. 565 (Itálico nosso). Anteriormente
Blanchot se remetia à idéia de uma atopía e afonia complexas, resultantes desse deslocamento atualizante do
signo no seio de uma virtualidade narrativa enquanto processo estático e dinâmico em relação ao tempo. Esse
movimento singular que porta a voz narrativa seria ora uma atualização centrífuga ora uma reatualização
centrípeta numa relação de leitura que teria no desejo de ficção e na permanência dessa distância, a promessa
reivindicada de um retorno à matéria narrada. Essa afonia é imbricada no ritmo próprio da instância paradoxal
da voz narrativa (le voix narrative) enquanto potência do neutro, no que concerne à velocidade e fixidez,
lentidão e volatilidade em relação ao regime interno de suas reverberações, seja em função das hierarquias
heterogêneas postas em tensão por suas forças narradoras (le voix narratrice), seja equacionando sem fim (pelo
movimento de atração ou repulsão das forças descritivas do “il” como signalética do neutro) os gestos e a
teatralidade dramática de seus personagens, possivelmente promovida por essa vocalização atópica e
paradoxalmente afônica a qual se remete Blanchot enquanto instância signalética própria à voz narrativa. Ou
seja, nessa diferenciação não se trata aqui da evidência quase “física” da voz que se exerce co-presentemente à
digese de um narrador ou dos personagens constituídos na ficção, mas do movimento instancial e ontológico
de um regime poético e semiológico de coesão e repulsão de forças corpóreas e extra-corpóreas as quais a voz
narrativa opera uma captura e uma distribuição de forças, diagramadas ou cartografadas enquanto uma trans-
subjetividade generalizada. Citamos o fragmento que envolve a frase : «Le « il » narratif , qu’il soit absent ou
présent, qu’il s’afirme ou se dérobe, qu’il altere ou non les convention d’écriture – la linéarité, la continuité, la
lisibilité – marque ainsi l’intrusion de l’autre – entendue au neutre _ dans son étrangéte irreductible, dans sa
perversité retorse. L’autre parle. Mais quand l’autre parle, personne ne parle, car l’autre, qu’il faut se garder
d’honorer d’une majuscule qui le fixerait dans un substantif de majesté, comme s’il avait quelque présence
substantielle, voire unique, n’est précisément jamais seulement autre, il n’est plutôt ni l’un ni l’autre, et le
neutre qui le marque, le retire des deux, comme de l’unité, l’établissement toujours au dehors du terme, de
l’acte ou du sujet où il pretend s’oufrir. La voix narrative (je ne dis pas narratrice) tient de là son aphonie. Voix
qui n’a pas de place dans l’ouvre, mais qui non plus ne la surplombe pas, loin de tomber de quelque ciel sous
la garantie d’une Transcendance supérieure [...] »
220
pluralidade de vozes ou de personagens de uma narrativa. Aí se dá uma dinâmica específica,
mais ou menos matematizável, de suas recorrências, de seus formas e de suas funções. A
voz narrativa sobre a qual especula Blanchot, refletindo sobre seu desenvolvimento
semiológico e histórico, se relaciona a toda a pesquisa do estatuto móvel e diferencial que
co-existe em uma imanência da matéria narrada. Não se trata simplesmente da condição ou
do lugar onde uma determinada seqüência de diálogos ou de frases se dá nesse ou naquele
personagem, em tal ou qual narrador da história, mas da matéria dinâmica que por sua
natureza iterável faz da linguagem uma espécie de substância tanto transitiva quanto
intransitiva, dependendo de seus modos de conformação expressiva, ou, em outra chave
teórica, dependendo da capacidade de condução e constituição das forças sensíveis que
teriam lugar no relato.
A passagem do “eu” ao “ele”
240
não intercambia simplesmente uma relação com um
outro eu ou o que Blanchot chama de desinteresse estético, critério metafísico kantiano que
funcionou como fundo teórico e filosófico para a literatura quase no fim do século XIX. Há
uma outra série de relações nessa passagem que são bem mais rarefeitas e que se situam
como fundo dinâmico e móvel na narrativa e que caracteriza justamente a relação da
linguagem em geral e especificamente da linguagem literária como de ordem ontológica,
semiológica e performativa.
Uma matéria narrada pode ser dita de diversas formas e seria essa variação de
possibilidades o que conteria uma indemonstrabilidade do que - ao mesmo tempo em que é
contado diferentemente - não pode ser em si mesmo narrado como a singularidade autêntica
ou o processo próprio do narrar. Vale dizer que o que é sempre tematizado enquanto narrado
se desfaz de seu centro justamente no momento em que se narra pelas das funcionalidades
plurais que operam a partir de uma voz narradora deste ou daquele narrador ou personagem.
A voz narrativa é algo que se situa no insituável dessas diferenças entre diferentes
narradores.
Se a narrativa épica se desdobra ou se cinde na passagem para o romance moderno, e
se isso acorre a partir de uma relação de contraponto que passa a existir de uma narrativa
que relata o próprio de uma diferença entre um realismo emergente enquanto banalidade e
240
Em português não é possível aceder à especificidade semiológica neutra do pronome francês “il”, que
também tem outras funções e pode desaparecer numa tradução para o português sob a forma desinencial. Por
exemplo na frase: Qu’est-ce qu’il y a?, temos: O que há?
221
desencanto em relação ao épico, é toda uma ambiência de forças estéticas que passa a ter
lugar e a se rearranjar na forma de uma voz narrativa insituável e que tem como potência
ontológica o próprio estatuto de uma espécie de neutralidade ativa no seio da matéria
narrada, já destituída nesse momento de sua especificidade estética e histórica épica.
O “ele” opera, nessa passagem ao romance moderno, a instauração de uma descrição
do “quotidiano inexplorado, o que ocorre quando nada acontece, o curso do mundo tal como
ele não é percebido, o tempo que escoa, a vida monótona e sumária.”
241
O “ele” também
passa a instaurar na narrativa uma série de “pequenos egos atormentados, infelizes porém
felizes em sua infelicidade”, dando a possibilidade do romancista renunciar a dizer “eu”, e
“delegando esse poder a “outros”
242
.
O indivíduo passa a se afirmar em “sua interioridade subjetiva, em sua liberdade
interior, sua psicologia”. Essa passagem, nesses termos, pressupõe já uma ideologia que
indica um hipotético poder do indivíduo contar ou descrever o mundo na medida de sua
própria individualidade, “de suas particularidades individuais”
243
.
Outra relação importante que explora Blanchot em sua reflexão sobre o estatuto
ontológico e semiológico da voz narrativa, é a diferença entre uma impersonalidade do
romance impessoal do tipo flaubertiano e a distância estética que ela pressupõe em relação
aos procedimentos retóricos que constroem o romance. Uma distância programática é
meticulosamente formulada quando da produção e da escritura desses romances, seja em
Standhal, Balzac ou Flaubert. Essa distância ou essa necessidade de distanciamento do autor
em relação à narrativa advêm primeiramente do um ideal estético que observa no
desinteresse, um critério fundamental para o juízo do gosto.
Blanchot explica ao situar o contexto da produção estética do romance realista do
século XIX:
Ce qui est raconté a valeur esthétique dans la mesure où l’intérêt qu’on y prend est un
intérêt à distance ; le désintéressement – catégorie essentiale du jugement de goût
depuis Kant et même Aristos – signifié que l’acte esthétique ne doit se fonder sur
aucun intérêt, s’il veut en produire un qu’il soit légitime. Intérêt désintéressé.
244
O ideal continua aquele do teatro clássico, onde “o narrador existe apenas para
levantar a cortina, apresentando nesse momento a possibilidade da encenação, onde a peça
241
Cf. BLANCHOT, Maurice. L’entretien Infini. Paris, Gallimard, 1969, p. 559.
242
Idem.
243
Idem.
244
Op. Cit., p. 560.
222
aí acontece como por si só, “no fundo de sua eternidade” e como sem narrador, “que não
conta nada e onde o espectador também não participa a não ser como aquele que apenas
observa, assistindo a tudo sem tomar parte de nada.”
245
A outra razão é a de uma idealidade
da obra de arte. A obra deve existir de um modo sublime, como que por ela mesma, em um
em-si distanciado do mundo; “coisa irreal em um mundo fora do mundo”. Seria necessário
portanto, a deixar livre de qualquer relação com a realidade produtiva, moral ou contextual
de sua escritura. Seria necessário “mantê-la em seu estatuto de objeto imaginário.”
246
Blanchot observa o caso de Thomas Mann. Esse escritor, não obedece à regra do
distanciamento, e mesmo elabora de modo crítico uma série de intervenções e intrusões no
que se passou a chamar de construção da ilusão romanesca, ou seja, nessa série de
procedimentos que criam um distanciamento entre uma tecnicidade do narrar e a matéria
narrada com vistas a produzir um campo quase sublime, mundo imaginário da história
romanesca. Para Blanchot esse procedimento de entrada irônica do narrador no cerne da
matéria narrada:
Represente l’intervention du narrateur contestant la possibilité même de la narration –
intervention, par conséquent, essentialement critique, mais sur le mode du jeu, de
l’ironie malicieuse.
247
A impessoalidade operada na ilusão narrativa de Flaubert, mesmo que atravessada
por uma complexidade de seus modos narrativos, ainda operava no modo de uma afirmação
da distância entre narrador e matéria narrada, “deixando apenas mostrar, deixar ser e fazer
existir, sem contudo dar lugar ao questionamento sobre os limites e os modos da ordem
narrativa”
248
.
Thomas Mann, em seu caso particular, e por isso mesmo analisado por Blanchot,
opera numa espécie de sobredeterminação dessa lógica realista do distanciamento narrativo
de Flaubert. Thomas Mann “sabe bem que a ingenuidade foi perdida. Ele procura então a
restituir, não deixando em silêncio a ilusão, mas ao contrário, a produzindo, a tornando tão
visível que ele joga com ela, assim como ele joga com o próprio leitor e, desse modo, o atrai
para dentro do jogo”. Thomas Mann opera, nesse sentido, uma sobredeterminação da ilusão
245
Idem.
246
Idem.
247
Op. Cit., p 561.
223
narrativa do distanciamento estratégico do narrador sobre a matéria narrada, operado no
modo de uma potência ilusória calcada de modo irônico no desdobramento da própria ilusão
de uma ausência de ilusão de distanciamento.
Blanchot resume o procedimento de Thomas Mann que desdobra o distanciamento
estético presente no romance tradicional do século XIX por meio de outra estratégia e como
que, por assim dizer, transformada no próprio modo de sua constituição semiológica.
On peut donc dire que si la distance esthétique est chez lui dénoncé, elle est aussi
annoncée, afirmé par une conscience narrative qui se prend pour théme, alors que dans
le roman impersonnel plus tradicionnel, elle disparaissait en se mettan entre
parenthéses. Racconter allait de soi.
249
Mas no início dessa reflexão sobre o distanciamento estético do narrador em relação
à matéria narrada, Blanchot fazia referência à possibilidade, mesmo que não exatamente
ótima, de se comparar, para daí extrair justamente a diferença, o romance de tipo
flaubertiano, este, como vimos, calcado na idéia da impessoalidade e do distanciamento
narrativos com o romance de Kafka.
É nesse momento do texto de Blanchot, ou seja, a partir da reflexão sobre a escritura
de Kafka, que ocorre a entrada mais promissora para um entendimento mais elaborado da
questão ontológica e semiológica da voz narrativa enquanto espaço poético de existência de
uma potência do Neutro - este conceito operando justamente como articulação dúplice de
discernimento topológico de uma caracterização possível entre a voz narrativa e sua
potência semiológica paradoxal em termos da dinâmica de forças que compõem a máquina
narrativa na expressividade do que é elaborado aí como voz narrativa.
Com Kafka, a questão do distanciamento entra numa relação potencialmente mais
complexa ainda do que com Thomas Mann. O distanciamento estético entraria com Kafka
como um novo estatuto discursivo ou semiológico, no que Blanchot chama de uma
“estranheza irredutível na esfera mesma da obra.”
250
Essa estranheza irredutível é o espaço
próprio ou, diríamos, o plano de imanência onde se desenvolve como experiência de
linguagem literária, a narrativa.
248
Idem.
249
Idem.
250
Op.Cit., p. 562.
224
Essa experiência é “o meio próprio ao mundo romanesco, o espaço onde se desdobra,
numa simplicidade única, a experiência narrativa, aquela que não contamos, mas que aí está
em jogo quando narramos.”
251
Blanchot, ao discernir melhor essa mutação que ocorre no que se constituiu
historicamente como operação própria de distanciamento do modo narrativo e da figura do
narrador, continua:
Distância que não é somente vivida como tal pelo personagem central, sempre a
distância dele mesmo, como está a distância dos eventos que ele vive ou dos seres que
ele encontra (isso não seria ainda a não ser a manifestação de um eu (moi) singular);
distância que o distancia ele mesmo, o separando do centro, porque constantemente
ela descentra a obra, de forma imensurável e indiscernível, ao mesmo tempo que ela
introduz na narração mais rigorosa, a alteração de uma fala outra ou do outro como
fala (como escritura).
252
O movimento dinâmico de descentramento que essa nova distÂncia paradoxal do
narrador kafkiano instaura, gera como primeira conseqüência uma desestabilização no
estatuto ontológico do leitor. O leitor, nesse embate, não pode mais se situar como
confortavelmente instalado numa relação sublimada e transcendente em relação à matéria
narrada. Um estranho longínquo torna-se o jogo próprio da relação operada pela voz
narrativa que aí se desdobra. O leitor não pode mais se desinteressar, ou se distanciar
gozosamente da narrativa, mesmo que ele continue a gozar diferentemente dessa nova
relação dinâmica e paradoxal que instaura o narrador ou o personagem principal de Kafka.
Blanchot pergunta então em que tipo de relação recai esse leitor no interior desse
novo jogo de relação de uma distÂncia paradoxal entre narrador e matéria narrada em
Kafka. É justamente aí que começamos a compreender o desfio de uma potência paradoxal
desdobrada e operada pela voz narrativa desdobrada pela escritura kafkiana. Se não é mais
possível um desinteresse ou um distanciamento discernível e bem compreensível em relação
ao narrado da história é exatamente essa impossibilidade que abre uma nova relação
ontológica do leitor com a narrativa.
Justamente, o que concerneria ao leitor nessa relação de um novo e paradoxal
distanciamento do narrador (e do leitor) em relação à matéria narrada, é algo que por essa
251
Idem.
252
Idem.
225
mesma relação faz com que talvez essa transformação não concerne a ninguém. É como o
diz Blanchot;
uma relação de “não-concernível” mas em relação ao que, de volta, não mais é
possível tomar facilmente, as distâncias, ele que não saberia se situar de uma maneira
justa em relação àquilo que não se dá nem mesmo para o insituável. Como, então, se
separa ele da absoluta distância que retorna como nela mesma toda separação? Sem
ponto de apoio, privado do interesse da leitura, não lhe é mais permitido observar as
coisas de longe, de manter entre elas e ele esta distância que é a do olhar, porque o
longínquo, em seu presente não-presente, não se dá nem de perto nem de longe e não
pode ser objeto do olhar. Daí em diante não é mais de visão que se trata. A narração
cessa de ser o que dá a ver pelo intermédio e sob o ângulo de visão de um ator-
espectador escolhido. O reino de uma consciência circunspeta - da circunspeção
narrativa (do “eu” que observa e tem tudo à sua volta) – é sutilmente transtornado,
sem contudo, bem entendido, terminar.
253
Para Blanchot, com Kafka somos ensinados que narrar põe em jogo o neutro. Há na
passagem do “eu” ao “ele” e nas mutações que a matéria narrativa sofreu historicamente
uma dinâmica própria entre uma função narradora do narrador e uma ambiência ou um
processo semiológico que tem lugar na existência de uma voz narrativa que engloba tanto
uma pluralidade de vozes narradoras quando uma unidade paradoxal que pode “reunir” as
diversas experiência narradoras e seus travestimentos personais, numa instituição paradoxal
que põe em jogo uma potência semiológica neutra.
O “ele” não nomeia apenas uma terceira pessoa ou estabelece uma cisão necessária
para o entendimento de uma história imaginada por um Eu que poderia se multiplicar numa
série de personagens para melhor descrever uma história em toda sua complexidade. Isso
seria justamente argumentar a favor de uma simples relação possível do gênero romanesco
realista. Blanchot continua:
Esse “ele” não é também “apenas uma simples cobertura de uma impessoalidade”. O
“ele” da narração onde fala o neutro não se contenta de tomar o lugar que ocupa o
sujeito, que este seja um “eu” declarado ou implícito ou que seja o evento tal qual tem
lugar na sua significação impessoal. O “ele” narrativo destitui todo sujeito, do mesmo
modo que ele desapropria toda a ação transitiva ou toda a possibilidade objetiva.
Esse “ele” que performa a potência própria do neutro pode ser pressentido sob duas
formas:
A fala do relato (recit) sempre nos deixa pressentir que o que se narra não é narrado
por ninguém: ela fala (no) neutro. 2) no espaço neutro do relato (recit) os portadores
da fala, os sujeitos da ação, aqueles que tinham outrora o lugar dos personagens –
caem em uma relação de não-identificação com eles mesmos: alguma coisa lhes
acontece que eles não podem retomar a não ser que renunciando seu poder de dizer
“eu”, e isso que lhes acontece sempre já lhes aconteceu: eles não saberiam dar conta a
253
Idem.
226
não ser que indiretamente, como de um esquecimento deles mesmos, este
esquecimento que os introduz no presente sem memória que é aquele da fala
narrante.
254
A voz narrativa é, portanto, uma instância semiológica e ontológica, tomando
por esse termo sua mais poderosa acepção de volatilidade e de não fixidez
topológica, ao mesmo tempo em que esse conceito constitui também uma localização
sempre mais ou menos informativa de um grau de possibilidade de recurso
heurístico, em todo caso, jamais jurídico, mas de qualquer modo, passível de uma
relação judiciosa no sentido da elaboração especulativa que torna possível, com
Blanchot, desdobrar um modo de acesso à sutileza filosófica que tem lugar a partir
da noção de voz narrativa condutora de uma potência do neutro enquanto
conceptualidade teórica e performática da literatura.
Será no sentido agregador e dinâmico de uma noção performativa da
linguagem literária que procurarei terminar essa breve passagem pela exploração que
faz Blanchot pela maquínica semiológica própria à instância da voz narrativa . Pois é
justamente a partir do exemplo retirado da obra de Marguerite Duras que Blanchot
torna sua a performatividade ficcional do literário expresso na citação e nas notas
finais do texto.
O “ele” (“il” em francês) - enquanto potência neutra da linguagem, em sua execução
ou em seu evento de relato, ou em sua situação narrada – é antes um vazio na obra,
esta palavra-ausência que evoca Marguerite Duras em uma de suas narrativas, “uma
palavra-buraco escavada no centro de um buraco, deste buraco onde todas as outras
palavras deveriam ser enterradas”. [...]
Nos não poderíamos o dizer, mas poderíamos o fazer ressoar – imenso, sem fim, um
badalar vazio
255
... É a voz narrativa, uma voz neutra que diz a obra a partir deste lugar
sem lugar onde a obra se cala.
256
A voz narrativa elabora como instância teórica para Blanchot a possibilidade
impossível de desconcertar a própria programática de um certo axioma de atribuição
positiva da linguagem. Seja este axioma que não se pode negar nada que não seja
previamente enunciado. Pois bem, a voz narrativa é um desvio mesmo desse axioma,
pois que nessa operatória instancial de uma especulação sobre um estatuto
ontológico e semiológico da voz narrativa o que está em jogo é da ordem de uma
sobre-suspensão do sentido ou de uma topológica originária da matéria narrada. Não
254
Op. Cit., p. 564.
255
Blanchot cita apenas o título da obra : Le Ravissement de Lol. V. Stein (Gallimard).
227
há mais como se localizar de forma estruturada numa suposta origem ou
espacialidade constitutiva da e na narrativa. Um suposto Eu fundador é banido para
sempre para o exterior imponderável de suas reverberações num outro constitutivo
de toda possibilidade identitária. O “ele” carrega o sentido da matéria narrada sem,
contudo, se fundar a si mesmo como originário desse transporte, sempre descentrado
na passagem do “eu” ao “ele” discursivos.
Não se trata de negatividade no sentido de especulação sobre um possível
estatuto acentrado de uma instância da voz narrativa mas, justamente, de uma
sobresuspensão de toda possibilidade de conclusão efetiva e pragmática dessa
instância narrativa e justamente não narradora. O que faz entrever que o narrado ou a
matéria narrada sempre estará de algum modo subjugado a essa força de atração e de
expulsão a um só tempo que faz movimentar o próprio universo diegético do relato
num sentido sempre para além da própria objetividade material ou ficcional posta em
narração pelo narrador ou pelos personagens.
A voz narrativa contém estranhamente o narrado e o narrador, e por isso
mesmo, estes, matéria narrada e narrador que poderíamos descrever como uma
espécie de incorporação tópica da voz narrativa numa fala narradora, ao serem
contidos numa espiral infinita, mantêm-se na distância também infinita que essa
mesma relação faz sobrevir, (ou seja fragmentação atópica do sujeito narrador na
modernidade a partir da potência do neutro como infinidade de composições de um
“ele”) fundando uma tensão neutra que faz da troca ou da dinâmica de suas
atribuições semiológicas nesse espaço narrativo - ou seja, relação da voz narrativa e
da voz narradora como produtora do movimento próprio da matéria narrada - a
ordem exata de sua potência de suspensão do sentido e de constituição de um novo
espaço narrativo operado nesse momento por uma operatória ficcional paradoxal.
Essa dimensão que porta o neutro e que é performada pela voz narrativa,
carrega o sentido e desdobra o espaço teórico complexo entre semiologia do texto
literário e teorias psicanalíticas em que se situa o trabalho de Dominique Rabaté.
Ao empreender todo um minucioso percurso teórico sobre a problemática da
constituição do sujeito no campo da narratologia, Rabaté, investiga bases teóricas
256
Op. Cit., p. 565. O comentário entre parêntese é nosso.
228
fenomenológicas e psicanalíticas no que concerne ao estatuto denso e complexo do
sujeito e de suas inscrições nesses diferentes planos especulativos.
Desse modo, podemos ler, junto com Rabaté, uma crítica da perspectiva
psicanalítica de Nicholas Abrahan e Maria Torok no que concerne à aproximação
específica ao estatuto complexo de uma economia do sujeito na voz narrativa e sua
posição programática na teoria da literatura contemporânea na qual Rabaté trabalha
em Vers une littérature de l’epuisement e Poetiques de la voix
257
.
[…] l’opaque gratuité de la distance [Blanchot utiliza o mesmo termo para
caracterizar o jogo complexo que ocorre na voz narrativa] qui separe le sujet
réfléchissant d’avec soi-même, distance mettant em péril jusqu’aux évidences fondées
sur une illusoire proximité à soi. Condition sine quoi non du rapport à soi, l’hiatus qui
sépare le « je » d’avec le « me » échape donc nécessairement à la thématisation
réflexive. C’est dans ce hiatus, c’est dans cette non presence à soi, condition même de
la reflexivité que le phenomenologue prend pied sans savoir pour escruter, depois
cette terra incognita, son seul horizon visible, (…)
258
Rabaté aponta a reflexão psicanalítica sobre o estatuto complexo dessa
economia instável do sujeito no sentido de justamente perceber nesse mesmo espaço
o desdobramento da questão relacionado também constitutivamente ao domínio
narratológico. Ele acrescenta ao questionamento pontual de Abrahan e Torok sobre a
problemática do sujeito, a parte que caberia, e eu diria essencial, também à teoria
literária e àvoz narrativa enquanto desdobramentos específicos de uma economia
egológica mais ampla. Ao citar Abrahan e Torok, informando o lugar paradoxal da
inscrição de um sujeito sempre dessimétrico a si mesmo numa economia topológica
da subjetividade, Rabaté aproxima nesse mesmo movimento o plano narratológico
do recit no qual opera a voz narrativa como instância de jogo dessa subjetividade
dinâmica.
Comment inclure dans um discurs, quel qu’il soit, cela même qui, pour en être la
condition, lui échaperrait par essence ? Si la non presence, noyau et ultime raison de
tout discurs, se fait parole, peut-elle, - ou doit-elle, - se faire entendre dans et par la
présence à soi ? Telle apparaît la situation paradoxale inhérente à la problematique
psychanalitique. (p.208)
259
No mesmo parágrafo, Rabaté complementa : «Je serai tenté d’ajouter,
inhérente aussi à la problématique du récit.»
260
257
RABATÉ, Dominique. Poetiques de la Voix. Paris, Jose Corti, Les Essais, 1999.
258
RABATÉ, Dominique. Vers une Littérature de l’épuisement. Paris, José Corti, 2004, pp. 65-6.
259
Op.Cit., p. 66. Ibid . ABRAHAN, Nicolas et TOROK, Maria. L’écorce et le Noyau. 1978. P.208.
260
Op.Cit., p. 208.
229
Eis, portanto, o domínio ontológico e semiológico das narrativas às que
Blanchot se referia conceitualmente como recit - termo que singulariza teoricamente
a diferença de estatuto onde opera a potência própria à instancia da voz narrativa e de
seus efeitos de voz
261
, efeitos estes que também são efeitos de uma potência de
neutralidade quanto de uma teleologia da enunciação no recit do século XX. Recit
ficcional que opera o sentido do relato, da estória ou da narrativa ficcional, portanto,
e que põe em movimento o efeito próprio de uma voz narrativa portadora do Neutro;
põe em movimento a instância narrativa enquanto alegoria e dramaticidade complexa
do sujeito como corpo e corpus de escritura, no agenciamento maquínico de
subjetivação onde opera a instabilidade paradoxal de um “complexo egológico”
tríplice (Eu-eu-outro) transubstancializado – e onde toda uma teatralidade maquínica
desse Corpus de escritura é exposta, inscrita e performada na forma do que foi
chamado aqui de voz narrativa, portadora de uma poética do neutro.
261
Dominique Rabaté trabalha no primeiro capítulo de seu livro Vers une Littérature de l’épuissement,
justamente o estatuto teórico dessa voz à qual chama efeito da voz. O sentido do termo efeito deverá ser
pensado no que há de transposição e dinamicidade de um movimento da narrativa que extrapola uma origem
retórica e histórica de posição ontológica de um hipotético sujeito autor ou escrevente “por trás” do texto
literário. O recit - tomando o termo blanchotiano que se fez valor teórico ou, se se quer, “narrativa ficcional”
segundo sua tradução imediata - da metade do século XX, põe em prática uma produção ficcional que passa a
reorientar a problemática teórica de uma posição ou estatuto ontológico do narrador na instância narrativa.
Essa reorientação se dá no sentido da produção de uma teorização mais refinada de uma topologia paradoxal
do sujeito e de sua posição na instância narrativa, esta pensada a partir de toda a densidade teórica das
discussões fenomenológicas e psicanalíticas sobre o estatuto ontológico do sujeito, do ego e de uma possível
reverberação desses conceitos no campo literário. Essa reorientação teórica e experimental da crítica e da
literatura se dá principalmente a partir de conceitos como os de cena e teatralidade ou performance dos
elementos que coexistem com o conceito de voz narrativa no interior do relato ficcional ou recit. A instância
narrativa passa a dar lugar a se pensar todo um jogo complexo de oposições não necessariamente dialéticas,
entre o plano narrativo que tem lugar na tensão específica que geram os efeitos da voz narrativa e um plano
instável e paradoxal da inscrição da própria experiência narrativa que se localiza no que chamamos escritura e
que carrega em si toda a complexidade das discussões sobre o estatuto ontológico e semiológico do sujeito tout
court. É com base na procedência dessas imagens conceituais da “cena” e da “performatividade” elaborada
enquanto “dramática” e “teatralidade” da voz narrativa, que pensamos associar a conceptualidade blanchotiana
a um movimento comparativo e de certo modo “teatral” entre as ficções de Clarice Lispector e Maurice
Blanchot. Pois o efeito de voz se dá finalmente como uma certa sobredeterminação a uma encenação
participante do próprio movimento da escritura enquanto relação de um corpo escrevente e um corpus literário
transubstancializado pelas imagens da própria ficção. Não se trataria de reparar ou de analisar
fenomenologicamente a distância própria desse corpo “escrevente” em relação ao estatuto paradoxal do
narrador. Se trataria de perceber a literatura e seu processo ethologico de captura de forças, como construção
de uma instância de escritura crítica que se relaciona ao poder de captura que uma experiência estética pode
elaborar sobre um plano múltiplo de forças vitais, ou seja, no sentido espinozista e nietzscheano em que opera
Deleuze, o plano de imanência próprio à vida. Sobre o sentido do conceito de ethológico numa análise
deleuzeana da arte em geral. Cf. SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et L’art. Paris, PUF, 2005, p. 79.
230
Nesse espaço abstrato e a um só tempo imanente do registro ficcional e
literário, conflui de forma co-presente a própria experiência crítica blanchotiana ou
nomeada aqui épreuve crítica que se desdobra na operação paradoxológica de
descrição dos movimentos complexos de captura, estabilização e fragmentação das
forças estéticas, provadas ou experimentadas na narrativa literária de nossa
contemporaneidade, a partir justamente dos efeitos de uma voz narrativa deslocada e
descentrada finalmente de uma pseudo-origem transcendente à posição de sujeito
escrevente pleno e autônomo.
Imagem, Alegoria e Teatralidade.
Mesmo que entre as literaturas de Clarice Lispector e de Maurice Blanchot existam
diferenças muito grandes de estilo e de preocupações literárias, estéticas e filosóficas,
gostaríamos de configurar ou de re-configurar alguns dos traços ou imagens que se
trabalham mais adiante.
Se em termos de escritura ou de crítica, trata-se sempre de repetir, seja numa
diferença de espaço e de tempo - apesar de que estes escritores são contemporâneos um ao
outro no que diz respeito à grande parte de suas produções
262
- as imagens ou as idéias, os
gestos que poderiam dizer respeito à teatralidade maquínica desses textos
, procuramos
localizar alguns traços conceituais que poderiam nos auxiliar na re-inscrição e re-figuração
(mesmo que des-figurante e in-figurável) dessas literaturas, em um momento onde o que se
explicita é a emergência mesma de um pensamento da imagem ao lado e co-presentemente a
uma espécie de corporificação do próprio pensamento observado ou performado como
trabalho de subjetivação na e da escritura literária.
Não adentraremos aqui na densidade conceitual que o termo alegoria exigiria pela
sua própria historicidade. A localização de certos momentos de ruptura ou de continuidade
que uma teorização crítica sobre a “máquina simbólica” da alegoria poria em prática será
tratada a partir de teorias posteriores ao estruturalismo, teorias que entendem o sentido como
262
Clarice Lispector publica seu romance inaugural Perto do Coração Selvagem em 1943, ano que de forma
marcante representa a emergência de uma transformação estética decisiva na literatura brasileira. Mas alguns
contos reunidos apenas depois da morte da escritora em A bela e a Fera, publicado apenas em 1979, traçam
este começo ou “commencement” de uma escritura que coincidentemente surge nos anos de 1940 e 1941, ano
de publicação de Thomas l’Obscur de Maurice BLanchot.
231
produto do jogo de processos de significação, sem estabelecer um telos ou um centro que
não seja reiteradamente redisponibilizado pela própria tarefa crítica.
Desejamos, antes, partir da significação ou da significância contemporânea de
alegoria, que lemos a partir da problematização ou da teorização que faz Jean-Luc Nancy da
idéia de imagem em Au fond des images
263
e do próprio uso ou performance poética e
teatrológica que, segundo entendemos, faz Philippe Lacoue-Labarthe em L’«Allégorie»
264
.
Se “la figuratuon par l’autre (l’allégorie, la répresentation) est la seule voie d’accés à
l’infigurable (le même, le soi même égaré) – mais ne l’est que distanciée de sa propre
« figuration »” é nessa acepção que seguiremos trabalhando com nosso bloco conceitual
expresso nos termos de uma teatralidade ou maquínica da literatura.
Pois se trata de perceber de forma compacta e móvel, em bloco de significância
digamos assim, o movimento de fuga e de registro sobre o próprio processo da escritura
enquanto máquina simbólica dinâmica; criação de espaço e de tempo enquanto espaçamento
entre força de criação e registro dessa criação através do risco de uma passagem do corpóreo
inaudito e in-figurável de uma individuação ao despersonalizante puro de uma deriva porvir
do texto literário.
Pois se o texto invoca algo de personalíssimo em sua vinda na forma de fabulação e
de construção dinâmica de um subjectil literário, esse personalismo ou essa idiossincrasia
não é nunca algo apenas de positivo que pudesse permanecer atrelado a uma fantasia de
unidade e de identidade a si pura. Ao se espacializar no confronto com sua dolorosa relação
com a figuração ou a des-figuração “plástica” (aqui pensamos na dramática e na plasticidade
do signo) da linguagem, essa identidade se provoca e se estende a si mesma até sua
desqualificação positiva, se entremeando como destinação a sua pseudo-origem esquizo-
ontológica
265
, digamos assim, calcada na representação móvel de uma identidade constituída
numa dinâmica de diferença arqui-originária.
Assim, a literatura revela sua catastroficidade onto-significante, revertendo o desejo
originário de particularização e de individuação ao seu “oposto” complementar na forma de
263
NANCY, Jean-Luc. Au fond des Images. Paris, Galilé, 2003.
264
LACOUE-LABARTHE, Philippe. L’« Allégorie » suivi de Un commencement par Jean-Luc Nancy. Paris,
Galilé, 2006.
265
Pensamos a partir desse conceito em todo o movimento ou posicionamento da voz narrativa numa
perspectiva blanchotiana e que Nancy desenvolve em sua leitura dos textos literários de Lacoue-Labarthe em
Un commencement.
232
uma desfiguração progressiva e mesmo constitutiva de seu próprio movimento, ao ser
lançada ao porvir de suas possíveis e impossíveis leituras, se promete ao movimento
tetralógico e alegórico calcado na diferença constitutiva da própria voz narrativa.
Há uma velocidade infinita que anima o próprio símbolo funcionando como cálculo
vertiginoso e ilimitado entre três situações do sentido da alegoria: a) referência fantasmática,
b) significante apropriado em séries ou blocos de significação e c) o próprio sentido em
deslocamento incessante nessa passagem “forcluida” (traço do desejo inscrito no limite ou
no interior-exterior da linguagem) de todos esses processos onto-psico-lingüísticos que se
inscrevem como escritura literária.
Uma teatralidade maquínica da literatura deveria ou tentaria se apropriar de algumas
cenas desse movimento “forcluido”
266
que tem lugar entre o desejo de figuração, a imagem
do movimento dessa figuração e a sua replicância diferencial fadada a uma espécie de retro-
alimentação fantasmática de suas referências já materializadas em outras posições de
sentido, reverberando e instaurando tantas outras imagens relativamente dependentes ou
autônomas em seus processos maquínicos de disseminação do sentido e que se
“formalizam” ou melhor, se dramatizam, como força alegórica.
É assim que procuraremos pensar certo caráter sagrado e, no mesmo movimento, sua
própria transgressão, que irrompe no tom ou na gestualidade que provém das imagens que
vêm do fundo da experiência limite tanto de G. H. em A paixão segundo G. H. de Clarice
Lispector como em Thomas em Thomas l’Obscur de Maurice Blanchot.
Mas deveríamos, a princípio, pensar no que diz Jean Luc-Nancy a respeito do
movimento “próprio” da imagem pensada em sua densidade histórica e em sua relação
imanente de sentido corpóreo. A imagem, para ser pensável, deve ser posta em relação com
uma prática simbólica, no caso, toda a problemática de uma relação de escorregamento do
sentido da imagem como elemento de fascinação, este movimento posicionado no limite
entre a figuração do desejo e a emergência do sentido como sensação; aí onde o desejo não
pode ser alcançado, pois ele se atribui como força seu próprio regime de ascendência ou
descendência em relação ao seu objeto (na verdade um subjectil, pois sempre já permeado
266
Procuraremos fazer operar esse conceito lacaniano apenas no que diz respeito a sua imagem mais operatória
de um gesto ou de uma marca psíquica que se estabelece numa relação de traço ou de rastro de uma espécie de
trans-subjetivação latente do objeto de desejo arqui-originário (desejo de uma continuidade umbilical?),
constituído enquanto paradoxo de sua constante e impossível realização plena.
233
por uma fantasmática da referência, que é já uma espécie de homoestase entre sujeito e
objeto), ou seja, a idéia de imagem, a que Nancy acaba por nomear de o “distinto”, desliza
incessantemente entre o movimento de conformação ou de configuração de seu subjectil no
plano da sensação e seu distanciamento no limite imponderável dessa realização. Esse
movimento de deslizamento caracteriza o próprio sentido “sublime” ou “sagrado” da
imagem.
A imagem marca uma espécie de efeito de presença transcendental que por sua
própria emergência se distingue de uma extensibilidade anterior mais ampla e
arquioriginária. Mas, nesse plano, que poderíamos chamar de imanência, com Deleuze,
também coexiste em termos energéticos, libidinais afinal, se diferenciando pela
especificidade de sua posição simbólica, vale dizer, pela eventualização de suas correlações
psico-físicas e/ou metafísicas (no sentido de sua abstração operativa e conceitual) no tempo
e no espaço de suas referências fantasmáticas a que induz sua produção enquanto imagem
literária ou artística.
A esse respeito, Nancy justamente iniciava seu ensaio sobre a imagem como “o
distinto”, comentando que a religião estabeleceria um tipo de ligação “forcluida” ou
paradoxal com o sagrado. Pois o sagrado enquanto tipo de relação de força relacionável à
imagem se distingue da religião exatamente no momento em que coexiste o que chamamos
anteriormente de deslizamento ou forclusão do traço atribuível de seu sentido de ligação. Ao
procurar estabelecer uma comunicação com o sentido “puro” ou sacro da imagem - o que
ocorreria por sinal no evento sacrifícial, esse movimento próprio da religião ao sagrado -
estabeleceria o traço distintivo que liberaria sua força específica e que configuraria esse
(im)próprio e impalpável resultante da imagem ao (des)figurar o próprio sagrado enquanto
experiência meramente inteligível.
Le sacré, quant à lui, signifie le séparé, le mis à l’écart, le retranché. En un sens,
religion et sacré s’opposent donc comme le lien s’oppose à la coupure. En un autre
sens sans doute, la religion peut être representé comme faisant lien avec le sacré
separé.
267
267
NANCY, Jean-Luc. Le fond des images. Paris, Galilé, 2003, p. 11. “O sagrado, quanto a ele, significa o
separado, a posta a distancia, o retirado. Em um sentido, religião e sagrado se opõem, portanto, como o laço se
opõe à cesura. Em um outro sentido, sem dúvida, a religião pode ser representada como fazendo laço com o
sagrado separado.”
234
A esse respeito, ou seja, da imagem como traço distintivo e como deslizamento
semio-ontológico do sensível a um “inteligível”, podemos ainda remeter ao que o filósofo
diz um pouco adiante:
Le distinct est au loin, il est à l’opposé du proche. Ce qui n’est pas proche peut être
écarté de deux maniéres : écarté du contact ou bien de l’identité. Le distinct es distinct
selon les deux maniéres. Il ne touche pas, et il est dissemblable. Telle est l’image : Il
lui faut être détachée, mise dehors et devant les yeux (elle est don inséparable d’une
face cachée, qui n’en décolle pas : la face sombre du tableau, sa sous-face, vore sa
trame ou son subjectile), et lui faut être différent de la chose : essentiellement, elles’en
distingue.
Mais c’est qui se distingue essentiellement de la chose, c’est aussi bien la force ou
l’énergie, la poussé, l’intensité. Toujours le « sacre » fut une force, voire une
violence ; Ce qui est à saisir, c’es comment la force et l’image appartiennent l’une à
l’autre dans la même distinction. Comment l’image se donne par un trait distinctif
(toute image se déclare ou s’indique « image » de quelque façon), et comment ce
qu’elle se donne ainsi est d’abord une force, une intensité, la force même de sa
distinction.
268
Grande questão que se abre nesse ponto. Talvez seja todo o nosso problema quanto à
configuração teórica mais densa, daquilo concernente à especificidade do que entendemos
ser o papel de uma maquínica como a expressa no conceito de teatralidade maquínica que
tentamos fazer funcionar ou pelo menos jogar nesta tese. Pois se trata de pensar de que
modo ocorreria numa crítica literária, uma percepção sobre esse possível trânsito vertiginoso
e paradoxal da coisa à imagem, e do desejo plástico de fabulação à escritura literária.
A princípio, nossa intuição é a de que na constituição ou forclusão do traço
mnemônico ou simbólico que se pode extrair do texto literário, poderíamos, ou melhor,
deveríamos poder pensar em termos teatrais, ou seja, que uma teatrológica da literatura
poderia invocar uma gestualidade intrínseca e constituidora de sentido, desde o movimento
da escritura literária até o próprio movimento interno fabular e disseminante da narração e
dos modos em que se semiotizam suas vozes. Vale dizer que nossa preocupação se volta
também aos desdobramentos dramáticos que interpelam o sentido do narrado em direção a
268
Op. Cit., pp. 12-13.
O distinto está ao longe, ele está em oposição ao próximo. Aquilo que não está próximo pode ser separado de
duas maneiras: separado do contato ou da identidade. O distinto é distinto segundo as duas maneiras. Ele não
toca e ele é dessemelhante. Tal é a imagem: lhe é necessário ser destacada, posta fora e diante dos olhos (ela é
portanto inseparável de uma face escondida, da qual não se desliga: a face sombria do quadro, sua sub-face,
mesmo sua trama ou seu subjectil), e lhe é necessário ser diferente da coisa: essencialmente, ela aí se distingue.
Mas aquilo que se distingue essencialmente da coisa, também é a força, ou a energia, o impulso, a intensidade.
O “sagrado” sempre foi uma força, mesmo uma violência. O que se tem a apreender é como a força e a
imagem pertencem uma à outra na mesma distinção. Como a imagem se dá por um traço distintivo (toda
imagem se declara ou se indica “imagem” de algum modo), e como, aquilo que ela se dá desse modo, é a
princípio uma força, uma intensidade, a própria força de sua distinção.
235
uma performance entre uma entidade biográfica virtual e a economia poética do narrado que
se atualiza geralmente a partir de uma crise (pathos próprio da literatura enquanto modo do
pensamento), pela escritura literária. Lembramos que quando nos preocupamos em marcar
um interesse por uma literatura limite, procuramos fazer ressoar justamente uma
intencionalidade quanto a um desejo de escritura que vá propriamente na direção dessas
revoluções performativas do sujeito, como performatividade dramática de sua própria
narratividade.
A partir daí, pensamos agora em como estabelecer um nexo com o que diz respeito a
essa potência paradoxal da imagem que ao marcar seu traço distintivo tamm separa e
afasta sua própria atribuição de sentido arquioriginária entre a coisa representada - já um
subjectil transfigurado em relação ao “real” maquínico de sua escritura - e o efeito de algum
modo “quântico” de sua forclusão ao se apresentar nesse traço ou nessa marca de
deslizamento significativo que faria da imagem a própria potência de uma estranha transição
no devir, ao mesmo tempo em que exerce uma carga de atribuição de sentido, restabelece
nesse processo, e na mesma medida, uma espécie de contraefectuação, imprimindo uma
espécie de enorme e estática potência neutra de figuração plástica. Dessa idéia complexa,
gostaríamos de nos remeter a toda a teorização sobre o fascínio como potência constitutiva e
operatória da imagem em Maurice Blanchot e sobre a qual acreditamos também trabalha
Jean Luc Nancy.
Uma teatralidade da literatura deverá, portanto, poder ser aproximada como uma
espécie de operador ou de organizador de relações entre o texto como significação fabular e
o texto como significância real, onde o fabular se distingue do real apenas como traço
necessário de forclusão do desejo da imagem ou do relato da imagem, exposto e inscrito
como escritura para além de um registro dicotômico entre uma natureza ideal e uma
natureza real das pulsões no que concerne ao registro artístico e literário, enquanto modo
performático do pensar numa posição de diferença em relação ao filosófico.
Uma teatralidade maquínica ou literária como a entendemos, diz respeito por outra
via, ao que figura e configura, como também ao que desfigura a imagem no devir exposto de
uma ficção enquanto complexo arquioriginário de pulsões corpóreas e ressonâncias
corporificadas pela escritura. Uma força, segundo Nancy, não é necessariamente uma forma
e é exatamente nisso que gostaríamos de nos ater ao pensar numa teatralidade da literatura
236
como sendo o esboço possível de uma re-inscrição da imagem literária como traço forcluido
entre desejo de fabulação (desejo de performação do pensamento como devir-mito do
literário) e inscrição real do corpo no mundo. Pois uma teatralidade da literatura deveria
poder se aproximar das relações trans-sujetivas que coexistem na própria literatura em seu
sentido político mais abrangente o qual Nancy aproximara de uma transvaloração complexa
do mito pela performatividade da literatura. Exatamente ali onde a atitude do escritor se
aproxima de uma espécie de relação imanente com o mundo, constituindo o espaço de
reserva e de porvir da intenção vertiginosa de estabelecimento de uma posição ética diante
do mundo da vida, vale dizer, diante de outrem, esse absolutamente outro de minha
constituição como devir-sujeito de um espaço-mundo; nesse espaço onde a própria imagem
se configura como paradoxo de constituição da própria identidade, sempre em devir, ao
mesmo tempo que necessariamente atrelada a uma espécie de lei de desaceleração de um
devir-sentido do mundo e que cumpre de algum modo, melhor ou pior, uma função
valorativa e moral.
Sobre essa força da imagem que procuramos expor como intrínseca da própria
atividade literária e em seu sentido imanente como atravessamento do desejo enquanto
construção de uma identidade em devir, citamos Nancy naquilo que sua idéia sobre essa
economia das forças tem de esclarecedor. Referimos-nos ao caráter absolutamente móvel
dessa ontológica da imagem e do sentido artístico como reverberação imanente de uma
espécie de releitura avassaladora de um “sublime transcedental” da imagem que não poderia
mais ser pensado a não ser como relação sutil de um jogo de forças que opera na imagem o
espaço próprio ao devir-estético do sujeito. O sujeito entendido como elaboração da
escritura em um processo entre o forcluido e inaudito dos começos e o inenarrável ou
inextricável do porvir como inconfessabilidade comunitária da morte.
Pois dessa imagem de um entre-lugar ocupado pela literatura, lugar de espaçamento
e de inscrição e de inscrição do próprio esquecimento que funda como forclusão o próprio
desejo da fala ou do gesto da escritura, esse lugar, ou melhor esse devir-mundo do literário
enquanto tal é descrito por Nancy como aquilo que fala propriamente na literatura e não o
objeto ao qual a literatura se voltaria para descrever.
Ces textes que je relis ici sont-ils mythologiques ? Tout pourrait le faire penser. Des
figures s’y présentent , des archétypes, des scènes originaires semblent indéfiniment
se rejouer comme « le spectacle, rêvé juste à l’agonie, d’une luxuriance prodigieuse
comme celle d’un théâtre ancien » (p. 28). Sans aucun doute, ce théâtre est celui d’un
237
mythe – comme tout théâtre. Mais comme toute théâtre aussi – qui procede du mythe
en lui donnant congé – c’st à dire aussi et tout au moins pour le moment comme toute
littérature, l’ « allégorie » éloigne ce mythe qu’elle approche. Elle dit que c’est un
rêve, et le dernier avant la mort. Elle dit que l’éblouissement s’emporte et que le
théâtre retourne à l’ombre. (…)
Le confus de la rumeurtient à l’indécision entre le mythe et la littérature. Cette
indécision est celle qui manque à clairementséparer littérature (fable) et philosophie
(vérité) et Lacoue de Labarthe ou bien Philippe de lui-même. Il ne manque pas de
« soi » : il manque de n’être pas clairement distinct de lui-même, ou bien que la vie ne
soit pas clairement distinct de sa graphie, de son récit, de sa littérature, de sa
pensée.Or comment cette distinction pourrait-elle advenir, si la littérature ne dit rien
d’autre que l’improvenance de la vie et l’improbable de sa destination ? Vérité
fabuleuse d’une fable véridique.
Mais cela même – l’improvenance et l’improbable, la naissance et la mort, la tragedie
et la comédie – cela n’est pas un objet dont la littérature parlerait. C’est au contraire ce
qui parle en elle ou ce qui la fait parler. Ce qui fait un sujetparlant, c’est qu’il n’ait ni
commencement ni fin identifiables.
269
Nancy o diz a partir da imagem do “rumor” e de uma espécie de balbucio surdo dos
sons que se fazem entender e escutar no mundo; sons como descontinuidades mnésicas que
se podem ler nas “alegorias” de escritura de Lacoue-Labarthe ou nas “alegorias” de uma
narrativa poética que procura performar-se a si própria. Como o próprio de um pensar
literário que se organizaria em torno à força da imagem poética, em torno ao canto como
imagem sonora e poética que poderia sustentar de algum modo o trânsito ofuscante e
vertiginoso do sentido incessantemente alegórico e potente da escritura literária como
transvaloração dos mitos.
A literatura, entendida como transvaloração anacrônica ou, antes, nos apropriando do
conceito de Deleuze, a literatura percebida como transvaloração aiônica do mitológico, se
relacionaria, em seu fundo móvel, à figuração e à teatralidade que se dissemina a partir do
movimento de estiramento e contração da imagem ao seu referente fantasmático. Dessa
economia, poderíamos perceber os traços que implicariam antes em uma performance ou
dramática dos movimentos e das forças no complexo das imagens enquanto alegorias
incessantes, do que numa descrição estruturada, sobre as formas ou os gêneros que no plano
literário poderiam ter lugar.
Assim descreve o movimento crítico que sobre a imagem e seu traço distintivo uma
crítica ou uma economia das forças na literatura acionaria:
269
Op. Cit., pp. 161-162.
238
Le distincte se tient à l’écart du monde des choses em tant que monde de la
disponibilité. Dans ce monde, les choses sont disponibles tout à la fois our l’usage et
selon leur manifestation. Ce qui se retire de ce monde n’est d’aucun usage, ou bien
d’un tout autre usage, et ne se presente pas dans la manifestation (une force n’est
précisement pas une forme : il s’agit aussi de saisir en quoi l’image n’est pas une
forme et n’est pas formelle). C’est ce qui ne se montre pas mais qui se rassemble en
oi, la force bandée en deçà ou au-delà des formes, mais non pas comme une autre
forme obscure : comme l’autre des formes. C’est l’intime et sa passion, distincte de
toute représentation. Il s’agit de saisir la passion de l’image, la puissance de son
stigmate ou bien celle de sa distraction (…)
270
No sentido de imagem que se expõe aqui, vale dizer, sentido que devém possível por
uma abstração que poderíamos dizer ontológica da imagem e que se relaciona à idéia
paradoxal de sagrado, é considerado como o próprio espaço de coexistência e de distinção
(ou seja, a instauração de uma idéia de imagem como espaçamento da distinção, a distinção
que distingue, a imagem da coisa no lugar da coisa) entre o que existe de separado como
homem (o ser do ente, o ôntico), ou seja, o existente, e o que se extende como continuidade
exterior e constitutiva dessa existência (o ser do ser, o ontológico) a essa descontinuidade,
em outras palavras, o cosmos ou mundo como existência das coisas em sua descontinuidade
aparente. A idéia de sagrado ultrapassaria a própria distinção entre as coisas, redistinguindo
(através da religião e do sacrifício) a parte como parte numa continuidade e o todo como
todo numa outra forma de continuidade que coexiste ao descontínuo de suas partes e que
encontra no sacrifico realização da imagem dessa passagem agônica.
Esse cosmos ou esse mundo das coisas que ultrapassa a parte na sua forma de ser
existente e separado da continuidade continente, só pode ser atribuível como existência de
uma continuidade absoluta no retorno paradoxal da própria idéia de uma imagem, ou de uma
“imago de distinção” que distingue distinguindo o descontínuo do contínuo. Ela diferencia
ontologicamente o ser separado como caráter ôntico da existência, do ser unívoco e
indistinguível em sua heterogeneidade contínua e absoluta e que é paradoxalmente a própria
possibilidade de toda existência descontinua. Seria a própria idéia de que a continuidade
inefável e heterogênea do cosmos é dada numa necessária descontinuidade da existência
270
Op. Cit. p. 13 “O distinto se coloca na separação do mundo das coisas no modo de mundo da
disponibilidade. Neste mundo, as coisas estão disponíveis ao mesmo tempo para o uso e segundo sua
manifestação. Aquilo que se retira deste mundo não é de uso algum, ou é de um todo outro uso, e não se
apresenta na manifestação (uma força não é precisamente uma forma: trata-se de discernir em que a imagem
não é uma forma e não é formal). É aquilo que não se mostra mas se reúne em si, a força se tenciona aquém ou
além das formas, não como uma outra forma obscura: mas como outra das formas. É o intimo e sua paixão,
distinto de toda representação. Tratar-se-ia de apreender a paixão da imagem, a potência de seu estigma ou
bem aquela de sua distração [...]”.
239
singular. A imagem, de algum modo, é a imagem de uma indistinção necessária que,
todavia, distingue a própria idéia do sagrado como o estranho continente que enquanto dura
a distinção, vale dizer, o fato dessa existência ôntica, se promete como futuro incontornável
da imagem de um retorno transgressivo da parte ao todo, do homem ou do animal
sacrificado ao todo do mundo ou do cosmos.
Entretanto, apesar da semelhança, esse entendimento da imagem associa, a primeira
vista, a imagem ao sentido do sacrifício como rito de transvaloração transgressiva do
descontínuo ao contínuo absolutamente heterogêneo do sagrado. Contudo, Nancy irá
justamente diferenciar essa idéia de imagem como diferença ontológica, de uma idéia da
imagem como o que realiza indissociavelmente em seu processo de distinção, sua presença e
sua separação. Vale dizer que a imagem enquanto distinção “le distinct”, se da a uma
abertura antes que a uma “superação” (releve) de uma imanência qualquer a uma
transcendência em direção ao todo ou ao cosmos.
A esse respeito, Nancy explica:
La distintion du distinct est donc son écartement: sa tension est la tênue d’um écart em
même temps qu’elle en est le franchissement. Dans le lexique religieux du sacré, ce
franchissement constituait le sacrifice ou la transgression : Comme je l’aí dejà dit, le
sacrifice est la trasgression légimée. Il consiste a faire sacré (à consacrer), c'est-à-dire
à faire ce qui, en droit, ne peut être fait (ce qui ne peut que venir d’ailleurs, du fond du
retrait).
Mais la distinction de l’image - tout en ressemblant beaucoup au sacrifice – n’est pas
proprement sacrificielle. Elle ne légitime pas et elle ne transgresse pas : elle franchit la
distance du retrait tout en la maintenant par sa marque d’image. Ou plutôt :par la
marque qu’elle est, elle instaure simultanéament le retrait et un passage qui pourtant
ne passe pas. L’essence d’un tel franchissement tient à ce qu’il n’établit pas une
continuité une continuité : il ne suprime pas la distincion. Il la maintient tout en
faisant contact : choc, confrotation, tête à tête ou étreint. C’est moins un transport
qu’un rapport. Le distinct bondit contre l’indistinct et il saute en lui, mais il ne
s’enchaine pas à lui. L’image s’offre à moi, mais elle s’offre comme image (il y a de
nouveau ambivalence : seulement image/veritable image…). C’est ainsi qu’une
intimité s’expose à moi : exposée mais pour ce qu’elle est, avec sa force resserée, non
relâchée, réservée, non repandue. Le sacrifice opére une assomption, une relève du
profane dans le sacrée : L’image au contraire se donne dans une ouverture qui forme
indissociablement sa présence et son écart.
271
271
Op. Cit., pp. 14-15. A distinção do distinto é portanto seu distanciamento: sua tensão é a gestão de uma
separação ao mesmo tempo em que ela é o ultrapassamento. No léxico religioso do sagrado, este
ultrapassamento constituía o sacrifício ou a transgressão: Como eu o já disse, o sacrifico é a transgressão
legitimada. Ele constitui a sacralizar (a consagrar), vale dizer, a fazer aquilo que, por direito, não pode ser feito
(aquilo que não pode vir a não ser de outro lugar, do fundo da retirada).
Mas a distinção da imagem – assemelhando-se muito ao sacrifício – não é propriamente sacrificial. Ela não
legitima e ela não transgride. Ela ultrapassa a distância da retirada, a mantendo por sua marca de imagem. Ou
antes: pela marca que ela é, ela instaura simultaneamente a retirada e a passagem que, contudo, não passa. A
essência de um tal ultrapassamento advém daquilo que não estabelece uma continuidade: ela não suprime a
240
Procuraremos apresentar ou, melhor, encenar na segunda parte da tese, uma série de
investidas ou de investimentos sobre certas imagens dos textos de Clarice Lispector e
Maurice Blanchot, nas quais, aquilo que se apresenta como cenas, ou antes, como
movimentos de imagens numa atribuição relativamente ou constitutivamente alegórica, pode
ser desdobrado meta-criticamente como fazendo parte de certo plano de experiência do texto
em seu próprio movimento teatrológico. Desdobrado na possibilidade de trânsito da própria
imagem do texto literário enquanto máquina alegórica que intenta se apropriar de um
sentido talvez sacro de uma imagem indissociavelmente pessoal ou histórica, fabular ou
transvalorada do mitológico ao fabular de uma escritura que se conjuga como o próprio de
um distanciamento de si e de uma reaproximação agônica do que seria a propriedade
singular da imagem do literário, a saber, o caráter ambíguo e paradoxal da imagem como
distinção de uma maquínica de intimidade elaborada como a potência própria do gesto de
escritura ficcional.
Quais os traços, mesmo que sejam configurados a partir das lógicas próprias às cenas
individuais em seu processo dramático interior ao texto e não a uma hipotética inter-relação
da completude da obra como um todo, que possibilitariam fazer jogar a teatralidade
maquínica nesses textos, quem sabe mesmo numa espécie de movimento interno à fabulação
da narrativa, mas que poderia ser reavaliado, na energia própria à sua imagem, como
pertencente também a um fora do texto dado como traço de um corpo escrevente e leitor a
um só tempo, corpo atravessado por um devir-mito transvalorado pela e na literatura?
É o que a princípio intentaremos fazer emergir como diagramações ou cartografias
possíveis dos gestos e das entonações variáveis, expedidas e performadas nas vozes que se
dramatizam em A paixão segundo G. H e Thomas l’Obscur.
distinção. Ele o mantém inteiramente fazendo contato: choque, confrontação, face a face, enlaçado. É menos
um transporte que uma relação. O distinto se lança contra o indistinto e salta nele, mas não se encadeia a ele. A
imagem se oferece a mim, mas ela se oferece como imagem (há novamente ambivalência: somente
imagem/verdadeira imagem). É desse modo que uma intimidade se expõe a mim: exposta, reservada, não
dissipada. O sacrifício opera uma assunção, uma superação do profano no sagrado: a imagem ao contrário se
dá numa abertura que forma indissociavelmente sua presença e sua distância.
241
De uma interpretação do sentido da imagem a partir de uma tipologia das forças no
intuito de uma aproximação ao conceito de uma teatralidade maquínica da literatura.
Quando interpretamos que a imagem para Nancy se dá como uma relação “forcluida”
com o sagrado, quisemos apenas utilizar um termo psicanalítico que poderia emprestar um
sentido de dupla vinculação paradoxal e intensiva ao que Nancy trabalha em “L’image, le
distinct” quando especula sobre a imagem como se relacionando a um fundo ontológico de
onde operaria sua própria emergência como sua conveniência mais própria.
É todo um pensamento ou uma espécie de intuição, ou antes, uma sorte de
interpretação heurística do movimento e da historicidade que a arte estabelece com a
filosofia, a psicologia e, afinal, com uma história das religiões, no sentido em que operou
Bataille e que faz com que Jean-Luc Nancy se aproprie de uma interpretação sobre o sentido
energético, digamos assim, da luz no que se relaciona com uma ontologia da imagem
aproximado ao que lemos com Blanchot a partir dos conceitos de imagem, fascínio e as duas
versões do imaginário tratadas em L’espace Littéraire
272
.
Ele diz:
La continuité n’a lieu qu’à l’intérieur de l’espace homogéne indistinct des choses e
des opérations qui les relient. Le distinct, au contraire, est toujours l’hétérogène, c'est-
à-dire le déchaîné – l’inenchaînable. Ce [le distinct, l’image] qu’il transporte donc
auprès de nous, c’est son déchaînement lui –même, que la proximité n’apaise pas et
qui reste ainsi à distance : juste à la distance du toucher, c'est-à-dire à fleur de peau. Il
aproche à travers la distance, mais ce qu’il apporte au plus près, c’est la distance.
273
A imagem exerce uma espécie de estranha força de neutralização (estaria aí a função
de uma poética ou de uma estética do neutro blanchotiana?) no espaço abstrato existente
entre o que coexiste como homogeneidade do contínuo e heterogeneidade oriunda do
272
A esse respeito nos remetemos à discussão teórica de L’espace Literaire, principalmente aos anexos “Les
deux versions de l’imaginaire”, onde podemos ler: « Vivre un événement en image, c’est ne pas se dégager de
cet événement, s’en désintéresser, comme le voudraient la versio esthétique de l’image et l’idéal serein de l’art
classique, mais c’est n’est non plus s’y engager par une décision libre: c’est s’y laisser prendre, passer dela
région du réel, ou nous nous tenons à distance dês chses pour mieux em disposer, à cette autre région où la
distance nous tient, cette distance qui est alors profundeur non vivante, indisponible lointain inapreciable
devenu comme puissance souveraine et dernière des choses. (…) Intime est l’image parce qu’elle fait de notre
intinité une pissance extérieure que nous subissons passivement : en dehors de nous, dans le recul du monde
qu’elle proveque, traîne égarée et brillante, la profondeur de nos passions. » BLANCHOT, Maurie. L’espace
Literaire. Paris, Gallimard, 2005, p. 352.
273
Op.Cit., pp. 15-16. O comentário entre colchetes é nosso. “A continuidade não têm lugar a não ser no
interior do espaço homogêneo indistinto das coisas e das operações que os religam. O distinto, ao contrário, é
sempre o heterogêneo, vale dizer, o desencadeado – ou o que não pode ser encadeado. Aquilo que ele
transporta, portanto, junto a nós, é seu desencadeamento ele próprio, que a proximidade não pacifica e que
resta desse modo à distancia”
242
trabalho de distinção que se exerce a partir do próprio distinto que é a imagem, no sentido
dessa ontologia fina que é trabalhada por Nancy. Ele a pensa no intuito de promover o
discernimento sobre o que poderia ser da ordem de uma certa tipologização da imagem
como uma sorte de regulação imanente da própria diferença ontológica heideggeriana. Desse
questionamento, relembramos a especificidade do trabalho de Philippe Lacoue-Labarthe no
que concerne a seu pensamento original e desconstrutor sobre a mimesis, assim como indica
Jean-Luc Nancy em “Un commencement” a respeito de L’« Allégorie ».
A esse respeito, a saber, da idéia da imagem como traço de distinção, Nancy
exemplifica uma certa economia do retrato em pintura. O retrato, nesse sentido, indica um
processo imanente que seria “a imagem da imagem em geral”. Uma intimidade emerge de
uma relação de duplo vínculo de um “fundo” a uma “superfície” quando pensamos
especificamente no que está em jogo nesse exemplo do trabalho de “retratação” que se dá no
retrato. Entretanto, é necessário dizer que esse retrato não é, nesse caso, mais que um
assinalamento, e não uma imagem no sentido ontológico que lhe dá Nancy e ao qual há
pouco remetemos o pensamento original e em grande parte fundador de Maurice Blanchot.
Toute image releve du “portrait”, non pas em ce qu’elle reproduirait lês traits d’une
personne, mais en ce qu’elle tire (c’est la valeur sémantique étymologique du mot), en
ce qu’elle extrait quelque chose, une intimité, une force. Et pour le extraire, elle la
soustrait à l’homogénéité, elle l’en distrait, elle la distingue, elle la détache et elle la
jette en avant. Elle la jette au devant de nous, et ce jet, cette projection fait sa marque,
son trait même et son stigma : son tracé, sa ligne, son style, son incision, sa cicatrice,
sa signature, tout cela à la fois.
L’imageme jette à la figure une intimité qui m’arrive en pleine intimité – par la vue,
par l’ouïe ou par le sens même des ots. En effet, l’image n’est pas seumement
visuelle : elle est aussi bien musicale, poétique, et encore tactile, olfactive ou
gustative, kinesthésique, etc.
274
Esse trabalho de emergência e de imergência de uma intimidade que opera a imagem
e que não se limita à imagem visual, mas que se dá como uma relação mais ampla por toda a
extensão do sensível no que aí se tensiona justamente como uma experiência sensacional do
inteligível enquanto tal, se vincula constitutivamente nessa diferença ontológica se assim
274
Op.cit. P. 16. Toda imagem concerne do « retrato », não naquilo que ela reproduziria os traços de uma
pessoa, mas naquilo que ela tira (é o valor semântico etimológico da palavra) naquilo que ela extrai alguma
coisa, uma intimidade, uma força. E para a extrair, ela a subtrai à homogeneidade, ela a distrai, ela a distingue,
ela a destaca e ela lança à frente. Ela a lança diante de nos, e este lançamento, esta projeção faz sua marca, seu
traço mesmo e seu estigma : Seu traçado, sua linha, seu estilo, sua incisão, sua cicatriz, sua assinatura, tudo isto
ao mesmo tempo.
A imagem me lança à figura uma intimidade que me chega em plena intimidade – pela vista, pelo ouvido ou
pelo sentido mesmo das palavras. Com efeito, a imagem não é somente visual/ ela é também musical, poética,
e ainda táctil , olfativa ou gustativa, kinestésica, etc.
243
podemos nos referir, ou nessa maquínica de distinção que tem lugar precisamente na
conveniência da imagem enquanto traço distintivo de uma intimidade que é finalmente a
própria marca do trabalho imanente e nos arriscaríamos a também dizer, transcendental,
elaborado entre o fundo de uma continuidade homogênea e a superfície que se desgarra
desse fundo pela distinção que opera o próprio distinto enquanto imagem. Esse “entre” onde
ocorre o distinto como distinção é como uma espécie de zona ambivalente, umrivage
éblouissent”, uma margem escorregadia onde uma espécie de rastro ou de jogo de atrações
“forcluidas” se institui e se constitui como o próprio campo paradoxal de atividade
mimética, no sentido que discerne Lacoue-Labarthe no ensaio “O paradoxo e a Mimese” de
A Imitação dos Modernos
275
. Finalmente e no sentido em que o termo reaparece
repetidamente quando Maurice Blanchot aborda a questão do fascínio da imagem em
L’espace Littéraire, o termo que chamamos de “maquínica distintiva” ou o entre lugar entre
o contínuo e o descontínuo como diferença ontológica, é também aquilo que Jean-Luc
Nancy diversas vezes diz em seu ensaio, em uma palavra: “paixão”
276
.
A seguir, Nancy dá o exemplo desse processo a partir de uma imagem literária que
nos levará ao cerne da questão de uma ontologia energética da imagem literária que
precisamos compreender para justamente passarmos ao nível de uma teatralidade da
literatura. Ele parece evocar o que uma imagem literária poderia vincular no trânsito entre
uma intensidade significativa da frase que convoca a própria cena à sua descrição e sua
extrapolação semântica no sentido do discernimento daquela intimidade que resultaria da
passagem de um fundo sem fundo do contínuo à própria superfície que se eleva no
275
Cf. LACOUE-LABARTHE, Philippe. A Imitação dos Modernos. Ensaios sobre arte e filosofia. Orgs.
Virginia de Araújo Figueiredo e João Camillo Penna. Trad. João Camillo Penna et al. São Paulo, Paz e Terra,
2000, p. 159. Temos a impressão que, provavelmente, essa zona de “rivage” ou de “passion” onde opera o que
chamamos de uma “maquínica de distinção” da imagem e sobre a qual pensa Jena-Luc Nancy, tenha a ver em
muito com toda a imagem que atravessa o ensaio de Lacoue Labarthe sobre o problema da mimese e as forças
paradoxais que poderiam agir no processo mimético. A esse respeito indicamos apenas a imagem do conceito
de hiperbólico que Lacoue-Labarte faz ressoar junto à imagem conceitual de paradoxo. É nesse sentido muito
específico que procuramos relacionar a idéia, digamos, hiperbólica que a imagem gera em seu devir-distinção
do íntimo e do distante, entre as extremidades de um Contínuo e de um Descontínuo que finalmente se
“forcluem” no evento de distinção do distinto ou de maquinação distintiva em que opera a imagem entendida
nesse sentido, como agenciadora hiperbólica de uma diferença ontológica arqui-originária. Citamos Lacoue-
Labarthe: “O paradoxo não é, pois, somente a passagem pelo extremo, uma espécie de “maximização” como se
diz hoje em lógica. É, na realidade, um movimento hiperbólico pelo qual se estabelece – provavelmente sem
jamais se estabelecer – a equivalência dos contrários – e dos contrários levados ao extremo, infinito por direito,
da contrariedade. (...) O paradoxo se define pela troca infinita ou pela identidade hiperbólica dos contrários”
(p. 163).
244
movimento próprio desse fundo à distinção que supõe a vinda da própria imagem como
intensidade do jogo bivalente que aí se processa. Nesse sentido, parece ser uma hiperbólica
do movimento distintivo da imagem entre a continuidade e a descontinuidade da existência
no que diz respeito ao evento do próprio pensamento como aproximação relativa ao sagrado
enquanto cintilação poética ou “estase” de uma inteligibilidade da imagem poética. Talvez
devêssemos nos perguntar que relações esse movimento da imagem teria com a questão do
sublime.
Veremos em seguida com Nancy uma interpretação de uma cena literária que parece
ter relação com o que faz Heidegger com a poesia de Georg Trakl em Acheminement vers la
parole
277
. Daí podermos prosseguir com a interpretação dos espaços semânticos de um texto
literário como claridade e obscuridade da cena, como força semântica do céu e da terra
como verdadeiros existenciais de uma ontologia da imagem.
Nancy cita o fragmento traduzido de Edith Warton:
La porte de la maison de l’avocat Royall, située à l’extremité de l’unique rue du
Village de North Dormer, venait de s’ouvrir. Une jeune fille parut et s’arrêta un
instant sur le seuil.
Du ciel printanier et transparent une luniére argentée s’épandait sur les toits du
village, sur les bois des mélèzes et les prairies environnants. Au-dessus des collines
flottaient des nuages blancs et floconneux dont une brise légère chassait les ombres à
travers champs...
278
Quando Nancy comenta esse fragmento, ele parece operar a partir de um sobre-
tensionamento da situação da cena em sua referência ao instante limítrofe ou ao événement
(Ereignis) que dispositiva ou possibilita a imagem produzir-se como cena enquanto tal, ou
seja, constituída de ação. É o caso específico da posição da protagonista (pelo menos dessa
cena) em relação à descrição da ambiência que possibilita a própria construção da imagem
pelo leitor. Ele lê no poema:
Ainsi saisi dans le cadre d’une porte ouverte sur l’intimité d’une demeure, une jeune
fille dont nous ne voyons rien, sinon la jeunesse, expose déjà l’imminence « un
instant » suspendue – d’une histoire et d’on ne sais quelle rencontre, quel choc
heureux ou douloureux : elle l’expose dans la lumière venue d ciel, et ce ciel donne le
cadre large et « transparent », illimité, dans lequel se découpent les cadres successifs
d’une maison et d’une porte. (…) Il s’agit d’une fonction d’image, lumière et juste
rapport d’ombre, encadrement et détachement, sortie et touche d’une intensité.
279
276
Cf. Op Cit., p. 20. « La force céleste, force que le ciel est – à savoir la lumière qui distingue, qui rend
dstinct-, est celle de la passion don l’image est le transport immédiat. »
277
HEIDEGGER, Martin. Acheminement vers la parole. Paris, Gallimard, 1976.
278
Op. Cit .Ibid. Edith Warton, Été. Paris, 10/18, 1985, sans nom de traducteur.
279
Op Cit., p. 17.
245
De algum modo neste trecho, parece que Nancy opera de forma diferente a
Heidegger na leitura filosófica do poema, sobretudo no que diz respeito à elaboração de uma
espécie de configuração do movimento paradoxal da imagem como maquínica de distinção
num processo de diferença ontológica aplicado ao poema como espaço autêntico de
presença do pensamento à fala (parole).
A imagem pensada por Nancy parece adentrar uma tecnicidade sutilmente
diferenciada da ontologia hermenêutica heideggeriana, tendendo a uma sobre-poeticidade do
processo de leitura e de re-escritura da cena poética no sentido de uma descrição mais
topologizada de uma “energética” da cena enquanto imagem.
É o caso da leitura do umbral como região limítrofe onde a cena parece espraiar-se, e
a partir daí possibilitar uma sorte de cartografia das forças que se tensionam como
turbulência entre um fora e um dentro do umbral, exatamente onde se localiza a “jovem”
que atua na cena como uma espécie de espaço de correlação e de choque, campo de atuação
de um être-là que espacializaria a própria cena como entre lugar privilegiado da própria
imagem, espelho e duplicação das forças que aí se organizam como lugar de atração e
repulsão de forças interpretativas entre uma continuidade do aberto do céu e o descontínuo
do espaço intimo da casa como morada.
Nancy continua:
Il s’agir de Ceci: Avec la « jeune fille » (dont le nom à lui seul est une intensité)
« paraît » tout un monde, qui lui aussi « s’arrête sur le seuil » - sur le seuil du roman,
sur le trait initial de son écriture – ou qui nous arrête sur son seuil, sur le trait même
qui partage le dedans et le dehors, lumière et ombre, la vie et l’art, donc le partage es à
l’instant tracé par cela même (la distinction) qui nous a fait franchir sans l’abolir : un
monde où nous entrons tout en restant devant lui, et qui s’offre ainsi pleinement pour
c’est qu’il est, un monde, c’est-à-dire une totalité indéfinie de sens (et non pas un
simple environnement).
280
Nesse umbral da soleira da porta, o corpo da jovem separa e distingue em sua própria
presença duas infinitudes, vale dizer, de um dentro e de um fora nos quais são performados
numa maquínica de distinção que observamos atrelada a idéia da imagem, esta funcionando
como verdadeiro dispositivo imanente de uma diferença ontológica que nos parece ser
desgarrada como do fundo sem fundo da cena. Fundo sem fundo, pois justamente não se
trata de perceber a imagem, enquanto uma cena que tem sua valoração numa composição
tridimensional, mas sim como movimento em quatro dimensões e de algum modo exposto e
280
Op. Cit., p. 18.
246
espacializado a partir de uma dinâmica sensacional da cena, exatamente onde o fundo perde
seu caráter puramente dialético, pois se espraia nessa situação numa multiplicidade de
sentidos, como uma variável intensiva, posicionado entre um fora exposto pelo céu em sua
claridade e também no movimento de suas sombras e a intimidade da morada que se re-
extende inteiramente num movimento inverso e cooperativo para dentro da casa, onde o
fundo novamente mergulha dependente de todo o exterior que promove e ambientalisa a
cena.
E no parágrafo seguinte Nancy parece melhor concluir essa economia paradoxal ou
hiperbólica das forças exposta no e pelo traço distintivo na cena que resulta numa
configuração de uma força íntima da cena ou da imagem.
S’il est possible que le même trait, la même distinction, sépare et fasse communiquer,
(communicant aussi la séparation elle-même…), c’est que le trait de l’image (Son
tracé, sa forme) est lui-même (quelque chose de) sa force intime : car cette force
intime, l’image ne la « représente » pas, mais elle est, elle active, elle la tire et la
retire, elle l’extrait tout en la retenant, et c’est avec elle qu’elle nous touche.
281
O fundo e a superfície da cena passam a coexistir paradoxalmente imersos e
emergentes a um só tempo a partir da posição de distinção que a própria cena promove com
o traço divisor do umbral no qual se espacializa aquele que diante do discurso, agoniza ou
teatraliza, virtualmente ou não, a própria cena, ou seja, a prot-agonisa doando uma força
corpórea à cena.
Teatralidade como estratégia para uma compreensão da literatura
enquanto gestualidade própria de uma promessa poética do mundo.
Poderíamos dizer que, em outro sentido, o conceito de teatralidade que procuramos
fazer ressoar na tarefa crítica, apenas como estratégia conceitual, procurará de algum modo
operacionalizar um outro movimento ao qual o filósofo Peter Sloterdijk chamou de gestos
fundamentais para uma poética do mundo.
Para Sloterdijk, essa poética do mundo se relaciona, em grandes linhas, ao intuito de
se pensar o complexo transcurso de uma existência singular acoplada às intensas e múltiplas
reconfigurações que o percurso dessa existência abre, desde o nascimento, seguindo a
281
Idem.
247
ontologia própria ao seu desenvolvimento, a promessa ou a poética de um porvir da
linguagem fundada paradoxalmente na faticidade da finitude ôntica do ser.
Na verdade, nesse livro, ou antes, nessa série de seminários reunidos, na tradução
espanhola, sob o título Venir al Mundo, Venir al Lenguaje. Lecciones de Frankfurt
282
, trata-
se justamente de fazer funcionar uma espécie de sobrevôo matinal sobre as balizas
filosóficas heideggerianas que permeiam o trabalho poético da linguagem enquanto relação
filosoficamente negativa e irredutível do Ser em direção à finitude.
Chama a atenção uma série de metáforas teatrais que Sloterdijk usa, na última
conferência, desembocando na construção estratégica de uma espécie de cartografia espaço-
temporal diagramada em sete gestos básicos de configuração de uma poética do mundo.
Esses sete gestos produtores de mundo, a saber, “parto, operación de urgencia,
iniciativa, posposición, apertura del escenario, transmisión lingüística y absolución”
conteriam o mínimo de complexidade necessária para articular, em termos gerais, uma
lúcida relação entre as consciências e os mundos
283
.
Não nos aventuraremos a comentar passo a passo todos esses gestos de produção de
mundo aos quais o filósofo alemão se dedica de forma inigualável. Tentaremos fazer ressoar
o que nos interessa para nosso estudo e que se coloca nos termos de uma configuração
crítica preocupada em perceber o movimento em direção à complexidade paradoxal do
nascimento e, de certo modo, em contraposição a uma estética da linguagem pensada como
orientada à finitude irredutível do ser.
Mas eis que a tematização do conjunto desses gestos poderia servir para a figura ou a
imagem que procuramos fazer funcionar com o termo de teatralidade maquínica da
literatura. Pois, partindo do nascimento como evento instaurador de uma espécie de
forclusão ontológica do indivíduo, Sloterdijk, remete a toda a problemática de dimensão de
exterioridade ontológica como potência originariamente paradoxal da linguagem.
Imagem forcluída, no parto coexiste como heceidade um desligamento essencial que
toma corpo exatamente no momento onde uma série de outras relações deverão se fazer co-
presentes na matéria esponjosa e dúplice da formação psíquica do indivíduo.
282
SLOTERDIJCK, Peter. Venir al mundo, Venir al lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Trad. Gérman Cano.
Valencia, Pré-texto, 2006.
283
Op. Cit., p. 143.
248
Mas essa assertiva de um movimento forcluído do corte umbilical que teoricamente
instauraria uma relação paradoxal de falta, ou melhor, de espaço de jogo no próprio
movimento do sentido, protagonizando de forma complexa o percurso variável da própria
individuação do sujeito, para nós não tem sentido a não ser enquanto pensado como
processo ontológico relativo à criação poética no que diz respeito à literatura.
Algo urge durante esse processo que instaura desde o nascimento um espaço de jogo
entre o que me afeta e o que busco como desejo nessa afecção. Essa urgência pode ser desde
os processos mais básicos de sustentabilidade do organismo até o desenvolvimento de
aptidões que só poderiam se dar a partir das escolhas baseadas em critérios complexos
sempre urdidos entre variáveis de liberdade e contingência.
Uma iniciativa transtornando a balança orientada nas escolhas de urgência, quando
nesse movimento ou nesse “clarão” de relâmpago se estampa como gesto paradoxalmente
originário uma potência de escolha; no mesmo e no exato momento onde uma série de
variáveis, oriundas das sobras de energia que se realizam durante o processo da iniciativa, se
elaboram como postas em suspensão ou posposição do hiato relativo à própria diferença
produzida no movimento de atualização entre a liberdade sobre o urgente e o contingente
que nesse mesmo momento torna-se relativizador da própria liberdade de escolha, nesse
ponto ou nessa linha de desejo que, transtornada em seu próprio movimento, gera a
propriedade dessa economia de uma poética da individuação lançada ao porvir.
Esse movimento descrito acima é o que procuramos perceber como o gesto de
posposição que Sloterdijk, junto ao outros gestos, procura pensar como movimento geral de
uma teoria crítica do mundo como poesia e promessa.
A movimentação de linhas e pontuações que diagramam de forma complexa e
atualizante toda uma virtualidade de outros movimentos sempre em vias de se
transformarem em sua iniciativa ou sua posposição deve necessariamente ocorrer no espaço
de abertura onde a própria linguagem, como transmissão e promessa, gera concretamente a
arena ou o espaço cênico onde a escritura se desdobra na tensão e na descarga de sua
teatralização. O individuo leva em seu movimento de individuação, desde o parto, os
processos forcluídos que se re-tensionam numa relação trans-histórica a partir da
comunidade de relações próprias à linguagem, desde toda a potência de formação e de
introjeção que pode ser discernida pelo movimento simbólico e indicial que o território e o
249
espaço histórico dessa língua instauram como evento específico para esse indivíduo diante
da comunidade de viventes, de ancestrais e sobreviventes.
De todo esse movimento iniciado ou continuado de forma forcluída no parto, uma
promessa de absolvição é localizada na exterioridade contingente e includente desse mesmo
processo. Essa absolvição, não teria nada de uma espera por redenção ao nos voltarmos para
o movimento inexorável em direção à finitude.
Pelo contrário, se trataria aí, como insiste Sloterdijk, de se pensar uma ontologia do
natalício ao invés de uma ontologia da finitude, a qual adviria justamente da necessidade de
se pensar o evento paradoxal do começo ou da origem de um começar originário, como esse
espaço de forclusão que encena, em toda a existência e em todo processo de individuação,
um papel coalescente, onde um (des)ligamento originário possibilita a abertura ao próprio e
autêntico do futuro como o sentido da aventura da existência enquanto advento e
posterioridade de um desconhecido lançado como atualização angustiante ou criativa em
direção ao próprio presente dessa atuação existenciária.
Essa atualização é, para nós, da ordem do que se move como processo de
individuação no qual uma de suas faces pode ser observada como a capacidade ou mesmo a
promessa poética de uma adequação jamais pacífica - e por isso agônica e venturosa - entre
um abismar-se de dentro pra fora pelo nascimento e um exteriorizar-se der fora pra dentro
em direção a própria e paradoxal abertura do mundo, possibilitado pelo trabalho poético da
linguagem como promessa de chegada à atualidade do próprio presente como inspiração e
alento.
Ao final, Sloterdijk faz alusão a esse momento de inspiração, quando o recém
nascido deve, não sem dor, obrigar-se a respirar e dilatar seus órgãos pulmonares enquanto
adentra essa exterioridade concupiscente do mundo da vida, ainda tão vertiginosamente
opaca, apesar do continuo murmúrio que a linguagem, daí em diante não deixará de fazer
ressoar de forma obscura. A liberdade poética e literária, no sentido ontológico que o
filosofo desempenha, gera por seu lado, uma continuidade dessa respiração corpórea do
mundo, especularisada e forcluída desde o nascimento.
Este aliento no es outro que el elemento de la literatura y del poetizar. No existe texto
significativo de la tradición que no sea a la vez texto de aliento, escritura de aliento.
Las líneas son los suspiros del poeta, lãs estrofas, el cambio de aliento del poeta. (...)
La promessa del aliento no anuncia que el destino de lãs promesas positivizadas sea el
petrificarse em liberaciones mentirosas, pues aunque se pueda contener el aire, esto no
puede durar mucho, y a de espirarse de nuevo el que ya se há tomado. El aliento del
250
espírito libre tendria que penetrar por tanto en todos los sistemas positivos. Allí donde
irrunpe la libertad de respiración nace uma frivolidad característica. Em la inspiration
el aliento libre ocupa unos espacios que luego despeja al expirar. (...) También las
huidas podem ser literatura universal, tambien las abdicaciones podem ser promesas
de mundo. El expirar devuelve todo lo que se tomo anteriormente. Esa es la razón por
la que el mundo como promessa no se solidifica artificialmente ni se sostiene com
violência: el aliento prometedor no fixa lo que promete, y no puede prometer más de
lo que tiene. Una literatura que tenga aire está inspirada por uma frivolidad
inmemorial.
284
Para além de toda formalização ideológica exposta e reelaborada em inúmeras
filosofias positivas e racionalistas, existiria essa poeticidade cada vez mais premente e que
se introduz ou se reintroduz na reflexão filosófica como a promessa de alento que situa o
movimento do pensamento como uma frivolidade característica que sempre e ao mesmo
tempo em que inspira uma resolução sobre o mundo, está pronta a ser uma literatura do
expirar, quando neste gesto, se expõe ou se autoexpõe como uma poética da capacidade de
despedida ou do encontro, ou talvez na forma de uma promessa, do reencontro.
Esta exposição do literário ao que é da ordem do que vive na intensa respiração do
mundo, se dá para nos como performatividade própria de uma teatralidade paradoxal da
literatura. Essa teatralidade que se gesticula singularmente no interior de cada obra se lança
à própria abertura numa continua vinda deste mundo ao advento da própria promessa de
alento. Como dobradura móvel de sua própria profundidade, o mundo se desdobra a partir
de seus próprios corpos, se retirando em cada investida rumo a sua própria abertura.
Essa teatralidade maquínica da literatura configuraria nessa promessa poética, uma
expressividade dramática para além do espaço cênico físico produzindo no interior do
movimento literário uma sobredeterminação significante onde a singularidade dos traços de
uma individuação rearranja o próprio espaço onde se movem as vozes imemoriais que
narram numa atualização ininterrupta do mundo, os vestígios ou os efeitos de movimentos
que poderiam paradoxalmente ainda estar por vir.
Bataille e Blanchot e o jogo paradoxal da escritura literária.
284
Op.cit. P. 159-160.
251
« Par le détour de la perversité de Sade,
la violence entre enfin dans la
conscience. » Bataille écrit : enfin. Tout
se passe donc comme si l’enseignement
paradoxal que porte avec lui à toutes les
niveaux le couple interdit/transgression
avait attendu sa conscience nette, qui, du
même coup, apparaît bien « tardive ».
Comme sinous pouvions enfin saisir
comment la société et l’histoire ne sont
donc que la forme détournée (filtrée) que
prend la violence (la force) pour pénétrer
dans la conscience fabriquée par cette
société et cette histoire. Comme si
l’écriture était la forme de ce détour, de
sorte qu’un acte d’écriture, porté à son
extremité, serait la seule façon de réveler
à la fois le mensonge de l’histoire (sa
fiction) et sa verité (qui n’est jamais la
verité pour laquelle elle se fait prendre
sous ce mensonge). Comme si le couple
vrai/fauxlaissait de toutes parts la place à
une phisique du geste écrit où l’écrit est
tracé par le corps transgressif lui-même,
disparaissant dans son écriture et
écrivant l’histoire comme texte de la
violence trahie (c’est-à-dire à la fois
désertée et prise à la gorge).
285
Gostaríamos de poder introduzir o tema a partir de um comentário cruzado sobre os
ensaios críticos de Phlippe Sollers e de Michel Foucault os quais tratam, cada qual a seu
modo, da emergência, posição teórica e, até certo ponto, da reverberação de uma experiência
de escritura crítica e ficcional desde a década de 1950, no contexto de uma crítica geral da
representação e desembocando no fenômeno revolucionário coletivo e efervescente da
contra cultura no fim da década de 1960, até seus desdobramentos teóricos e críticos
contemporâneos.
285
SOLLERS, Philippe. L’écriture et l’expérience des limites. Paris,Seuil, 1968, p. 130. “Pelo desvio (tour)
da perversidade de Sade, a violência entra finalmente na consciência”. Bataille escreve: finalmente. Tudo se
passa então, como se o ensinamento paradoxal que leva com ele em todos os níveis, o par
interdito/transgressão, tivesse alcançado sua consciência clara, que, ao mesmo tempo, surge tardiamente.
Como se pudessemos enfim discernir como a sociedade e a historia não são portanto, mais que a forma
“transformada”(détourné) (filtrada) a qual toma a violência (a força) por penetrar na consciência fabricada por
esta sociedade e esta historia. Como se a escritura fosse a forma desse desvio, de modo que um ato de
escritura, levado à seu extremo, seria a única maneira de revelar ao mesmo tempo as falsidades da historia (sua
ficção) e sua verdade ( que não é nunca a verdade pela qual ela se faz tomar sob essa falsidade). Como se o par
Verdadeiro/Falso deixasse lugar à uma física do gesto escrito, onde o escrito é traçado pelo próprio corpo
transgressivo, desaparecendo em sua escritura e escrevendo a historia como texto da violência traída (vale
dizer, ao mesmo tempo desertada e pronunciada).” (Tradução nossa)
252
Em linhas gerais nossos cometários deverão configurrar-se como a possibilidade ou
pelo menos a intenção de descrição da própria experiência de escritura ficcional - entendida
aqui em seu sentido performático e teatral, vale dizer em grandes linhas, ontológico e
dramático - em A Paixão segundo G.H e Thomas L’obscur.
Seria necessário ainda ressaltar que nossos comentários não pretendem estruturar os
temas maiores expostos nos ensaios supracitados, a saber, a desconstrução de todo um
programa dialético e especulativo “estabilizado na Fenomenologia do Espírito de Hegel,
mas sim poder acompanhar o trajeto teórico semelhante em suas bibliografias, e que
marcam, segundo Sollers e Foucault, certa linha filiativa constitutiva a qual, de início,
mencionaremos apontando a figura e a escritura transgressiva e exorbitante de Sade.
De maneira geral, um traço específico marca a diferença básica nesses dois textos
que, por outro lado tratam, cada um a seu modo, dos temas que nomeamos de teatralidade e
gestualidade limites na escritura ficcional ou literária exposta na emergência sui generis do
Recit do século XX.
Esse traço reverberaria dois movimentos ao mesmo tempo, os quais têm, para nós, o
próprio teor significativo de nossa preocupação a respeito do conceito de teatralidade
literária que procuramos desenvolver. O primeiro movimento faria ressoar a filiação de certa
transgressividade especulativa na história do pensamento moderno, a partir da figura ou da
teatralidade ficcional sadiana. O segundo movimento se configuraria como o próprio
movimento de uma escritura literária que em suas formas variadas, segundo as diferenças de
seus estilos, operaria o que chamaremos de uma poética de suspensão ou neutralização do
sentido observadas e lidas tanto em Georges Bataille comentado por P. Sollers, quanto em
Maurice Blanchot comentado por M. Foucault.
Talvez devêssemos situar, ao menos em esboço, a linha comum e reverberante que
instaura a crítica constitutiva sobre a idéia de representação ou mimese que atravessa,
segundo formas variadas, o programa filosófico ocidental culminando na dialética
teleológica de Hegel.
De algum modo será o que pretenderemos fazer inicialmente aqui a partir de uma
estratégia de comentário cruzado, situando alguns pontos de articulação e de tensão que
poderiam marcar de forma mais esclarecedora, os espaços de descontinuidade e de
diferenciação que possibilitariam marcar ou discernir tanto no pensamento de G. Bataille
253
quanto no de M. Blanchot, a emergência de uma série de conceitos que passariam a ilustrar
uma cartografia geral do pensamento especulativo da modernidade, aberta desde então a um
novo “paradigma” de experiência do pensamento a partir da noção de teatralidade alegórica
ou maquínica da literatura.
De fato, nossa preocupação é a de tornar mais explícita a discussão sobre a relação
entre pensamento e escritura que, como sabemos, atravessa, segundo modos de abordagem
especulativa diversos, boa parte do pensamento especulativo da filosofia ocidental
contemporânea. É claro que nos limitaremos à composição e reunião citacional a partir dos
comentários magistrais de Michel Foucault e Philippe Sollers, procurando acrescentar,
quando possível, variantes conceituais de outros teóricos como forma de fazer variar o tema
de uma crítica geral da representação a partir do embate ou da articulação dessa ampla
problemática com a noção de teatralidade que observamos na literatura e que nos servirá de
maquínica crítica.
Iniciaríamos nosso comentário de comentários afirmando a epigrafe que Sollers
invoca no início do ensaio sobre o pensamento de Georges Bataille:
« Rien n’est fermé à qui recconaît les conditions matérielles de la pensée. »
De início aproximaríamos certa intuição sobre o quanto a idéia sobre um empirismo
transcendental levado ao limite ajudaria à compreensão geral sobre a possibilidade e a
singularidade que a construção de cenas implica na especulação do próprio pensamento. Por
outro lado, os limites de uma experimentação poética da linguagem postos em movimento
pela própria necessidade da experiência da escritura se fazer especulação sobre a variância
da matéria em seus modos expressivos, abririam, como numa espécie de transitividade inata,
um fundo abismal e infinito sobre o próprio sentido do pensamento e, por conseguinte, da
escritura.
Pois se trata justamente de pensar sobre quais as condições materiais para que o
homem pense de um determinado modo. Sollers gravita ou nucleia seu comentário sobre a
escritura e o pensamento de Bataille (de início partindo de l’Erotisme e La Part maudite) a
partir do jogo de tensões em double-bind que caracteriza uma espécie de dialética sobre-
expositiva ou sobre-suspensiva, baseada nas categorias ontológicas, se assim podemos dizer,
do descontínuo e do contínuo, bem como, do outro lado desta “equação diferencial”, faz
operar um movimento sobre as categorias valorativas ou proto-éticas da interdição e da
254
transgressão como valores de tensão constitutivos de um ethos humanóide cindido desde
sua origem imemorial, numa relação dúplice, origem metafísica proto-originária de uma
presença a si impossível e ao mesmo tempo constituidora de toda a historicidade ocidental.
Podemos reter por um momento a categorização geral de Sollers:
Le passage du discontinu (du monde significatif formé d’individus et de choses) au
continu (manifesté pour la mort, la violence, la révolution) recouvre le jeu
fondamental de l’interdit et de la transgression.
286
E, portanto, toda uma economia de forças eróticas, simbólicas e finalmente
capitalistas que se passa no jogo denso dessa equação onto-ethinologica, se assim podemos
simplificar o programa bataillano. Mas o importante será ressaltar a maquínica paradoxal
que tem lugar entre a constituição cultural do homem e seu aniquilamento na morte. Nesse
espaço onde o homem tem existência e onde o pensamento se faz escritura no modo
econômico simbólico, a violência é o próprio teor de um recalque constitutivo dado pela
força reiterável da linguagem.
Entre a interdição e a transgressão, estas como categorias constitutivas de uma
objetividade e subjetividades do próprio pensamento ocidental, ocorre na forma da
linguagem toda uma série de relações complexas de significação, baseada em estruturas
profundas que se digladiam historicamente no seio da própria linguagem. Não seria preciso
reafirmar o estatuto ontológico, mas é desse paradoxo entre uma afirmação transgressiva e
uma negatividade proibitiva no corpus simbólico e etnológico da constituição humana, que
emerge a discussão em relação à questão mesma do pensamento e da escritura, da literatura
como maquínica geral de exposição e desconstrução de uma dialética sobre expositiva ou
entre o mesmo e o outro, entre uma questionável identidade a si do homem e sua
diferenciação radical exposta a partir do movimento paradoxal que procuraremos fazer
emergir.
Nesse sentido, para Bataille, a transgressão, como categoria operativa da constituição
econômica e erótico-libidinal do homem e a fortiore constituidora da própria linguagem:
loin de s’opposer à l’interdit, le complete; la loi que reclame donc implicitement la
violation de la loi, sont, dans l’economie social qui produit « l’homme », dans le jeu
qui le fait naître, se develloper, se dépenser, et mourir, les cases « vides » de ce qui
nous pourrions appeler son organe symbolique, aussi invisible que insaisissable.
287
286
Op.Cit., p. 106.
287
Op.Cit., p. 108.
255
Pois há um problema nesse jogo de contrários que é justamente da alçada de uma
crítica radical ao movimento dialético científico, a que procuramos fazer ressoar a partir da
citação acima. Bataille se preocupa com um determinado ponto ou dimensão, onde, na
forma do conceito de erotismo deveríamos entender um movimento complexo e
contraditório, não resolutivo, muito menos sintético. O erotismo em seu sentido bataillano
faz jogar, no que concerne a uma economia simbólica da constituição psíquica e cultural do
homem, uma pseudo-transgressão que não acederia ao estatuto potencialmente paradoxal
observado pelo pensamento bataillano e que faz justamente a crítica radical de um
determinado idealismo teleológico e dialético.
Essa crítica radical se faz presente quando se traz a luz o movimento paradoxal
coexistente nas categorias da interdição como lei proibitiva, e da transgressão dessa lei. E
desse estatuto deveremos ter em mente um recalque generalizado sobre certa naturalização
da sexualidade como inocência pura do desejo imposta pelo estatuto científico dialético
moderno. Na verdade, essa naturalização ou inocentização da sexualidade aprenderia em seu
próprio sistema lógico aquilo que para o pensamento bataillano opera como movimento
paradoxal de um pensamento que funcionaria justamente fora do sistema dialético instituído
como relação de poder e organização do sentido como verdade e lei absolutas de causa e
efeito. A ciência ao se apropriar de uma relação proto-ontológica, digamos assim, instauraria
dialeticamente uma institucionalização naturalizante sobre a interdição e a transgressão
enquanto categorias ethológicas constituidoras da própria linguagem.
En innocentant la vie sexuélle, la science cesse décidément de la recconaître. Elle
clarifie la conscience, mais au pris d’un aveuglement ». « Le plus souvent, pour la
science, l’interdit, n’est pas justifié, il est pathologique, il est le fait de la nevrose. Ilest
donc, connu du dehors (…) Cette maniére de voir ne suprime pas l’experience , mais
elle lui donne un sens mineur. De ce fait l’interdit et la transgression , s’il sont décrits,
le sont comme des objets, ils le sont par l’historien – ou par le psychiatre – (le
psychanaliste). » L’attitude scientifique – l’attitude legale – est donc prise dans le
piége immédiat de sa presupposition logique, et cela quels que soient les progrès, les
developpements de plus en plus complexes et les résultats quelle obtient : plus elle net
l’interdit, plus elle le reconnait comme étant contingent, explicable, formalisable, et
plus elle renforce la maniére d’être de l’intedit. « L’interdit observé autrement que
dans l’effroi, n’a plus la contrepartie du désir que en est le sens profond. » (…) La
transgression devient entiérement metaphorique, isolant un sujet qui connaît et un
objet connu, un savoir exilé de l’ambiguité qui est à la source de toute savoir, de
l’ensemble intérieur/extérieur où se jouent l’aventure de ses limites.
288
288
Op.Cit., p. 110.
256
Bataille - para esclarecer esse problema de uma imediata circunscrição lógica do
domínio do discurso científico sobre a dimensão irracional de uma pseudo-transgressividade
que não elimina de uma vez por todas a interdição - opera uma estratégia paradoxal de
entrada e saída constantes de um dentro e um fora de uma discursividade reflexiva do
pensamento, até o ponto de uma não diferenciação desse movimento. Não diferenciação que
toma a forma expressiva de uma poética do pseudo-transgressivo; uma poética da suspenção
operada a partir de uma espécie de sobredeterminação negativa do próprio movimento
dialético.
Um dentro e um fora como movimentos entre a objetividade científica e um estatuto
subjetivos de uma experiência limite de um não-saber constitutivos, devem ser expostas
constantemente ao próprio movimento dessa experiência interior que pela estratégia
paradoxal que lhe dá sustentação retórica, procura jogar com o papel do “outro de todo
discurso, outro do saber absoluto”:
[...] et cela non pas pour revenir à um quelconque subjectivisme antidialectique, mais
comme pour appeler la dialetique sur le terrain même de son enjeu, au plus profond de
la logique dissimuilée qui, dans son langage l’a rendu possible. C’est enjeu est de
montrer clairement – à egale distance de la science et de la philosophie dont
l’antinomie se trouve en ce lieu suspendue – que les postures « scientifiques » et
« philosophiques », quoique justifies et necessaires, laissent échapper l’essenciel.
289
Entre a ciência e a filosofia, entre um dentro e um fora do discurso ou da experiência
especulativa sobre o próprio pensamento reflexivo, a experiência de pensamento bataillana
traça o caminho segundo suas próprias estratégias, o que deverá nos apontar para uma outra
experiência de pensamento que compartilharia as linhas básicas de crítica e de
experimentação pela linguagem, dessa dimensão intervalar que procuramos fazer ressoar na
noção de teatralidade e de experiência limite da literatura como sendo da ordem da própria
suspensão do sentido e da posição de uma experiência discursiva ou retórica que opera um
jogo de forças próprio à crítica geral da representação no sentido em que a aproximamos de
uma experiência dramática ou teatrológica da literatura. Essa outra experiência que se
relaciona por outras vias à poética da negatividade de Bataille é a de um pensamento do
fora, o qual Michel Foucault lê na obra de Maurice Blanchot e o aproxima de algumas
outras experiências limite, como por exemplo é de algum modo inaugurando o pensamento
289
Op. Cit., pp. 110-11.
257
moderno, com Sade e Hölderlin, para ressurgir com sua própria força e variabilidades
especulativas, dramáticas e poéticas, a partir da segunda metade do século XIX, entre
outros, com Nietzsche, Mallarmé, Artaud, Beckett e Bataille.
O Pensamento do fora de Blanchot segundo Foucault.
Ninguém melhor do que Foucault pode discernir esse movimento paradoxal que a
linguagem engendra ao performar em seu paroxismo atributivo de sentido sua própria
retirada, possivelmente transcendental, no exato ou no imediato traço (impossível em termos
absolutos) de sua instauração valorativa ou semântica. A ficção moderna carrega em seu
sentido móvel - e que gostaríamos de chamar teatral, ou performático - as artimanhas
necessárias para se fazer o campo de forças paradoxais que a tornam o domínio ou o espaço
de efervecência de uma nova potencialidade da linguagem, aí mesmo onde se confundem
como limite e impossibilidade seus campos de atuação, outrora nomeados hermenêuticos.
Ja não se trataria, a partir daí, do domínio de força interpretativa que o pensamento
reflexivo ou filosófico deveria impor como função atributiva de um sentido lançado para
horizontes futuros, mas, sim da constatação de um remanejamento constante desses
domínios onde o pensamento reflexivo deve passar a ser por si próprio posto em jogo e
percebido como exercício ou experiência dramática da linguagem e do pensamento. É desse
domínio de performatividade onde uma idéia teatrológica de retórica retoma potencia, que
gostaríamos de convocar a leitura da ficção blanchotiana e em alguns pontos dessa reflexão
aproximar a experiência literária clariciana.
Como Bataille, mas a partir de uma variação expressiva ou retórica, Blanchot
também opera uma suspensão progressiva e não conclusiva ou sintética do sentido.
Em sua performatividade ficcional o próprio traço do imediato de seu sentido
discursivo é relevado a uma espiralidade incessante onde o teor valorativo da expressão é
constantemente movimentado a partir de uma força ou domínio tetralógico de neutralização
258
do sentido. Essa paradoxologia
290
se exerce tanto no domínio infradiscursivo, se assim
pudermos dizer, como a partir do movimento mais exterior que retorna os efeitos
microscópicos da frase à amplitude semântica e muitas vezes desfiguradora de qualquer
totalização diegética do texto. O domínio de reflexão ou de especulação que pode se
estabelecer no texto ficcional blanchotiano se elabora como sobre-determinação suspensiva
ou de performação de uma poética de neutralização do próprio discurso ficcional sobre o
próprio espaço dialético interno à lógica especulativa.
Nesse sentido, Foucault diz:
De là, la nécessité de convertir le langage réflexive. Il doit être tourné non pas vers
une confirmation intérieure, - vers une sorte de certitude centrale d’où il ne pourrait
plus être délogé - mais plutôt vers une extrémité où il lui faut toujours se contester :
parvenu au bord de lui-même, il ne voit pas surgir la positivité qui le contredit, mais le
vide dans lequel il va s’effacer ; et vers se vide il doit aller en acceptant de se dénouer
dans a rumeur, dans l’immédiate négation de ce qu’il dit, dans un silence qui n’est pas
l’intimité d’un secret,, mais le pur dehors où les mots se déroulent indéfiniment. Ce
pourquoi le langage de Blanchot ne fait pas usage dialectique de la négation. Nier
dialectiquement, c’est faire entrer ce qu’on nie dans l’intérieur inquiète de l’esprit.
Nier son propre discours, comme le fait Blanchot, c’est le faire passer sans cesse hors
de lui-même, le dessaisir à chaque instant, non seulement de ce qu’il vient de dire,
mais du pouvoir de l’énoncer [...].
291
Negar o poder de enunciação do próprio discurso tem lugar apenas pela via de uma
estratégia performática dada pela voz narrativa. Afirmar e negar sua própria afirmação pela
via de uma descrição narrativa que se lança à corrosão de seu próprio domínio de
instauração discursiva é suspender o sentido e promover uma poética do neutro que não
290
Voici, un fragment de L’attent L’oublie de Blanchot, que peut donner un cadre exemlaire de la
performativité selon la voix narratif propre à l’exercice d’une théatralité paradoxologique blanchotien. Il y a
alors, un jeu de neutralization propositionel, bien aussi qu’une elaboration expressif que crie la performation de
valeurs toujours contraires et en jeu incessant qui toujour se reélabore. Alors, il s’agit de le début du recit, où il
y a encore la forme narrative d’un discurs indirect libre : les verbes écouter, entendre, écrire, le sens des
imagens propositionels et l’imediat d’une voix, sont tous des autres sens que sont performé jusqu’au but selon
l’intention d’une suspention operatif du sens propre et méme d’un sens derivatif de quelque intention
semantique : c’est donc, pour nous , le propre sens du reflexif ou de l’especulativ qui est donc mis en jeu sur
une théatralité paradoxologique:
« Ici, et sur cette phrase qui lui était peut-être aussi destinée, il fut contraint de s’arreter. C’est presque en
écoutant parler qu’il avit rédigé ces notes. Il entendait encore sa voix en écrivant. Il les lui montra. Elle ne
voulait pas lire. Elle ne lut que quelques passages et parce qu’il le lui demanda doucement. « Qui parle ? »
disait-elle. « Qui parle donc ? » Elle avait le sentiment d’une erreur qu’elle ne parvenait pas à situer. « Effacer
ce qui ne vous paraît pas juste. » Mais elle ne pouvait rien effacer non plus.Elle rejeta tous les papiers
tristement. Elle avait l’impression que, bien qu’il lui ayant assuré qu’il la croirait en tout, il ne la croyait pas
assez, avec la force qui eût rendu la vérité presente. « Et maintenant vous m’avez arraché quelque chose que je
n’aí plus et que vous n’avez même pas. »(…) Cf. BLANCHOT, M. L’attent L’oubli. Paris. Col. L’imaginaire,
Gallimard, 1962, p. 7.
291
Op. Cit., p. 551 (itálico nosso).
259
somente elabora uma hemorragia do sentido dialético e sintético dado pela própria
historicidade de uma expressão reflexiva e especulativa, mas também, criar um domínio
expressivo teatrológico onde uma dramaticidade do próprio ato especulativo se volta contra
si mesma em direção à amplitude desmesurada e exorbitante da aporía.
O campo ou o plano da ficção nesses termos pode, a partir desse impasse produtivo,
dessa poética do neutro ou da suspensão ativa do sentido que aí funciona, elaborar uma
maquínica própria, ou seja, uma teatralidade performática singular no movimento histórico
das idéias que desembocam na vertigem de uma produtividade reflexiva moderna, como
elevada ao paroxismo de sua própria crítica ontológica (Nietzsche, Heidegger, Derrida),
elevada portanto ao paroxismo de uma abertura à própria possibilidade de instauração ou de
posicionamento de programas críticos que deverão, ao se questionar sobre sua própria
demonstração histórica e ontológica, instaurar novos modelos de criticidade baseados não
somente numa desconstrução ativa de seus pressupostos lógicos e filológicos, mas por
outras vias, na possibilidade de viabilização de verdadeiras dramáticas ou teatralidades
expressivas que acrescentem à experiência do pensamento um excesso de significação que
advêm, como experiência transgressiva e reavaliativa, do próprio campo ficcional, daí em
diante apresentado ou performado como estratégia estética de um pensamento
interdependente dos regimes especulativos e reflexivos filosóficos.
Essa interdependência pode ser ilustrada ou nomeada aqui como o próprio espaço
performático do fora, dobra regenerativa e coalescente do movimento e da experiência do
próprio pensar como devir ativo sobre si, reflexão incessante e desconstrutiva do sentido da
subjetividade e da materialidade objetivas do mundo e não do pensar como simples
atividade categórica ou retórica e gramatical de uma substância transcendental do
pensamento.
A lei como figura paradoxal numa economia do interdito e da transgressão.
Para que a lei surja do interior dobrado de sua permanência inconstante e perene é
necessário que aja a produção de um outro movimento que a faça desdobrar-se para além de
260
si mesma, para além da obviedade de sua existência incompleta e totalitária. Esse
movimento pode ser pensado a partir da literatura. Mas pensamos aqui, é claro, no
movimento de uma experiência limite da literatura, onde imagens descritivas, extáticas ou
performáticas possam jogar teatralogicamente com a presença paradoxal da lei.
É todo um ritmo que pode se fazer eclodir na forma do que Foucault chama de
movimento de atração e repulsão em direção ao fora. Mas esse movimento deve ser
investigado em sua impossibilidade conclusiva, em sua economia pulsional tornada
destinação progressiva e sem fim.
Daí entra a imagem do gesto e da riqueza volátil que seu sentido imanente pode doar
a essa economia paradoxal pensada a partir das idéias do fora, da lei, e das imagens da
negligência e do zelo que funcionam em Thomas como sua mecânica mais fina, ou sua
gestualidade teatrológica codificada numa intensa e paradoxal economia do inacabamento
de uma destinação inconclusa.
Essa destinação é movimentada em sua natureza inconclusa pela própria
expressividade redobrada e posta em jogo no movimento paradoxal em torno à lei. Pois é a
própria lei que objetivada como finalidade ou origem, se desloca sobre si mesma na
produção simbólica que faz movimentar em torno a si os corpos que a sustentam como o sol
impermanente sob o tempo de seu curso, tempo próprio a sua própria curvatura no interior
da noite. Não há lei que não se dissimule sobre o tempo de sua aparição, que não coexista no
interior de sua própria negatividade dada pela presença indestrutível de sua contradição dada
na forma do interior metódico e rítmico da transgressão que a faz presente a si mesma por
ser primeiramente ausente em sua diferença a si mesma.
A lei é, nesse sentido, o espaço dobrado de sua presença como ausência de seu
próprio fundamento; ou, em outras palavras, ela opera (im)propriamente o a-fundamento
sem origem de sua própria ontologia, pois necessariamente composto de duas presenças
complementares e paradoxais, seja a do mesmo como identidade a si e do outro como
diferença constitutiva de sua própria negatividade fundante e/ou a-fundante. Para que o Ser
seja, é necessário que ele esteja afirmado, desde a origem, sobre a égide de uma ausência
contraditória, ou seja, que ele afirme sua presença no imediato da negação de sua referência
a si mesmo, que sua afirmação a-fundante seja também, ao mesmo tempo, uma negatividade
arqui-originária. De algum modo, a lei pode ser pensada como plano de imanência
261
irredutível da lógica dialética; sua atribuição de presença, a marca da ação dada pelo verbo
Ser, funda e a-funda como aporia constitutiva do sentido, sua referência impossível sem o
deslocamento metonímico e lógico constitutivo de sua própria marca que tanto a afirma
quanto a afirma sobre a negatividade sobre-afirmativa de uma ausência dissimuladamente e
incessantemente presente nessa dissimulação.
Em Blanchot esse espaço contraditório a-fundante e abismal da lei pode ser
percebido pela progressão incessante das imagens neutralizantes do próprio movimento
exercido pelos personagens, movimento que ao mesmo tempo aborda e limita um contra-
movimento exterior aos personagens, seja na forma da ambiência ou do próprio espaço seja
de maneira mais profundamente complexa e potente, esse movimento ou essa economia é
performada na forma expressiva dada pela voz narrativa.
Sobre essa voz, é necessário dizer que ela opera como o próprio Corpo de uma
poética do neutro, agenciando toda uma economia de gestos paradoxais, na forma de uma
teatralidade do ambíguo e do hesitante, da desistência, da flutuação e da queda, para
novamente haver na continuidade dessa estranha luta sem vencedores, a impossibilidade de
escolha dada pelo contraditório de seus movimentos que sempre de algum modo decidem
algo, no gesto sutil de sua postura, mesmo que indecidível em um sentido finalista, marca o
próprio ou o impróprio de sua ação suspensa e inconclusa.
Foucault descreve em duas imagens - uma abstrata e outra descritiva - de uma cena,
cada qual esclarecendo de forma ampla o sentido dessa potência que observamos no gesto,
seu poder de transmissão performática e teatrológica, poder de uma gestualidade que para
nós torna-se parte constitutiva de uma verdadeira expressividade do pensamento que
procuramos descrever como o próprio sentido de uma teatralidade maquínica de uma
experiência limite da literatura:
La Loi, c’est cette ombre vers laquelle nécessairement s’avance chaque geste dans la
mesure où elle est l’ombre même du geste qui s’avance. (…)
292
Essa imagem de Foucault é de uma potência impressionante, pois remete tanto ao
deslocamento fatal e irredutível de um sentido absoluto da lei, quanto à potencia do gesto e
da imagem que faz do gesto esse elemento de exposição corpórea onde uma economia geral
262
do sentido pode ter lugar como alegoria ontológica na forma de uma teatralidade
generalizada à qual associamos a operatividade da própria voz narrativa e de seu movimento
ficcional aberto ao pensamento do fora. Um movimento de escorregamento se eleva em
direção à lei que deve, ao ser procurada, se ausentar de sua situação ou aparência “objetal”,
tornando-se incessantemente também agente desse mesmo movimento que a origina e que a
desfaz como simples finalidade sintética. A lei, nesse sentido, opera a imagem de um
verdadeiro plano de imanência onde o tempo e o espaço como dimensões correlativas e co-
presentes podem se estender numa constituição estética, numa desenvoltura propriamente
plástica e dramática, potência virtual de uma expressividade teatralógica.
De part et d’autre de l’invisibilité de la loi ; Aminadab et Le Très-Haut forment
diptyque. Dans le premier de ces romans, l’étrange pension où Thomas a pénétré
(attiré, appelé, élu peut-être, mais non sans être contraint de franchir tant de seuils
interdits) semble soumise à une loi qu’on ne connaît pas : sa proximité et son absence
sont sans cesse rappelé par des portes illicites et ouvertes, par la grande roue qui
distribue des sorts indéchiffrables ou laissés en blancs, par le surplomb d’un étage
supérieur, d’où est venu l’appel, d’où tombent, des ordonnances anonymes, mais où
nul, n’a pu avoir accès ;(…)
Dans Le Très-Haut, c’est la loi elle-même (en quelque sorte, l’étage supérieur
d’Aminadab, dans sa monotone ressemblance, dans son exacte identité avec les autres)
qui se manifeste en son essentielle dissimulation.
293
É o que Foucault relembra nesses fragmentos, como potência ou estratégia própria
de um pensamento do fora, ao associar dipticamente dois romances de Blanchot; Aminadab
e Le Très Haut e, nesse sentido, descreve os gestos de Thomas em Aminadab, como gestos
que ao mesmo tempo em que hesitam ao entrar na estranha pensão que ambientalisa a
história, deixam a marca de uma desistência em não entrar no prédio em frente, como se
toda decisão fosse permeada de uma série de outras decisões aí acopladas de forma
irredutível e que marcassem um certa impossibilidade de fundo, ou melhor, sem fundo, de se
ter uma escolha prescrita como a mais possivelmente óbvia ou correta. Daí uma série de
outros gestos de Thomas que marcam em seu sentido irredutível o próprio processo de
transgressão ou de pseudo transgressão ao representar, em seu próprio movimento, o
ultrapassamento de umbrais que ao serem atravessados, devem fazer recomeçar novamente
o processo interminável de reposições desse corpo em torno a uma fatalidade imemorial, em
292
Idem.
293
Op. Cit., pp. 557-8.
263
torno à “invisibilidade” ou à dissimulação incessante da lei em sua potência de suspensão e
paradoxo.
Onde está a teatralidade nas narrativas de Clarice Lispector e Maurice Blanchot?
A teatralidade no sentido em que a procuramos fazer operar é uma performance do
texto que emerge do movimento próprio à voz narrativa, segundo entendemos esta a partir
da especulação blanchotiana sobre as transformações nos modos ou nas posições
semiológicas dessa voz que opera como instância produtora e organizadora da matéria
narrada, em função e em relação a sua própria historicidade, primeiro e constituidoramente
dramática e teatral, em um segundo momento, épica e finalmente, tomando a forma do
romance, desemboca na vertigem paradoxal da enunciação de uma voz perscrutadora de si
própria que tem lugar no Recit ou narrativa ficcional moderna, onde desenvolve uma
potência plural de descentramento e reorganização dos elementos compositores da narrativa,
tais como, o tempo, o espaço, os personagens, a trama, a perspectiva narrativa e sobretudo o
próprio estatuo semio-ontológico do narrador.
É bem verdade que em seu texto sobre a voz narrativa Blanchot trata de fazer
culminar, nas formas e estratégias do Recit moderno, suas próprias experiências ficcionais,
bem como a de seus interlocutores, amigos e escritores com quem mantinha relações, e a
especulação descritiva sobre o próprio movimento de transformação semiológica por que
passa a instância da voz narrativa nessa historicidade.
Segundo Dominique Rabaté, há um “effet de voix” que se desdobra a partir da voz
narrativa, ou seja, há a uma complexa “posta em jogo” (mise em jeu) do sujeito a partir dos
movimentos inerentes a sua própria inscrição polifônica na escritura narrativa do recit
moderno.
Ces que les récits em question, ces fictions de voix, écrites à la premiére personne, et
qui aspirent à trouver le juste rapport du sujet narrateur à lui-même, proposent en fait
de mise en scène de leur propre production. La voix narrative cherche à se rejoindre.
L’experience du lector double ainsi celle de l’écrivain : elle est une quêtte tangentielle
264
du point où la voix pourrait idéalement se confondre avec elle-même, un chemin vers
le centre dérobé de son surgissement.
294
Os efeitos de voz aos que se refere Rabatté são resultados a partir do modo particular
de apresentação da matéria narrada, relacionado esta, a um jogo de cenas e re-inscrições do
sujeito (desde sempre descentrado e desdobrado sobre sua própria polifonia e, arriscaríamos,
sua própria teatralidade) onde performa-se em conseqüência a voz que não mais
simplesmente localiza, espacializa e organiza a matéria a ser narrada, mas se constitui a si
mesma como motor de questionamento sobre sua própria condição de existência, sua
potência particular de desdobramento e de perspectivismo sobre os objetos e toda a
complexidade coexistente na construção da narrativa.
Para Rabaté, a voz narrativa - e seus efeitos, efeitos de descentramento do sujeito em
relação ao gesto de escritura - que aqui reportamos ao conceito de teatralidade maquínica -
está relacionada a um desenvolvimento fundamental do romance desde o século XIX e que
não é senão a emergência do Récit ou narrativa ficcional transformada em suas bases
estilísticas e formais romanescas.
L’importance frappante du phénomène du récit dans les années quarante et cinquente
s’explique comme un longue processus d’aboutissement des recherches antérieures
chez des auteurs aussi variées que Poe, Dostoïevski, Proust ou Faulkner.
L’autonomisation du personnage romanesque, la libération de sa voix singulière
comme conscience à parte entière, […] trouvent un achèvement paradoxal.
295
Nesse sentido, ou em relação a essa referência à historicidade e ao equacionamento
da maquínica própria da voz narrativa, seria necessário agora descrever e situar
semiologicamente essa performance ou esses efeitos de voz no “interior-exterior” (a própria
voz é fisiologicamente uma invaginação “dentro-fora” do corpo) do que nomeamos
teatralidade maquínica da literatura. Não se trata de absorver uma potência semiótica própria
e singular da gestualidade física e movimentada na tetradimensionalidade do palco de teatro
propriamente dito. Trata-se, antes, de nos aproximarmos da potência do gesto teatral no
sentido de aceder à dinâmica múltipla que essa dimensão plástica e dramática do teatro pode
transmitir como densidade e operacionalidade semióticas à matéria narrada enquanto
movimento de enunciação paradoxal que emerge no Récit moderno.
294
RABATÉ, Dominique. Vers une littérature de l’épuisement. Paris, Jose Corti, 2004, p. 8
295
Op. Cit., p. 8.
265
A esse respeito, sobre a potência operativa e conceitual do paradoxo no plano de
discussão da emergência da voz narrativa como produtora de toda uma outra complexidade
no universo de inscrição do sujeito pela escritura, nos referiremos mais uma vez a Rabaté:
La notion de paradoxe sera [...] essentielle pour décrire le mouvement du récit, pour
saisir la tension d’une inscription temporelle dans le volume spatialement du livre. La
logique narrative dès lors suivie n’obéit pas à la stabilité de rapports une fois pour tous
définis ; sous les modes de la palinodie, du renversement, de la spécularité, de l’auto-
contradiction la voix défait le rapport qui devient, en fin de compte, l’objet vital de
son entreprise : son moteur.
296
Desse modo, mas operando a partir de outra perspectiva teórica, a primeira figura
que deveríamos investigar seguindo por outra via os trabalhos que situam o problema do
discurso filosófico e literário nas questões que envolvem a complexidade e as dinâmicas
enunciativas do “l’enjeu” da voz narrativa, é o paradoxo.
Phillippe Lacoue-Labarthe, em “O Paradoxo e a Mimese”
297
, explora o
desenvolvimento do que ele começa denominando tecnicamente “enunciação do paradoxo”
a partir da leitura do texto de Diderot, “Paradoxo sobre o comediante”, e acaba por
investigar a situação inversamente complementar de um “paradoxo da enunciação”. “Quem
enuncia o paradoxo? [...] Quem em geral enuncia, pode enunciar um paradoxo? Quem é o
sujeito de um paradoxo?”
298
, pergunta Lacoue-Labarte como introdução ao desenvolvimento
crítico que virá em seguida.
Trata-se da análise sobre uma economia enunciativa no texto de Diderot, onde se
performam três vozes narradoras em uma voz narrativa que pode conter o paradoxo por sua
própria constituição paradoxal enunciativa. Lacoue-Labarthe não trabalha por essa via
conceitual de uma voz narrativa constituidora de um plano múltiplo de enunciação que
poderia ao mesmo temo que irradiar uma espacialidade para as outras vozes, também
exercer uma enorme força de atração das configurações “verossimilhantes” ou dialógicas
possíveis de serem engendradas enquanto hipóteses teóricas a respeito de uma constituição
paradoxal da enunciação. Pois é disso que se trata no texto de Lacoue-Labarthe sobre o
Paradoxo do Comediante, ou seja, de perceber que “por trás” do movimento de enunciação
296
Op.Cit., p. 9.
297
“O paradoxo e a Mimese”, in: LACOUE-LABARTHE, Phillippe. A imitação dos Modernos. Ensaios sobre
Arte e Filosofia. São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 159.
298
Idem.
266
geral do texto, constituindo uma série de volteios em avante e em retrocesso segundo focos
narrativos variantes, como a princípio, a partir de um diálogo e em seguida a entrada na
forma narrativa de um discurso indireto livre, uma instância narrativa mais ampla, que
comporia em seu próprio movimento uma instabilidade generalizada a respeito de uma
possível origem de um sujeito enunciador - origem esta descartada como impossível - seja
ele “autografado”, como marca biográfica (o fato da atribuição do nome de Diderot no
próprio texto, bem como do antagonista do diálogo poder ser referido hipoteticamente a
D’Alambert), ou seja a atribuição de um valor de fixidez qualquer que seja à figura do
narrador ou por extensão de um autor.
O ponto fulcral do texto é exatamente quando surge como numa transição do foco
narrativo, uma referência que duplicaria a posição de enunciação da figura enunciadora da
tese do Paradoxo. Depois do fim do diálogo inicial onde se antagonizam as figuras do
“primeiro” (aquele supostamente que desenvolve uma teoria paradoxal sobre o comediante,
associado semanticamente ao autor Diderot) e do “segundo”, supostamente aquele que,
“anônimo, mesmo aconteceu de identificarem-no a d’Alambert”
299
e que pode-se perceber
como o que “responde” objetando essa teoria e propondo uma prova de observação no
próprio teatro, há a entrada em cena de uma voz enunciadora em terceira pessoa, que se
refere ao discurso do primeiro enunciando: “As idéias do homem do paradoxo são as únicas
de que posso dar conta, e ei-las tão descosidas como devem parecer quando se suprimem de
um solilóquio os intermediários que servem de ligação. Dizia: etc, etc.”
300
Esse ponto de “transferência” ou de “retransfêrencia”, se assim podemo dizer, ao
salto de um foco narrativo a outro, quando uma figura enunciativa passa a ser associada
relativamente a outra, como se movimentando “por trás” do texto, mas acedendo em
determinado momento ao primeiro plano enunciativo, ou a uma voz narradora, é um espaço
de dobra onde uma se dá na performance do texto em seu movimento enunciativo dinâmico
que relacionamos ao conceito de voz narrativa em Blanchot.
Nessa observação de variância e de indeterminação do sujeito enunciador, que ora se
coloca numa posição de diálogo e em seguida se posiciona “a frente” do texto fazendo
referência a si mesmo como outro, por trás de uma dissimulação regrada pela sutileza de seu
299
Op. Cit., p. 161.
300
Op. Cit., p. 160.
267
reposicionamento em relação ao foco narrativo, é que pode ser referida para Lacoue-
Labarthe a proposição de uma indecibilidade quanto ao estatuto enunciativo do texto de
Diderot.
Há um verdadeiro movimento que se dá nessa alternância dissimuladamente
intransiva entre um eu-narrador e uma “voz neutra” que se sobrepõe em determinado
momento à enunciação, fazendo referência à enunciação dialogada um pouco antes.
A partir da análise do episódio posterior ao diálogo, quando uma voz em terceira
pessoa faz referência à tematização do “Primeiro” interlocutor do diálogo, (hipoteticamente
Diderot), Lacoue-Labarthe mostra que na seqüência desse episódio, ou seja, quando ocorre
um solilóquio onde o narrador (aquele que diz: “As idéias do homem do paradoxo são as
únicas de que posso dar conta...”) empreende um verdadeiro diálogo interior, pronunciado
em “voz alta”, ao qual segundo Lacoue-Labarthe, “vem, por conseguinte encaixar-se no
conjunto do diálogo como sua replica, em abismo, de maneira tão perfeita que o primeiro
será tomado pela ilusão e imaginará ter ‘continuado a discutir’ quando na verdade, fazia as
perguntas e ele mesmo dava as repostas [...]”
301
.
Esse ponto de transferência ou de retransferência na instância narrativa será pensado,
segundo Lacoue-Labarthe, sob a forma de uma pergunta: “Porque o sujeito que aqui se
encarrega da narrativa e se exibe como tal, na primeira pessoa, pode dizer que ‘as idéias do
homem do paradoxo são as únicas das quais (ele) pode dar conta’?”
302
.
Daí segue-se a via explicativa do paradoxo. Não é possível determinar efetivamente
um lugar apenas para essa voz dúplice que passou a se movimentar simultaneamente no
texto.
O autor – Diderot – ocupa, portanto, simultaneamente (quero dizer: no mesmo texto)
dois lugares. E dois lugares incompatíveis. Ele é o Primeiro, um dos dois
interlocutores. Ou ao menos foi assim que ele se apresentou. Mas ele é também aquele
que colocando-se abertamente na posição de autor ou de enunciador geral, distingui-se
do Primeiro, ou pode, ainda que só de brincadeira, distinguir-se dele e constituí-lo
como personagem.
303
301
Idem.
302
Idem.
303
Op. Cit., p. 161.
268
Mas esse movimento dúplice e ainda incompatível que subsiste no ponto de
transferência ou de retransferência das duas séries enunciativas não é explicado
simplesmente segundo Lacoue-Labarthe pela “simples ruptura no regime da exposição”
304
.
Ele continua:
[...] não é sob o pretexto de que se passa de um modo dialógico (ou mimético) a um
modo narrativo (ou diegético, simples ou misto) que o enunciador do primeiro modo –
[...] deve obrigatoriamente dar essa espécie de “passo atrás” que o leva a tratar os dois
antagonistas com igual distancia, como terceira pessoa. Nenhuma legitimidade formal
impõe ou justifica tal gesto.
305
A intrusão do eu abalaria o texto em seu estatuto discursivo ou enunciativo. Essa
intrusão, segundo Lacoue-Labarthe, “longe de significar a apropriação ou a reapropriação do
texto pelo autor, longe de ser um efeito de “assinatura”, é o momento em que o texto (o livro
inteiro) vacila em seu estatuto”
306
.
Essa instância paradoxal da enunciação do paradoxo nesse caso e propositalmente
pensada desse modo, abalaria as próprias teses abordadas por Lacoue-Labarthe desde o
início do ensaio. Ou seja, a pergunta relativa à origem ou a uma posição de origem da
enunciação na forma da pergunta: “Quem enuncia o paradoxo?” Ou: “Quem se
responsabiliza por ele?”, perdem sua potência de determinação lógica, visto que é numa
mobilidade paradoxal e incessante que, própria da enunciação, faz jogar a referêncialidade
da própria voz enunciante nos movimentos internos de transferência e retransferência do
discurso dialógico ou narrativo, ou em sua entremeação.
Esse espaço de instabilidade do “paradoxo da enunciação” e que se verifica aprés
coup do questionamento sobre a própria “enunciação do paradoxo” no texto de Diderot, é
Ao mesmo tempo excluído e incluído, dentro e fora; ao mesmo tempo ele mesmo e
outro (ou, a cada vez, é preciso supor, ele mesmo como um outro – por isso, até no
monólogo, a coersão dialógica), o sujeito que enuncia não ocupa, na verdade, lugar
algum, ele é indeterminável: nada ou ninguém. Instância instável e sem estatuto, mais
exterior ainda ao enunciado cuja enunciação garante, na medida em que está aí
reimplicada e submetida ao que não se pode mais, desde então, considerar como sua
própria enunciação.
307
Lacoue Labarthe suspende o ensaio propondo uma outra tese, que se desdobra a
partir da expansão digamos assim, da verificação de um movimento atópico inerente à
304
Idem.
305
Op.Cit., p. 161.
306
Op.Cit., p. 162.
307
Op.Cit., p. 162.
269
formulação enunciativa do paradoxo e constituidora de um espaço de trânsito incessante à
qualquer formulação identitária de um sujeito enunciador que de um modo ou de outro opera
entrada possíveis de um eu subsistente, mesmo como fantasmático, à construção do texto.
O crítico assim propõe:
Dirão que esta é a própria questão da enunciação em geral. É muito possível.(...) eu
me coloco uma outra questão, de âmbito mais limitado. Ela teria se quiserem esta
forma: Será que esta posição impossível do sujeito ou do autor, aqui, não seria o efeito
daquilo mesmo (mas o que é isso) tem a tarefa de enunciar, a saber um paradoxo?
Será que uma certa lógica inerente ao paradoxo não levaria forçosamente para fora de
si mesma, não arrastaria, num movimento vertiginoso, a enunciação de qualquer
paradoxo, até mergulhar aí seu sujeito sem alternativa, sem se poder deter?
308
E a partir dessa explanação que implicaria na continuidade do acompanhamento do
ensaio de Lacoue-Labarthe é que gostaríamos de fazer emergir novamente a questão da
teatralidade maquínica da literatura.
Ou seja (e nos permitiríamos expor uma tese) se há um movimento vertiginoso
passível de ocorrer nas transferências ou retransferências a que a enunciação tem o poder de
aludir - a partir da posição móvel dessa entidade enunciadora, seja em primeira ou terceira
pessoa – seja num movimento centrífugo ou centrípeto, as figuras enunciadoras que aí
tomam corpo nesse espaço atópico, ou seja, nesse espaço próprio ao paradoxo da enunciação
numa narrativa, poderíamos talvez inferir que exista uma possibilidade desse espaço ser
preenchido por uma forma de ex-posição (o regime descritivo dos momentos de salto ou de
transferência ou retransferência da voz enunciadora que se põe em cena em sua própria
aparição dialógica ou diegética) que tomando posições e logísticas assinaláveis poderia ser
pensada enquanto plástica e dramática da própria intersecção corpórea. Esta inscrita e
excrita na exposição do paradoxo da enunciação e nos regimes descritivos, enunciadores e
portadores de um encadeamento intercitacional de elementos compósitos da própria força de
gravidade da obra, acoplando em sua constituição sintáxica e semântica os traços de uma
modelação cênica e narrativa que se inscrevem finalmente como uma teatralidade maquínica
literária.
Pois nesse ponto, não se trata apenas do caráter fundamentalmente expressivo e
formal, pois quanto ao paradoxo e à mobilidade da perspectiva narrativa, daquela atopia
irrefreável da voz narrativa, esse paradoxo instala na enunciação uma variabilidade de
posições discursivas e de multiplicações do foco narrativo que fazem ou conduzem a
270
matéria narrada a uma performance narrativa apta a uma crítica constitucionalmente
expressiva tanto da matéria enunciada quanto do sujeito enunciador que nesse ponto se
transfigura numa relação híbrida, estruturalmente cênica, dramática e teatral.
Através dessa perspectiva queremos aceder a uma crítica geral da representação no
que concerne ao estatuto crítico de uma posição referente ao discurso estético como estado
dinâmico de captura de forças e não como matéria “portadora” de atribuições estéticas a
posteriore, como se a arte fosse uma linguagem simplesmente codificada e apta ao
transporte para um discurso crítico-ideológico referente ao simbólico e ao imaginário, que
devem ser de algum modo traduzidos ou reconduzidos na forma de um universo de
experimentações simbólicas. Que tudo isso ocorra na experiência artística, não
duvidaríamos, somente reconduziríamos a posição ontológica de constituição do plano de
composição estético ao espaço pluridimensional das intersecções relativas à extensão
subjetiva e objetiva do próprio evento literário.
Pois bem, a esse regime descritivo englobando as translações e revoluções que se
empreendem no movimento paradoxal de enunciação, o qual trabalhamos a partir da noção
de voz narrativa blanchotiana, denominamos teatralidade maquínica da literatura.
O paradoxo e a mimese. Tentativa de acesso à noção de teatralidade na
literatura a partir da compreensão de uma tensão própria do jogo de
encenação do ator.
A esse respeito, vale dizer, de uma teatralidade operante posta em jogo, de uma
encenação a partir da voz narrativa na literatura, deveríamos levantar pelo menos uma
problemática teórica em relação à questão do paradoxo e da mimese ou re-presentação.
Trata-se nesse caso, e deveria relacionar ainda essa questão da teatralidade literária como
investimento diferencial sobre o real (problema do corpo e do corpus da obra) como uma
problemática disseminada ou proliferada por toda a pesquisa; trata-se nesse caso da
referência direta ao problema do paradoxo que desenvolve Phillippe Lacoue-Labarthe em
308
Idem.
271
“O Paradoxo e a Mimesis”. Veremos em seguida, o quanto deveremos ter que adentrar a
complexa reflexão que faz Lacoue Labarthe em seu ensaio seguinte, A cesura do
especulativo, e o que justamente começamos a compreender como o nódulo ou o nó mais
profundo ou promissor do problema que vislumbramos como sendo da ordem de uma
economia geral dos afectos do corpo em sua transferência teatrologizada como
desdobramento de uma concepção poética trágica para uma concepção poética cômica ou
neutra da literatura, posta em jogo (mise em jeu) enquanto épreuve, na produção desses
Corpus de obras literárias.
De fato, e aqui gostaria de fazer referência direta ao fragmento de Aristóteles que
Lacoue-Labarthe retira de (194a) e (199a) da Física B citado por Jean Beaufret em sua
análise de Horderlin, quando se remete ao trabalho de intersecção produtiva no trabalho de
construção de performance do ator - trabalho paradoxal, pois operado entre uma espécie de
dom natural ou da natureza e um aperfeiçoamento ou uma experiência produtiva ligada à
dramaturgia ou à dramatologia - colocado em jogo no texto “Paradoxo sobre o Comediante”
de Diderot.
Lacoue-Labarthe faz referência a partir de Aristóteles a uma mimese restrita e uma
mimese geral. E nos parece que é nessa duplicidade da própria mimesis que poderíamos
fazer ressoar uma relação mais ampla com uma operacionalidade ou relacionamento
profundo entre os conceitos que chamamos de: Corpo e Corpus literários, épreuve crítica,
poética do neutro e teatralidade ou gestualidade alegórica ou maquínica, operada a partir do
trabalho ou da performance de uma voz narrativa no sentido em que pensa Blanchot e a
posteriori contemporaneamente no sentido em que pensa toda uma crítica pós-estruturalista
particularmente francesa, nos remetendo em especial no âmbito de nossa pesquisa, aos
trabalhos de Jean-Luc Nancy, Christophe Bident e Dominique Rabaté que são lidos como
referência mais direta ou citacional de uma crítica geral da representação herdada e posta em
movimento a partir de um corpus teórico pós-estruturalista filiado, como viemos afirmando,
a Nietzsche, Blanchot, Bataille, Derrida e Deleuze.
Lacoue Labarthe cita, portanto Aristóteles: “Aristóteles diz primeiro, (194a) que em
geral, ‘a arte imita a natureza’: he tékhne mimeîtai ten physin. Depois, um pouco mais
adiante, (199a), especifica esta relação geral da mimese. “Por um lado, diz, a tékhne leva a
272
termo (completa aperfeiçoa, epitelei) o que a physis é incapaz de operar (apergásasthai); por
outro lado ela imita”.
Lacoue-Labarthe explica: “Há, portanto duas mimeses (...): uma mimese restrita, que
é a reprodução, a cópia, a duplicação do que é dado – já realizado, efetuado, apresentado
pela natureza. [...] E há uma mimese geral que não reproduz nada de dado (que não re-
produz então nada), mas que completa uma certa falta da natureza, uma incapacidade de
tudo fazer, tudo organizar, tudo operar, tudo produzir. É uma mimese produtiva, quer dizer,
uma imitação da physis como força produtora ou, dito de outro modo, como poiesis. E que
realiza, como tal, e leva a termo, conclui a produção natural. Como diz Diderot ‘aperfeiçoa’”
Para Diderot, segundo Lacoue-Labarthe, “a arte complementa a natureza”, mas
nunca como “imitação pura e simples”. Aí atua uma crítica “à concepção ingênua da arte,
ingênua e natural, imediata e espontânea”, em referência à tradiçcão estética alemã com
Schiller.
Lacoue-Labarthe continua e adentra naquilo que seria o eixo principal ou recorrente
de uma intuição sobre a teatralidade maquínica na literatura. Ele escreve:
“Mas por outro lado [...] isto equivale, na realidade, a colocar que é essencialmente o
teatro ou a teatralidade que confere sentido à função geral de complementação
atribuída à arte. [...] Poderíamos sustentar que a mimetologia fundamental é uma
projeção ou uma extrapolação a partir de condições próprias da mimese dramática. No
mínimo, é preciso pensar que, porque o teatro representa a função (ou mesmo o fato)
da complementação em geral - a função ou o fato da substituição - o teatro é exemplar
da mimese em geral.
A mimese teatral, dito de outra forma, oferece o modelo da mimese geral. A arte, na
medida em que substitui a natureza, na medida em que se coloca em seu lugar e leva a
termo o processo poiético que é sua essência, produz sempre um teatro, uma
representação. O que quer dizer, uma outra apresentação – ou a apresentação de uma
outra coisa, que ainda não estava lá, dada ou presente.”
309
O paradoxo, como sabemos, ao lermos o ensaio de Lacoue-Labarthe, se coloca
diretamente na assertiva de que o grande comediante ou ator não deveria ter “nenhuma
sensibilidade”. Como, afinal, e é esse justamente o paradoxo, a “falta” ou a ausência de
sensibilidade pode ser uma força do ator?
É porque o ator - e aqui estendemos a problemática do ator a toda experiência
mimética geral que envolve, segundo a leitura de Lacoue-Labarthe, toda uma passagem ou
uma duplicação diferencial da Physis em seu movimento em relação ao mundo em geral ou
à arte em particular - contrariamente ao entendimento comum, deveria estar apto para todas
273
as imitações ao estar precisamente livre de qualquer propriedade que não fosse ser o próprio
espaço de uma ausência paradoxalmente preenchível no momento da atuação teatral, ou
melhor, nesse evento, ocasião, ou temporalização de domínio regrado do ator ou comediante
{domínio sobre seu corpo, necessidade de uma sensibilidade negativa, apta a confrontar
incessantemente o preenchimento daquela “vacância” afirmativa a que se aludiu acima [o
próprio espaço da máscara (personne)] a partir de uma observação fria e conformadora das
paixões por parte do comediante}.
Eis a tese do paradoxo como hiperbólica que Lacoue-Labarthe explora um pouco
antes. No limite, o paradoxo põe em jogo face a face dois limites ou é o ponto limite de uma
curva que faz duas proposições contraditórias coincidirem em seu ponto de maximização.
“Nenhuma sensibilidade” quer dizer, finalmente, toda possibilidade de preenchimento deste
espaço vazio (ativo e passivo conforme o domínio) por uma potência performática, onde
algo pode ser mimetizado enquanto capacidade de aperfeiçoamento ou de
complementaridade da própria Phisis em seu movimento para-fora-de-si mesma a partir da
potência de mimese geral que se amplia ainda mais além de uma mimese restrita.
Lacoue-labarthe resume:
O paradoxo consiste, portanto, no seguinte: Para tudo fazer, para tudo imitar - para
tudo (re)presentar ou para tudo (re)produzir, no sentido mais forte - é preciso não ser
nada por si mesmo, nada ter de próprio, a não ser ter uma “igual aptidão” para todo
tipo de coisa, de papéis, de caracteres, de funções, de personagens, etc. O paradoxo
enuncia uma lei de impropriedade, que é a própria lei da mimese: só “o homem sem
qualidades”, o ser sem propriedade ou especificidade, o sujeito sem sujeito (ausente
de si mesmo, distraído de si mesmo, privado de si mesmo) é capaz de apresentar ou
produzir em geral.
310
Lacoue-Labarthe retoma o fio de sua especulação para chegar ao importante ponto de
intersecção entre os planos de imanência da phisis e o plano de composição da arte que a
partir da phisis se desdobra como uma espécie de invaginação ou replicação mimética
colaboradora; como uma força duplicadora diferencial e suplementar à qual chama dom
poético.
Ele continua:
Ora o que é que encontramos no ponto de chegada? O seguinte: este dom da natureza
é o dom da impropriedade, o dom de não ser nada, até mesmo, extrapolando o dom de
nada. E eu diria, [...] para tornar sensível o que está em jogo neste “nada”: o dom da
309
Cf. LACOUE-LABARTHE, Phillippe. A imitação dos Modernos. Trad. Virginea de A. Figueiredo e João
C. Penna: Paz e Terra, São Paulo, 2000, p. 168.
310
Cf. op. cit., p. 170.
274
coisa mesmo. Quero dizer, o dom que a natureza faz de si mesma, não enquanto ela é
ela mesma já dada ou já presente, “naturada” como se dizia na época, mas enquanto
ela é mais essencialmente (afastada e sempre afastada em relação a sua presença) pura
e inapreensível poiésis: força produtora e formadora energia no sentido estrito,
perpétuo movimento da apresentação.
O dom de natureza - o dom da natureza – é, por conseguinte, o dom poiético. Ou, o
que da no mesmo, o dom de mimese: dom de nada, com efeito (de nada, em todo caso,
que já esteja presente, que já esteja dado); dom de nada, ou talvez “aptidão” para
apresentar, isto é, para substituir a própria natureza, para fazer-se (a) natureza, para
com a ajuda de sua força e de seu poder específicos, suprir sua incapacidade e levar a
termo, efetuar o que ela não pode operar – aquilo para que sua energia, sem um
transmissor, não pode bastar.
A arte é este dom. [...] Puro dom, no qual a natureza se entrega e se oferece em sua
mais secreta essência e em sua intimidade, na fonte mesma de sua energia, como o
nada que ela é, uma vez esgotada esta energia e transmitida ao dado. Puro dom [...]
porque é o dom da coisa e do ser, do secreto e do retirado, do indeterminável e do
irreconhecível como tais, a que nada nem mesmo a gratidão conseguirá responder:
porque não é nada, não é coisa de economia alguma, de troca nenhuma.
É por isso que o artista, o sujeito deste dom (que não é o dom de nenhuma qualidade o
propriedade), não é realmente um sujeito: sujeito não-sujeito ou sem sujeito, isto é
também sujeito multiplicado, infinitamente plural, já que o dom de nada é, de maneira
idêntica, o dom de tudo, o dom da impropriedade é o dom da apropriação geral e da
apresentação. Porque afinal o paradoxo é isto, esta troca hiperbólica do nada e do
tudo, da impropriedade e da apropriação da ausência de sujeito e da multiplicação, da
proliferação do sujeito: quanto mais o artista (o ator) é nada, mais ele pode ser tudo.
“A mesma aptidão para toda espécie de caracteres”.
311
A conseqüência desse texto (importantíssimo para o esclarecimento de nossa
proposta) é que segundo Lacoue-Labarthe:
[...] a lógica do paradoxo, a hiperbológica, não é nada além da lógica da mimese. [...]
que a matriz lógica do paradoxo é a própria estrutura da mimese. Em geral. Não é um
acaso se a lei da mimese se enuncia, e só pode se enunciar, sob a forma de um
paradoxo. Mas também não é um acaso se, ao contrário, a lógica do paradoxo, seja
sempre uma lógica da semelhança, articulada sobre a separação entre a aparência e a
realidade, entre a presença e a ausência, entre o mesmo e o outro, ou entre a
identidade e a diferença. É a separação que a funda (e não cessa de fazer estremecer) a
mimese. Em todos os níveis: na cópia ou reprodução, na arte do ator, no mimetismo,
no travestimento, na escrita dialógica – a regra é sempre a mesma: quanto mais
parecido, mais diferente: o mesmo, em sua mesmidade, é ele mesmo outro e, por sua
vez, não se pode dizer “ele mesmo”, e assim por diante até o infinito...”
312
Para nós, a questão do paradoxo tem a função de reterritorializar os parâmetros
teóricos que pretendem levar a discussão da teatralidade na literatura, especificamente a
teatralidade e a gestualidade percebidas em Clarice Lispector e Maurice Blanchot (segundo
as diferenças de escrita de cada um) a esse espaço próprio de jogo (l’enjeu propre à
311
Op. Cit., pp. 170-2.
312
Op. Cit., pp. 172.
275
l’écriture) onde uma necessidade ou possibilidade de (re)dramatização ou de (re)elaboração
plástica do movimento das vozes narrativas que aí se performam, fará ressoar, talvez, esse
mesmo movimento poético que tem lugar no inapreensível da repetição diferencial que faz
do paradoxo o espaço de uma poética do neutro e o campo de forças em suspensão onde
atuam e se encenam os próprios corpos de escritura que não fazem senão espacializarem
(l’é-loignement) em um corpus, a potência poética, ou o dom de poiésis que coexiste na voz
narrativa, no sentido que lhe dá Blanchot em relaçãp ao que consideramos como
teatralidade literária.
Finalmente, porque não poderíamos pensar no paradoxo como elemento signíco-
especulativo limite que deverá ser posto em um movimento dramatológico, emprestando o
termo de Lacoue-Labarthe, para aceder a um alcance agudo do que ocorre hoje como a
necessidade atual de se pensar o próprio do ficcional como da ordem de uma encenação do
pensamento e do desdobramento do pensamento em sua situação ou experiência limite,
paradoxal, hiperbólica?
A cena, portanto, gestará e situará como imagem replicada (a partir das formas
expressivas que possamos dela arrancar ou sobredeterminar em um movimento ou em uma
desenvoltura trágica ou cômica, a partir das cartografias de suas forças – ativas, passivas ou
neutras) no interior dos romances ou relatos que leremos aqui - mesmo excedendo essas
ficções e orientando-se em direção a possíveis reverberações e fragmentações no interior do
Corpus dessas obras. Ou seja, e aqui devemos marcar essa intenção, quando pensamos em
reverberações no interior do corpus, seria preciso dizer que, estrategicamente, essas relações
do fragmentário com a unidade não têm funçaão senão em suas virtualidades, nas
continuidades ou descontinuidades expressivas, que podem informar um campo de
preocupações que trasgridam a matéria do relato e se façam transferentes para fora de seu
espaço primário, espaço de seu título ou de sua previa preocupação. Como no caso, por
exemplo, do personagem Thomas que aparece também na ficção Aminadab, sem aí operar
nenhuma referência direta a Thomas l’Obscur.
E, no caso de Clarice Lispector, que essas reverberações entre as obras que aludimos
possam ocorrer talvez na continuidade ou na forma de um discurso testemunhal e anônimo
que orientaria uma hipotética leitura auto-referencial ou auto-biográfica da escritura
clariciana, seja, no caso de A paixão segundo G.H. e Água Viva, por exemplo, relacionada
276
menos a uma poética descritiva de um testemunho existencial, do que a uma encenação
agônica do próprio corpo de uma escritura tornada em seu limite a própria impossibilidade
de nomeação desse corpo, lançando ao abismo sua auto-referencialidade anterior, que tinha
no quase anonimato de G.H o índice de uma máscara teatral.
Quereríamos dizer ainda, a respeito das pontes que possam coexistir que no caso
dessa hipotética passagem ou transferência de G.H. ao simples “eu” do discurso de Água
Viva (e nos perguntaríamos se trata-se afinal de uma passagem e não de um salto ou mesmo
das duas coisas simultaneamente, o que figuraria justamente o que gostaríamos de
aproximar metaforicamente a um regime coreográfico de leitura, programa gestual e
teatrológico) ou na “passagem”, transferência ou salto de um personagem Thomas a outro
ou ao seu outro homônimo ou apócrifo, trata-se de aceder ao movimento mais sutil desse
espaço de co-presença ativa ou passiva, talvez neutra (é o que pretendemos com o termo
épreuve). É nesse espaço narrativo ou no espaço cênico do récit, é na ambiência paradoxal
que põe em jogo a voz narrativa que se posiciona, exorbita e se reposiciona em função da
própria cadência que a levaria a delirar sua própria matéria narrada, onde se cria, desse
modo, por excesso, em sua própria dinâmica, a potência ou poética (do) neutro a que
nomeamos teatralidade maquínica dessas ficções por meio de uma economia gestual dos
afectos.
Da teatralidade teatral à teatralidade literária. O espaço paradoxal da
escritura enquanto palco virtual dos afectos.
Se a teatralidade é neste momento pensada a partir da reflexão de Lacoue-Labarthe é
porque procuramos discernir o movimento de uma mimese dúplice, geral e restrita, como
desdobramento incessante e fragmentário da natureza (physis) numa totalidade dobrada e
múltipla dada pela re-apresentação incessante ou pela repetição diferencial sem fim que se
potencializa, primeiro, por uma gestualidade plástica e dramática das forças inorgânicas e
277
biológicas primárias e, em seguida, pelo seu exorbitamento
313
na consciência fática, numa
economia sígnica iterável e agônica da linguagem, esta performada no próprio movimento
ficcional em geral, que associamos a um para além de uma negatividade dialética ideal,
alcançando, ou pelo menos tangenciando, nesse limite especulativo, uma potência real de
desouevrement” estético, enquanto economia geral das forças no sentido espinozista-
nietzscheano-deleuzeano que procuramos descrever na primeira parte da tese.
313
A respeito deste termo, exorbitante, fundamental como noção bataillana a proposito de uma compreensão
da potência especulativa da literatura, mesmo que derivada, ou interseccionada na historicidade do discurso
filosófico, deveríamos poder pensar um instante. É toda uma saída fora da órbita de uma máquina especulativa
dialética hegeliana. Através das noções de l’impossible e de l’expérience interieure, bem como de l’erotisme,
le rire e la nuit, como todo um corpo léxico de conceitos ou de imagens literárias que poderia ser descrito
rigorosamente, Bataille pôde propor uma espécie de “saída” sem fim ao discurso dialético de Hegel, discurso,
em um sentido, sobre a produtvidade especulativa do próprio trabalho da negatividade (posiçcão lógica da
morte para o sentido da existência) como potênciagica fundamental para a compreensão do Ser e de suas
reverberações transhistóricas dadas na materialidade ideal do mundo. É o que discerne Lacoue Labarthe ao se
referir a uma das melhores definições sintéticas de dialética que já limos, derivada de sua leitura sobre a
contribuição teórica de Bataille sobre o problema da especulação dialética. Ele diz: “Sabe-se [...] ao menos
desde Bataille, que a dialética – o pensamento que apreende o corruptível e a morte, a determinação do
negativo e a sua conversão em potência de trabalho e de produção, a assunção do contraditório e a rendição
como processo de auto-concepção do Verdadeiro ou do Sujeito, do Pensamento absoluto, sabe-se então que a
dialética, a teoria da morte, supõe, e não exatamente a sua revelia, um teatro: uma estrutura de representação e
uma mimese, um espaço fechado, distante e preservado (a salvo e verdadeiro, se compreendermos bem, como
Hegel, o que diz o alemão Wahrheit), onde a morte em geral, o declinar e o desaparecer, possa “se”
contemplar, “se” refletir “ e “se” interiorizar. Esse espaço, esse templo e essa cena era, para Bataille, o espaço
do sacrifício que é, dizia ele, uma “comedia”.” Cf. LACOUE-LABARTHE, Phillippe. A imitação dos
Modernos. São Paulo, Paz e Terra, 2000. p. 181.
A nosso ver, é justamente esse sentido cômico o que abre o exorbitante do sentido trágico e incomensurável da
existência do ser a uma suspensão agônica e justamente “exorbitante” dessa circularidade sintética da
especulação dialética. O conceito de impossível em Bataille, passa a ser investido de uma potência centrífuga
ao movimento de resolução e de fechamento que o movimento dialético derivaria do próprio sentido do trágico
como purificação catártica. Somente as formas literárias estariam aptas a poder aceder à incomensurabilidade
das formas expressivas que poderiam dar conta das contradições inerentes que surgem junto a essa “saída” ou
exorbitância em relação ao movimento dialético. Mas para Bataille, mesmo a potência da poesia, de algum
modo se conforma ao efeito derivado de uma teatralidade especulativa trágica. Somente o riso agônico e
desmesurado, exorbitante, é que transtorna ou transgride os limites do pensável e, deveríamos afirmar, esse
acesso ao cômico como pura exorbitância extática do riso só ocorre realmente na junção paradoxal dessa
experiência limite do cômico copresente à experiência poética de elaboração e de expansão dos espaços e das
temporalidades possíveis em relação a esse horizonte em incessante expansão ou retração segundo sua relação
com a finitude e o evento inefável da morte. A esse respeito, não poderíamos sugerir melhor explicitação do
que a que se encontra no texto de algum modo “conclusivo” de L’impossible, continuação da terceira parte,
L’Orestie, e subintitulada Être Oreste, onde há uma certa concentração conclusiva de todo o esforço de
suspensão e de neutralização dialética, de todo esforço de manutenção ou mesmo de sobrevida no limiar do
espaço vertiginoso e agônico, onde uma força sobre-determinante e sobre-denegativa, operada
especulativamente como um “um desejo de impossível” acede refratariamente ao limite do pensável e aí se
prorroga como em uma hemorragia do próprio sentido, promovida a partir de um gesto literário limite, ou
melhor, gesto teatrológico de tentativa de transgressão de toda lei, inclusive transgressão da própria finitude,
desde então extendida e excrita ou lançada ao limiar de seu próprio porvir, a partir da pluralização poética de
seu próprio sentido desobrado (désouvré). Cf. BATAILLE, Georges. Romans et Recits. Paris, Gallimard,
2004, pp. 559 -563.
278
Em “A Cesura do Especulativo”
314
acedemos, com Lacoue-Labarthe, a uma reflexão
que perceberá o movimento especulativo dialético como da ordem de uma teatralidade
maquínica do pensamento. Essa reflexão será propriamente referência da possibilidade de
nos aproximarmos de uma configuração sobre-especulativa a uma economia dramática ou
teatrológica dos “afectos” em um corpo-corpus de escritura literária.
Mas, enfim, seria necessário afirmar a distância ou o distanciamento ontológico entre
esse corpo de escritura e o corpus que concebemos como certa translação revolutiva do
sentido enquanto excursivamente corpóreo.
É uma intriga e um paradoxo que fazem ressoar como impossível essa associação
que estabelecemos na estrutura dinâmica do termo teatralidade. Pois o corpo é impossível
fora de seu sistema de infinitizações e desdobramentos incessantes que o fazem corpóreo em
um espaço incorpóreo ou abstrato. Há como uma distância móvel que acompanha e reflui
em toda aproximação do corpo em direção a outros corpos. E no limite desse
espaçamento
315
o que acorre é a multiplicação incorpórea do corpo na forma da
comunicação de qualquer espécie. É um retorcimento e uma duplicação singular que ocorre
numa invaginação progressiva do próprio corpo que se aproxima eroticamente de outros
corpos. Pois a cada investida desse corpo na direção do outro corpo faz com que sua
distância incorpórea ou subjetiva se acrescente ou se multiplique no que concerne à
314
Cf. LACOUE-LABARTHE, Phillippe. A imitação dos Modernos. Trad. Virginea de A. Figueiredo e João
C. Penna: São Paulo, Paz e Terra, 2000, p. 181.
315
Cf. o conceito de éloignement em “Pas” in: DERRIDA, Jacques. Parages. Paris, Galilée, 1986-2003, pp.
27-32. Derrida cria uma verdadeira ficção teórica nesse texto que, ao acompanhar numa economia citacional
vários textos ou récits de Blanchot, se movimenta conjuntamente com a economia de forças que interage na
forma de uma paradoxologia disseminada sintaticamente na obra blanchotiana. Uma indecidibilidade
generalizada comanda e se deixa levar ao mesmo tempo, no jogo paradoxal e indiscernível do termo “pas” em
francês. Nesse termo, “passo” e marca de negação, se comungam indissociavelmente no desdobramento do
relato, criado uma economia invaginada da linguagem dentro da língua. Além do mais, existe ainda toda uma
economia de forças vinculadas à voz narrativa blanchotiana no sentido da aproximação ou da distância desse
outro ou desse absolutamente outro do discurso que se enuncia e anuncia dissimuladamente na escritura
blanchotiana. Em outras palavras, um l’être-là ou ser-aí da escritura, opera a (im)possível chegada dessa voz
ao destino anunciado e enunciado no próprio relato de uma voz narrativa fadada a pairar em seu próprio campo
de forças retóricas, onde ocorre pela aporia das vozes que se neutralizam, uma suspensão disseminante do
sentido, (im)possibilitando a chegada ou a conclusão semântica da língua exercida como escritura e
teatralidade da própria linguagem levada ao limiar de suas composições expressivas ou lógicas. O passo (pas) e
a negatividade re-atribuida no mesmo passo (ne pas) se prometem sempre a uma presença neutralizada em sua
faticidade anunciada na escritura e em seu movimento autêntico de experimentação limite do sentido
possibilitado exclusivamente por uma poética literária que Blanchot conceitualiza como Neutro. Essa
economia seria, com Derrida, o espaço singular de atuação de uma sobre-transgressão da própria linguagem
sobre seu próprio corpus semântico e ontológico. Essa sobre-transgressão que se exerce na forma de uma
279
densificação progressiva dessa aproximação. Cada forma ou cada expressão formal desses
corpos pode ser multiplicada uma em relação à outra, na proporção de sua proximidade,
proporção esta que pode aumentar tanto com o contato quanto com a separação, pois já não
se trata de aumento ou de diminuição de experiência visual ou táctil e sensual, senão de
multiplicação de uma experiência singular do incorpóreo, de pluralização da subjetividade e
da teatralidade especulativa que se elabora a partir dessa relação inter-corpórea.
Nesse quadro de aumento desmesurado da experiência incorpórea e subjetiva do
corpo erotizado é que deveríamos pensar a potência própria de uma imagem da teatralidade
na literatura, pois é nesse quadro de espaçamento desmesurado do corpo escrevente e do
corpus de sua escritura, que se dá o trânsito imanente e pulsional entre uma virtualidade
fabulativa e uma atualização ficcional pela literatura.
Estes dois pólos de uma fenomenologia (im)possível do Corpo e do Corpus
poderiam ser de algum modo postos em jogo a partir de um trabalho de diagnóstico sobre a
tensão relativa e a potência singular de seus movimentos performáticos complexos. Que
sejam, ascendentes e descendentes, diagonais e tangenciais, translativos e revolutivos,
circulares e espiralados, esses traços de uma economia ou de uma energética do corpo em
trânsito a uma suplementaridade protética ou erótica do Corpus, estabelecem uma imagem
narrativa ou um substituto sensual de suas circunvoluções e transversalidades,
reconfigurando, na extensão de seus movimentos expressivos, uma imagem rítmica fusional
a um eu absolutamente instável e oscilante, na qual retorna, sem fim, o corpo transtornado
em sua origem rarefeita, seja esta atualizada pela imagem incorpórea da ficção ou
virtualizada na angústia ou na excitação de seu próprio evento ou drama escritural.
A teatralidade a que aludimos na literatura trata de um modo ou de outro da
capacidade de deslocamento incessante da voz narrativa e de sua potência propriamente
erótica de inversão ou de invaginação subjetiva sobre si própria desencadeando a
necessidade de uma amplificação dos próprios modos ontológicos de presença de sua
própria atribuição de sentido, ou seja, desencadeando uma demultiplicação incorpórea da
imagem de seu próprio corpo pseudo-originário no ato de escritura. Este corpo que se
reverte numa pluralidade de vozes ramificas de sua pseudo-origem limite é o que chamamos
neutralização de um sentido puro do récit ou da ficção, é uma das operatórias paradoxais que observamos
como fazendo parte de uma teatralidade maquínica da escritura limite de Blanchot.
280
de corpus de escritura e que doa como conjunção pulsional e semiológica o espaço
rizomático à expressividade de uma teatralidade maquínica.
Da teatralidade maquínica no discurso filosófico.
Em “L’oscilation distincte
316
de Jean-Luc Nancy parece ser encenada a própria
personalização da capacidade do pensamento especulativo se desdobrar sobre suas próprias
con-siderações; ou seja, desse pensamento se confiar à liberdade de nunca se assumir
inteiramente numa rota dialética fadada ao conclusivo de suas proposições. E ainda nessa
teatralidade especulativa e narrativa que e-voca e con-voca Nancy, observaria de muito
perto a utilização da imagem gráfica dos símbolos do baralho, acrescidas de um pequeno
círculo negro, ♠♣♥♦● (este círculo, quem sabe, para marcar um quinto e ex-cursivo
personagem ou sujeito fragmentário que parece dissimuladamente fazer refluir os outros
numa certa direção infinita?) no início de cada uma das falas, para fazer jogar um quase
inexprimível do acaso do próprio pensamento, numa associação verdadeiramente teatral
desses personagens que formam o encadeamento abismal segundo o qual a imagem se
invagina no texto e este, por ela engolido, retorna digerido e nutrido de uma cadência
potencialmente e incessantemente fragmentária.
Mas tratar-se-ia talvez, antes, de um entrecruzamento imediato que deveria ser posto
em movimento pela própria impossibilidade da imediatez hipotética de um trânsito entre o
literal e o simbólico. Parece-nos que este é um dos pontos fortes de enunciação e encenação
do texto de Nancy.
Pois quando uma das vozes que participa dessa discussão filosófica sobre um caráter
teórico da imagem e do texto em suas possíveis inter-relações hipotasicas, perguntando à
outra voz - e assim se desdobrando em uma multiplicidade de imagens diferenciais de si
mesma (pois trata-se da potência própria da voz narrativa que pode a partir desse
suplemento teatrológico aí se fragmentar a partir da capacidade ficcional e dialógica ou
inter-dialógica inerente ao discurso) - “ Diriez-vous que le corps est l’image tandis que le
316
Cf. in : NANCY, Jean-Luc. Au Fond des images. Paris, Galilée, 2003, pp. 121-146.
281
texte est l’âme?”; a outra voz, pequeno círculo negro, como disseminação da própria voz
narrativa sobre si mesma, responde:
Certainemment pas si vous sugérez ainsi l’image d’um côté et le texte de l’autre :
C’est un dualisme indigent, comme tout dualisme. Mais en verité, chaque image et
chaque texte est chacun pour soi en puissance de texte et d’image. Cette puissance
s’actualise dans le ragard ou dans la lecture. (…) En regardant l’image, je la textualise
toujours de quelque façon, et en lisant le texte, je l’image. Ces actualisations sont
innombrables : aucun texte a son image propre, aucune image son texte propre.
317
Que essa voz se põe em jogo ou se traveste em seus personagens já tão próximos de
sua origem fantasmática é o que gostaríamos de propor. Entretanto, é essa mesma voz
narrativa que relata o próprio processo de uma especulação filosófica sobre a imagem e o
texto, que gostaríamos de chamar teatral ou arriscaríamos a chamar teatrológica. É desse
modo que lemos a réplica do personagem “copas” que nos aponta o panorama teórico que
procuramos como fundo geral ou direcionamento amplo do sentido que lemos entre corpo e
corpus de escritura literária. Corpo e corpus imersos numa transversalidade reverberatória
possivelmente infinita, constituída de forma e intensidade, apta a ser interpretada, pelo
menos até o nível do que não pertence ao absoluto de uma idiossincrasia do corpo pensado
como “l’esprit”, mente, espírito no sentido de uma inteligência individuada, à qual “Nancy”,
ou melhor, a voz de “espadas” faz ressoar em seguida.
“Copas” acrescenta ao « círculo negro »:
Mais lorsque une actualisation se produit – ce qu’on pourrait nommer, dans l’un et
l’autre cas, une interpretation -, il y a bien âme et corps, c'est-à-dire forme et intensité
(car c’est là le vrai sens des mots « âme » et « corps »). (…) Interpreter, c’est ce là
même : c’est animer en tant qu’incarner et incarner en tant qu’animer. C’est
configurer une intensité et intensifier une figure. « Corps » et « âme » ne font en verité
qu’un seule mot divisé en deux pour bien montrer comment il s’interprète dans deux
sens à la fois.
318
E em seguida « espadas » acresecenta o que seria « hors-interprètation » : « Une
seule chose est hors-interprètation, aussi bien de texte que d’image: c’est l’esprit, lê soufle
égal à soi, ni corps, ni âme, sans forme ni intensité. L’esprit ne fait ni trait ni trace. Il n’a ni
couleur ni figure, ni lettre, ni style. L’esprit est sans corps et sans amê »
319
.
317
Op. Cit., p. 130.
318
Op. Cit., pp. 130-1.
319
Op. Cit., p. 131.
282
E desse debate aparece « paus » que relaciona de outro modo imagem e texto
como da ordem de seus limites um ao outro, definindo cada um o horizonte de interpretação
da imagem e do texto, do texto e da imagem um relação ao outro, o que em seguida e na
contigüidade do diálogo que aí se movimenta, relance “espadas” à imagem de uma fusão
inesgotável entre os extremos que aí são especulados, corpo e alma, texto e imagem, mar e
sol imersos na luminosidade indiscernível de seus reflexos eventualizados na linha de fuga
que gera o próprio horizonte aí diluído.
Image et texte se distinguent donc comme âme et corps : chacun est la limite de
l’autre, son horizon d’interpretation. L’horizon de l’image c’est le texte, avec lequel
s’ouvre une puissance indefinie d’imaginer devant laquele l’image n’est qu’une
clôture, un contour fermé. Mais l’horizon du texte c’est l’image, avec laquelle s’ouvre
une puissance indéfine d’imaginer devant laquelle le texte n’est qu’une impuissance,
un report permanent d’images.
Mais pour finir, ou pour commencer, tout horizon recule indéfiniment et s’abîme
dans la mer et le soleil mêlés.
Nancy cria a forma verbal “imager” para se referir a essa potência imanente de
especulação sobre a imagem. Pois não se trata aí de imaginar, mas de além de qualquer
confusão com essa relação hipostasiada da imagem, “imager” se aproxima muito do
problema dúplice inesgotável que reflui da potência dissimulante da imagem enquanto
processo imanente da própria luz e derivação simbólica inescrutável e irredutível de seu
movimento especulativo sobre si própria, o que foi comentado há pouco na forma do double
bind da “interpretação” seguindo uma distribuição intensiva das formas.
É o termo do Oscilante distinto, portanto, que passa a ser nomeado daí em diante
como essa potência in-forme e (in)-transitiva que paradoxalmente transita entre os processos
intersticiais das imagens e que tem lugar, seja na interioridade disseminante das vozes
multiplicadas, seja no sentido em movimento que nesse teatro especulativo faz a própria
oscilação convulsiva de uma fascinação da própria imagem que se espectraliza no infinito de
sua própria potencia imaginativa (l’imager de l’image). Daí, poderíamos nos aproximar de
toda a elaboração sobre uma energética das forças de atração e repulsão do sentido
(l’éloignement)
320
que Derrida comenta, descreve e performa em “Pas” de Parages, livro
320
Seria necessário talvez um trabalho específico sobre as potencialidades que esse tema de um dis-
tanciamento paradoxal (é-loignement) entre a voz narrativa que movimenta o texto em imagem e vive versa, e
um suposto e irredutível objeto de enunciação e anunciação do outro de todo discurso. No caso da imagem, a
complexidade deste tema será sempre esta: há uma relação de fuga irredutível entre o sentido atribuído e a
283
dedicado propriamente à economia aporética blanchotiana e, segundo pensamos, descreve
no mesmo movimento todo um gesto já não exclusivamente especulativo, mas propriamente
e autenticamente performático, teatral e dramático de uma escritura que pode ser tanto
atravessada pela ficção como constantemente reorganizada pela teoria ficcional que desse
campo de forças se nutre e se lança novamente ao porvir de sua própria teatralidade
maquínica, que de um modo ou de outro performa o próprio pensamento ao exorbitar-se
para fora de seus círculos semânticos ou sintáticos na forma de uma potência teatrológica.
Nous devons éviter de le nommer, (...) Toutefois, j’aimerais prendre un de vos mots
et lui donner le nom de l’ « Oscillant ». Ce mot est un diminutif du latin os qui
signifie la bouche et par métonymie de visage. Oscillun a donc pu designer une petite
bouche (tout prés d’oscullum, le baiser) aussi bien qu’un petit masque de Bacchus
suspendu dans les vignes comme épouvantail : le mouvement de cette face balancée
au vent a pruduit le sens d« oscillation ». L’Oscillant, donc, se balance entre bouche
et visage, entre parole et vision, entre émission de sens et reception de forme. Mais ce
qui paraît aller vers une rencontre, n’y va pas de tout : au contraire, la bouche et la
vuesont tournées parallélement vers le devant, vers le lointain, vers une perpetuation
infinie de leur double posture incommunicable. Entre bouch et œil, tout le visage
oscille.
321
Esse Oscilante é o que o personagem ou a voz do “círculo negro” acaba de
comentar; e onde precisamente suspenderemos nosso comentário, para propormos em
seguida, numa outra imagem ou numa outra linha de fuga oscilatória, o que procuramos
deixar talvez “s’imager” em outro lugar, textualizando aqui nessa paráfrase o gesto ou a
forma de nossa própria (im)potência, para em seguida, a partir de uma dramática específica
do comentário que voltaremos a explorar, forjar o que chamamos de teatralidade maquínica
do comentário, experimentando no ensaio ou na épreuve crítica o que desejamos como
imagem, atualizar ou realizar.
própria atribuição do sentido em meio à economia de foas que podem aí se instalar ou serem extirpadas. Esse
é-loignement poderia ser pensado como a imagem em seu processo irredutível a um sentido pleno, pois como
imagem sempre se refere a uma perda incalculável, pois sempre retornando uma sobre-exposição de sua
própria falta incessantemente revertida em sua negatividade não sintética, aberta ao movimento de sua própria
matéria (in)corpórea e ondulatória. Nancy se referre à imagem citando Maurice Blanchot: “D’ou l’image retire
la puissance que as surface irradie? D’un fond inimaginable : de ce fond d’absence à jamais retirée dont
l’imago des morts romains formait la presence imposante et venerable. Toujors au fond des images, la mort
nous dévisage ; la mort, c'est-à-dire notre immortalité. Cf. O texto da contra capa, in : NANCY, Jean-Luc. Au
fond des images. Paris, Galilée, 2003.
Cela nous dévisage, sans voir nul visage et, nous dévisageant, ouvre nos yeux sur ce que les images ne cessent
d’imager, ou d’imaginer en un sens éblouissent : « Ressemblance qui n’a rien à quoi ressembler » (Maurice
Blanchot) – ou bien ressemblence du très distinctement et absolument dissemblable de tout .
321
Op.Cit., p. 137.
284
Sobre uma possibilidade de definição da experiência limite na literatura
como experiência do “indizível”.
Em Ni le soleil ni la morte
322
, Peter Slöterdick, em diálogo com Hans-Jürgen
Heinhichs, responde a questão sobre os limites de discernimento ou de verbalização do
indizível, ou mesmo das estratégias discursivas que emergem dessa relação, diríamos, “não
sintética” ou “adialética” do pensamento filosófico. Após Heinrichs ter mencionado o
conceito freudiano de unheinlich, no contexto da resposta de Sloterdijk - que concernia
basicamente em situar-se numa perspectiva positiva sobre o indizível, a saber, em “extender
um pouco as fronteiras dos jogos de linguagem regulares - e no intuito de desdobrar o
assunto nos parâmetros mais objetivos da problemática sobre o indizível, Sloterdijk aponta
“três ou quatro possibilidades de definição” sobre uma ambigüidade latente no conceito de
indizível.
A princípio e situando a questão já um pouco anterior ao próprio conceito de
unheinlich de Freud, o filósofo comenta uma distância constitutiva da tradução francesa do
conceito como “étrangeté inquiétante”. Essa distância ou impossibilidade imediata de
transcrição literal marcaria um corte irredutível da ordem do indizível. Corte ou cisão no
seio da própria linguagem como relação limite nas fronteiras de uma língua à outra.
Sloterdijk, afirma em dois momentos de sua fala :
Un caracteristique primaire de l’indicible sera sans doute qu’il s’identifie
necessairement avec toute ce que se situe en-dehors d’un ensembre de jeux de
langages rodés – ce que produit l’indicible spécifique à un code. (…)
On constate alors, que l’on peut exprimer dans um code donné dês representations
complexes qui se perdent em arrivant dans um autre code.
323
Em segundo lugar, e de forma derivada do próprio sentido intraduzível de unheinlich
que lhe dá Freud - a saber, no sentido de algo que a raiz do termo Hein informa, algo
322
SLOTERDIJK, Peter. Ni le soleil ni la mort. Jeau de piste sous forme de Dialogues avec Hans-Jürgen
Heinrichs. Trad. Olivier Mannoni. Paris, Fayard, 2003. [Todas as citações traduzidas ao português são nossas]
323
Op. Cit., p. 103.
285
inquietante que advêm ao indivíduo mas que paradoxalmente não é relativo a um de “si-
mesmo” e que é, portanto, tanto estrangeiro quanto estrangeiridade dessa sensação, o que
somente uma expressão composta em francês poderia fazer aproximar, sem contudo, poder
aceder ao imediato da fórmula singular em alemão - Sloterdijk, se refere à distância
constitutiva entre o perceptivo e o representativo indizível das percepções do meio em geral.
Esse segundo momento é o que tocaria particularmente à aproximação de Bataille sobre o
indizível.
Cette indicible est fondé sur le fait qu’entre les operations symboliques et lês actes de
perception s’ouvre un gouffre que l’on franchit, en général, sans s’en apercevoir,
parce qu’il est comblé par la routine quotidienne du jeu linguistique. La meditation la
plus simple, l’exercise de sensibilisation le plus élémentaire fait prendre conscience
du fait qu’entre la certitude sensoriélle, (…) qu’entre la « presence primitive », une
expression que l’on rencontre chez le neo-phénoménoloque Hermann Schimitz -, d’un
coté, et les operations symbolique que nous présentons sous forme de phrases, de
l’autre, il n’existe aucune continuité. (…) Nous sommes constamment traversés par
un flot de conscience articulé par le langage, qui nous laisse croire que l’on fait
coincider perception et langage.
324
Essa situação de estranhamento entre as duas séries, a lingüística e a sensorial ou,
antes, sensacional é exemplificada por Sloterdijk, quando de algum modo há uma
neutralização da série lingüística interna no sentido de uma aproximação mais imediata à
serie sensorial. Aí, nesse momento, ocorreria possivelmente uma espécie de estafa ou
mesmo de um sofrimento expressivo ao tentar fazer emergir aquilo que vemos ou aquilo que
sentimos relativo a esse evento da percepção hiper-concentrada do instante. Esse limite
dramático de passagem de um sensível imediato a um suposto inteligível representativo,
mesmo que filtrado, por assim dizer, por um programa ou por um exercício poético, levaria
o artista a uma luta dilemática “com a sensação, para a qual ele deve inventar uma
linguagem ou mesmo se calar totalmente”
325
.
Nesse sentido é interessante reter, no seguimento da explicação de Sloterdijk, o
caráter de proteção a uma sorte de imersão total no êxtase que adviria do sistema lingüístico
simbólico interno, ao conformar uma superabundância sensorial perceptiva à qual
estaríamos sujeitos numa hipotética imediatidade muito rara do fenômeno. Nesse ponto, se
trata aí do caso literário que ele cita a partir de Hoffmanstal, onde numa experiência
324
Op Cit., pp. 103-4.
325
Op.Cit., p. 104.
286
narrativa, em Letttre du Lord Chandos, há um certo deslizamento do narrador ao interior de
uma cena específica, onde se tenta descrever uma relação muito próxima à internalidade
perceptiva de animais, no caso específico, de ratos. A essa situação o filosófo chama
esquizo-crise involuntária, onde ocorreria uma “‘participação monstruosa’ da agonia desses
animais”, uma efusão do sentimento através dessas criaturas, um fenômeno que se cumpre
ao lado e para além da linguagem”
326
.
Por outro lado, haveria também essa proteção ou essa espécie de filtragem
constitutiva em relação à superabundância sensorial que levaria em sua radicalidade à
experiência extática propriamente dita:
L’illusion de l’absorption de la perception contre l’extase; car si l’on meditait
spécificament la valeur intrinsèque radicale et l’extraverbalité de la perception, on
será constamment catapulté em-dehors de soi-même, on tomberait pour ainsi dire en
permanence dans les choses, dans la mesure où chaque chose est une invitation à
l’excentrage. L’individuo n’est donc pas le seule à être ineffable : tout ce qui est
compléxe, lié à une situation, à l’entourage, à l’atmosphére, l’est tout autant. Les
sentiments liés à la situation et les regards aux alentours, lors qu’ils sont concues
comme des globalités, dépassent toujours l’expression.
Seria basicamente este o sentido das problemáticas do indizível e das escrituras
limites que gostaríamos de fazer jogar com a problemática de uma expressividade limite da
literatura em Clarice Lispector, desde que observemos em sua complexidade as fronteiras
que são constantemente postas a prova quando podemos observar toda uma espécie de
obsessão em se descrever o espaço de borda e interstício que nos é relatado em vários textos
da escritora, e de forma específica em A paixão segundo G.H. quando da elaboração
teatrológica da própria experiência extática dada na forma do relato agônico da personagem
narradora.
Tratar-se-á de perceber a potência sui generis que coexiste no interior da maquínica
textual e ficcional clariciana, justamente no que concerne a sua complexidade interna, bem
como nas relações que procuramos estabelecer com os conceitos que se articulam na forma
de uma experimentação limite do que se chamaria institucionalmente como literatura
comparada, no sentido transversal do que se relaciona à obra de Maurice Blanchot.
Há ainda um indizível lógico da ordem de uma especulação sobre o infinito, pensado
desde a alta Idade Média e que tem na filosofia e na teologia seu espaço de reverberação.
326
Idem.
287
Como diz Sloterdijk, há no infinito algo que não tem medida comum com o finito, o que
torna esse problema mais uma questão de irrepresentabilidade do que de inefabilidade. Ao
mesmo tempo e no mesmo movimento, há na inteligência algo de uma necessidade de
representar justamente o irrepresentável. Daí os casos citados de Spengler que observa um
modus operandi característico do pensamento matemático na antiguidade representado pela
preocupação em se pensar os limites e as relações de figuras geométricas diferentes como o
quadrado e o círculo, exemplificado pela problemática da quadratura do círculo e na Idade
Moderna todo o pensamento relacionado ao cálculo diferencial integral com Leibniz e
Newton, onde: “À l’inverse, l’esprit de la culture ocidentale s’est manifesté dans le calcul
infinitésimal de type leibnizien ou newtonien, c'est-à-dire, dans le calculs sur la valeur
infini”
327
.
Por último, Sloterdijk, observa um infinito particular ao próprio Bataille, relacionado
a uma certa inefabilidade dionisíaca.
Bataille est fascine par la réalité non redigée qui apparait dans le sujet comme le
Unheinlich, l’étrangeté inquiétante du point de vue de son énergie, ou le sublime du
point d vue de son dinamisme – c’est ainsi que je lis son concept de « experience
intérieure ». Quand on se rappele la definition kantienne du sublime, selon laquelle
seule l’elevation morale du sujet face à la possibilité nde sa destruction par une
puissance supérieurepeut porter le nom de sublime , on constate que l’indicible de
Bataille est proche de cette definition – mais sous des auspices différents, car là où le
sujet kantien s’affirme soi-même et fait ses preuves face à une puissance terrassante,
le sujet de Bataille s’adonnerait ou, comme il dit, se gaspillerait.
328
Para nós, não deixa de ser uma forma de dispêndio muito particular, mas que por
outro lado, pode generalizar uma relação infinitamente mais complexa posta no nível das
forças ou da energia mesmo, que a literatura e em nosso caso, uma experiência limite
literária como lemos em Maurice Blanchot e em Clarice Lispector, represente um intenso
trabalho de desgaste sobre o irrepresentável ou o indizível. É particularmente esse sentido
maquínico da operação narrativa, operado em sua imanência na forma expressiva da voz
narrativa nesses textos, que gostaríamos de aproximar do termo amplo da teatralidade
literária que nos esforçamos por fazer entrar em cena mesmo que na forma dúplice de uma
encenação sobre-determinante dada pelo comentário em cascata. Deveremos nos apoiar em
327
Op.Cit., pp. 105-6.
328
Op.Cit., pp. 106-7.
288
breve em todas essas digressões para poder encenar uma espécie de junção poética desses
comentários, na forma ensaística de uma elaboração narrativa tetralógica sobre o
cruzamento dos textos de Clarice Lispector e Maurice Blanchot.
CAPÍTULO I
Épreuve crítica: Teatralidade e Gestualidade em Thomas L’obscur e A
paixão segundo G.H.
La loi cachée de la terre conserve celle-ci dans la
modération qui se contente de la naissance et de la
mort de toutes choses dans le cercle assigné du
possible, auquel chacune se conforme et qu’aucune ne
connaît. Le bouleau ne dépasse jamais la ligne de son
possible. Le peuple des abeilles habitent dans son
possible. La volonté seule, de tous côtés, s’installant
dans la technique, secoue la terre et l’engage dans les
grandes fatigues, dans l’usure et dans les variations de
l’artificiel. Elle force la terre à sortir du cercle de son
possible, tel qu’il s’est développé au tour d’elle, et elle
le pousse dans ce qui n’est plus le possible, et qui est
donc l’impossible. (Heidegger, Essais XXVII,
Dépassement de la métaphysique.)
329
329
Apud. (Nota 3) “Transcription de Vita Nuova”, in : BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes, V : Livres,
textes, Entretiens (1977-1980). Paris, Seuil, p. 1018. Gostaríamos de nos referir a essa citação que Barthes faz
de Heidegger na linha de problematização ampla que regula este trabalho de tese, a saber, a da possibilidade de
se pensar com Barthes e com Deleuze a relação da literatura com a vida, e do poder ou a potência que há na
literatura de fazer se desdobrar o próprio real para fora de seu campo possível, e que para nós poderia ser
pensado na direção ou em referência a uma economia crítica do estilo ou de uma teatralidade maquínica da
289
Ver a ciência com a ótica do artista, mas a arte, com a
da vida. (Nietzsche, O nascimento da tragédia ou
Helenismo e pessimismo).
Uma cartografia dos gestos
330
.
Gostaríamos de poder levar adiante uma idéia que nos surgiu há algum tempo, num ensaio. Esta idéia
tinha a ver com a possibilidade de se construir um corpo crítico e ficcional híbrido, corpus crítico ou corpo em
“crise”, ao fazer do encontro de singularidades ou corpos estéticos, um embate de forças tanto corpóreas
quanto abstratas. Esse plano de consistência onde se dá a obra, plano multifacetado pela própria experiência
literária e crítica, deveria de algum modo partir de uma relação entre dois outros corpos internos às ficções e
pensados a partir de suas expressões formais imanentes, ou seus traços descritivos e investidores de signos, ou
seja, no caso, de uma relação entre o fragmentário e a unidade da obra; deveria fazer movimentar uma relação
entre a imagem enquanto gesto e a narrativa enquanto existência de uma voz
331
atratora e atomizadora das
literatura. Pois Barthes, assim se refere à citação de Heidegger que aparece nas anotações de seu Curso no
Collège de France de 1979-1980: “Aí está, acredito, uma boa descrição do combate entre l’Écrire (Vontade,
grandes extenuações, usuras, variações, caprichos, artifícios: em resumo, o Impossível) e a l’Oisivité (natureza,
desenvolvimento – ‘sensibilidade’ - no Círculo do Possível”.
330
A idéia de uma cartographie dos gestos surgiu do processo de equacionamento da hipótese de uma leitura
crítica de literatura comparada a partir da noção de teatralidade maquínica aplicada ao mapeamento dos gestos
formadores de certo ritmo no processo de constituição de imagens no interior dos textos. Assim, a questão da
suspensão do sentido operada a partir de uma verdadeira paradoxologia expressiva em Thomas L’obscur é
associada a um determinado regime retórico dado pela expressividade do texto narrado em primeira pessoa na
figura quase anônima da personagem de A paixão segundo G.H.. A experiência-limite agônica e corporal - no
que concerne a essa complexidade e inefabilidade expressiva da linguagem em relação à pura sensação - de um
corpo e de um corpus bio-literário nesses textos, comportam tanto em seu sentido processual narrativo quanto
na retoricidade ou semântica expressivas, um sentido de esgotamento (épuisement, na fórmula de Rabaté), e
um sentido “hemorrágico” em sua “finalidade” ficcional. A partir dessa experiência-limite emergem algumas
possibilidades de se perceber nesses dois textos aquilo que Deleuze e Guattari chamam de forma de expressão
e forma de conteúdo na crítica que tem lugar em Kafka, pour une literature mineur. Nesse momento, em 1975,
pouco depois de Anti-Oedipe, Capitalismo e Esquizofrenia I, de 1972, esse texto funciona como o anúncio do
conceito capital de Rizoma que surgirá um ano depois, na obra conjunta de Deleuze e Guattari, marcando a
emergência desse conceito que constitui a possibilidade mesma de uma espécie de figura conceitual
articuladora de um pensamento, se assim podemos dizer, “onto-energético” de Deleuze e Deleuze e Guattari e
que virá a se desdobrar ou processar com o surgimento posterior de Mil Platôs, Capitalismo e Esquisofrenia II,
continuidade e desdobramento do primeiro tomo, já em outra “chave” epistêmica, operando numa sintomática
transversal e rizomática do sentido histórico.
331
A partir da leitura de Dominique Rabaté, pode ficar tanto mais coeso quanto claro o investimento conceitual
e estratégico que este crítico dá à noção de voz narrativa de Maurice Blanchot expressa em L’entretien infini.
De fato, para Rabaté, é a partir de uma noção estética mais ampla, operada a partir do sentido geral expresso
pela categorização aberta de Poétiques de la Voix - título de um de seus livros - que poderíamos nos aproximar
da densidade e da abrangência que o conceito de voz narrativa ou de poéticas da voz narrativa abre como
possibilidade crítica e teórica a qual, finalmente, nós mesmos procuramos sobredeterminar ou suplementarizar,
digamos assim, com o conceito de teatralidade maquínica da literatura. Para nós, e apenas a título de breve
esclarecimento, uma teatralidade na literatura não faz a não ser nomear a dinâmica própria e em double bind
que coexiste numa poética da voz enquanto modo singular de uma escritura literária. Uma teatralidade literária
procura fazer emergir, segundo um certo registro de operações críticas e estilísticas, retóricas e conceituais, um
movimento que Rabaté procura expor como uma necessária e indispensável ética do comentário na crítica
290
forças compósitas reunidas em seus corpus de escritura; no caso específico que tratamos, a partir da análise de
algumas cenas ou de fragmentos dessas imagens nas ficções de Maurice Blanchot e Clarice Lispector.
Entretanto, como camada latente, poder-se-ia entrever uma outra intenção e que diz respeito à própria
relação paradoxal da crítica literária e do “objeto” da literatura. Em outros termos, diz respeito a uma
dificuldade ou impossibilidade desta atribuição antinômica. Por outra parte e sem guisa de conclusão, pois se
trataria justamente de escapar de um regime sintético conclusivo, esse ensaio que (re)enunciamos e
(re)nunciamos como a própria atualização renovada de uma escritura crítica (re)comentada, diz respeito, em
termos deleuzianos e/ou blanchotianos, à eventualização do próprio acontecimento crítico como possibilidade
impossível, (im)possibilidade, pois ali tratar-se-ia da recriação sempre distanciada infinitamente de seu objeto,
justamente pelo fato deste objeto não poder ser antinomizado sem a construção de uma operatória crítica
singularmente associada ao movimento de sua captura. Vale dizer que o objeto constrói a crítica e as
possibilidades da crítica no mesmo momento de sua atribuição pela linguagem e “plásticas” desses gestos de
escritura.
Seria necessário apontar a problemática dessa dicotomização entre crítica e objeto literário se há quase
meio século desenvolve-se um desdobramento ininterrupto e fecundo sobre e a partir da filosofia da
desconstrução de Jacques Derrida e toda sua herança teórica e por outra via, a partir da filosofia de Gilles
Deleuze e suas enormes repercussões críticas?
Esperamos ter conseguido descrever de forma adequada um certo trajeto teórico exposto nas páginas
anteriores e que tem a ver com uma indagação e busca exaustiva de um certo gesto crítico dos textos de
Blanchot e Lispector. Contudo, suspeitamos que a própria divisão entre as duas partes deste trabalho de tese
pode criar ou fazer daí derivar uma certa intrusão antinômica problemática. Que essa problemática
332
seja uma
literária. O comentário crítico para Blanchot e segundo Rabaté, ao se preocupar com o movimento rítmico e
paradoxal da própria literatura, pois sempre lançado de um lado a outro do particular e do geral no que diz
respeito ao sentido da “Obra”, procura com a força silenciosa de uma discrição imperturbável, se fazer
acompanhamento detalhado e dinâmico, perscrutador e filológico, rigoroso, mas libertário, em seu sentido de
uma verdadeira experiência crítica sobre os textos e os autores que de um modo ou de outro conformam o
território móvel das preocupações teóricas e literárias do crítico. Há uma insuficiência constitutiva do
comentário, no que diz respeito à falta copresente que agencia a própria mobilidade simbólica da experiência
literária, talvez, melhor dizendo, “falta” no sentido do “espaço” de diferenciação ou de iterabilidade que
permanece na obra, como sendo da ordem de um efeito de ausência constitutiva entre a enunciação do signo e
a própria distância inabordável desta com a matéria simbólica que toma vida no enunciado da experiência da
escritura, da narrativa ou no sentido mais amplo da linguagem ou de uma ontologia da linguagem, do espaço
literário constituído pela literatura. A esse respeito indicamos o esclarecedor capítulo sobre o modo crítico do
comentário de Blanchot: “L’insuffisance du Comentaire” de seu livro supracitado: Poétiques de la voix. Paris,
José Corti, 1999, pp. 17-25. Sobre a questão da voz narrativa e seus desdobramentos teóricos ligados a uma
certa historicidade das transformações do romance moderno francês e à emergência do Récit como fenômeno
expressivo literário sui generis, conferir também do mesmo autor, a introdução de Vers une littérature de
l’épuisement. Paris, José Corti, 2004.
332
Uma descrição da conceitualização das noções de problema e problemático em Deleuze e que lemos em
Vocabulaire de Deleuze. Paris, Ellipses, 2003, de François Zourabichvilli seria necessária para nos
aproximarmos mais do nódulo do problema que perseguimos neste trabalho de tese. Segundo Zourabichvilli a
noção de problema em Deleuze traz consigo, de certo modo, toda uma postura filosófica que ele teria tomado
de Bergson e levado adiante. Basicamente, seria necessário compreender que o problema não pode ser pensado
como algo que simplesmente se relaciona ou deriva da necessidade de sua solução. « Un énoncé, un concept
291
linha de fuga das forças discursivas em jogo neste trabalho e que transforme criativamente a própria pesquisa é
o que se intenta fazer neste momento e nisso nos remetemos ao desejo evocado de uma experiência crítica
como épreuve ou prova-ção. O problema em nosso caso se impõe como construção de um modo de leitura que
possa estabelecer nexos entre uma experiência ficcional limite no sentido da necessidade do escritor operar
uma sobre-gestualidade diante de suas posições estéticas, existenciais e especulativas e uma tarefa crítica que
se posiciona numa difícil ou problemática confluência entre a obrigação de discernimento e reorganização
arbitrária da experiência literária e uma necessidade ética diante da autenticidade e criatividade da obra.
Encontrar um ponto de articulação ótimo na configuração dessas duas necessidades é o que nos leva a
potencializar uma espécie de ficção crítica no interior da relação entre as duas ficções que tratamos e que têm
lugar somente na medida de uma escolha “arbitrária” ou, antes, necessária por atribuição de sentido, escolha de
comparação enfim, guiada no sentido que discernimos do encontro possível que forçaria o pensamento, como
possibilidade de descrição ou cartografia das forças e configuração plástica e dramática no interior dessas
ficções e entre elas, no sentido das questões que nos parecem resvalar uma necessidade ou os efeitos da
literatura no que concerne à vida, e para nós, esta vida está vinculada ao que poderíamos pensar sobre o corpo,
desde que pensado em sua existência desvinculada de qualquer a priori de transcendência, para que possamos
pensar essa vida do homem enquanto trabalho ou obra de seu próprio desvelamento, passagem e travessia num
espaço e num tempo. O que significaria pensar a literatura ou o fabular fora de uma demarcação dialética entre
o real e o imaginário? Qual a possibilidade de pensarmos a “membrana” translúcida que faz dessas categorias
n’ont de sens qu’en fonction du problème auquel ils se rapportent » (p. 67). « Quel est le sens que le problème
confère a l’énonciation conceptuelle ? Il ne s’agit pas de la signification immédiate des propositions : celles-ci
ne se rapportent qu’à des donnés (ou états de choses), qui manquent précisément elles mêmes de l’orientation,
du principe de discrimination, de la problématique que leur permettait de se lier, c'est-à-dire, de faire sens » (p.
67). A filosofia dependeria, nesse sentido, de uma espécie de reencontro com uma exterioridade fora de seu
próprio sistema “problema-solução” e que a forçaria no encontro a pensar seu programa de inferências válidas,
digamos assim, ou seja, para além de um sistema de rigor enunciativo e categórico, a filosofia teria a ver,
nesses termos, com um caráter irredutivelmente intuitivo que apresenta como característica um pensamento
que se vê obrigado a pensar o que “ainda” ele não poderia pensar, não tendo ainda um esquema “pronto” (e aí
se encontra uma potência do “ainda não” que abre a possibilidade da criação dos conceitos) para reconhecer
esse problema; não tendo ainda uma “forma que lhe permitiria a priori o estabelecer como objeto” (p. 69).
« C’est pourquoi la pensée qui pense son propre acte pense en même temps les conditions de l’ « expérience
réelle », si rare soit-elle ; c'est-à-dire les conditions d’une mutation de la condition à la mesure de ce qu’elle
doit conditionner, telle qu’il n’y a pas de forme universelle de l’objet possible, mais d’irréductibles
singularités, effractions de non-reconnaissable auxquelles répond chaque fois, au fil d’une « expérimentation
tâtonnante » (QPh, 44) une redistribution originale des traits qui définissent ce qui signifie penser, et par la
même une nouvelle position de problème » (p. 69). Se tomarmos a literatura como uma experimentação
necessária do pensamento e que força de algum modo o pensamento a se ver impelido sob outras formas ou
modos da própria experiência de pensar, então podemos fazer uma ponte entre a questão do problema como
instância de “pré-compreensão” na filosofia no sentido da instauração de uma posição ou programa diante da
necessidade da filosofia operar a exterioridade do encontro com o que a força a pensar, e a literatura como
possibilidade de configuração do próprio encontro, na forma descritiva dos modos como uma experiência
ficcional pode fazer ressoar esses encontros do pensamento com o que o força a se conceber de outras formas.
Daí nossa preocupação em tentar criar um regime de descrição gestual no movimento interno à ficção
vinculado este a uma atuação ou verdadeira performatividade da voz narrativa nas ficções de Clarice e
Blanchot.
292
algo imanente e válido numa realidade do desejo como validade ou validação dos efeitos de qualquer processo
subjetivo?
Dessa evocação, diríamos que os conceitos de concepto, percepto e afecto, que lemos com Deleuze e
Guattari e que se conjugariam no termo francês épreuve, que traduzimos por prova-ção, sempre teriam estado
em ebulição tanto na Parte I deste trabalho quanto nesta mesma Parte II.
A primeira incursão de ordem teórica, operada na Parte I, justamente por ser produzida a partir dessa
divisão, seria tributária de uma antinomia relativa da reflexão que aqui tem lugar e que percebemos calcada em
toda uma historicidade epistêmica ocidental, metafísica e dialética e que, entretanto, acompanhamos
justamente a partir de sua cisão, ou de forma indireta, a partir de sua ruptura junto ao fluxo teórico que se
percebe em torno aos filósofos que citamos.
De algum modo, observamos também certa virulência antinômica que age em filigrana, infiltrada
nesta formatação estrutural bipartite. Dever-se-ia criar no mínimo duas partes a mais para poder escapar desta
sombra dicotômica? E, justamente, deveriam ser quatro partes ou mais para não recair numa trilogia talvez
indicativa de uma estrutura dialética? Ou dever-se-ia escrever uma tese com apenas uma parte? Uma espécie
de pesquisa monolítica almejando dissimuladamente construir uma totalidade poderosa, olho totalizante que a
tudo perscruta e reúne sob seu falso poder?
Nada disso e, no entanto, haveria aí algo intrinsecamente relacionado a uma certa agonia
claustrofóbica ou agorafóbica, dependendo da ótica, da estrutura. Entretanto, a partir justamente de certo “giro
da linguagem, no “território” da epistemologia, ou mesmo transbordando esse território, se ele é legitimo;
justamente a partir de Heidegger, da desconstrução derridiana e de Deleuze - para citar apenas três complexos
de linhas de força crítica e indicar, com o último, um envolvimento direto e operacional talvez mais intenso -
não se trataria mais de um problema de estrutura, mas sim de estruturação. Problema de descentramento e de
desfundamentação. Tratar-se-ia enfim, de pensar em como operar uma prova-ção crítica entre os dois corpus
textuais de que nos ocupamos e que se interpenetram numa estranha sombra eventual, vale dizer, impasse ou
hesitação paradoxal desse momento indeterminado (momento de crise, afinal), onde um certo regime de
atrações pode ter lugar, regime este que pode se espacializar no tempo e se temporalizar no espaço, criando a
possibilidade da relação (rapport, quid da força) e do encontro, criando a possibilidade desta “literatura
comparada”, desta épreuve, digamos, pois se preocupa em não comparar, mas em intrincar e invaginar,
algumas cenas umas nas outras, a partir dessa cesura ou falsa cesura que se instala a partir do ponto do nosso
intervalo, do ponto dessa crítica que se pretende épreuve, mas experiência que não busca a não ser a prova-ção
de uma figuração possível do jogo de efeitos que possam surgir nesse intervalo que chamamos também
épreuve de escritura.
Tratar-se-á, portanto, de regime de atrações e de se perceber ou melhor, capturar, como e sob quais
modos tal maquínica poderia se eventualizar numa forma expressiva e crítica que chamamos de épreuve ou
prova-ção.
Dia a dia acontece algo no qual uma vontade se materializa numa série de possibilidades mais ou
menos potentes. Mais alegria ou prazer aumentando o anúncio de uma tristeza que diminuiria essa potência do
corpo em sua existência entrópica. E é como desejo que a capacidade de ser afetado vai em direção a algo “em
293
vias de”, como sobrevôo veloz sem pouso nessa terra prometida que, no entanto, não é nunca alcançada - por
sorte! Pois se trataria de justamente desejar o próprio da promessa; tratar-se-ia de desejo como linha de fuga e
de prazer como agenciamento possível das linhas. Ou talvez, o inverso? Mas prossigamos numa direção e
tentemos depois fazer, quem sabe, a engenharia reversa.
Daí que o desejo é apenas segmentado pelo prazer para se reconstituir em outras linhas desejantes e
produtoras de prazer, mas também avizinhadas dessa fuga sempre possível ao distúrbio da linha, à sua
destruição e perda num certo buraco negro da impotência a que se deveria talvez combater. Diríamos que esse
par transversal desejo e/ou prazer se reenviaria talvez numa oscilação infinita e múltipla, permeada de seus
contrapontos necessários, como apatia e dor? Desejo e prazer não seriam permeados dessa espécie de ameaça
sombria, que faria que as próprias esperanças efetuadas não se desdobrassem em outras como o próprio sentido
do combate? Não haveria uma espécie de crueldade própria do desejo?
Crueldade fértil de uma esperança sem termo, de uma saúde dada no processo do próprio porvir como
fatalidade incomensurável, finalidade ou mortalidade que busca ser revertida de uma percepção trágica a um
sentido “sobre-humano”, poético e cruel apenas em sua verdade sem subterfúgios, no sentido de sua verdade
existenciária? Aí onde pensamos o corpo é onde o pensamos como atravessado pela escritura, pois esta
experiência o (re)lança a sua economia mais própria, ao pulsional de seu desdobramento especular, ou ao
entendimento da arte, nessa referência, a partir da ótica da vida.
O desejo é algo que se daria de algum modo como conjunção de forças, como coletividade de uma
espera sem termo que não a faça perder força. O prazer alcança em cada indivíduo, em cada unidade, o
conjunto dessa espera, mas ao alcançar o conjunto e a promessa, o prazer desfaz momentaneamente aquilo que
tornava a promessa coexistente no próprio conjunto, ou seja, desfaz o próprio da espera como sentido da
promessa, como cena compartilhada e praticada entre outros, entre nós; separados uns e outros no desejo, mas
unidos sempre nesse contraponto fatal que se dá no próprio de suas realizações coletivas e, paradoxalmente, na
individuação.
O prazer é apenas o momento de segmentação dessa linha vertiginosa do desejo. Linha virtualmente
múltipla, assombrada por suas próprias efetuações, marca necessária do próprio processo etherológico das
forças. Reinvenção ativa e reativa das forças, essa imbricação vórtica é necessária ao próprio desejo enquanto
finalidade existencial e consciência de finitude.
Diria que o desejo de cada um nunca é absolutamente solipsista, pois se realiza no processo iterativo
de nossas realizações e perdas sempre, de um modo ou outro, conjuntas. Pois ele é desde sempre uma direção a
um lugar povoado por outros desejos. O desejo é linha e multiplicidade, é um ponto que escorrega numa
espacialização do tempo. O prazer é pontual e individual, descontinuidade na linha que marca nova
continuidade oscilante em seu porvir hetero-oscilante. De-limitação e retorno de nova continuidade de linhas
de fuga, de desejos sem destino, irrealizável em sua destinação ilusoriamente última. Simulacro posto no lugar
da idéia. A potência do desejo é a potência do simulacro. Reversão do platonismo desde que se saia de dentro
da caverna.
294
Seja que essa idéia passe pelo nexo de que o desejo é virtualidade de uma atualização e o prazer uma
atualização do virtual
333
.O prazer causaria como uma descarga das linhas potencialmente virtualizadas pelo
desejo. O prazer criaria um ponto de descarga. Essas linhas se condensam como em um raio estático,
interrompendo o sobrevôo de velocidade infinita que o desejo virtualizaria em direção à promessa de seu
alcance sempre renovado pelo distanciamento que a busca renova ou reconduz à terra desejada; através do
deserto do real, em direção à espera que se cumpre na própria promessa.
Há uma suspensão aí, há como uma levitação do corpo que deseja. Há uma condensação virtual de
linhas de criatividade, mas também de linhas de destruição. Há nas linhas virtuais do desejo tanto a vida
quanto a morte, potencialmente presentes, potencialmente ascendentes como descendentes. Seja em direção ao
firmamento de um delírio artístico, seja em direção à profundidade terrosa de um hábito crítico
fundamentado...
“Tantrismo” do sentido (sentido do Ser? O ser é, mas advêm, vêm a ser e devêm), o desejo reavalia
constantemente as forças em tensão e sobre-tensão, forças de vida e de sobrevida (escrever muitas vezes é
sobreviver), condensa na extensão da promessa o próprio sentido da reavaliação (valoração da potência dos
afectos) na forma e na expressão desta reavaliação pode-se territorializar em prazer, pontuando num evento à
deriva produtiva ou destrutiva de suas linhas. O prazer desterritorializaria a terra prometida, no instante em que
se renovam e se reterritorializam novas expressividades do desejo em direção à promessa da terra prometida,
agora transformada, reavaliada em outra atualização, constituindo novas esperanças ou infortúnios, linhas de
vida ou de morte. Mas uma linha de vida pode ser sombria e uma linha destrutiva pode levantar-se contra seu
próprio falso desígnio. As linhas muitas vezes se superpõem, se entrelaçam e se arrebentam, reconstituindo
outras amarras, outras progressões do desejo, outras regressões à perda da vontade ou à suspensão da decisão.
Mas essas reconstituições são outras decisões e criam outras virtualidades potencialmente atualizáveis
no ato da escrita, subjetivamente nas múltiplas significações ficcionais ou autobiográficas da escritura literária.
Essa transgressão, progressão e regressão das linhas do desejo, de suas atualizações, pontuações e descargas na
extensão material e energética das linhas abstratas de força, só podem ocorrer nos planos imanentes que
constituem os corpos a partir das maquínicas de desejo que os agenciam em um Corpus-Mundo-Corpos como
Ser de uma indi-différen(t/c)iation
334
paradoxal no seio da dinâmica energética da matéria. Ser Uno-Múltiplo
(meta)-(bio)-(físico) implicado na (des)instituição literária.
333
Sobre uma descrição do Atual e do Virtual em Deleuze, Cf . SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et L’art.
Paris, Puf, 2005, p. 89 « Virtuel et actuel présentent les deux modes de la différence: un tout peut être
différentié (avec un t) quand virtuel, bien singularisé et parfaitement réel, sans être stabilisé sous la forme d’un
individu actuel. Tel est le corps sans organes, face virtuelle et intensive de la corporéité. Lorsque cette
différentiation virtuelle s’actualise, elle s’individue, passe du virtuel à l’actuel et résout sa différence de
potentiel initial pour se différencier (avec un c). Ces deux régimes de la différence expriment l’axe énergétique
d’une intensité, qui s’individue en résolvant sa différence de potentiel : un corps différentié (avec un t) sur le
plan virtuel se différencie (avec un c) en s’individuant. »
334
Cf. DELEUZE, Gilles. La isla desierta y Otros textos: textos y entrevistas (1953-1974). Trad. José Luis
Pardo. Valencia, Pré-textos, 2005, p. 137. Transcrevemos a explicação de Deleuze:
“La noción de différen(t/c)iation no expresa únicamente un complejo matemático-biológico, sino la condición
de toda cosmología, como de las dos mitades del objeto. La diferenciación (différentiation) expresa la
naturaleza de un fondo pre-individual que no se reduce a un universal abstracto, sino que comporta relaciones
295
Clarice Lispector já existia antes desse primeiro encontro com esse corpo de Blanchot, com esse
corpus blanchotiano. A pergunta é: até que ponto neste (meu-nosso) caso, Clarice já existia sem Blanchot?
UM DELÍRIO DO CORPO-CORPUS: Uma certa Clarice existe mas irredutivelmente diferente de
outra Clarice que, atraída para uma cena específica que criava meu desejo, passara a existir como Clarice
Lispector junto de Maurice Blanchot. Mas “um” certo Blanchot não pôde existir senão junto a outras descargas
de prazer que traziam o desejo para novas reavaliações de forças. Desejo de comparação, de justaposição de
contraposição? Essas outras descargas pontuavam e territorializavam Georges Bataille e Emmanuel Levinas
em novas promessas reterritorializadas em outras extensões de linhas de fuga, estas repotenciliazadas a partir
de Michel Foucault e Roland Barthes, reinscritos e reconfigurados em Christophe Bident, Jean-Luc Nancy,
Antonin Artaud e Phillipe Lacoue-Labarthe, Heidegger e Beckett, Evelyne Grosmam ou Gilles Deleuze,
Liliana Reales e o jornal Le Monde e Benedito Nunes, Sérgio Medeiros, Wladimir Garcia e Felix Guattari,
Folha de São Paulo, Hèlene Cixous e Jacques Derrida, Simone Cury, Evando Nascimento e Dominique
Rabaté, Juliano Garcia Pessanha e George Didi-Huberman, Peter Pál Pelbart, Nadia B. Gotlib e Walter
Benjamin, Pierre Fedida, Freud e Kant, Pierre Klossowiski, Kafka e Nietzsche todos se reencontrando como
energia elétrica transfigurada ou traduzida em signos binários, zeros e uns transformados por várias linguagens
de computação em Java ou C++, num espaço atual de uma rede telemaquínica e computacional, Internet ou
WEB, onde toda essa hierarquia re-transfigura-se se perdendo em puro excesso de informação, reorganizando-
se em tempo real em suspensão contingente do sentido; indefinindo-se em puro prazer tortuoso de perda da
referência, esta, relativa e obrigatoriamente reinstituída a partir das primeiras linhas de desejo já sempre de
algum modo re-inscritas neste passado ainda (im)possível, e des-instituídas por re-implosão casual deste
corpus teórico futuro, desmedido e programado neste mesmo presente indiscernível e paradoxalmente
(im)possível. “It”
335
, Coisa e Neutro são existenciais articulatórios e alucinatórios e delirantes de estases do
tempo e funcionam na literatura ou na filosofia. São uma espécie de épreuve sígnica do sentido, seja este
especulativo ou estético, gestual e teatral.
O prazer da leitura e o desejo da escritura, junto aos percalços ou às variações de potência dessas
relações segmentalizadas se reenviavam de inúmeras formas criando uma espécie de relação instável e caótica,
ora organizada pelo prazer, ora desorganizada pelo desejo, ora o contrário, pois a reavaliação da potência das
forças discursivas operada no desejo dá-se no mesmo momento em que é pontuada pelo prazer. Daí, novas
territorializações da pesquisa que esboçam, na continuidade do processo desejante, séries descontínuas
y singularidades que caracterizan a las multiplicidades virtuales o Ideas. La diferenciación (différenciation)
expresa la actualización de estas relaciones y singularidades en cualidades y extensiones, especies y partes,
como objeto de la representación. Los dos aspectos de la diferentiation corresponden, pues, a los dos aspectos
de la différenciation, pero no se parecen a ellos: hace falta un tercero que determine la actualización de la Idea
y su encarnación. Hemos intentado mostrar que los campos de individuación – con los precursores que inducen
su actividad, con los sujetos larvados que se constituyen alrededor de sus singularidades, con los dinamismos
que llenan el sistema – desempeñaban efectivamente este papel”.
335
Poderíamos dizer que o “It” é um personagem-conceitual, uma entidade-conceito de multiplicidade do
sentido estático do espaço-tempo em Água viva de Clarice Lispector. Cf. CONFORTIN, Rogério. Figurações
do Neutro. Uma leitura de A maçã no escuro e Água Viva de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado.
Biblioteca da UFSC, 2005.
296
potencializadas pela esperança do prazer
336
da escrita indissociavelmente e junto ao desejo dessas novas
leituras.
Clarice Lispector e Maurice Blanchot jamais existiram na realidade desta cena onde ocorre o regime
de atrações que procuro descrever. Maurice Blanchot e Clarice Lispector sempre coexistiram como
virtualidades no corte exposto que abre esta cena (im)possível onde reina o distanciamento e a proximidade
das forças de seus discursos. Essa cena nunca poderia existir se não fosse exterminada sua singularidade a
partir da afirmação de sua pluralidade irredutível. As cenas que ocupam e apagam a primeira cena primitiva
337
,
não existiriam como tais a não ser atreladas aos nomes de Michel Foucault, Jacques Derrida, Gilles Deleuze,
Georges Bataille e os outros tantos nomes ditos e não ditos que ainda agora aludimos à força fragmentária e
citacional.
De como relacionar a irredutibilidade destas dinâmicas complexas e realizadas como atualizações
possíveis de seus esboços de leitura e de escritura; de como fazer abrir ou de fazer vibrar uma espécie de olho
336
Deveríamos aproximar, senão fazer coincidir ao menos, como uma idéia de ciclo pulsional, devaneio de
uma corporeidade da escritura, ou teatralidade de uma escritura crítica, a idéia de prazer que nessas imagens
remetemos ao sentido de jouissance de Barthes, quando este comenta certa economia textual de Georges
Bataille em “Les sorties du texte – Textes 1973” in: BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes, IV – Livres
Textes, Entretiens. Paris, Seuil, 1994, 2002, p. 367.
De fato, o prazer que aqui esboçamos não pode ter sentido senão como situação de atualização ativa e reativa e
ao mesmo tempo perda de uma possível e fragmentária continuidade do desejo de pesquisa. O prazer de uma
escritura crítica não poderia existir como gozo (jouissance) se não perdesse sempre uma parte das
continuidades das leituras que lhe dão o caráter heterológico da potência que chamamos de épreuve de
escritura literária e crítica. E nesse texto de Barthes encontramos uma outra saída que nos indicaria um plano
de acesso ao que dissemos na primeira parte, a respeito da possibilidade de se pensar em uma economia crítica
do estilo ou daquilo que, posteriormente, procuramos chamar de uma cartografia dos gestos a partir da noção
de uma teatralidade maquínica que observamos operar como dramática própria da voz narrativa que lemos em
Clarice Lispector e em Blanchot. Para tanto, Barthes opera uma economia crítica que instaura um jogo de
tensões e de discernimentos semiológicos pela forma de uma performática sobre códigos de saber (codes de
savoir) que relacionariam o próprio objeto desse saber (o corpo ou suas partes como coisa a ser pensada numa
heterologia disseminante de um saber relativo, transversal) a sua expressividade escritural. Aí se daria a
terceira via bataillana, a saber, a de um saber heterológico sobre o corpo não articulado ao discurso (“aquele
dos outros, aquele do saber, ou mesmo o meu próprio”) mas articulado à língua. Vale dizer, citando Barthes,
“laisser intervenir les idiomatismes, les explorer, les déplier, représenter leur lettre (c’est à dire, leur
signifiance) ; (...) par cette voie, le corps s’engendre à même la langue : idiomatisme et étymologisme sont les
deux grandes ressources du signifiant » (pp. 571-572)
Esse tipo de estratégia é fartamente reportado pelos críticos contemporâneos brasileiros como o estilo da
literatura tardia clariciana, que produz uma literatura em intensa tensão entre um discurso elaborado, rebuscado
e também se remetendo constantemente ao discurso da doxa e às formas populares encenadas sob diversas
cenas e personagens do cotidiano.
337
Uma cena primitiva?”: Blanchot descreve uma cena na qual ele dissemina um sentido “primitivo” ou
originário (que marca um início, mas não pode deter seu começo desde sempre anacrônico), sentido talvez do
vazio pleno do fascínio da imagem em suspensão, imagem do tempo que deriva, passa, mas ainda permanece e
se lança ao inusitado. Trata-se da descrição de uma cena de infância - cena auto-biográfica? - onde o olhar da
criança se interpenetra à fascinação e à amplitude do firmamento. Imagem da ausência que a tudo abarca e
atrai por sua potência de atração infinita, devido justamente à qualidade de abertura ilimitada de sua imagem
dada numa relação “posterior” ou aprés-coup num léxico freudiano. Daí advém um sentimento de
impermanêcia que é descrito a partir da eclosão em lágrimas de uma forte emoção solitária e prazerosa da
criança, rememorada como cena originária e que permanece indissociada da própria ausência e amplitude do
firmamento. Espécie de êxtase nostálgico e angustioso recobrado e revivido numa cena que parece se
desdobrar infinitamente. BLANCHOT, Maurice. L’écriture du Desastre. Paris, Gallimard, 1980, 2006, p. 117.
297
ou olhar “musical” ou ainda de “feixe” de linhas de força sobre essas confluências de devires atraídos pelas
cenas, é o que se pensará como teatro maquínico de um comentário de comentários.
298
Épreuve ou imagem de uma dramatização teatral
338
dos personagens.
Lo que más fundamentalmente me separa de los
metafísicos es esto: no les concedo que sea el “yo”
(Ich) el que piensa. Tomo más bien al yo mismo como
una construcción del pensar, construcción del mismo
rango que “materia”, “cosa”, “sustancia”, “individuo”,
“finalidad”, “número”: sólo como ficción reguladora
(regulative Fiktion) gracias a la cual se introduce y se
imagina una especie de constancia, y, por tanto, de
“cognoscibilidad” en el mundo del devenir. La
creencia en la gramática, en el sujeto lingüístico, en el
objeto, en los verbos, ha mantenido hasta ahora a los
metafísicos bajo el yugo: yo enseño que es preciso
renunciar a esa creencia. El pensar es el que pone el
yo, pero hasta el presente se creía “como el pueblo”,
que en el “yo pienso” hay algo de inmediatamente
conocido, y que este “yo” es la causa del pensar, según
cuya analogía nosotros entendemos todas las otras
nociones de causalidad. El hecho de que ahora esta
ficción sea habitual e indispensable, no prueba en
modo alguno que no sea algo imaginado: algo que
puede ser condición para la vida y sin embargo falso.
(Nietzsche)
Pensemos ou talvez, quem sabe, imaginemos (como se tivéssemos escolha) que todos esses nomes
próprios são todos personagens conceituais
339
que entram em relação e que se pontualizam e se descarregam,
ao menos em parte, de suas cargas e potências, criando descontinuidades entre os limites até ali inexistentes.
Reenviando-se um ao outro num plano de composição onde operaria uma espécie de força de captura, um tipo
de “olho táctil” magnetizado e vibratório que busca, a partir do desejo de organização de uma composição,
338
Sobre “O método de dramatização” conferir DELEUZE, Gilles. La isla desierta y otros textos. Textos y
entrevistas (1953-1974). Trad. José Luiz Pardo Tório. Valencia, Pre-Textos, 2005, p. 127. Nesse belíssimo
texto de exposição de sua filosofia, Deleuze - que responderá a uma série de perguntas de outros pensadores,
como J. Merleau Ponty, M. de Gandillac, Jean Beufreut, Michel Souriau e outros - expõe de forma
absolutamente densa e resumida toda a maquínica de sua filosofia. Deslocando a intenção filosófica ou o
desejo de pergunta que a controla, de “O que é?” - que parece supor uma essência estabilizada por trás das
aparências - para as perguntas “como?”, “quando?”, “quem?”, que multiplicam as perspectivas possíveis de
respostas, Deleuze configura um método de dramatização da filosofia. Uma essência ou Idéia seria melhor
descrita ou perscrutada a partir do desdobramento de suas “gêneses” espacio-temporais. É toda uma relação
com um pensamento imanente, com um empirismo físico-biológico. Enfim, é toda uma maquínica conceitual
relacionada aos “fenômenos” de individuação e singularização - hecceité - que operara uma descrição das
relações de forças complexas que serão operadas a partir de um “método de dramatização” dessas forças. Há o
exemplo do ovo como acontecimento que conjuga em seu desenvolvimento toda uma série de relações virtuais
e atuais, compondo uma espécie de drama na confluência complexa das forças que se organizam e se
desorganizam a partir de uma variação de potenciais, de toda uma diagramática de linhas de forças que
pertencem, geram ou degeneram virtualidades ou atualizações possíveis de um determinado acontecimento,
por exemplo, o ovo em sua rede de compossibilidades de forças, de atualizações entre forças internas
virtualizadas e forças externas atualizáveis nessa multiplicidade de confluências.
339
Deleuze e Guattari tratam da questão dos personagens conceituais em: DELEUZE, Gilles, GUATTARI,
Felix. O que é a filosofia. Rio de Janeiro, Ed. 34, 1996, p. 81.
299
descrever reavaliações plásticas e gestuais sucessivas entre os corpos atuantes dos personagens; como
observando um deslocamento de forças invisíveis que se reelaboram constantemente entre esses mesmos
corpos e seus movimentos descritos por uma voz narrativa que jamais será redutível; voz narrativa que para
nós funciona como verdadeiro palco virtual onde se dão as cenas e onde se reavaliam os processos imaginários
ou simbólicos, diríamos, por hábito e repetição, reais, mas para tanto, como que transvalorados, esses
processos se espacializam num plano de composição e de escritura literária. Ou, diríamos, se espacializam na
dinâmica de uma teatralidade maquínica da literatura.
Mas os nomes próprios foram mascarados nesse palco de dramatizações teóricas. Caberia perceber
pela gestualidade de cada ator, sua verdadeira identidade? Ou antes, nos atermos à função de seu papel ou de
sua tarefa no quadro geral da performance? Mas talvez antes devamos pensar na performance como o
havíamos dito ainda agora, como essa vacância entre os corpos, vacância dinâmica e tornada real apenas pelos
efeitos de seus deslocamentos, pelo efeito de suas variações entre os corpos. O sorriso advém de uma
cambalhota, um olhar baixo descende de uma triste notícia, um suspiro remete a uma esperança incerta e
suspende no sopro ambíguo de seu fôlego o vazio sentido do desejo que ainda não se cumpriu como prazer,
fazendo-o circular em seu próprio movimento neutro; olhar sem direção que não seja em retorno a si mesmo,
porém sem encontrar-se jamais nesse movimento.
Pois a escritura, nesse ponto, ou nessa dinâmica de teatralidade que tentamos expor, se remeteria ao
limite de sua necessidade reflexiva ou fabular, à sua própria origem, ou seja, ao impossível de seu gesto inicial,
marcado apenas como uma intenção descritiva de um evento entre outros, mas transtornado em seu devir por
uma decisão dúplice, a saber, de retirá-lo de sua série caótica, entre outras tantas imagens atravessadas à
experiência fática do sujeito e de remetê-la ao mesmo tempo a uma outra série, esta representada no fluxo
narrativo e descritivo literário que se abre por sua vez, e mais uma vez como inflexão à série participante, à
possibilidade de repetição diferencial desse processo. É a própria vida que se re-serializa numa virtualização
atualizante sobre sua própria multiplicidade imanente.
Cada série, nesse sentido, é um evento que pode se fractualizar
340
indefinidamente no fluxo de suas
replicações. Isto não significa que uma série imaginária ou rememorada não se precipite numa impossibilidade
de replicação, ela tanto se abre em desdobramentos sucessivos, quanto se extingue ao ser capturada no devir de
outra série. A teatralidade maquínica será, nesse sentido, a possibilidade de se capturar alguns processos que se
formam entre as séries representadas, ali onde co-existe uma relação formal e expressiva entre elementos
alegóricos e simbólicos, como os personagens em seus movimentos e dramatizações que se remetem ao
conjunto aberto do jogo fabular, à historia ou simplesmente às cenas que evoluem no interior da ficção
enquanto constituição ou mesmo destituição da intriga e dos personagens, postos em jogo pela voz narrativa.
Esse conjunto é um Corpus dramático da literatura?
Perguntas embaralhadas por sua própria formulação, através das máscaras e das vestimentas de cada
um dos personagens conceituais, instala-se um efeito ficcional que tornaria impossível o discernimento de suas
340
Remetemo-nos apenas como metáfora à dinâmica de uma geometria fractal.
300
identidades relativas. Antes ainda, como dizíamos, para além dos corpos, um Corpus dramático; o problema
está posicionado também entre os palcos e as cenas, entre os personagens e as peças.
O problema deverá ser concebido de forma móvel, sempre deslocado em relação ao próprio
deslocamento dos personagens. Na cena primordial deste regime de atrações e repulsões, esta desde sempre
ficcional - ou seja, captura e re-instituição de uma série - os personagens conceituais não existem nunca
separadamente, tendo uma relação cinética e dinâmica, ao mesmo tempo, longitudinal e extensiva, latitudinal e
intensiva, existencial e essencial, sendo reavaliados constantemente em suas reatribuições mútuas e gestuais,
conformando a pluralidade das cenas que os tornam potencialmente fantasmáticos a atuar imediatamente sobre
cada um e em todos os palcos do plano de consistência aberto pela pseudo-cena originária e retomado na
pluralidade das cenas e dos palcos virtuais porvir. Espasmo de uma atualização do desejo.
É de teatralidade que se trata aqui! Daquilo que como diz Clarice Lispector ou Marcel Schwob
341
,
ocorre “entre as linhas”, no vazio pleno e branco sombreado pelas linhas invertidas do outro lado da página,
ali, nesse espaço em dobra, invaginação de uma imagem multiplicada em seus interstícios latentes; necessários
à lei constante do descontínuo, na (e)terna desmesura de uma espécie de caos vertiginoso e inesgotável da
literatura saindo fora-de-si mesma, ex-curso para fora e para dentro do processo literário (pensamento do que
se observa a si no delírio de sua perda, ou seja, a mesma coisa, o objeu
342
de uma imaginação fabular;
imaginação de sua identidade incompleta e em processo de afirmação e denegação simbólicas no espaço
literário) que se apreende e se abandona em sua própria leitura, finalmente revertida sobre si mesma,
(in)significante e inversamente potente na ilusória passividade de seu regime exteriormente extático (o código
só se dinamiza na leitura) e internamente dramático e teatral.
É nesse intervalo que situaremos o Corpo e sua possível transvaloração em Corpus, porém num gesto
crítico sem síntese, sem finalidade fática que não se reterritorialize em desejo. Este desejo deveria aí deslizar
como linha criativa, indecidível nesse caso, sem sua própria configuração ou dramaticidade de destinação.
341
« Le vrai lector construit presque autant que l’auteur: seulement il bâtit entre les lignes. Celui qui ne sais
pas lire dans le blanc des pages ne sera jamais bon gourmet de livres. La vue des mots comme le sont des notes
dans une symphonie amène une procession d’images qui vous conduit avec elles. » Cf. El libro della mia
memória, in: SCHWOB, Marcel. Oeuvres. Edition établi et présenté par Sylvain Goudemare. Paris, Phébus,
2002, p. 964.
342
Cf. o capítulo “L’« objeu » in: FEDIDA, Pierre. L’absence. Paris, Gallimard, 1978, pp. 137-282. Em certas
situações psicanalíticas, o “objeu” se representa como objeto paradoxal de uma estrutura denegativa recorrente;
ele entra numa relação de suspensão entre uma afirmação e uma denegação, impedindo que a imagem do
recalque se desprenda ou se “decalque” de sua estrutura “originária”, interferindo no processo transferencial e
se estabelecendo como uma estrutura transtornadora, esquizo, acoplada como um pseudo-self do analisado no
sentido que dá Winnicot. (Cf. especificamente nesta parte: Verwerfung et Verneinung, pp. 235-243)
Remetemo-nos aqui ao conceito de objeu apenas como forma de estabelecer o nexo complexo de formação de
uma estrutura intrínseca entre o objeto de escritura e sua teatralidade ou jogo de cenas e o sujeito agente dessa
mesma teatralidade que desemboca tanto numa relação interior às séries imaginadas ou rememoradas na
escritura, quanto em seus desdobramentos possíveis dados na recaptura e reinstituição das séries dadas na
leitura pensadas aqui como reinscrição teatralizada de um corpus ficcional num corpo de fruição ou de
sensação.
301
Por outra via, talvez devêssemos remarcar que há na narrativa essa voz dúplice – que chamamos
anteriormente voz narrativa e voz narradora - e que participa tanto da pseudo-série de origem quanto das séries
virtuais que se atualizariam em sua destinação aberta de obra.
E nos perguntaríamos se não haveria nesse lapso pulsional entre o Corpo e o Corpus, também uma
abertura ou um abismo de atrações reduplicado entre aquelas potências as quais Nietzsche descreveu em
termos metafísico-pulsionais em seu O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e pessimismo
343
? Bem, é
necessário dizer que esse movimento só tem sentido se tomarmos essa economia pulsional nietzscheana do
trágico numa acepção pluralizada, já suplementarizada de toda uma energética deleuzeana.
Pois se podemos supor que haja uma força pulsional originária, virtual e extensiva ao coletivo (força
dionisíaca de leitura - permanência do coro trágico como potência própria da leitura
344
) na qual um desejo de
escritura a organiza numa expressividade poética (força apolínea do desejo poético de escritura e de
teatralidade literária) não restaria desse trânsito, perguntaríamos, uma espécie de espasmo incrustado no
próprio espaçamento entre a atração de forças estéticas primordiais, ou seja, uma espécie de espaço neutro e
em suspensão, espaço próprio do literário como campo de forças arqui-originário? Essa economia ao mesmo
tempo em que se instaura passa a ser paradoxalmente insituável, devido à multiplicidade das próprias séries
anteriores, mas potencializa esse escorregamento dos corpos virtuais da narrativa que se estendem na própria
criptografia de sua teatralidade, estando está, sempre aberta à sua cartografia gestual como épreuve crítica.
343
Cf. NIETZSCHE, F. O nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São
Paulo, Cia. das Letras, 1992.
344
Parece-nos fundamental essa noção nietzscheana do coro trágico do teatro pré-euripidiano. E de algum
modo (tomando a precaução de perceber a estratégia nietzscheana como processo e economia de forças
estéticas e não simplesmente como uma dialética de um fundamento estético primordial polarizado) ser-nos-ia
inclusive necessário adentrar nessa intuição, pois pressentimos quão rica seria para nossa pesquisa poder
realmente fazer uso dessa imagem de uma força dionisíaco-apolínea já energeticamente cartografada no gesto
filosófico e teatral sobre o éthos trágico de Nietzsche. Pois poderíamos a partir dessa figura pensar numa
espécie de herança de uma economia das forças estéticas no literário, gesto que de algum modo já
pressupomos como hipótese. Haveria a necessidade de se estabelecer uma configuração e uma outra economia
agora entre as duas vozes que atribuímos como voz narrativa de caráter mais essencial e voz narradora como
reverberação atomizada e teatralizada nas vozes dos personagens. A voz narrativa teria um caráter, nesse
sentido, mais originário e próximo do coro, exercendo o narrador a força de coesão que aglutina a própria
configuração do ficcional num controle mais organizacional, enquanto as vozes narradoras, advindo de e
reverberando a própria voz narrativa, re-serializariam a série ampla e constitutiva da voz narradora na
especificidade e singularidades dos seus personagens, habilitando a complexificação apolínea que já operava
esse híbrido originário dionisíaco-apolíneo atuante na voz narrativa que nessa acepção herdaria a força
expressiva transvalorada daquele coro trágico que Nietsche identificou como uma potência de atração e de
unificação.
É essa imaterialidade do jogo, nessa economia de forças de Nietzsche, que nos interessa particularmente, pois é
essa mesma imaterialidade que percebemos ser forjada na imanência que procuramos capturar na passagem de
uma energética teatral primitiva a uma transvaloração complexa que assume a literatura como economia geral
de uma teatralidade signalética do ficcional enquanto experiência do próprio imaterial enquanto tal. Nesse
sentido é que afirmamos que uma teatralidade maquínica da literatura operada em nossa hipótese é uma
variância do que entendem os teóricos e críticos contemporâneos pós-estruturalistas expressado no termo
Poéticas da Voz, acompanhando uma experiência crítica blanchotiana, como fazem particularmente
Dominique Rabaté e Christophe Bident cada um a seu modo. Cf. NIETZSCHE, F. O nascimento da Tragédia
ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Cia. das Letras, 1992, pp. 51-56.
302
Será necessário elencar dois canais de força discursiva para tornar viável a teatralização desta
épreuve? Não necessariamente, mas é assim que tentamos movimentar esse ato ficcional-teatral
dissimuladamente fantasmático na transversalidade de seus Corpos e em uma “fração” (o récit como obra e
parte da obra ao mesmo tempo) de seus Corpus ficcionais: Maurice Blanchot e Thomas l’Obscur e Clarice
Lispector e A paixão segundo G.H. Não há possibilidade de nos remetermos de forma autêntica à desordem
constitutiva que operaria nesse palco virtual e sob a qual, ou sobre a qual, nos esforçamos para imprimir uma
certa ordenação, que no limite ou no limiar de suas fronteiras, retornaria sob outras máscaras outros papéis,
outras cenas ramificadas em mil outras linhas de desejo, correndo e escorrendo para fora de si mesmas,
transtornando seu porvir ao se destituírem de sua própria continuidade, através do acaso de suas inflexões, do
rompimento prazeroso ou fatigante (mortal) de seus fluxos de significação e teatralidade.
Mas os personagens deveriam aí serem percebidos atuando como forças que se chocam e se
complementam, forças que se repelem e se destituem de seus ritmos ao ganharem outras vibrações, quando
justamente perdem ou transformam suas antigas qualidades em novos ritmos possíveis. Pois os personagens
agem menos a partir de suas características dissimuladas por trás de suas máscaras do que a partir das relações
de força entre si, quando uma determinada imagem valerá mais pela alusão que a leva a potencializar uma
tonalidade de cor ou o sentido de uma ação futura, do que a descrição minuciosa de toda uma cena verbalizada
ou concebida como ambientação ou contexto prolixo de certa linearidade mesmo que problemática ou densa da
história.
Essas imagens de compossibilidades descritivas têm relação com o que há entre os corpos
(comunidade virtual e plástica das forças afectivas), com o que há entre o movimento gestualizado dos
personagens, a saber, esse imperceptível deslocamento de “ar” ou de tonalidades afetivas, esperanças ou
revelações secretas que imprimem uma certa atmosfera a outra cena, e que permitirá entre-ver na ausência, na
distância, ou no espaçamento (é-loignement), o preenchimento ou a desfiguração alusivos de uma cena futura,
de uma transformação no quadro geral de uma situação crítica ou na destituição progressiva de uma
possibilidade de desfecho, mesmo que aí nessa retrogradação, se constitua como reversão programada ainda
outro desfecho, reinstalando quase imperceptivelmente uma outra progressão. Devir-imperceptível entre os
corpos, entre as cenas e entre os enredos fragmentários que podem se estilhaçar no curso ou ex-curso do
próprio relato. Daí pensarmos numa teatralidade maquínica da voz narrativa.
Eis a estratégia que adotamos para perceber a imagem de como ocorreria essa relação de tonalidades
afetivas entre cenas de uma ficção e outra, seus possíveis e inusitados relacionamentos, bem como suas
impossibilidades lançadas para fora do quadro ou do contexto de uma comparação. Não há aqui nenhuma
comparação, há apenas dissimulação no nível dos simulacros possíveis entre as imagens entre um quadro de
arranjos ficcionais e outro, na migração forçada dos planos de força que instituímos e atravessamos como linha
de força ou de fuga transversal, aos planos de composição dos romances criticamente dramatizados. Pois é de
corpos que tratamos e eles são corpos abertos e atravessados pelo tempo na fissura carnificada pelo acaso de
suas mutuas composições. São Corp(u)s literários afinal! Migram numa espécie de teatralidade onto-semio-
lógica, que desdobra interno em externo e compõe no desejo da leitura outros espasmos corpóreos. Não se trata
303
de metapsicologia ou de telepatia, senão de uma ethologia de corpos e corpus literários. Tele-patho(s)-logia de
uma crítica de literatura comparada.
São corpos ou imagens de corpos que atravessam o tempo na espacialização própria do livro ou do
filme, da peça encenada ou do quadro preenchido por mil planos transversais, bifurcados e retorcidos em
técnicas mistas, remetidos ao infinito das trocas, ali mesmo onde uma imagem as resume em um flash
antecipado de rememoração de Thomas; no horror ou no prazer da espera infindável do que sempre esteve ali,
na espera deste ou daquele personagem, na descrição suspensiva de uma ação ainda não atualizada pelo
desfecho frustrado que irrompe uma fala de Anne ou de Irene, personagens ou enunciações personificadas de
Blanchot; na idéia fixa de G.H de descrever sua experiência de horror e prazer diante de sua implosão de linhas
desejantes, de amor ou de angústia. Essa é a imagem semelhante que circula e se desenrola no relato da
experiência literária limite de G.H. Ela descreve como testemunho um processo de despersonalização e de
desfiguração de uma consciência estabilizada daquilo que poderíamos chamar de “Eu” como Ego ou “Self”.
Mas essa descrição é apenas uma entrada possível na teatralidade que irrompe e pretende trespassar essa
mesma cena.
Observamos como estratégia formal e expressiva que em A Paixão segundo G.H há, em suas
contínuas repetições de frases fechando e abrindo cada capítulo ou segmento do relato, como uma estranha
presença antiqüíssima e rarefeita, camuflada, não por nenhum jogo de linguagem ou estratégia enigmática no
interior do relato, mas por algo que advém de uma constância indelével e quase infinita, não fosse o próprio do
segredo indizível que se traduz na espera agônica daquilo que não poderia ser dito de outro modo, não fosse
pela via de uma compulsão parabólica da palavra, há uma experiência limite que pode ser atraída a uma
retórica ou a uma dramática obsessiva da repetição que institui sua diferença, ou seja, a continuidade da
própria experiência narrativa como jogo e encenação agônica de si, como outro, G.H. Quase-anonimato tão
agudamente expressivo e recentrado em sua própria desfiguração progressiva.
Em Thomas há, por outro lado, uma parabolização simbólica do excesso e da falta. Aventura de
circularidade ou, melhor, de espiralização suspensiva de um sentido heróico da busca. Do simbólico, inúmeros
desdobramentos do sentido filosófico numa “fantástica” ou uma quase “anti-mística” do sentido do ser e da
existência. Uma teatralidade retórica que diríamos em primeiro lugar paradoxológica, mas também metaléptica
vale dizer, metafórica e metonímica; interpreta e “objoga”
345
o espaço em estases do tempo, ao mesmo tempo
em que espacializa o tempo ao promover uma série de construções de cenas que abrem o tempo sobre a
matéria descritiva das situações afetivas que passam a ter sentido na medida em que se conjugam nos planos
sucessivos desse espaço ficcional. Cena do Cinema, por exemplo, onde o filme é um plano de composição
abstrato; cena original da leitura onde o mar é plano imanente e caótico sob o plano psicológico do próprio
Thomas, invaginado na ampla potência que inaugura a voz narrativa que aí o lança em sua aventura
desmesurada e excessiva na busca de um sentido para o próprio sentido. E, finalmente, diríamos, busca
necessariamente delirante e fantástica para realizar a própria promessa de um desejo impossível, que se exerce
345
Cf. nota anterior sobre l’objeu.
304
na extensão e no jogo narrativo instaurado pelo próprio Récit moderno, como extrapolação da voz narrativa em
direção a uma investigação de sua própria origem fantasmática.
Dominique Rabaté, em seu livro Vers une Littérature de L’épuisement, define esse
espaço de jogo do récit moderno assim:
Le paradoxe (ou la contradiction aiguë de l’écriture moderne) gît dans cet impératif
double, auquel je donne le nom d’épuisement : interminable recommencement d’un
mouvement de mise au dehors, la tentation pour une forme que dirait tout de l’obscur
désir, qui en tarirait la source. Les stratégies varient et les différences d’auteurs à
auteur sont fondamentales. Leur appartenance pourtant à la même époque se mesure à
la gravité de l’interrogation sur le désir d’écrire : désir que ne peut se connaître, ni
s’appréhender en raison, mais qui agît aveuglement l’écrivain. Tension qui essaie de
se libérer. Son modèle se relève d’une énergétique, à la façon de celle qui a proposé
Freud […]. Opacité pour le producteur de ses productions, bonheur parfois d’une
rencontre avec un objet (ou un sujet) qui semble en vider le potentiel.
346
Desejo de ficção, desejo de literatura. Desejo de escritura para além do prazer filosófico, desejo de
escritura para além do prazer ficcional romanesco. Retorno reincidente ao próprio desejo de uma experiência
limite sobre o desejo. Desejo de desejo finalmente, o que levaria o escritor que relata o percurso de sua própria
busca do caminho que se faz no próprio passo a passo de uma marcha progressiva porém paradoxalmente em
retorno ao objeto, inserido no jogo de sua própria origem desde sempre desencadeada e em impossível
retrocesso objetivo a essa origem. Obscuro desejo estético, diríamos portanto, pois se direciona à finalidade
obscura dos fins de uma pulsão do vivente, como o pensavam os filósofos românticos alemães e sobre o qual
Nietzsche pôde deduzir toda sua energética do trágico na arte teatral grega
347
.
Há, segundo essa perspectiva, vale dizer, de um ficcional produtor de serialidades virtuais atualizáveis
na obra e na destinação inconclusa de sua incorporação imaterial, ou em outros termos, de uma teatralidade
obscura de Thomas e de G.H que conjugaria, numa experiência limite do/com o mundo, o trânsito vertiginoso
entre o Dentro (dimensão ôntica da experiência existenciária da linguagem) e o Fora (dimensão ontológica da
experiência da linguagem)
348
.
Esses personagens, ou essas vozes, leio-os numa luminescência, transvalorados em seus corpos ao
performarem um desejo dúplice exposto na escritura. Desejo simbólico-ontológico de uma ausência
constitutiva, talvez representada na morte, pois a escritura traça a própria incandescência denegativa de seu
referente fantasmático.
Desejo de afirmação “positiva” (desde sempre atravessada da negatividade própria que trabalha no
signo a referência) enquanto sobrevivência e suspensão de uma finalidade ou fatalidade última vinculadas ao
próprio percurso reflexivo (gostaríamos antes do termo teatralógico) da escritura. Suspensão estética de uma
346
Cf. RABATÉ, Dominique. Vers une Littérature de L’épuisement. Paris, José Corti, 2004, p. 156.
347
Cf. o trabalho de Anna Hartmann Cavalcanti em seu Símbolo e Alegoria: a gênese da concepção de
linguagem em Nietzsche. Rio de Janeiro, Annablume, Fapesp, 2005.
348
Cf. o ensaio de Juliano Garcia Pessanha: “A Arte como Território do Não-Poder”, in: Ignorância do
Sempre. São Paulo, Cotia Ateliê Editorial, 2006, p. 71. Juliano Pessanha é um dos raros Poetas/Críticos que,
quando ensaísta, consegue conciliar a potência selvagem da criação literária (Kafka, Gombrowics, F. Pessoa,
305
vertigem da morte talvez, posta em jogo através da proliferação reiterável do próprio desejo do desejo de
escritura.
Este desejo, pode sempre também se transformar em perda ou obscuridade desejante (ausência, vazio
ou temor presente em seu désoeuvrement constitutivo) e que pode manipular uma outra forma de experiência
artística - como escreve Blanchot, em “L’absence de livre” ao comentar certo traço do gesto surrealista. Essa
experiência, que chamamos aqui épreuve, se trata de uma experiência dada pela escritura como o encontro
anunciado e postergado desse silêncio sempre exposto ao fora (gesto de exteriorização que retorna uma
reentrada a uma subjetividade (in)operante e ao próprio trabalho desobrado desta experiência), silêncio que
paradoxalmente é apresentado no desvio que o faz permanecer aquém da experiência no movimento dessa
épreuve, e contudo aí alcançar a “permanência” do desarranjamento (dérangement) entre a ordem do estável
(como norma ou lei sempre a ser revogada) e a promessa do encontro que articularia na escritura seu desvio ao
limite mesmo do representável, ou melhor, encontro do que se apresenta na escritura como a gestualidade ou a
performance de um pensamento que se afirmaria pela teatralidade (in)operante e fabular de sua prova-ção.
Blanchot parece delimitar um espaço de ocorrência desse encontro ou dessa experiência:
Expérience qui n’est donc pas seulement experimentation (action de l’écriture sur la
vie), mais expérience de ce qui n’obéit pas à l’ordre régnant de l’expérience et, sans
prendre la forme d’un nouvel ordre, se tient entre les deux – deux ordres, deux temps,
deux systèmes de signification et de langage ; épreuve donc, de ce qui n’est donné ni
dans l’arrangement du monde ni dans la forme de l’ouvre et ainsi s’annonce a partir
du réel comme désarrangement et à partir de l’ouvre comme désœuvrement pratique
de vie et d’écriture où nous avon cru reconnaître l’un des traits marquants du projet
surréaliste.
349
Blanchot continua a cartografar uma figuração da experiência como épreuve explicando o sentido
paradoxal do que chamamos de (in)operância dessa experiência:
Le désarrangement (ou le devenir comme énergie de l’intermittence) est à l’œuvre
,
mais ne fait
pas oeuvre. Il n’est pas hors du constatable, mais son constat est toujours constat de carence, en
sorte que le constater ne consiste pas à observer comme s’il état inscrit dans un état perceptible
du monde, réalité comme telle offerte au regard dans l’objet ou à l’introspection dans le sujet.
Le désarrangement est invisible ; cela veut dire qu’il met en échec la relation direct que la
lumière semble autoriser et qui organise indûment la connaissance comme elle réduit toute
parole d’après le monde de la vue et de la chose à voir ; (...)
Le désœuvrement est à l’œuvre mais ne fait pas oeuvre. De là que si nous analysons l’ouvre, si
nous la commentons, nous ayons la tendance ou à déterminer ce mouvement comme
l’originalité d’un nouvel ordre [...] ou encore à le saisir comme le principe autonome de son
engendrement, son unité au travail : alors que le désœuvrement est toujours hors d’œuvre, ce
que ne s’est pas laissé mettre en oeuvre, l’irrégularité toujours désunie (la non-structure) qui fait
que l’œuvre se rapporte à autre chose qu’elle, non parce qu’elle dit et énonce (récite, reproduit)
cette autre chose – le « réel » -, mais parce qu’elle ne se dit elle-même, disant cette autre chose,
que par cette
distance, cette différence, ce jeu entre les mots et les choses, comme entre
les choses et les choses, comme entre un langage et un autre langage. Ce dehors de la
différence fait que le réel ne semble jamais être dans le réel, mais dans le savoir qui
l’élabore et le transforme, et ainsi paraît toujours plus dans le discours de l’œuvre que
dans la vie ; mais dès que nous avons l’œuvre, aussitôt c’est la vie, par l’extériorité
qu’elle représente et qu’elle oppose à l’ouvrage comme son prétendu modèle, qui
etc) à cadência e ao fino trato de uma linguagem técnica e filosófica (Heidegger, Blanchot, etc.) sofisticada e
absolutamente perspicaz.
349
Cf. BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris, Gallimard, 1969, p. 613.
306
semble détenir le moment du désœuvrement et indépendamment de ce qu’il en est
advenu dans le rapport de l’œuvre.
350
Finalmente, diríamos que essa experiência é a possibilidade de concreção (i)material da própria
experiência estética sobre o pensável e em direção ao impensável do próprio pensamento. Essa concreção é
vinculada enquanto épreuve a uma espécie de atividade paradoxal da (in)operância própria de um
desdobramento do pensável (real) dado no espaçamento (a própria concreção do imaterial como materialidade
extensível numa duração), na extremidade ou nas bordas dessa mesma experiência enquanto fronteira ou
atravessamento do ficcional ao real e deste a uma possibilidade de desubjetivação e resubjetivação progressiva
do sujeito, marcada por uma inscrição do desejo como teatralidade do próprio corpo enquanto corpus de
escritura.
350
Cf. BLANCHOT, Maurice. L’entretien infini. Paris, Gallimard, 1969, pp. 613-614.
307
A teatralidade literária pode desdobrar uma imagem do “Eu-eu” como ser-para-fora-
de-si?
Talvez uma linha de fuga possível em relação ao que procuramos pensar sobre
Thomas l’obscur e A paixão segundo G.H., naquilo que nomeamos teatralidade maquínica e
que subjaz a esses textos, esteja em associarmos a imagem de uma transferência e de um
movimento poético que operam nesses textos, à leitura do livro de Claude Morali, Qui est
moi aujourd’hui?, especificamente em relação ao capítulo em que é pensada a questão da
escritura e do pensamento de Georges Bataille no que respeita à tese do autor, a saber,
segundo as palavras de seu prefaciador Emmanuel Levinas, o caráter ou a enunciação de
uma ontologia do ser-eu (l’être-je)
351
.
Além da minuciosa e densa exposição nos vários capítulos anteriores ao Capítulo VI
– “Mon sorte et mon affiliation”, fundamentais para o alcance da temática do autor, nos
ateremos à perspectiva de uma escritura que performaria o pensamento de Bataille no que
diz respeito à problemática da “contingência do Eu finito”
352
e a qual é analisada por Morali
a partir de dois textos, um de 1933, que será integrado no livro L’expérience interieure
353
no
capítulo “Antecedents du suplice” com o titulo “La mort est en un sens une imposture” e o
outro que surge em 1935 separadamente, intitulado “Sacrifices”.
Tanto um quanto o outro será citados em “espelho” por Morali, afim que possamos
ter uma noção mais clara das sutis diferenças entre um e outro. No primeiro texto se o tema
da existência é operado a partir da percepção agônica de uma enorme e falha
improbabilidade de se ter sido, ou seja, da facticidade e de uma solidão solipsista da
existência do indivíduo singularíssimo estar como que suspensa sobre uma imensidão de
não-existência possível, mas efetuada em torno deste acontecimento infimamente possível
ou infinitamente improvável em relação à infinitude de todas as outras possibilidades
excludentes desta possibilidade única. No segundo texto como numa quase repetição se dá a
mesma elaboração com apenas algumas diferenças mínimas como o uso de algumas outras
351
Cf. MORALI, Claude. Qui est moi aujourd’hui ? Paris, Fayard, 1984, p. 8.
352
Op. Cit., p. 153.
353
Sabe-se o quanto Georges Bataille se impressionou com Thomas l’Obscur a ponto de citá-lo em sua
primeira versão, refluindo à experiência ficcional de Blanchot em sua própria experiência-limite a qual dá o
título a seu livro. O mesmo ocorre com Blanchot que compartilhava uma singular amizade de reflexão e
pensamento com Bataille. Sobre a biografia de Maurice Blanchot a referência bibliográfica é a do ensaio
biográfico de Christophe Bident, Maurice Blanchot : Le Partenaire Invisible, Champ Vallon, Seyssel, 1998.
308
palavras ou um desdobramento um pouco e sutilmente diferente. Basicamente, um dos
temas, talvez o mais importante, será o do questionamento sobre uma determinada noção do
conhecimento como insuficiente diante de tal magnitude da relação de uma existência finita
infinitamente improvável (o fato de ser de ter nascido e de se existir em meio à extensão do
próprio infinito e que na infinidade de uma duração exterior anularia essa eclosão no
silêncio de sua eternidade) em relação ao vazio que parece excluir esse evento e que, por seu
lado, coexistiria restando como estranha totalidade “negativa” diante deste “eu”
soberanamente angustioso em sua solidão nesse caso, absolutamente efêmera.
O “império desta existência” de ser em detrimento da qual coexiste a possibilidade
infinita de sua negatividade - ou seja, todo o não-ser de sua ínfima probabilidade, ou o vazio
que lhe entorna em toda a extensão e duração do intervalo, sua existência singularíssima em
relação à vasta impossibilidade a origina negativamente - é de tal ordem, que gera uma
espécie de situação na qual “a improbabilidade total de minha vinda ao mundo se coloca
sobre um vazio imperativo, uma heterogeneidade total”
354
.
Ou seja, o átimo de probabilidade de se chegar ou vir a ser, gera sobre um infinito
vazio uma necessidade insustentável calcada numa diferença entre o infinitamente
improvável e o finito dessa mesma infinitude; o que leva Bataille a elaborar a descrição de
uma experiência que possa “dar conta” desse acontecimento improvável e ao mesmo tempo
absolutamente fático (querer conhecer a própria amplitude desse acontecimento deve supor
uma experiência para além da relação entre um contínuo e um descontínuo, ou seja, a
experiência na finitude de um infinito sempre apenas pressuposto), o que parece só pode ser
elaborado na forma de um questionamento sobre a própria natureza da negatividade. Vale
dizer, a partir de um questionamento singular sobre a experiência positiva do conhecimento
filosófico, que se daria na forma de uma elaboração limite ou limiar da própria reflexão
deste saber, sempre um trabalho do negativo (dialético) sobre a experiência da própria
existência (pressuposição de uma unidade dessa reflexão, de uma unidade do eu ou de uma
fixidez). Daí que um não-saber deve ser perscrutado no fluir do próprio processo de reflexão
filosófica, pois este deve poder aceder a posição de tensão infinita entre o infinito da
improbabilidade de ser e a finitude dessa existência que daí se descola como potência do
acaso.
354
Op. Cit., p. 152.
309
Essa espécie de dispersão de toda fixidez que se desborda do lapso de uma
continuidade que ainda não existiria para uma infinita improbabilidade de ser que, no
entanto, emerge criando o lapso de sua descontinuidade parece gerar uma espécie de lógica
paradoxal sobre uma espécie de infixidez ou fluidez absoluta de qualquer perspectiva
ontológica baseada numa acepção fática existencial. Os afectos liberados pela experiência
interior (que é uma experiência de uma interioridade obtusa, exterior) bataillana parecem
levar essa experiência ao estertor de sua própria impossibilidade, porém levada adiante a
partir de uma linguagem que experienciaria de forma híbrida, tanto poética quanto
filosófica, sua própria experiência de uma reflexão sobre o infinito em torno ao qual singra
um corpo na finitude de sua individuação por tempo indeterminado e, portanto, de algum
modo infinito, de sua existência.
Essa experiência sobre o paradoxo da finitude sobre o infinito de sua negatividade
dada na forma da existência (eclosão do intervalo), leva finalmente Bataille a pensar sobre o
indeterminado da própria ipseidade ou a pensar uma espécie de devir-eu limite, e finalmente
sobre a existência como espaço - para além de qualquer acréscimo ou lastro de
conhecimento positivo - do não poder e temporalidade de um não-saber (riso agônico), a
qual aglutinaria todo movimento positivo e mesmo negativo, no sentido de uma tendência de
algum modo entrópica, de toda descontinuidade se tornar novamente uma outra forma de
continuidade, diríamos, intermitente e assim sucessivamente - como entendemos com
Deleuze a noção do eterno retorno em Nietzsche.
Um outro aspecto, que se pode perceber no parágrafo que citaremos adiante, é o
caráter de atração irredutível da realidade volúvel do eu. Essa atração inescapável é exposta
pelo sentido da avidez do império do Eu, como o expressa Bataille. O império de Eu
(exposto no acontecimento da vinda ao mundo, e a existência de uma potência reflexionante
sobre a própria relação de volubilidade no devir) é atraído ao seu próprio estar-aí como uma
necessidade que o força a se pensar a si próprio como necessidade infinita, a pesar de seu
caráter finito e de algum modo irrisório diante da infinitude das possibilidades que se
descolaram desse evento. Mas na verdade o irrisório é apenas uma das infinitas
possibilidades que se abrem no próprio rasgo da eclosão da existência, pois ao mesmo
tempo em que essa eclosão é infinitamente única em relação ao infinito de sua negatividade,
ela adquire por essa relação singularíssima a potência infinita desse lapso que une, numa
310
quase infinitude, o finito e o infinito sob o emblema da mortalidade e de todos os traços que
daí podem decorrer também como marcas finitas na infinidade das marcas que não vieram a
ser. É como se ao se perceber finito, o ser enquanto indivíduo pudesse adquirir a real
ponderação sobre sua temporalidade e seu modo de atração irresistível ao mundo as
significações, pois de outro modo não se teria a medida da distância paradoxal que se abre
desde a eclosão do ser, tanto o lapso numa infinitude quanto a curva que emerge do evento
do nascimento na forma da negatividade infinita e copresente à eclosão da improbabilidade
infinita do ser singularíssimo.
Parece que, se um átimo de finitude se dá no infinito de uma continuidade, de algum
modo ocorre ou transita necessariamente uma forma de paradoxo ou de atopia própria à
existência da abstração, pois, no decorrer do próximo átimo, se ele existir, tanto o evento já
se transforma em outro evento (ou no mínimo em outra modalização desse evento) tornando
paralelo ou infinitamente distante aquele átimo anterior, quanto, no mesmo instante ou
espaço da temporalidade infinita, o que era descontinuidade se dispersa na infinitude de uma
seqüência infinita, onde toda marca, nesse processo, se dispersa com a potência e a cadência
infinita de um movimento relacional curvo e esférico onde toda saliência se arredonda pelo
atrito da eternidade sobre o vazio ou o caos de todas as formas possíveis que nesse campo se
probabilizam.
Citaremos apenas o último parágrafo
355
de cada um dos fragmentos dos textos para,
em seguida, comentar a respeito do comentário de Morali sobre os textos de Bataille,
355
Ibid, op cit., pp. 152-3 Texto à esquerda : “Com mais razão ainda, a origem histórica do eu (moi)
(observado este eu, ele mesmo como uma parte de tudo o que é objeto de conhecimento) ou ainda o estudo
explicativo de sua maneiras de ser são também apenas ilusões insignificantes. Miséria de toda explicação
diante de uma exigência inesgotável. Mesmo numa cela de condenado, este eu que minha angústia opõe a todo
o resto perceberia o que o precede e o que o envolve como um vazio submisso a seu poder. (Um tal modo de
ver torna asfixiante o desespero de um condenado: ele disso desdenha e entretanto deve sofrer porque ele não
pode o abandonar). Nessas condições, porque eu me preocuparia com outros pontos de vista, tão razoáveis
quanto sejam? “A experiência do eu de sua improbabilidade, de sua louca exigência, não existe tampouco”.
Texto à direita: A fortiori, uma representação histórica do eu (moi) (considerado como parte e tudo o que é
objeto de conhecimento) e de seus modos imperativos ou impessoais, dissipa-se e só deixa subsistir a violência
e a avidez do império do eu sobre o vazio onde ele está suspenso. À vontade, até numa prisão, o eu que eu sou
realiza tudo o que o precedeu ou o que o envolve, seja que isso exista como vida ou como simples ser, na
qualidade de vazio submetido a seu império ansioso. O fato de supor a existência de um ponto de vista possível
e mesmo necessário exige a inexatitude de tal revelação (esta suposição é implicada pelo recurso à expressão),
não contradiz em nada a realidade imediata da experiência vivida pela presença ao mundo imperativo do eu:
esta experiência vivida constitui igualmente um ponto de vista igualmente inevitável, uma direção do ser
exigida pela avidez de se próprio movimento”. (Tradução nossa)
311
procurando a partir daí, elaborar a relação com o tema da teatralidade maquínica da
literatura e de sua possibilidade de ser discernida:
À plus forte raison, l’origine historique du moi (regardé
par ce moi lui-même comme une partie de tout ce qui est
objet de connaissance) ou encore l’étude explicative de
ss maniéres d’être ne sont qu’autant de leurres
insignifians. Misére de toute explication devant une
exigence inépuisable. Mêm dans une cellule de
condamné, ce moi que mon angisse oppose à tout le reste
apercevrait ce qui l’entoure comme un vide soumis à son
pouvoir. (Une telle façon d voir rend la détresse d’un
condamné étouffante : il s’en moque toutefois doit
soufrir, car il ne peut l’abandonner.) Dans ces conditions,
pourquoi me soucierais-je d’autres points de vue, si
raisonnables soint-ils ? L’expérience du moi, de son
improbabilité, de sa folle exigence, n’en existe pas
moins.
A fortiori une representation historique de la formation du
moi (consideré comme partie de tout ce qui est objet de
connaissance) et de ses modes impératifs ou impersonnels,
se dissipe et ne laisse subsister que la violence et l’avidité
de l’empire du moi sur le vide où il est suspendu. À
volonté jusque dans une prison, le moi que je suis réalisé
tout ce qui l’entoure, que cela existe comme vie ou comme
être simple, en tant que vide soumis à son empire anxieux.
Le fait de supposer l’existence d’un point de vue possible
et même nécessaire exige l’inexactude d’une tel révelation
(cette supposition est impliquée par le recours à
l’expression), n’infirme en rien la realité immédiate de
l’experience vecue par la presence au monde impérative
du moi : Cette expérience vecue constitue également un
point de vue inevitable, une directin de l’être exigée par
l’avidité de son propre mouvement.
Pois bem, Morali comenta o texto de Bataille :
Ici se trouve noté le versant de l’hétérogène de l’étrageté radicale, cette à dire
qu’instaure un mode de pensée, ou d’expression, ou d’experience, sans conciliation ni
synthése : non pas de l’indicible ou du silence, mais de la discursion déchirante par
opposition a la construction dialéctique . Hétérogène de proche en proche à l’intérieur de
sa propre coherance disloquée , comme heterogene à l’égard de toute identification
totalisatrice . (…) Il y a plus et plus vrai à dire que ce que le logos ordonné tolère : et
cette intervalle, plus qu’il ne se mesure, s’épreuve comme détresse et déchirement – non
pas muet d’impuissance, mais détresse souveraine.
356
Para além de uma pesquisa dialética construtora de uma cadência de reflexão
ordenada pela seqüência regrada de uma postulação baseada na presença de uma
individualidade positiva e instauradora de sentido, Bataille joga com as imagens de uma
posição sobre a angústia da finitude em meio ao mar infinito de um desconhecido pré-
ontológico, heterológico
357
. Pois o próprio fato da eclosão do intervalo (existência da
356
Op. Cit., p. 153. Aqui se encontra expresso o aspecto da heterogeneidade, da estranheza radical, vale dizer
que instaura um modo de pensamento, ou de expressão, ou de experiência , sem conciliação nem síntese: não
do indizível nem do silêncio, mas da discorrimento dramático (déchirante) em oposição à construção dialética.
Heterogênea e cada vez mais próxima do interior de sua própria coerência deslocada, como heterogênea a
respeito de toda identificação totalizadora. [...] Há mais a dizer, de fato, do que o logos ordenado tolera: e este
intervalo, cada vez mais que ele não se mede, se prova (s’éprouve) como perigo e dilaceramento - não mudez
de impotência, mas soberano sofrimento. (Os itálicos são nossos).
357
Cf. “Les sorties du texte – Textes 1973” in: BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes, IV – Livres Textes,
Entretiens. Paris, Seuil, 1994, 2002, p. 367. Este texto incrivelmente sintético de Barthes consegue ao mesmo
tempo em que descreve de forma absolutamente clara a economia crítica bataillana, apontar para o que
chamamos nesta pesquisa de teatralidade maquínica da literatura ou de uma épreuve crítica. Poderíamos pensar
312
consciência em sua finitude) pressupõe uma tensão de diferença e uma potência relacional
atributiva de todo sentido possível. Essa imagem é de algum modo a própria relação de uma
probabilidade móvel e dispersiva dos acontecimentos entre si.
Diríamos que esse átimo, ou seja, o nascimento, que se dá no nível de uma eclosão
ontológica no seio do continuum infinito, instaura uma espécie de curvatura (diferença de
ritmo, diferença de força, relação da falta e do excesso como condição pré-ontológica em
constante constipação cósmica) que se abre nessa eclosão sendo todas essas imagens
associadas à complexidade probabilística de uma finitude incrustada no seio do infinito que
paira em torno ao evento de uma existência desde sempre imersa numa heterogeneidade
radical (e não existe outra), pois só o heterogêneo pode figurar uma infinidade que conteria a
própria finitude - tornando-se ela mesma nessa eclosão finita e homogênea, no tempo dessa
finitude, na homogeneidade relativa desse evento.
Para Bataille, uma força ao mesmo tempo de consternação e afronta deveria guiar o
sentimento tragicômico que invade a consciência desse homem do acaso radical. Mas esse
aqui em trazer a imagem do heterológico para uma espécie de dramatização ou de movimento teatral dessa
potência pré-ontológica de différen(t/c)iation. Mas o mais importante é ter em mente essa observação de
Barthes sobre a potência performática que se exerce a partir de uma idiomática (idiomatique) operativa sobre
códigos de saber. Barthes pode assim se remeter à escritura crítica de Bataille (inspirada na crítica fundamental
do sentido e do valor em Nietzsche) que se baseia sobre uma desestabilização progressiva de uma polarização
dialética a partir de um terceiro termo que incide uma força ativa e não reguladora sobre os dois primeiros
termos binários da operatória dialético fundacional. É esse terceiro termo (o baixo, le bas) que possibilita a
abertura de toda série e de toda heterologia (vê-se aí também uma lógica metonímica da significação, sobre a
qual deveríamos poder conseguir fazer a cartografia de seus jogos de força no discurso literário):
“L’hétérologie de Bataille consiste en ceci: il y a contradiction, paradigme simple, canonique, entre les deux
premiers termes; noble et ignoble [...]; mais le troisième terme n’est pas régulier: bas n’est pas le terme neutre
(ni noble, ni ignoble) et c’est ne pas non plus le terme mixte (noble et ignoble). C’est un terme indépendant,
plein excentrique, irréductible : le terme de la séduction hors la loi (structurale).
Le bas est en effet valeur à deux titres : d’une part, il est ce qui est hors de la singerie d’autorité; d’autre part, il
est pris dans le paradigme haut/bas, c’est-à-dire dans la simulation d’un sens, d’une forme, et de la sorte il
déjoue l’en-soi de la matière : « ... le matérialisme actuel, j’entends un matérialisme n’impliquant pas que la
matière est la chose en soi. » En somme, le vrai paradigme, c’est celui qui met en regard deux valeurs positives
(le noble, le bas) dans le champ même du matérialisme ; et ce le terme normale-ment contradictoire (lignoble)
qui devient le neutre, le médiocre (la valeur négative, dont la négation n’est pas contrariété, mais
l’aplatissement). [...] C’est jeu est assuré par deux opérations : d’une part, le sujet (de l’écriture) détourne in
extremis le paradigme : la pudeur, par exemple, n’est pas niée au profit de son contraire attendu, légal et
structural (l’exhibitionnisme) ; un troisième terme surgit : le Rire qui déjoue la Pudeur, le sens de la pudeur ; et
d’autre part la langue, la langue elle-même, est audacieusement distendue : bas est employé au titre de valeur
positive, laudatrice [...]. »
Temos aí a explicação de Barthes da economia crítica de Bataille segundo a crítica fundamental do sentido e
do valor de Nietzsche, exemplificada em toda sua extensão prática e aplicada em sua expressividade
econômica. Lembramos que anteriormente procuramos apresentar essa mesma crítica do valor nietzscheana a
partir da leitura de Deleuze sobre o jogo de forças ativas e reativas no pensamento nietzscheano com o
comentário do livro Nietzsche et la Philosophie.
313
consternar-se deve ser guiado sob a égide de uma estranha impureza ou dar-se numa insólita
coalizão de forças para dar seqüência à “subversão agressiva do eu”, ou seja, o consternar-se
sobre sua própria eclosão enquanto ser infinitamente improvável, deve guiar uma espécie de
teatralização agônica no espaço do próprio intervalo ou, ainda, deve guiar uma postura dessa
consciência ao modo de uma revolta-limite, desenvolvida a partir de uma espécie de
desilusão ativa ou uma neutralização de toda e qualquer evidência teleológica, reenviando a
mesma consciência sobre o intervalo, sobre a eclosão do eu na direção de seu evento
impensável por sua natureza absolutamente casual.
Diríamos que, nesse ponto, a teatralidade bataillana conflui-se à poética do neutro de
Blanchot, no sentido que também poderíamos ver nessas referências, de certo modo trans-
metafísicas, os índices para uma teatralidade da existência em sua expressividade literária-
limite. Dizemos trans-metafísicas no sentido de sua necessidade (necessidade dessa
expressividade teatralizada e limite) em se desviar do metafísico e nunca de negá-lo
simplesmente, o que dialetizaria o metafísico numa negatividade simples de sua operatória,
o que retornaria apenas o gesto desse pensamento a uma inversão de sinal sem
conseqüência. Trans-metafísicas, pois já trans-tornam ou se desviam incessantemente dessa
posição metafísica – e aí se aloja justamente sua potência (in)operante - pelo próprio efeito
de sua expressividade radical, para nós, teatralizada, que nega qualquer teleologia
pacificante, qualquer essencialidade transcendente, pois esse pensamento é, na verdade,
efeito de uma posição de imanência pura. Ele é efeito de efeitos, desde sempre atravessado
pela própria consciência de sua eclosão casual (emergência de uma ipseidade em devir, ou
individuação do sujeito), esta eclosão ou imergência emergente do intervalo, é dada numa
ontológica do probabilístico como infinitamente improvável e não numa ontológica do
essencial e transcendente calcada numa lógica aristotélica da causa e do efeito que suporia
sempre uma causa primeira, absolutamente transcendente mesmo que infinita.
A imagem poderia ser heraclitiana e mallarmeana ao mesmo tempo. Uma criança
que joga dados e mesmo assim o acaso sempre permanece fluindo e refluindo entre um
lance e outro. Assim também essa consciência-limite sobre o intervalo da eclosão do eu,
fluindo e refluindo a partir de uma expressividade fragmentária, híbrida, pela poética tanto
agressiva quanto paradoxalmente (in)operante. (In)operante sempre pensado a partir de sua
paradoxal relação de fricção e consternação sobre a própria consciência aturdida dessa
314
eclosão do intervalo que instaura a própria possibilidade da consciência como
descontinuidade ativa sobre a passividade do continuum infinito. O acaso é a
heterogeneidade em sua pureza mais autêntica, ele é o próprio movimento dessa dupla
instauração que significa a consciência do eu como dobra e fato existencial do próprio
intervalo.
Morali continua seu comentário e diz coisas importantes sobre o modo e a
expressividade dessa experiência de reflexão de Bataille. É aí que gostaríamos de chegar
para podermos nos aproximar desse movimento próprio da experiência-limite de escritura e
de pensamento de Bataille que aproximamos da imagem de teatralidade e de uma épreuve de
escritura limite.
Por exemplo - e citaremos também as passagens de Bataille citadas por Morali para
justamente podermos aceder a essas imagens que de algum modo teatralizam ou
simplesmente performam uma espécie de acesso a esse “sem fundo” da experiência
bataillana sobre o intervalo ou a eclosão (sempre também uma declosão) da existência:
Ni concepts, ni symboles, ni allusion descriptive à l’affectivité vécue, les mots vont
opérer ici pour maintenir, par une alerte renouvelée, le qui-vive du sujet parlant ou
interpellé, à mi chemin de l’émotion esthétique et de l’enphase risible .(…) De ces
indices, ou de ces indicatifs, on peut en retenir quatre cardinaux […]’ivresse ; la
catastrophe ; la fièvre ; la passion. […] en fait ces quatre figures, nomment
diversement la même déroute, la désignent à sa démesure avec le style qui seul peut
servir à l’évoquer sans la manquer par le sérieux d’une description dérisoire.
358
A catástrofe:
Dans cette position de l’objet comme catastrophe, la pensée vit l’anéantissement qui la
constitue comme une chute vertigineuse et infinie. Aussi n’est-elle pas seulement la
catastrophe en tant qu’objet ; sa structure même est la catastrophe ; elle est elle-même
absorption dans le néant qui la support et au même temps se dérobe. Quelque chose
immense se libère de toutes parts avec l’ampleur d’une cataracte, surgit des régions
irréelles de l’infini et cependant y sombre dans un mouvement d’une force
inconcevable. La glace qui dans le fracas des trains télescopés tranche subitement la
gorge est l’expression de cette venue impérative. Implacable et cependant dé
anéantie.
359
358
Op.cit., p. 155. “Nem conceitos, nem símbolos, nem alusão descritiva à afetividade vivida, as palavras vão
operar aqui para manter, por um alerta renovado, o ‘quem vêm lá?!’ do sujeito falante ou interpelado, a meio
caminho da emoção estética e da ênfase risível. [...] Desses índices, ou desses indicativos, pode-se reter quatro
cardinais [...] A embriaguez, a catástrofe, a febre, a paixão. [...] com efeito, essas quatro figuras, nomeiam de
maneira diversa o mesmo desregramento, o designam a partir de sua desmesura pelo estilo que único, serve à
evocá-la, sem falhar pelo consciencioso de uma descrição derrisória”.
359
Ibid., p. 155. “Nessa posição do objeto como catástrofe, o pensamento vive a aniquilação que o constitui
como uma queda vertiginosa e infinita. Ele também não é somente a catástrofe na qualidade de objeto; sua
própria estrutura é a catástrofe; ele é, ele mesmo, absorção no nada que o suporta e ao mesmo tempo se elude.
Algo de imenso se libera por todos os lados com a amplitude de uma catarata, vinda das regiões irreais do
infinito e contudo aí naufraga num movimento de uma força inconcebível. O vidro que no estrondo dos trens
315
O próprio pensamento é vinculado às imagens que procuramos ler a partir dos textos
de Bataille citados por Morali. Ele se desdobra numa relação impensável sem a potência da
expressividade poética que pode em seu vai-e-vem e a partir de sua potência de
deslocamento do sentido, fazer-se expressar por último - através da posição de afectividade
limite que organiza uma imponderável descrição da angústia sobre algo que chega - a vinda
de uma situação que não seria outra que o sentimento corpóreo que se instala como sensação
de um estranhamento angustioso. Pode ser premonição ou analogia a situação expressa no
fim do parágrafo, que é a da própria catástrofe do acidente e do choque de trens. Blanchot
escreveu, como se sabe, seu último livro L’ecriture du desastre, exatamente sob o signo
dessa figura que articula toda a violência da situação da existência como eclosão do
intervalo em seu limite ou na borda de sua possível “reentrada”
360
no continuum infinito e
vazio que envolve o próprio intervalo como numa interpenetração neutra, sustentação lógica
de uma metafísica a ser descontruída numa expressividade poética e desobramento
incessante de sua própria circunscrição intervalar.
Sobre a catástrofe, Blanchot, nomeando-a desastre, e nessa acepção apontando uma
espécie de desarticulação cósmica de toda lei de destinação astro-lógica, expressa sob o
signo dessa súbita “queda” do astro ou da estrela, a relação de articulação ou de
desarticulação desse evento limite que marca a franja do que chamamos de eclosão do
intervalo, ali onde uma borda se desprende novamente para o exterior ou para o limite dessa
invaginação que se constiparia em direção à continuidade impura do infinito, refluindo do
descontínuo que aí ainda permanecia enquanto existência fática, mas já sempre se
desfigurando pela entropia que realiza sua curvatura. Nessa descrição de Blanchot pode-se
que se chocam degola subitamente a garganta, é a expressão desta vinda imperativa. Implacável e no entanto já
aniquilada.
360
Não se trata de uma reentrada no sentido de uma topológica euclidiana (antes, uma concepção a partir das
superfícies de Riemann) já se está, no sentido que os pensamentos-limite de Blanchot e Bataille lhes dá, numa
intensa transição permanente de um dentro e de um fora dessa espacialização temporal que indicamos sob a
expressão de uma eclosão do intervalo como posição e signo da imergência emergente de uma ipseidade
relativa nos modos de uma figuração e desfiruração de afectos trans-pessoais, trans-subjetivos, nos termos de
uma economia dos afectos corpóreos. Juliano Garcia Pessanha, na nota 7 de seu ensaio “O Ponto K, Heidegger
e a Psicanálise”, em A sabedoria do Nunca, a partir de sua leitura heideggeriana principalmente, mas também,
de algum modo blanchotiana sobre Kafka, levanta a hipótese de uma função de convergência positiva a ser
desconstruída na atividade psicanalítica em relação a essas figurações trans-subjetivas de uma individuação,
para se pensar uma possibilidade de permanência mais autêntica no intervalo da eclosão. Pois aí vemos algo
que deve ser dito e pensado, a eclosão continua eclodindo e intervalando o próprio continuum. A consciência
nesse sentido seria constantemente atravessada e atravessaria, por sua vez, como curvatura e dobra translúcida
ou opaca, o próprio continuum.
316
pensar de forma bastante clara a relação do desvio congruente que realiza a irrealização
permanente da catástrofe como expressão do movimento desbordante entre a infinitude
contínua e a descontinuidade finita no seio desta:
Le désastre ruine tout en laissant tout en l’état. Il n’atteint pas tel ou tel, « je » ne suis
pas sous sa menace. C’est dans la mesure où, épargné, laissé de côté, le désastre me
menace qu’il menace en moi ce qui est hors de moi, un autre que moi qui deviens
passivement autre. Il n’y a pas atteint du désastre. Hors d’atteint est celui qu’il
menace, on ne saurait dire si c’est de près ou de loin – l’infini de la menace a d’une
certaine manière rompu toute limite. Nous sommes au bord du désastre sans que nous
puissions le situer dans l’avenir : Il est plutôt toujours déjà passé, et pourtant nous
sommes au bord ou sous la menace, toutes formulations qui impliqueraient l’avenir si
le désastre n’était ce qui ne vient pas, ce qui a arrêté toute venue. Penser le désastre (si
c’est possible, et nous pressentons que le désastre est la pensée), c’est n’avoir plus
d’avenir pour le penser.
Le désastre est séparé, ce qu’il y a de plus séparé.
Quand le désastre survient, il ne vient pas. Le désastre est son imminence, mais
puisque le futur, tel que nous le concevons dans l’ordre du temps vécu, appartient au
désastre, le désastre l’a toujours déjà retiré ou dissuadé, il n’y a pas d’avenir pour le
désastre, comme il n’y a pas de temps ni d’espace où il s’accomplisse.
361
O desastre marca, nesse sentido, que o expõe Blanchot, uma linha ou um campo de
indecibilidade que pertence ao movimento próprio do acaso que, ao mesmo tempo que
configura uma relação de proximidade com na fronteira do infinito como continuum, ao
mesmo tempo é o afastamento desse limite, pois o provável do fechamento da invaginação
da linha de fronteira entre a eclosão do intervalo como descontinuidade no seio do infinito, é
também a improbabilidade dessa eclosão, no sentido de sua realização apontar sempre para
uma destituição de qualquer propriedade dessa singularidade do eu. Pois a cada vez o
desastre desarticula em seu evento a possibilidade de uma atribuição linear, no tempo
esférico de sua presença sempre apenas pressentida como possibilidade, mas não efetividade
do acontecimento. Pois o acontecimento fático da eclosão do desastre é outra coisa que o
361
Cf. BLANCHOT, Maurice. L’écriture du Désastre. Paris, Gallimard, 1980, pp. 7-8. “O desastre arruína
tudo, deixando tudo intacto. Ele não atinge tal ou tal ‘eu’, não estou sob sua ameaça. É na medida que,
poupado, deixado de lado, o desastre me ameaça que ele ameaça em mim o que está fora de mim, um outro que
eu que tornasse passivamente outro. Não há alcance (atteint) do desastre. Fora de alcance está aquele que ele
ameaça, não se pode dizer se é de perto ou de longe - o infinito da ameaça de certa maneira rompeu todo
limite. Estamos na borda do desastre sem que pudéssemos o situar no porvir: ele é, antes, sempre já passado e,
no entanto, estamos sempre na borda ou sob ameaça, todas as formulações que implicariam o porvir se o
desastre não fosse isso que não chega, isso que bloqueou toda vinda. Pensar o desastre (se é possível, e não é
possível na medida que pressentimos que o desastre é o pensamento) é não ter mais porvir para o pensar.
O desastre é separado, é o que há de mais separado.
Quando o desastre sobrevêm, ele não vêm. O desastre é sua iminência, mas desde que o futuro, tal qual o
concebemos na ordem do tempo vivido, pertence ao desastre, o desastre sempre já o retirou ou dissuadiu, não
há porvir para o desastre, como não há tempo nem espaço onde ele se cumpra.
317
estatuto abstrato que procura dar conta da presença afetiva e dinâmica do desastre enquanto
potência do acaso.
Não se trata, pois de conceber o desastre como algo paradoxalmente impossível,
trata-se de fazer jogar um pensamento do desastre como pensamento do próprio
pensamento, como situação limite no seio da qual coexiste tanto um “dentro” da experiência
fática da eclosão do intervalo, quanto seu movimento intensamente atravessado pelo fora da
eclosão, ou seja, pelo continuum do infinito que trasborda para dentro da eclosão que é
também uma individuação permanente e em tensão com relação a sua entropia constitutiva.
O desastre não tem lugar no tempo e no espaço, pois em relação à individuação progressiva
no seio do intervalo, ou seja, em relação ao eu como ipseidade não há lugar ou tempo de
fixação absoluta nessa existência, mas essa individuação é trabalho e desobramento
(désoeuvrement) como instância da promessa e da espera em sua própria individuação
permanente consignada pela consciência do intervalo e de sua finitude que oscila e
permanece como paradoxal inflexão do infinito.
Morali continua agora com a figura bataillana da embriaguez:
Si la conscience que j’aí de moi échappe au monde, si tremblant j’abandonne toute
espoir d’accord logique et me voue à l’improbabilité, d’abord la mienne propre et
pour finir à celle de toute chose (c’est jouer l’homme ivre titubant que de fil en
aiguille prend sa bougie pour la nuit, lui-même, la souffle et errant de peur à la fin se
prend pour la nuit.
362
Essa é propriamente (ou antes, e sempre impropriamente, nessa deriva do sentido
que lhe é “própria”) a figuração poética da travessia do ipse em sua plena fugacidade
consciente no seio do intervalo, manejando a consciência de um saber que deve ser ele
próprio apagado ou excedido em sua luminescência com o sopro e a vontade de um
mergulho na noite de seu próprio ocaso. A embriaguez não deixa de ser também a imagem
possível de um desregramento consentido e desejado no seio do próprio intervalo,
transtornando o eu para um ser-fora-de-si, (être-hors-de-soi) e nesse movimento retornando
uma variação inexorável desse eu, uma diferença que marca, de algum modo, a dupla via de
uma consciência sempre atravessada pelo noturno de seu vivido, o que se acomoda como
362
Op. Cit., pp. 155-6. “Se a consciência que eu tenho de mim escapa ao mundo, trêmulo eu abandono toda a
esperança de acordo lógico e me confesso à improbabilidade, de início a minha própria e por fim àquela de
qualquer coisa (este jogar do homem embriagado titubeando que pouco a pouco toma sua vela pela noite, ele
mesmo, a sopra e vagando com medo, ao fim se toma pela noite”. (Tradução nossa)
318
decantamento, recalque, inconsciência, estranhamento ou voluptuosidade familiar da
embriagues, unheinlich.
A febre e a paixão:
Dans le vide idéalement obscur, chaos jusqu’à déceler l’absence de chaos (là tout est
désert, froid dans la nuit fermée bien qu’en même temps d’un brillant pénible donnant
la fièvre) // le moi s’élevant à l’impérative pur, vivant-mourant pour abîme sans paroi
et sans fond, cet impérative se formule « meurs comme un chien » dans la partie la
plus étrange de l’être (dans la partie la plus hostile). Il se détourne de toute application
au monde […] Le dégoût, la séduction fiévreuse s’unissent, s’exaspèrent dans la mort.
Il ne s’agit plus de l’annulation banale, mais du point même où se heurtent l’avidité
dernière et l’extrême horreur. La passion qui commande tant de jeux ou des rêves
affreux n’est pas moins le désir éperdue d’être moi que celui de n’être plus plus
rien .
363
A febre e a paixão podem ser pressentidas aqui como as figuras que exaltam o ponto
de inflexão do intervalo enquanto passagem e finitude no seio do infinito transbordante que
é o vazio em torno ao qual se direciona a própria finitude baseada, apenas nesse caso, numa
imanência do próprio improvável da eclosão. Há aí o desvio de toda aplicação no mundo, e
nesses termos, esse espaço poético aberto por essas figuras realiza o sentido da
expressividade poética que não tem uma finalidade prática que não seja a de se desobrar
(desoeuvrer) a si própria como o excesso da febre e excesso da paixão que fazem o desvio
do sentido da própria lógica material do mundo, na forma de uma atividade que tem como
ápice (jamais final, mas posição limiar da inflexão, de uma disjunção inflexiva, aí estando
também, toda a potência da (in)operância do neutro de Blanchot) o descentramento de sua
própria realização, na forma da ausência constitutiva que limita e escava como sua potência
mais autêntica a propriedade finita e faltosa da linguagem poética. A febre é a consternação
poética de um pathos (corporeidade e “entropização do corpo” e aqui retornamos à noção de
corpus de Nancy) que realiza em si seu movimento autêntico em direção a seu
desregramento, em direção à continuidade de sua entropia (que permanece em seu próprio
movimento excedente, desfigurante e reconfigurante da forma, como estado potencial da
363
Ibid, op. cit., p. 156. “No vazio idealmente obscuro, chãos até a revelação dos chãos (aí, tudo é deserto, frio
na noite fechada, bem como ao mesmo tempo, de um temível brilho, doando a febre) o eu se eleva ao
imperativo puro, vivendo-morrendo num abismo sem fundo e sem bordas, este imperativo se formula “morto
como um cão” na parte a mais estranha do ser (na parte a mais hostil). Ele se desvia de toda aplicação no
mundo [...] O desgosto, a sedução febril se unem, se exasperam na morte. Não se trata mais de anulação banal,
mas do ponto onde chocam a avidez última e o extremo horror. A paixão que comanda jogos ou sonhos
temerosos não é menos desejo enlouquecido de ser eu, do que aquele de nada mais ser”. (Tradução nossa)
319
matéria em suas possíveis atualizações, resultado da diferença e do arranjo de suas forças
virtuais).
A paixão é o âmbito da própria febre em sua dimensão transcendental de
subjetivização, dessubjetivização e resubjetivização incessantes ou, em outras palavras, em
seu excesso ou em sua excedência faltosa (que é sempre também uma falta ou o próprio
relacional do provável e do irredutível) como realização da diferença interminável que
separa cada individuação numa eterna reiteração de recomposições finitas, vindo a ser o
consternamento próprio à vontade de permanência e à inevitável consciência do
desregramento e do desgarramento que atravessa o próprio intervalo.
Claude Morali acrescenta duas outras figuras, dadas pelas palavras sangue e cadáver
e daí articula apropriadamente o inter-relacional passível de ser lido na escritura bataillana,
como o encontro de territórios antropológicos, religiosos e filosóficos.
Acrescentaríamos apenas (e Morali, logo em seguida, vai também nessa direção) que
esse encontro desfigura os mesmos territórios e só têm força na própria medida em que há,
nessa articulação, o que entendemos por uma teatralidade maquínica de seu pensamento e de
sua escritura limites, que podem, na abertura de seu poder poético, aceder à dinâmica
(in)operante que performa também o neutro blanchotiano como experiência-limite e
experiência do limite (devir-poético da linguagem) enquanto inflexão e figuração da
individuação e do processo de imergência emergente do que chamamos de eclosão do
intervalo como o espaço do ser-eu (être-je) no seio e no atravessamento da continuidade
relativa e infinita do tempo, ou na univocidade desse Ser que no tempo se espacializa numa
incessância virtual e atualizante (pensando na possibilidade de se pensar aqui, nos termos de
uma ontologia energética da univocidade do ser com Deleuze) de sua conjugação contínua e
descontínua, inflexionante e disjuntiva.
Nesse sentido Morali comenta:
Dans cette mesure aussi nous pouvons nous croire en présence d’un discurs
polymorphe qui s’annexe tour à tour l’un ou l’autre, en épouse les contours et les
perspectives sans s’enfermer en leur univocité.
364
Em seguida, continua seu comentário a respeito dos temas do erotismo, do sacrifício
e da despesa, que figuram o espaço de articulação da teatralidade da escritura bataillana:
364
Op. Cit., p. 156. “ Nesta medida podemos também nos acreditar em presença de um discurso polimorfo que
se anexa passo a passo e um e outro (discursos) esposando os contornos e as perspectivas sem se fechar em sua
univocidade”. (Tradução nossa)
320
En particulier, il est déjà compréhensible, à partir de ce noyau, comment peuvent se
dévelloper et se relier les thémes privilegiés de l’érotique, du sacrifice et de la
dépense, à la fois clefs d’inteligibilité pour ces domaines hétérogeines de l’activité
humaine et d’objets rencontrés dans ses mêmes domaines, et sur lesquels une clarté
aiguë et unificatrice va être jetée. A ce titre, on pourra bien penser avoir affaire avoir
affaire à un processus philosophique remarcable à la fois par l’épargne des concepts
fondamentaux qu’il s donne pour organiser la connaissance, et par la perte
irrecuperable qu’il accomplit de son langage, s’interdisant de retenir ou de capitaliser
son savoir.
365
Nesse sentido, sobre a expressividade própria da economia crítica do pensamento ou
da escritura de Bataille, é que gostaríamos de aproximar (ou fazer coincidir ao menos em
parte) o que procuramos o tempo todo apresentar como a imagem de uma teatralidade
maquínica da literatura de Maurice Blanchot e de Clarice Lispector. Essa teatralidade sendo
responsável pela performatividade de um pensamento que não se limita a uma série de
circunscrições historiais regradas pela normatividade de um logos ordenador e
dialeticamente teologizante, mas apresentando uma verdadeira trans-valoração
(nietzscheana) do sentido clássico de representação, adentrando a potência polissêmica do
fragmentário, como procuramos fazer observar na primeira parte da pesquisa em relação à
leitura de Blanchot sobre a escritura fragmentária de Nietzsche.
Mais l’entreprise, n’est ni une deduction, ni une description, ni um jeu de métaphore.
Sa rigueur tend à laisser, sous toutes ses formes disponibles et efficaces, le langage
s’engouffrer et fuir par la brèche initiale, respectée, observée au plus juste, qui la rend
possible. La confirmation que le projet ne sera pas dans une quelconque assurance de
cohérence non contradictoire ou dans l’issue heureuse d’une solution, mais dans
l’apparition d’n reseau des relations polysémiques qui, dans sa perte même, va
conférer sa consistance au texte le plus imprudent et le plus dissolu. (…) A la lettre,
rien ne s’y explique ni ne s’analyse. Le recit de fiction est autant document de vérité
que le recensement scientifique .
366
Este trabalho da escritura que é uma espécie de retorno sobre o próprio tecido vivo
do pensável em sua efusão fragmentária, polissêmica deve levar numa direção ainda mais
365
Idem. “Em particular, já é compreensível, a partir deste núcleo, como podem se desenvolver e se religar os
temas privilegiados do erótico, do sacrifício e da despesa, ao mesmo chaves de inteligibilidade para esses
domínios heterogêneos da atividade humana e objetos reencontrados nestes mesmos domínios, e sobre os quais
uma clareza aguda e unificadora será lançada. Desse assunto, poderíamos muito bem pensar ter a ver com um
processo filosófico admirável, ao mesmo tempo pela economia de conceitos fundamentais que ele se permite
para organizar o conhecimento, e pela perda irrecuperável que se cumpre em sua linguagem, se interditando
reter ou capitalizar seu saber”. (Tradução nossa)
366
Idem. “Mas a empresa não é nem de dedução, nem descrição, nem jogo de metáfora. Seu rigor tende a
deixar, sob todas as formas disponíveis e eficazes, a linguagem se engolir e fugir pela brecha inicial,
respeitada, observada na maior justeza que a torna possível. A confirmação que o projeta não estará sob
nenhuma certeza qualquer que seja, de coerência não contraditória ou numa passagem feliz de uma solução,
mas na aparição de uma rede de relações polissêmicas que, em sua própria perda, vai conferir sua consistência
ao texto o mais imprudente, o mais desregrado; [...] Literalmente, nada se explica e nada se analisa. O relato de
ficção é e tanto documento de verdade quanto o recenseamento cientifico”. (Tradução nossa)
321
fortemente desafiante, diríamos paradoxalmente desafiante, pois se trata aí justamente
discernir - sem finalidade que não o próprio da finitude na morte - o trabalho do pensamento
do próprio pensar, como instauração do agônico ou do neutro em sua poética, como pré-
ocupação sobre a estranheza da própria situação irrevogável de se pensar o existente da
existência do descontínuo e do intervalo em sua efusão dissimuladamente ordenada no
continuum do infinito
Nesse sentido Morali acrescenta:
A cette égard rien ne sert de prend parti dans une scission qui opposerait la rigueur
positive du savoir à l’éffusion mistique ou poétique. C’est au contraire, une
convergence imperieuse et illimité qui s’offre à interroger, au prix du risque inaugural
d’affronter le sujet à son inanité propre, dans le style qui lui convient. En effet, la
difference fécondante va tenir en ce que cette inanité ne sera dans ce cas ni
dogmatiquement posée, sur le ton d’une apologetique de la finitude, ni suspendue
dans le formalisme de la critique, ni recuperé dans une dialectique.
367
Esta inanidade é a parte que cabe à experiência de um pensamento sem teleologia
que não se precipite em sua própria dissolução, a partir da potência (in)operante advinda de
um questionamento imanente sobre a eclosão do intervalo enquanto existência “para além de
poética” de um ser-eu em processo. Esse questionamento cria a possibilidade de uma
abertura ilimitada tanto na forma quanto na expressividade, desse afrontamento à eclosão do
intervalo ou, em outros termos, à faticidade própria do ser-eu (être-là). Complementando o
raciocínio, Morali parece alcançar o que procuramos:
Bien qu’elle se refere plus d’une fois à l’extase, l’opération spéciale que Bataille
introduit est, en realité, tout à l’opposé, un traveil patient et précis par lequel le sens se
réduit au tant qu’il s’avance, se défait sans s’annuler, mais sans laisser non plus de
reste, tout au long de son trajet. De cette consomation systematique et laborieuse plus
que lyrique demeure un pur profit, mais profit pour rien, sans usage
368
367
Op. Cit., p. 157. “A esse respeito, de nada serve tomar partido numa cisão que oporia o rigor positivo do
saber à efusão mística ou poética. É, ao contrário, uma convergência imperiosa que se oferece a interrogar, ao
preço do risco inaugural de afrontar o sujeito em sua inanidade própria, no estilo que lhe convêm. Com efeito,
a diferença fecunda vai se dar nisso que esta inanidade não será neste caso nem dogmaticamente posta, sobre o
tom de uma apologética da finitude, nem suspensa no formalismo da critica, nem recuperada numa dialética”.
(Tradução nossa)
368
Idem. “Se bem que ela se refira mais de uma vez ao êxtase, a operação especial que introduz Bataille é, na
realidade, bem oposta, um trabalho paciente e preciso pelo qual o sentido se reduz tanto quanto avança, se
desfaz sem se anular mas sem deixar tampouco resto, ao longo de seu trajeto. Desta consumação laboriosa,
mais que lírica, permanece um puro ganho, mas ganho para nada, sem uso”. (Tradução nossa)
322
Finalmente, nesse último fragmento pode-se pressentir que Claude Morali discerne
ou toma o sentido do trabalho do desobramento de Bataille, nos informando a operatória que
em outro lugar chamamos de surépoché ou, em outro sentido, diríamos que se trata aí
também da potência do (in)operante que joga como uma espécie de surplus de significação,
um incremento, diríamos, cênico, teatralizado, no movimento próprio à poética do neutro
blanchotiana e que em Bataille, encontra tanto ressonância quanto inspiração.
Roland Barthes precursor de uma leitura sobre uma teatralidade
maquínica na escritura ensaística de Georges Bataille.
Se Claude Morali se preocupa mais em pensar a escritura bataillana a partir de um
enfoque filosófico, mesmo que numa potência desconstrutora desse mesmo enfoque, Barthes
trata uma potência propriamente “semiótica” sobre o ensaístico de Bataille, ao menos no
texto que iremos comentar, a saber “Les Sorties du Texte”
369
, pertencente ao conjunto dos
“Textes de 1973” reunidos no volume IV de sua obra completa.
Gostaríamos de lembrar aqui que o fato de nos referirmosa esse texto é significativo
dentro da referencialidade a toda uma biblioteca que chamamos até agora “pós-
estruturalista”, mas que também indicamos desde o início como pertencente a uma espécie
de filiação nietzscheana vinculada à crítica fundamental do sentido e do valor e, nessa
amplitude, do próprio valor do sentido, o que nos levará justamente ao núcleo de nossa
hipótese, que é a da possibilidade de uma épreuve crítica como expressão de uma
teatralidade maquínica da literatura.
De fato, não podemos encontrar termo melhor do que o de anacronismo para situar
os diversos encontros que tivemos a posteriore com textos que figuram nessa reunião de
conceitos que manejamos no sentido de expor a hipótese da teatralidade maquínica. Não que
não se desconfiasse de que esse tema ou essa preocupação já exista sob outras formas e atrás
de tantas outras e importantes assinaturas, mas é importante destacar esse trabalho de
369
Cf. BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes – IV, Livres Textes, Entretiens, 1972-1976. Paris, Seuil, 1994,
2002, pp. 366-376.
323
escritura que por hora nos pertence enquanto “tese”, sendo da ordem do acontecimental que
parte do movimento de um desejo de escritura.
Como Barthes mesmo irá dizer sobre essa economia do encontro entre escrituras
crítica e literária, que se dá como saídas do texto ou, diríamos linhas de fuga, desejo este que
parte ou se lança nessa intersecção entre um objetal e uma sujeição indecidíveis do/no texto
e que caracterizam ou expressam a extensão e o acesso ao estado atual das teorias críticas
contemporâneas, as quais necessariamente invocam um corpo como Corpus de acesso e
passagem do sentido, de perda e reapropriação deste sentido; este conceito de “sentido”,
absolutamente escorregadio por seu próprioquid relacional” não poderia mais ser
essencializado ou teleologizado sob qualquer metafísica, mas deve, sobretudo – e como
viemos nos apoiando teoricamente (muito com Nancy) – ser pensado (ou (im)pensado
justamente) como espaçamento imanente (é-loignement) das sensações e dos afectos, do
pulsional e da extensibilidade reverberatória dos corpos no mundo. Vale dizer, atravessando
o próprio abismo que nos separa e nos une numa volatilidade expressiva (toda a
problematica de uma teoria energética da imagem e da sensação) a que pode acessar por
vezes, o conceito, lembrando da acepção de conceito que invoca Deleuze.
A pergunta então: “O que é esse texto para mim, que o leio? A saber, pergunta sobre
o texto “Le gros Orteil”, e que Bataille, na formulação barthesiana teria em sua operatória
(estilo?) nietzscheana teria pressentido a pergunta para si próprio, tendo por extensão, na
resposta de Barthes: “é o texto que eu desejaria ter escrito”, uma referência ao cerne do
problema da teatralidade maquínica da literatura.
Pois nos apoiamos nessa pulsionalidade do gesto da escritura que extende para fora
de si numa espécie de corporeificação fabular um acesso ao interregno que tanto nos seduz
como a fascinação do que já foi chamado de “literaturidade”. Há nessa interface que
pressupõe a crítica um território onde uma necessidade corpuscular invade o próprio
processo de reflexão crítica, transtornando nesse espaço qualquer via polarizada ou dialética
que apreenda o texto na dureza de uma conquista. Trata-se para Barthes de perceber em
Bataille o propriamente performático de seu texto, aproximando uma operatória semiótica
que transvalora uma tecnicidade da lingüística na experimentação para fora de uma
semanticidade dura, refluindo numa observação de uma movimentação do saber como
advindo de uma potência anterior é que chamamos em alguns momentos, pré-ontológica,
324
potência heterólogica de uma expressividade corpórea e extensível à idiomática crítica
singular, como já comentamos a partir do texto de Morali.
Uma imagem possível para desenharmos a idéia da teatralidade maquínica é
desenvolvida no início do ensaio de Barthes e aí vemos esse encontro feliz que acabamos de
mencionar como sendo da ordem do acontecimento. Essa imagem é importante, pois ela
invoca também o tema do filiativo nietzscheano que lançamos no início da pesquisa. Essa
imagem também contém a idéia mesma de movimento que a noção de teatralidade necessita
vincular:
Il y a, chez Nietzsche et chez Bataille, un même thème : celui du Regret. Une certaine
forme du présent est dépréciée, une certaine forme du passé est exaltée ; ce présent ni
ce passé ne sont à vrai dire historiques ; ils se lisent tous les deux selon le mouvement
ambigu, formel, d’une décadence. Est ainsi née la possibilité d’un regret non
réactionnaire, d’un regret progressiste. La décadence n’est lue, contrairement à la
connotation courante du mot, comme un état sophistiqué, hyperculturel, mais au
contraire comme un aplatissement des valeurs : retour de la tragédie en force (Marx),
clandestinité de la dépense festive dans la société bourgeoise (Bataille), critique de
l’Allemagne, maladie, épuisement de l’Europe, thème du dernier homme, du puceron
« qui rapetisse toute chose » (Nietzsche)
370
Essa imagem, que adentra uma abrangência contextual, é, entretanto, reveladora
tanto de uma filiação explícita de um modo de pensar o valor e o sentido do valor
nietzscheano, quanto mais pontualmente mas também de forma oblíqua, se remete à
densidade do problema de uma economia ou de uma poética do neutro em Blanchot.
Esse “aplainamento dos valores” é o sintoma que disseminado na civilização
ocidental principalmente européia, a partir desses marcos que apresenta Barthes, encena,
desde o final do século XIX, o palco de uma expressividade literária tão densa quanto aguda
e diversificada em seus estilos e geografias singulares (pensemos apenas em algumas:
Proust, Kafka, Beckett, Virgínia Wolf, Borges, Onetti, Blanchot, Guimarães Rosa,
Lispector, etc.) e que de uma forma ou de outra apresentam, cada uma a seu modo, uma
gestualidade que transtorna a estética realista por meio de uma experimentação do próprio
modo da apresentação do circuito narrativo, quanto de sua abertura a uma exterioridade
incrustada na própria performance de um pensar literário que chamamos teatralidade
maquínica da literatura.
Esse sintoma será enfrentado, por exemplo, como descontentamento ou angústia por
Bataille, mas pela via de uma força de revolta, diríamos, que transtornará o próprio sentido,
325
pela via desse pensar literário, que tal qual viemos esboçando se dá como despersonalização
e reverberação de uma potência narrativa que adentra os modos de uma verdadeira
gestualidade e uma corporeidade teatrais discernidas como intensidade e modulação de uma
voz narrativa.
No caso de “Le Gros Orteil” de Bataille, Barthes observa uma performática intensa
dessa escritura ensaística em vários níveis: filosófico; histórico, sociológico; etnológico,
literário, chegando assim ao caráter heterológico da escritura e do pensamento bataillano
que se filia numa leitura critica do sentido e do valor nos termos trans-históricos em que se
situaria a perspectiva imanente sobre um possível quadro civilizatório ocidental.
Como acessarmos essa relação em desvio da sintomática de aplainamento dos
valores com uma poética do neutro em Blanchot? Diríamos que a intersecção se dá
justamente onde parece haver um erro de percurso. Pois se essa sintomática de uma
homogeneização dos valores decantada sob um certo processamento da sociedade burguesa
formadora de valores e esse processo foi investigado por Nietzsche a partir de uma crítica do
próprio sentido e das formas que o sentido toma enquanto valores dissimulados, isso se dá
justamente porque uma determinada noção universal de homem e de saber se desenvolveu
sob a forma de um sentido de verdade histórica e filosófica.
O mesmo processo que dissimulou os procedimentos históricos que o ocidente
construiu sob a forma de uma série de acomodações metafísicas, baseadas principalmente
numa onto-teleo-logia falocêntrica, para invocarmos Derrida, serviu para em sentido
suplementar, expor um movimento de percepção crítica dessa mesma historicidade, baseada
numa idéia de causa e efeito aristotélica que até hoje reina por sua contundência aparente e
agarrada aos modos e aos processos materiais e econômicos que se instalaram como
“necessidade” (e/ou) “contingência” econômica, leia-se regime de trocas capitalista.
Barthes complementa seu comentário apontando os eventos ideológicos que forjam e
embazam por assim dizer, os procedimentos críticos que fazem parte hoje das teorias da
diferença e de uma perspectiva imanente sobre o real:
C’est un thème à la fois historique et éthique : chute du monde hors du tragique,
montée de la petite bourgeoisie, écrite sous l’espèce d’un avènement la révolution
370
Op. Cit., p. 366. “Há, em Nietsche e em Bataille um mesmo tema: aquele do descontentamento. Uma certa
forma do presente é depreciada, uma certa forma do passado é exaltada”. (Tradução nossa)
326
(chez Marx) et le surhomme (chez Nietzsche) sont des secousses vitales appliquées à
l’aplatissement ; toute l’hétérologie de bataille est du même ordre : électrique.
371
« Le Gros Orteil » de Bataille teatraliza (e aqui já expressamos a felicidade e
suplementarização do encontro com o texto de Barthes) uma série de procedimentos que
procuramos tentar perceber na leitura das cenas de Thomas l’Obscur e A paixão segundo
G.H..
Há uma intensa e dissimulada performance do valor na tematização que faz o texto
bataillano sobre a parte do corpo designada como “O dedo gordo”. E está aí essa duplicação
performática que opera Bataille tratando de um tema que poderia ser remetido pura e
simplesmente a uma explicação psicanalizante da ordem do fetiche, mas que em Bataille se
agencia numa heterologia que desnuda de cima a baixo o tema do recalque e da
transvaloração das forças ativas e reativas (lembramos nosso comentário na Parte I de
Nietzsche et la Philosophie) que reincidem reafluindo de dentro do sintoma do
“aplainamento dos valores” (l’aplatissement des valeurs) no seio da civilização ocidental e
que são valores remetidos histórica e etnologicamente por Bataille a partir de uma
teatralidade da escritura que opera de diversos modos. Ora, são esses diversos modos que
são apontados por Barthes como performances do pensamento bataillano que desejaríamos
poder agenciar no modo singular em que observamos essa teatralidade ocorrer nos textos de
Clarice e Blanchot.
Barthes aponta uma performance temporal de Bataille que utiliza o tempo presente
para performar o tempo etnológico que aproximamos do corpo e do corpóreo como o
entendemos até agora e um tempo apresentado no passado performando o tempo histórico,
que de algum modo, poderíamos aproximar do gesto da escritura ou da criação literária em
seu sentido puramente material. Porém, é na interface e na transvaloração que se excedem
em sua defasagem constitutiva em relação ao puro presente, que se dá uma teatralidade ou
gestualidade como conexão ativa do gesto da escritura como leitura em tempo real, como
encenação de uma atualização constitutiva dos processos subjetivos que aí têm lugar.
Outro movimento é o da instauração de códigos de saber e que Barthes descreve
como uma verdadeira performance de um regime de saber transvalorado de Bataille, pois ao
opor pares opostos de termos dois a dois na seqüência do desenvolvimento de seu ensaio,
371
Op. Cit., p. 367.
327
Bataille não dialetizaria sua idéia como a partir de uma deriva ou de uma oblíqua tendência
metafórica ou alegórica de sua crítica dos valores do saber em sua própria
contemporaneidade, mas estava de forma heterológica, constituindo uma verdadeira
dramática textual que agencia em vários níveis a relação complexa entre os códigos da
língua, modos sintáticos, uma ontologia do valor numa constituição histórica e, por último,
uma performance sobre a própria constituição do saber que deve, pela estratégia múltipla
dos agenciamentos teatrais desse pensamento heterológico, alcançar como em desvio as
franjas do próprio impensável, que se oblitera constantemente a partir do limite e da
possibilidade de criação de um saber do inusitado.
Esta questão de um saber que vem ou que advem no desvio, que chega do inusitado
como encontro sem promessa, questão do não-poder sobre o saber, e por outra, de um não
saber que adviria de uma potência própria do falso, ou seja, desregramento como insistência
do saber ao seu limite e exercido em seu próprio limite de experimentação ensaística no caso
da escritura crítica de Bataille, emfim, essa questão do não-saber e da potência (in)operante
do não-poder de uma heterologia bataillana, ou de uma poética do neutro em Blanchot, é a
questão fulcral do des-jogo (déjouer) ou do desvio “metodológico” como potência
heurística. Ou, ainda, poderíamos nos remeter a essa questão de um modo mais estrutural,
dizendo que se trata da disjunção da síntese.
Barthes se expressa sobre esse assunto da seguinte forma:
Le texte de Bataille apprend comment il faut se conduire avec le savoir. Il ne faut pas
le rejeter, il faut même parfois feindre de le mettre au premier plan. (...) Il faut faire
surgir le savoir là où on ne l’attend pas. (...) Ce texte, qui concerne une partie du corps
humain, évite discrètement, mais obstinément, la psychanalyse ; le jeu (discursif) du
savoir est capricieux, retors ; (...) et cependant encore, par un troisième tour, Bataille
parle aussitôt après de la sexualité, en l’amenant par une transition (« en outre »)
faussement naïve. Le savoir est émietté, pluralisé, comme si l’un du savoir était sans
cesse amené à se diviser en d eux : la synthèse est truquée, déjouée ; le savoir est là
non détruit, mais déplacé ; sa nouvelle place est - selon un mot de Nietzsche - celle
d’une fiction : le sens précède et prédétermine le fait, la valeur précède et
prédétermine le savoir.
372
Nietzsche questionou e retorceu as noções paradigmáticas de causa e efeito de
Aristóteles, percebendo aí o desenvolvimento daí em diante recorrente de uma fundação
metafísica de uma presença a si inquestionável em toda atribuição de valor. Essa presença-a-
si de uma substância essencial originária (onto-teleo-logia) poderia ser pensada como
328
determinada num circuito recorrente e autosuficiente a partir de um a priori teleológico que
sobreviria de uma causa primeira essencial (uma certa interpretação do sentido platônico do
noûs como inteligência, espírito ou origem absoluta - logos? - pensado em seus
desdobramentos materiais e temporais) que é posto em movimento num sistema lógico
limitado a uma certa linearidade reducionista sobre os efeitos de ação e reação na
fenomenalidade da experiência em geral.
Barthes o cita dentro da referência bataillana: Nietzsche: « Il n’y a pas de fait en soi.
Ce qui arrive est un groupe de phénomènes choisis et groupés par un être qui les interprète...
Il n’y a pas d’état de fait en soi ; il faut au contraire y introduire d’abord un sens avant même
qu’il puisse avoir un fait »
373
.
O saber é assim uma ficção interpretativa que pode ser performada a partir de uma
posta em cena a partir da instauração de tensões entre os códigos de saber que manipulam -
na imanência de seu sentido posto a prova (éprouvé) por essa teatralidade - um sentido e um
certo manejamento ou dissimulação de um suposto “sentido final”, inteligível, normatizado
numa seqüência de procedimentos dialéticos ou etnológicos, historiográficos e filosóficos.
O desdobramento desta crítica do valor se dá a partir do jogo de seus efeitos e dos
efeitos de seus efeitos sem causa primeira. Esses efeitos de efeitos não podem ser
pacificados nessa inter-relação infinita de forças, mas são de algum modo enquadrados a
partir de uma violência de escolha retórica. Aí entra o tema anterior de Barthes, que diz
respeito ao início de algo (comencemment) como início de um pensamento apenas
dissimulado como começo pois é a penas o efeito de uma origem, já que não haveria nada
que simplesmente começasse em absoluto. Todo início é sempre já escolha e contingência
de alguns traços de efeitos reposicionados a partir de um desejo, de uma sedução ou de uma
prostração sobre os efeitos de força que nos cercam enquanto jogo do sentido e da
valoração. Essa crítica é justamente apontada por Barthes no texto de Bataille da seguinte
forma:
Bataille assure le truquage du savoir par un émiettement des codes, mais surtout par
une irruption de la valeur (le noble et le ignoble, le séduisant et l’aplati). Le rôle de la
valeur n’est pas un rôle de destruction, ni même de dialectisation, ni meme encore de
subjectivisation, c’est peut-être tout simplement un rôle de repos... « il me suffit de
372
Op. Cit., p. 370
373
Idem.
329
savoir que la vérité possède une grande puissance. Mais il faut quelle puisse luter, et
qu’elle ait une opposition, et qu’on puisse de temps en temps se reposer d’elle dans le
non-vrai. Autrement, elle deviendrait pour nous ennuyeuse, sans gout et sans force et
elle nous rendrait egalement ainsi. » (Nietzsche)
374
Lembremos todo o tema da fadiga e do esgotamento em Blanchot e da desistência
(l’abandon) de certo “orgulho” ou de uma posição de soberania de Clarice no fim de A
paixão segundo G.H. e poderemos talvez visualizar em esboço todo esse tema da
(in)operância que procuramos desenvolver. Em Clarice uma espécie de desistência do
orgulho existencial de se ser absolutamente singular no sofrimento ou na alegria de se estar
atravessando o seio do próprio processo de eclosão do intervalo é a medida paradoxal para
uma entrada na posição particularmente humana e sem subterfúgios que percebemos numa
atitude por assim dizer nietzscheana ou relacionada à soberania bataillana. Tema de difícil
exposição por se tratar justamente de uma “postura” existencial de força paradoxal e que
situaria uma ética sem precedentes na história do pensamento ocidental. De fato esse tema
que passa pelo último Derrida e que podemos ler com alegria renovada em Nancy, foi
desenvolvido por Blanchot através de uma espécie de sombria suspensão do sentido
humanista em prol de uma atitude absolutamente subversiva em termos literários e críticos.
Essa subversão não é outra que a extrema fidelidade (e aprofundamento) aos temas mais
profundos e pertencentes à obscuridade mesma do ser humano enquanto animal até hoje
soberbo, em relação a seu suposto poder
sobre a natureza. O fato da ciência em nossa
contemporaneidade estar diante do início empírico (dado que sempre esteve presente, numa
teoria do caos, ou pelo menos com a lei da termodinâmica) da devastação progressiva e
galopante do meio ambiente, modifica lentamente a percepção dessa onto-teleo-logia que
forjou durante dois mil e quinhentos anos uma espécie de risível e falsa soberania do homem
como representante divino em meio ao cosmos.
Uma ética do abandono e de uma humildade não-cristã clariciana ou uma poética do
neutro blanchotina, como elaboração infinita das aporias que nos concernem como seres
374
Idem. “Bataille assegura a contrafação do saber por um esmigalhamento dos códigos mas, sobretudo, por
uma irrupção do valor (o nobre, o ignóbil, o sedutor, o aplastado). O papel do valor não é um papel de
destruição, nem mesmo de dialetização, nem ainda de subjetivação, é talvez simplesmente um papel de
repouso... ‘Basta-me saber que a verdade possui uma grande potência. Mas é preciso que ela possa lutar, e que
ela tenha uma oposição, e que se possa de tempo em tempo repousar dela no não-verdadeiro. Em outro sentido,
ela se tornará para nós aplastada, sem gosto e sem força e ela nos tornará igualmente assim’”. (Nietzsche)
330
finitos em meio ao infinito da (des)continuidade do universo; essas duas estratégias
ficcionais-existenciais dadas pela dispositivização da escritura crítica e/ou literária, coloca
em voga a paradoxal instauração de uma espécie de atividade neutra do sentido ético, sendo
que o próprio desse sentido, ou de qualquer outro sentido, aí é relativizado numa estranha e
repetitiva potência de afirmação que chamamos (in)operante.
Perguntaríamos-nos o que significa a soberania bataillana a não ser isso, “coisa
nenhuma existente” (rien que d’ailleurs existe) experimentada com toda a problemática do
sentido em double bind que aí coexiste como espuma, ou seja, uma espécie de clamor de
uma voz que se sabe pura passagem sem mais significação transcendente e nesse intervalo
adquire, pela força própria de sua instabilidade, uma espécie de obscura glória e
responsabilidade infinita diante de todo o seu entorno. Todo esse tema é trabalhado de forma
e sob estratégias diferentes pelos vários filósofos e pensadores que fazem parte do desejo
dessa escritura de comentário sobre os autores e as suas respectivas respostas ao momento
de suas passagens no intervalo que nos cabe como existência aparentemente única.
Deleuze remete a uma espécie de atividade de seleção no seio das repetições e das
diferenças que se exercem como atividade constitutiva da matéria e do tempo em sua
substancialidade porosa, se assim pudermos pensar, lembrando das poesias de Francis
Ponge, em particular aquela que se remete à relação do poeta com seu nome, com essa
marca de identidade que lhe parece nonimo absolutamente esponjosa, porosa.
Se no seio das repetições e do vibratório silêncio cósmico ocorre um movimento
seletivo, este movimento parece não ter relação com nenhuma estrutura inteligível que
possamos comparar com nossa curta história ou historicidade de pensamento reflexivo, mas
está mais próxima da força de instauração e de destruição do sentido que repete e diferencia
a arte ao mesmo tempo. Esse movimento que repete a própria diferença como única
repetição não poderia ser pensado
como uma cena próxima ao desapego ou abandono em
que se deixa levar G.H ao fim de sua experiência limite no quarto da empregada e diante de
sua imiscuidade com o animal abjeto, no estertor dessa experiência que transtorna a extrema
abjeção com a extrema humildade de se saber tão efêmero quanto o inseto?
Esse movimento impensável da repetição da diferença na própria diferença não se
confunde com o movimento paradoxológico de Thomas que vive a partir de uma escritura
que o faz se movimentar entre imagens que o suspendem como uma espécie de fantasma em
331
busca de materialização, que felizmente só pode ter lugar na continuidade de sua errância ou
da observação das cenas que lhe trazem Anne como se repetindo a si mesma, numa estranha
percepão diríamos holográfica do movimento do corpo, da memória e do afeto que se
dissipam numa imponderável eternidade do instante-a-si do subjetivo e de uma
despersonalização incessante, advinda por necessidade do próprio desgaste que proporciona
o devir sobre a matéria, sobre qualquer matéria, mesmo a incorpórea, mesmo a matéria da
imagem, da ficção?
Gostaríamos de poder pensar na teatralidade maquínica de uma literatura como essa
força de envolvimento que remete as vozes do texto a sua incorporalidade instável, o tempo
todo (mas às vezes nunca) incorporada e reincorporada entre seus próprios movimentos, mas
fisicamente limitadas por essa idéia de uma leitura apofântica, digamos, que torna animada a
impulsão de um desejo, renovando assim o desejo anterior de cada palavra que foi doada
entre os movimentos do corpo escrevente, daquela imaginação que se desdobrava singrando
o acaso e a necessidade de sua voz, mergulhando em espasmo a aventura dessa finitude que
se fez valer potentemente no efêmero de signos que rivalizavam com os gestos invisíveis
que não poderiam jamais ter ganho a sobrevida das marcas que a escritura lhe promovia ao
mesmo tempo que no limite dessa promoção, todo esse traçamento e entrelaçamento dos
desejos feitos signos, também não significariam mais o que significaram no momento de sua
atribuição e no lapso de sua vida como instante e processo de repetição e diferença. No
limite e na extensão da infinitude os gestos se equivalem à desaceleração que promovem os
signos numa proposição de escritura.
Mas não estaria aí, justamente nessa efêmera desaceleração, o encanto e o obscuro
fascínio da imagem literária? Como se não fosse necessário mais que alguns poucos
instantes para que essa carga e essa corporeidade afluente dada na fabulação e feita escritura
retomasse a antevisão e a promessa de uma singularidade inaudita, a força e a jovialidade
dos dias felizes, por mais que nessas leituras se trate de outras imagens? Qual o enigma que
faz resplandecer o mistério de que houve num dia luz? Poderemos realmente pensar em
fazer esse tipo de blasfema proposição? O que garante que o fascínio, que honramos pela
ausência e sua força sígnica, seja tributário de uma afirmação que reflui no intervalo e em
meio ao infinito? Existirá uma aniquilação ou uma existência de qualquer tipo, ou o mar
espumoso dessa matéria permeada de temporalidade não diz respeito a não ser a uma região
332
onde o certo e o duvidoso devem coexistir irmanados, impossibilitando qualquer estadia em
uma ou outra posição?
De algum modo as duas literaturas que desejamos ter próximas de nós nos apontam
processos sem fim de questionamento e uma certa estadia nas franjas do poético. E é aí que
encontramos a único descanso para o possível cansaço que venha a nos alcançar, como às
vezes já o experimentamos. No intervalo e no lançamento dessas imagens que questionam
sua origem e seu fim, transladando-se na pergunta, e produzindo a única força que lhes
pareceu saudável, a força de uma (in)operância do poético como errância do pensamento em
meio à vertigem abismal da existência como acaso ou do acaso como existência do
intervalo. Intervalo entre os signos?
O nobre e o ignóbil, o sedutor e o aplastado (extenuado) como figuras carregadas de
valor estereotipado ou não, são operados no texto como códigos de valor que movimentam
um sentido de performance do texto em seu modo teatral, dramático; fora de um circuito de
traços projetados, a partir do desvio ou do que chamamos síntese disjuntiva, o ensaio
bataillano desenvolve uma deriva re-arranjadora de forças, a partir do próprio assunto, “uma
parte inferior do corpo” sendo heterologizado em sua possibilidade de trocas incessantes de
seus efeitos de efeitos possíveis. Oferece uma entrada no saber a partir de um des-jogo sobre
os sentidos e os valores preexistentes na cena ou numa cena de conhecimentos dados,
redistribuindo esses valores, o ensaio participa do saber pelo desvio do próprio saber,
exercendo a potência própria que chamamos (in)operante de um não poder do não saber.
Veremos que essa é também a estratégia da poética do neutro blanchotiana e como Clarice
Lispector também teatraliza ou dramatiza muitos de seus temas desse modo, talvez,
diríamos, retornando de um modo ou de outro, sempre o mesmo tema, ou seja, a descrição
literária da condição humana ligada ao pressentimento da potência paradoxal que invoca sua
(in)operância poética e do sentido sem sentido que daí se deriva pela escritura de uma
literatura limite, capacitada para criar o sentido esparso dessa neutralidade ativa, dessa
deriva do fabular como transvaloração do próprio fático em desejo de consciência, desejo de
escritura e uma forma de literatura pensante.
O sentido ou o procedimento de rearranjo desse sentido do (in)operante como traço
da potência de uma literatura pensante, se dá em suma, como uma relação ativa mas
suspensiva de um prazer ou de um gozo (com toda a relação forcluída - perversa,
333
transgressiva - que essa corporeidade do gesto da escritura pode fazer ressoar, vale dizer, sua
relação também angustiosa, presente na significação como double bind de uma presença
ausente do signo) como nos diz Barthes:
Le savoir est retenu comme puissance, mais il est combattu comme ennui, la valeur
n’est pas ce qui méprise, relativise ou rejette le savoir, mais c’est qui le désennui, ce
qui en repose ; elle ne s’oppose pas au savoir selon une perspective polémique, mais
selon un sens structural ; il y a alternance du savoir et de la valeur, repos de l’un par
l’autre, selon une sorte de rythme amoureux. Et voilà, en somme, ce qu’est l’écriture,
et singulièrement l’écriture de l’essai (nous parlons de Bataille), le rythme amoureux
de la science et de la valeur : hétérologie, jouissance.
375
Em outro tópico mais adiante, chamado “Vocables” (que tem o sentido de expor uma
relação de potência heterológica das próprias palavras, de seus usos vinculados a uma
dramática específica da performance dessas palavras-signos ou palavras-valise) Barthes
encerra (ou escolhe suspender) suas “saídas do texto” bataillano promovendo uma série de
possíveis “entradas” num texto performático como o que ele acaba de buscar de forma
excêntrica, fazer cintilar e constelar aqui e ali, seus efeitos de efeitos - como ele mesmo o
fizera já em S/Z - o ensaio heterológico de Bataille. E como poderia ser de outra forma?
Essas entradas possíveis são descritas numa espécie de reaproveitamento implícito
dos outros tópicos anteriores, mas há uma espécie de esquemática que torna incrivelmente
clara a proposta de uma leitura ativa e sobre-heterológica, se assim pudermos disser, a
respeito da eminente performação ou teatralidade da escrita ensaística bataillana:
Il faudra sans doute (...) un jour une théorie des mots-valeurs (des vocables). On peut
noter, en attendant : les vocables sont des mots sensibles, des mots subtils, des mots
amoureux, dénotant des séductions e des répulsions (des appels de jouissances) ; un
autre morphème de valeur c’est parfois l’italique ou le guillemet ; le guillemet sert à
encadrer le code, (à dénaturaliser, à démystifier le mot), l’italique, au contraire, est la
trace de la pression subjective qui est imposé au mot, d’une insistance que se substitue
à sa consistance sémantique (...).
1º Contrairement à tout un préjugé moderniste qui ne prête attention qu’à la syntaxe,
comme si la langue ne pouvait s’émanciper (...) qu’à ce niveau là, il faut reconnaître
un certain erratisme des mots : certains sont dans la phrase, comme des blocs
erratiques ; le rôle du mot (dans l’écriture) peut être de couper la phrase, par sa
brillance, par sa différence, sa puissance de fissure, de séparation, par sa situation
fétiche. Le « style » est plus palpable qu’on le croit.
2ºBataille disait : « Un dictionnaire commencerait á partir du moment où il ne
donnerait plus le sens mais les besognes des mots. » C’est une idée très
linguistique,(...) mais besogne va plus loin (c’est d’ailleurs un mot-valeur) ; nous
passons de l’usage, de l’emploi (notions fonctionnelles) au travail du mot, à la
jouissance du mot : comment le mot « farfouille », dans l’inter-texte, dans la
375
Idem.
334
connotation, agit en se travaillant lui-même ; c’est en somme le pour-moi nietzschéen
du mot.
3º Le tissu des mots-valeurs, constitue un appareil terminologique, un peu comme on
dit « appareil de pouvoir », il y a une force de rapt du mot ; le mot fait partie d’une
guerre des langages.
4º Pourquoi ne pas concevoir (un jour) une « linguistique » de la valeur, non plus au
sens saussurien (valant-pour, élément d’un système d’échange) mais au sens quasi
moral, guerrier – ou encore érotique ? les mots-valeurs (les vocables) mettent le désir
dans le texte (dans le tissu de l’énonciation) et l’en font sortir : le désir n’est pas dans
le texte par les mots qui le « représentent », qui le racontent, mais par des mots
suffisamment découpés, suffisamment brillants, triomphants, pour se faire aimer, à la
façon des fétiches.
376
Ater-nos-eimos ao sentido mais importante dessa extensa citação que retiramos do
texto de Barthes sobre Bataille, no sentido de fazermos refluir em nossa própria experiência
o que nos foi dado como um encontro feliz, já no momento de prova-ção ou épreuve da
leitura dos textos de Clarice e Blanchot. Ou seja, que viemos pensando até agora numa
estratégia que chamamos teatralidade maquínica da literatura com o intuito de poder pensar
os textos literários que desejaríamos “ter escrito”, ou traze-los tão próximo de nós mesmos
que eles pudessem nos transformar em algo que não pode ser descrito, pois transvaloraria
algo que não deixa resto e se consome inteiramente no prazer de sua leitura, no
deslocamento que efetua efeito sobre efeitos numa articulação desejosa de uma escritura
376
Op. Cit., pp. 375-376. “Será necessário sem dúvida [...] um dia, uma teoria das palavras-valor (dos
vocábulos). Podemos remarcar, enquanto esperamos: os vocábulos são palavras sensíveis, palavras sutis,
palavras amorosas, denotando seduções e repulsões (apelos de gozo); um outro morfema de valor é em alguns
casos o itálico ou as aspas; as aspas servem para enquadrar o código (para desnaturalizar, desmistificar a
palavra), o itálico, ao contrário, é o traço da pressão subjetiva que é imposta à palavra, de uma insistência que
se substitui à sua consistência semântica.
1º Contrariamente a todo um prejulgamento modernista que não presta atenção a não ser à sintaxe, como se a
língua só pudesse se emancipar [...] nesse nível, é preciso reconhecer um certo erratismo das palavras: algumas
estão na frase, como blocos erráticos; o papel da palavra (na escritura) pode ser o de cortar a frase, por seu
brilho, por sua diferença, sua potência de cisão, de separação, por sua situação fetiche. O “estilo” é mais
palpável do que pode-se acreditar.
2º Bataille dizia: “Um dicionário começaria a partir do momento em que ele não daria mais o sentido mas
ocupações (besognes) das palavras” é uma idéia bem lingüística [...] mas ocupação (besogne) vai mais longe (é
de todo modo uma palavra-valor); passamos do uso, do emprego (noções funcionais) ao trabalho da palavra, ao
gozo da palavra; como a palavra “fuçar” (farfuille), no inter-texto, na conotação, age se trabalhando ela
mesma; é em suma, o para-mim nietzscheano.
3º O tecido das palavras-valor constitui um aparelho terminológico, um pouco como se diz “aparelho de
poder”, há uma força de rapto da palavra; a palavra faz parte de uma guerra das línguas.
4º Porque não conceber (um dia) uma « linguística » do valor, não mais no sentido saussureano (valendo-por,
elemento de um sistema de troca) mas no sentido quase moral, guerreiro – ou ainda erótico ? As palavras-valor
(os vocábulos) põe o desejo no texto (no tecido da enunciação) e as fazem sair: o desejo não está no texto pelas
palavras que o « representam », que o contam, mas por palavras suficientemente seccionadas, suficientemente
brilhantes, triunfantes, para se fazerem amar, ao modo de fetiches.
335
futura, nem originária desse efeito, nem desvinculada de sua relação fragmentária, passada e
remetida a sua diferença, sua recomposição sob novos elementos ainda nem existentes mas
já prometidos como seu próprio e paradoxal passado.
Aparelho ou máquina, a teatralidade que almejávamos discernir na poética
blanchotiana e clariciana se desenvolvia como uma espécie de utilidade dinâmica para
envolver essa matéria incorpórea da ficção, essa máquina de distribuição de imagens e ações
disseminadas numa corporeidade intraduzível do gesto de escritura literária. Ela almejava
criar os elementos retirados do próprio tecido ficcional, para em seguida remetê-los uns aos
outros numa reincorporação nova, inevitável e impossível de ser comprovada a não ser
como algo independente e novo, adquirindo vida pelo acompanhamento das cenas e
extrapolando seus próprios sentidos, ao tornar-se uma abertura no deslizamento das imagens
aí produzidas.
Essa teatralidade
377
almeja também, a partir do que foi chamado cartografia dos
gestos e acompanhamento das vozes narrativas, fazer ressoar a possibilidade de um
mapeamento de gestos e suas circunvoluções estáticas e dinâmicas, percebendo se possível
uma mensagem qualquer que já sempre se dizia na imanência de seu brilho transparente e
dissimulado no significado de cada palavra, no fio branco ou translúcido da escuta que se
377
Se o “efeito de real” para Barthes marca a elaboração progressiva na literatura moderna (ao menos no final
do séc. XIX) uma noção de teatralidade literária deveria poder pensar nesse mesmo efeito de real numa chave
de leitura ainda mais dinâmica, incorporando a noção de uma “ilusion référentielle” no âmbito de uma
dinâmica heterológica da produção da literatura ou de um pensamento literário que possa transversalizar o
texto narrativo nessa polissemia ativa e passiva que instaura uma noção de verossimilhança permeada de todo
o potencial subjetivo e crítico que a literatura no século XX não deixou de fazer a experiência radical,
chegando aos limites de uma “literatura pensante” ou de um “pensamento literário”, numa espécie de dobra em
relação à especulação filosófica e que exigiria não apenas a leitura estruturalmente dinâmica de seus
elementos, mas a observação e o desdobramento crítico e ético para fora de seu sistema, invocando o caráter
eminentemente dramático e performático dos “efeitos de real” que participam do jogo imanente e
transcendental entre o corpo e o corpus dessa escritura.
Um tanto quanto tardiamente que nos remetemos principalmente ao capítulo inicial “Qu’est-ce que l’écriture?”
de Le degré zéro de l’écriture, onde já desde 1953, Barthes apresentou todo o roteiro que ocupam as
problemáticas da tese. Do problema sobre uma economia crítica do estilo à questão da teatralidade maquínica
da literatura que orientou o desejo de leitura dos textos de Clarice Lispector e Maurice Blanchot, percebemos
nesse retorno a esse texto fundamental sobre a articulação semiológica entre língua, estilo e escritura, refluir
com nova força toda a problemática que nos orientou em direção à pesquisa. Esperamos que na rememoração
“tardia” e em sobresalto que tenha ocasionado essa releitura possamos antever uma perscrutação mais refinada
sobre as possíveis entradas nos textos que nos ocupamos.
A teatralidade é « le pensif » do texto. Barthes dirá no « fechamento » de S/Z : « la pensivité (des visages, des
textes) est le signifiant de l’inexprimable, non de l’exprimé ». Cf. « L’effet de réel »; « XCIII. Le texte pensif »
in : S/Z in : BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes, III - 1968-1971. Paris, Seuil, 1994, pp. 25-32 e p. 300 ; e
Le dégre zéro de l’écriture, in : BARTHES, Roland. Oeuvres Complètes, I – 1942-1961. Paris, Seuil, 1953, pp.
171-183.
336
inbrica atrás de casa frase, ou de cada imagem angustiosa e vigorosa encenada por essa voz
ou pelas vozes que nesses textos se dissimulam, se inventam a cada vez na vida ou no sopro
de quem as lê.
Quando encontramos ou reencontramos Barthes, então, um encontro feliz pode ter
lugar, quando nos liberamos de fingir (mas aí há uma potência do falso que desejamos)
estabelecer os nexos visíveis de tal empreitada (uma cartografia dos gestos e dos vocábulos
afectivos do texto, sua relação com o espaço e com o tempo) e nos lançamos daí em diante,
sob o signo dessa liberdade calcada na imagem de prazer oferecido na tessitura dos próprios
textos, na cadência das próprias palavras e em suas posições fetiche no texto, na abertura,
enfim, dessa experiência de escritura, que ao mesmo tempo em que a lemos nos escritores
que desejamos ter próximos, nos envia à sedução de sua transvaloração, de sua (in)operância
ativa que nos implica e multiplica como imagem e teatro fascinante do mundo.
337
A teatralidade de uma poética do neutro.
Où est le commencement ? Est-ce quelqu’um ou
quelque chose qui commence?
Nous avons la réponse de Hegel : la mort est la vie de
l’esprit. « L’esprit ne survit pas à la mort, il est la
relève de la vie immédiate... L’esprit vit en tant qu’il
est mort à l’instance qu’il FUT lui-même... La
formation antérieure n’est plus vivante. » D’où résulte,
et c’est très important : « L’entité que je fus ne peut
plus dire « je ». « Je » ne peut plus se parler ALORS
qu’à la troisième personne. C’est ainsi que Hegel en
vient à « nous » (nous, c’est À dire moi alors et moi
maintenant) Par là, rien ne se perd. La mort est
toujours une belle mort, puisque « retenue » dans le
« nous » que font ensemble le moi alors et le moi
maintenant.
Mias est-ce que vraiment rien ne s’est perdu ? Ce qui
est nécessairement perdu c’est la présence « vive »
ALORS de ce qui est MAINTENANT. La contingence
est perdue, et l’on peut douter de la présence du
« alors » Et le temps lui même qui se réduit à n’être
que la relève d’un mode par l’autre est perdu. [...]
Par la grâce ou par la faute de Hegel, nous pressentons
que ce qui à présent semble si vif a nécessité le déjà
mort. C’est ce que Lyotard appelle mélancolie et
d’autres « nihilisme »
Mais si le commencement n’est pas la fin, si l’on
pense toute naissance comme une mort, et la mort
comme naissance sans « vérité », pourquoi y a-t-il un
double non-être ? Pourquoi non-être comme naissance
et non-être comme mort ?
C’est une énigme, et l’énigme du commencement
révèle qu’IL Y A un rapport avec ce qui n’a aucun
rapport. Naissance qui n’est pas seulement mélancolie,
mais est infiniment plus douloureuse que la mort.
Ainsi, dans les « Poèmes de Samuel Wood » :
378
378
BLANCHOT, Maurice. Une voix venue d’ailleurs. Paris, Gallimard, 2002, pp. 29-31. “Onde está o
começo? É alguém ou algo que começa?
Temos a resposta de Hegel: a morte é a vida do espírito. “O espírito não sobrevive à morte, ele é a superação
da vida imediata... O espírito vive na medida em que ele é morto na instância em que ele FORA ele mesmo...
A formação anterior não é mais vivente”. Do que resulta, e é muito importante: “A entidade que eu fora não
pode mais dizer “eu”. “Eu”
não pode mais se falar “ENTÃO” (alors) a não ser em terceira pessoa. É assim que
Hegel vem à “nós” (nós, vale dizer, eu então e eu agora). Por aí nada se perde. A morte é sempre uma bela
morte, pois que “guardada” nesse “nós” que fazem juntos o eu então e o eu agora.
Mas verdadeiramente, nada se perdeu? O que está necessariamente perdido é a presença “viva” ENTÃO
daquilo que é AGORA. A contingência é perdida, e pode-se duvidar da presença do “então” e o tempo ele
mesmo que se reduz a não ser mais que a superação de um modo por outro é perdido. [...]
Pela graça ou pela falta de Hegel, nós pressentimos que isso que no presente parece tão vivo necessitou do já
morto. É o que Lyotard chama melancolia e outros “nihilismo”.
É um enigma, e o enigma do começo revela que HÁ (IL Y A) uma relação com o que não tem nenhuma
relação. Nascimento que não é somente melancolia, mas é infinitamente mais doloroso que a morte. Assim,
nos “Poemas de Samuel Wood”.
338
O intuito, apesar de ter-se tornado um pouco retórico, foi o de tocar ou ao menos
resvalar essa região do fascínio que coexiste ao movimento da significância do olhar. Esse
movimento de fascinação é operado na escrita blanchotiana pela via da instauração de uma
poética (do)neutro, como dizíamos e essa poética é articulada muitas vezes pelo que chama
Dominique Rabaté, ao ler o poeta Louis-René des Forêts, de uma potência retórica de
“cláusula-relance” do aforisma.
Na verdade é toda uma leitura afinada a respeito de uma gestualidade ou
teatralidade no nível retórico se assim podemos dizer, que Rabaté faz convergir e relaciona
a título de tese sobre a leitura de um caráter eminentemente aforístico e (in)operante de
uma poética do neutro nos “Poèmes De Samuel Wood” de des Forêts.
Esse movimento de um « aforisma poético neutro » - e que aproximamos do sentido
que damos ao termo(in)operante para uma operacionalidade com relação a toda a
problemática da poética (do) neutro a qual Christophe Bident articula singularmente a
especificidade da escritura paradoxológica de Maurice de Blanchot - não é trivial, e sua
teatralidade é exposta em três tempos: Num primeiro ato Rabaté começa citando um
“fragmento” de Um Voyage Ordinaire de Jacques Borel:
Dire de grandes choses banales avec as respiration à soi, sa sufocation, c’est ça, peut-
être, être, être vraiment un écrivain
379
Essa citação ela própria é um aforisma de potência (in)operante que informa em
seus semas principais uma potência paradoxal a qual, ao mesmo tempo em que se remete ao
movimento e à cadência do processo vital (respiration suffocation) instala uma performação
semântica do contínuo e do descontínuo, ou do ativo e reativo (grandes, banales) assim
como a lemos a partir de Bataille e Deleuze. Aí se dá justamente nessa maquínica do
Não poderia deixar de remarcar que Blanchot um pouco adiante, cita Dominique Rabaté no marco da discussão
sobre o intervalo ou o que chamamos de “eclosão do intervalo” quando lemos anteriormente Claude Morali
comentando a escritura de Bataille. De fato há uma exigência ou um enigma absolutamente próprio à eclosão
do intervalo (existência). Essa eclosão é comentada por Blanchot em relação aos poemas de des Forêts nos
seguintes termos: « L’enfant, arraché à as mére (à ce qu’il croit avoir été une union immediaté) laquelle finit
par l’expulser prématurément (mais s’il n’est pas assez grand pour l’existence dans le monde, il est trop grand
pour l’immédiateté maternelle, pour la « matrie »)* l’enfant symbolise le commencement dans l’entre-deux. Il
a surmonté l’énigme de l’être-là, présentant aux autres la vivacité d’une présence stupéfiant, mais par cette
vivacité, l’EXPIANT par les déceptions, les questions vaines, le silence à la fois obtenu et perdu. Il est EN
DETTE du commencement (dit Lyotard), et s’il ne peut s’acquitter de cette dette (car il ne peut pas se
contenter d’être un héritier, fût-il fils de « roi »), il ne peut donc s’arrêter de naître, ARRÊT de naissance. »
[*Blanchot remarca aqui a importância do livro de D. Rabaté : Louis-René des Forêts : la voix et le volume,
Paris, José Corti.]
339
aforismo, segundo Rabaté, uma translação paradoxal do sentido que releva do movimento
da própria vida e de sua instalação no intervalo da existência e diante do processo e da
força entrópica em direção à finitude.
No aforismo se daria uma espécie de “autonomia sintática” do “fechamento da
frase” à posição ou na direção de uma “generalidade”, se daria a coexistência de uma
“reversão paradoxal” e uma “definição inesperada” e finalmente o aforismo se remeteria a
“uma vontade de dizer junto à autoridade do impessoal” a qual alcançaria por essa
autoridade “uma verdade englobando todo o sujeito da enunciação”
380
. Esses são
exatamente os termos que utiliza Rabaté em sua descrição do aforismo.
Mas entremos no segundo ato da descrição performativa de uma retoricidade ou de
uma teatralaidade maquínica (in)operante, se podemos assim dizer e portanto avançar
nossa compreensão do intuito de Rabaté estar relacionado a questão de uma poética do
neutro em Blanchot, a qual deve tanto fundar quanto afundar uma constituição em
sobrevôo, uma performance neutra, no sentido de que o aforismo deveria ao mesmo tempo
em que ativa uma força paradoxológica, não pode se entregar às facilidades de uma
maquínica repetitiva, daí buscando para alcançar a verdadeira potência de uma
(in)operância, tanto fazer entreter-se o contraditório quanto inventar no seio do paradoxo
um excesso e uma diferença.
Rabaté o indica do seguinte modo:
La justesse de l’aphorisme, c’est qui en signe la réussite en même temps qu’elle lui
donne sa frappe, réside, spécialement à l’époque moderne et contemporaine, dans les
ressources de cet écart entre le singulier et le général, entre l’impersonnel et le subjectif.
Ce sont ces ressources et ces tensions que je voudrais préciser (...). La tension qui
préside à l’aphorisme moderne a sa source dans la conscience (pour l’écrivain comme le
lecteur) de l’écart entre énonciation et énoncé.
381
Mas há o perigo de uma repetição sem diferença e voltada a si própria que
enfraqueceria o aforismo de seu valor ou sua potência autenticamente “clausular e de re-
invenção” (sa valeur de clausule-relance rhétorique) ou como nós nomeamos nessa
379
Apud. RABATÉ, Dominique. Poétique de la voix. Paris, José Corti, 1999, p. 27.
380
Op. Cit., pp. 27-8.
381
Idem. “A justeza do aforismo, o que assinala seu êxito ao mesmo tempo em que lhe dá seu timbre (frappé)
reside, especialmente na época moderna e contemporânea, nos recursos dessa separação entre o singular e o
geral, entre o impessoal e o subjetivo. São esses recursos e essas tensões que eu gostaria de remeter [...]. A
tensão que preside o aforismo moderno tem sua fonte na consciência na consciência (para o escritor como para
o leitor) da distância entre enunciação e enunciado.”
340
pesquisa, sua potência de (in)operância. O perigo de uma “facilidade da sentença e do
enunciado paradoxal”
382
.
O aforisma enquanto performance do fragmentário não pode se deter em sua
própria repetição puramente descontínua. Ele não pode existir senão em relação à cisão no
seio do próprio contínuo, desde sempre paradoxologizado em sua própria constituição ou
re-constituição elíptica, sazonal e inventiva no seio da própria repetição.
Na descrição dessa situação, passamos ao terceiro ato na teatrológica crítico
teórica que faz Rabaté sobre a performance(in)operante dos poemas de Des Forêts.
L’aphorisme est à considérer comme un régime particulier de l’énonciation, un de ces
points extrêmes, il faut l’envisager dans le cadre d’une diction plus vaste, comme un
moment – à la fois du point de vue du rythme, de la pensée et de la voix – de
l’économie plus générale d’un texte, qui en spécifie les modalités aussi bien que les
stratégies ouvertes. C’est moment est bien sur fascinant, puisque l’énoncé aurait la
prétention de se tenir par lui même, tout seul ; mais, en même temps, comme tout ce
qui fascine, il est médusant, c’est à dire mortifère, s’il désigne dans le même geste une
clôture de l’énonciation, son étranglement.
Dans cette optique, c’est le rôle stratégique de l’aphorisme qui m’intéressera, sa
valeur de clausule-relance rhétorique (...)
383
A esse excesso ativo (o que torna a repetição autenticamente desconíinua no seio do
contínuo, sem o enfado que Rabaté vê junto a Pascal Quignard às vezes se instalar nessas
performances do fragmentário
384
) no seio da repetição do aforismo e que funciona como
força paradoxal de reinvenção de uma destinação puramente dialética de sua significância
enunciativa; Dominique Rabaté remete-se ao sentido daquele valor cláusula-relance
retórico que em última instância presume um poder de “ponctuation” fundamental.
Numa dicção mais vasta do poder de enunciação do fragmento aforístico, existiria
uma performance e um ritmo próprios à teatralidade complexa do contínuo e do
descontínuo, do geral e do particular. Cabe ao crítico perceber as instâncias onde uma
382
Idem.
383
Idem., p. 30 “O aforismo poderia ser considerado como um regime particular de enunciação, um de seus
pontos extremos, é preciso o perceber no quadro de uma dicção mais vasta, como um momento – ao mesmo
tempo do ponto de vista do ritmo, do pensamento e da voz – da economia mais geral de um texto, que
especifica as modalidades tanto quanto as estratégias abertas. Este momento é certamente fascinante, porque o
enunciado teria a pretensão de se ater a si mesmo, somente ele, mas ao mesmo tempo, como tudo o que
fascina, ele é medusante (petrificante), vale dizer, mortífero, se ele designa no mesmo gesto um fechamento da
enunciação, seu estrangulamento.
Nesta ótica, é o papel estratégico do aforismo que me interessará, seu valor de cláusula-relance retórico”. (Em
português também há para cláusula, além do sentido jurídico e gramatical o sentido musical de encadeamento
do ritmo.)
384
Cf. Op. Cit., p. 29.
341
pontuação opera o timbre ou a marca dessa coexistência suspensiva, ou dessa
sobredeterminação ativa que remete o aforismo a sua autêntica potência de (in)operância.
Nesse “ponto” ou na pontuação que relançaria a própria cláusula dessa crítica,
votemos pelo movimento de retorno e de descontinuidade necessário, a entrada ou a
reentrada dessa cena proposta e teatralizada por Dominique Rabaté e que toma agora
naquilo que procuramos fazer seguir nesse trajeto, o sentido de sua força paradoxal.
« Faut-il donc se taire ou dire autre chose
Qui ait chance d’échaper au sort commun ?
Nous sommes pas de force à nous défendre
Le silence même en dit plus long que les mots
Et tout ce qui parle est fait de chair mortelle »
385
(page 29, sixième poème)
É na epígrafe de Maurice Blanchot, portanto, junto à seqüência desse fragmento de
des Forêts, que ao retornarmos, pontuaremos tanto o fechamento quanto a abertura dessa
teatralidade crítico-poética, e que gostaríamos de poder ter seguido um pouco mais, mesmo
que fragmentariamente, pois desses fragmentos, acompanhamos o excesso ativo que nos
remeteu justamente à fonte de sua remessa, e ao desejo da experiência de sua (in)operância
mais própria, que no aforismo e na pontuação de seu ritmo paradoxalmente ativo pôde nos
apresentar Dominique Rabaté a força da poética neutra nos poemas de Luis-René des
Forêts.
Duas cenas, múltiplas séries e o (in)expressivo ou (in)operante pulsante de uma experiência limite
pressentida como teatralidade maquínica da literatura.
A cena inaugural. O começo dos começos.
Não se falará de epifania
386
aqui. Sendo que paradoxalmente no mesmo movimento denegativo que
informa sua ausência já a inscrevemos numa certa positividade. Talvez aí se apresente muito dos
385
Apud. Op. Cit., p. 31. “Seria preciso, portanto, calar-se ou dizer outra coisa / Que tenha chance de escapar à
sorte comum? / Não somos força a nos defender / O próprio silêncio diria mais que as palavras / E tudo o que
fala é feito de carne mortal” (página 29, sexto poema) (Tradução livre nossa).
386
Pois não consideraremos epifania no sentido que foi usado por uma parte da crítica brasileira seguindo
basicamente o trabalho de Olga de Sá, A escritura de Clarice Lispector de 1979. De fato, não podemos
presumir uma acepção de epifania que de algum modo aglutine numa espécie de teleologia, ou de gesto
alegoricamente transcendente, toda a potência que constantemente nos esforçamos por esboçar, e que lemos
mais próxima de uma dinâmica imanente.
Apesar do tom em muitas das vozes narrativas ou narradoras nos textos claricianos parecer escamotear
elementos para se pensar nessa descarga de intuição transcendental que invadiria seus personagens ou as vozes
que os narram, nós não lemos essas cenas desse modo, mas procuramos criar um desvio necessário em relação
ao que acreditamos estar vinculado, nessa literatura, à teatralidade maquínica que movimenta o próprio
342
desdobramentos problemáticos que circulam sob a designação do intervalo ou do (in)operante. Ao menos de
um determinado uso desse termo “epifania” reintroduzido a partir de leituras críticas sobre a obra de Joyce e
que deixaram marcas profundas numa certa crítica de Clarice Lispector. Daí que daquilo que procuraremos
teatralizar a partir dos textos A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector e Thomas l’Obscur de Maurice
Blanchot
387
, não tratará de escrutinar qualquer metáfora como representação, iluminação ou avatar demiúrgico
advindo da linguagem; e não há revelação nesses textos que não se borre ou se oculte ao mesmo tempo em
suas próprias artimanhas e dissimulações ativas ou em suas cadências internas e que não seja novamente
encadeada e devolvida transtornada em seu valor de exposição – esse movimento se aproxima do “isso” sub-
reptício que parece querer ser “revelado” nesses relatos, ao mesmo tempo em que se recolhe em sua própria
aparição neutralizada – ao deslize para fora de suas paragens
388
enunciativas ou de seus territórios
paradoxalmente paródicos.
inominável muito mais do que qualquer significado inefável revelado ou encarnado numa categorização
transcendente, essencialista e que exerceria, de qualquer modo, essa condenação representativa que separaria
indubitavelmente o corpo e o corpus dessa literatura, sua situação enunciativa limite, numa metaforização de
iluminação e de descarga de sabedoria ou de gesto metafísico, no intuito de compreender uma certa
“mensagem transcendente” que o crítico, aparentemente dotado da iniciação necessária (de um poder
hermenêutico legitimador) poderia fazer valer, “dando a ler” o segredo ou a intuição de uma literatura que
estaria por “aguardar” aquilo que Barthes chama de polissemia hierarquizada, operada por uma teologia
medieval, ou seja, em sua última etapa de desciframento, “a mais profunda, a mais secreta”, adviria o sentido
anagógico (anagogique) de uma leitura do texto literário, o que se revelaria apenas depois dos outros sentidos
e como a própria encarnação da verdade indizível, a saber, após os sentidos, literal, histórico e moral ou ético.
Cf. « Polissemie - Textes, 1970 », in : BARTHES, Roland, Oeuvres Completes, III - Livres, Textes, Entretiens.
Paris, Seuil, 1994, 2002, pp. 512-514.
Nesse sentido, preferimos acompanhar a leitura do conceito de epifania que opera Dominique Rabaté quando
Dubliners de James Joyce. Ele remete a uma noção de epifania que se exerce como efeito no leitor dos
traços imanentes da própria enunciação. “A epifania não tem verdadeiramente lugar para aquele que enuncia,
mas para aquele que recolhe os traços. [...] A epifania necessita de um terceiro, de um testemunho”. Cf.
RABATÉ, Dominique. Poétiques de la voix. Paris, José Corti, 1999, p. 131 (Tradução nossa).
387
“Agora vou te contar [...] de como vi a linha de mistério e fogo, que é linha sub-reptícia”. Cf. LISPECTOR,
Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 98. (129) A partir de agora todas as citações
relativas tanto A paixão.segundo G.H. quanto a Thomas l’Obscur acompanharão como acima referido, a
seguinte estratégia tipográfica:
1) no texto de Clarice Lispector, aparecerá somente a referência da edição brasileira com sua numeração de
páginas e em seguida, entre parênteses, a numeração de páginas da edição francesa: LISPECTOR, Clarice. La
Passion selon G.H. Traduit par Claude Farny. Paris, Des Femmes, 1978, 1998.
2) No caso das duas versões do texto Thomas l’Obscur de Maurice Blanchot, quando se tratar da primeira
versão desse texto, se indicará sua referência como aparece na contra capa de sua reedição de 2005:
BLANCHOT, Maurice. Thomas l’Obscur, Première version, 1941. Paris, Gallimard, 2005; e quando se fizer
referência à segunda versão deste texto, se indicará como aparece em sua contra capa: BLANCHOT, Maurice.
Thomas l’Obscur, Nouvelle version. Paris, Gallimard, 1950, 2005, referindo-se à numeração de páginas desta
segunda versão, exatamente como fazemos com os textos de Lispector, a saber, com o primeiro número de
páginas referente à nova versão em francês e entre parênteses a numeração da tradução de nossa autoria e que
se encontra em Anexo no final do volume II da tese em sua versão completa em português.
388
Cf. para uma leitura crítica, o texto “Pas” do livro de Jacques Derrida, Parages. Paris, Galilée, 2003 que,
para nós, performa a obra blanchotiana de forma absolutamente potente e exerce o que procuramos chamar
aqui de épreuve crítica. Diria que de algum modo, houve sempre uma espécie de intuição ou de aproximação
heurística com esse livro, quando nos surgiu a idéia de operar uma noção de teatralidade como estratégia para
se pensar o tipo de experiência literária limite dos textos ficcionais de Blanchot e de Clarice, e ainda talvez, o
próprio desafio de se pensar os dois textos “em performance” ou “em cena” de uma escritura crítica.
343
Mesmo que os modos e a expressividade formal na produção das vozes narrativas dos textos que nos
ocupamos sejam, cada qual potencializados a partir de sua autenticidade e singularidades mais próprias, e
remetendo cada um à reverberação de sua produção e de sua leitura, ao que gostaríamos de chamar de
teatralidade pulsante de seus corpos expressivos - cada qual organizando e rearranjando a seu modo, uma certa
perspectiva literária e filosófica únicas (e a essa espécie de limite entre literatura e filosofia chamaríamos
justamente teatrológica ficcional) procuramos pensar o próprio ou a propriedade dessa transferência que se
desinstala repetidamente no intervalo pulsante do texto e que vasculharia incessantemente cada uma das séries
que pudermos fazer ressoar umas nas outras e que chamamos de cenas inaugurais - Derrida nos pareceu criar
uma performática que “duplica” ou “simula” (no sentido da potência do simulacro deleuzeano) algumas das
estratégias de Blanchot, o qual sempre produziu em sua ficção ao modo dos récits isso que chamamos de
teatrológica ficcional ou teatralidade maquínica da literatura e que alcança uma expressividade limiar com a
produção blanchotiana em seus escritos mais tardios, de uma escritura fragmentária e aforística, teatralizando a
própria noção rítmica do pensamento como desastre do ontológico ou uma (im)possível ontologia do desastre.
Se Blanchot performa uma voz a partir da cisão dessa voz na expressividade de um “entretien” infini, o que
numa tradução também performática poderia ser pensado como o que “toma”, “tira”, ou “traça” (tien) um
“entre” ou um “intervalo”, um espaço neutro entre duas bordas discursivas (l’entre), para a partir daí se
infinitizar nessa relação discreta e amistosa de doação do “vão” ou da “cesura” sobre o próprio desastre do
pensamento, Derrida o repete numa espiral diferencial, citando Blanchot até o momento indeterminado (pois
dado ou doado por toda a região dessa transferência) onde uma espécie de trans-mímese se efetua na forma de
uma tessitura textual dramatizada por sua própria crise de absoluta correspondência e de absoluta diferença
(aqui propositalmente suplementarizamos a própria maquínica do quase-conceito de diférance). Esse texto de
Derrida que performa duplicando “em différance” vários textos de Blanchot, chama-se “Pas”.
Em “Pas”, primeiro texto de Parages, é possível também perceber uma fina “alegoria” em relação à
teatrológica blanchotiana operar um tensionamento performático com o problema da representação e de um
devir-mímese catastrófico, se assim podemos dizer, reforçando as aspas em alegoria, como o lembra Nancy em
“Un commencement” e para remetermos-nos à mesma duplicação diferencial de uma espécie de mimesis
originária mas sem fundamento, baseada no rastro de sua presença-ausência ou numa espécie de
“transferência” constitutiva no seio da reiteração maquínica e diferencial da própria matéria incorpórea
(imagem), assim como o pensava Philippe Lacoue-Labarthe, por toda a reflexão de A imitação dos modernos.
(São Paulo, Paz e Terra, 2000) particularmente na subseção “O instável” pertencente a “Tipografia”, p. 95,
quanto em seu livro l’Allégorie, seguido de Un commencement onde Nancy se “acopla” ao mesmo tipo de
experiência de “transferência” imanente a que aludimos como a própria possibilidade de uma teatralização
narrativa no âmbito de uma crítica preocupada em se manter numa linha de tensão própria à problemática da
representatividade como presença dinâmica da mimese e de seu correlato ontológico, a experiência de um
pensamento dos limiares do pensável.
Em “Pas”, insistimos nesse texto, há uma sutil “alegoria”, ou melhor, há, se nossa intuição for adequada, uma
autêntica teatralidade maquínica também da crítica no que concerne à performance dos textos blanchotianos
operada por Derrida. Pois essa dramaticidade que é posta em jogo através da constelação citacional ali operada
e da crise narrativa exposta e re-exposta na própria re-duplicação das vozes que compõe o “entretien”, o
“entre-ter-se” derridiano da própria voz que pensa o texto, se expande e se desdobra numa alusão performativa,
a própria matéria incorpórea que é posta em jogo por Blanchot nas diversas máquinas literárias de pensamento
paradoxal (performances que são uma verdadeira Poética do Neutro, no sentido que lhe dá Christophe Bident
ao referir-se à potência de suspensão lógica e estética do que ele chama deleuzeanamente de
concept-afect do
neutro em Blanchot) que são por exemplo toda a cênica e a retoricidade aporética entre o sentido de pas como
passo e cadência do passo e pas (ne .. pas) como estrutura negativa de inferência ou referencia lógica.
Agora começamos a ter mais clara a possibilidade de descrição dessa idéia de teatralidade ou de teatrológica
ficcional que percebemos na experiência derridiana sobre o texto blanchotiano. E talvez apenas porque
podemos ter lido essa imbricação quase-cênica da duplicação performática de Derrida com Blanchot é que
poderemos encenar ou re-encenar uma série como cena especulativa e maquínica desse corpus-crítico de
Parages. A fina “alegoria” que dizíamos tem a ver tanto com a imagem infinitizada de paragens litorâneas
(parages) quanto com a infinitização das imagens que produz essa praia, esse litoral onde a amplitude do mar
se interpenetra no limite ou na borda do litoral. “Pas” de Parages é o passo hesitante entre um espaço e outro
na cadência de um movimento de espaçamento entre uma referência e o enigma de seu destino. Pas é também
o acompanhamento passo a passo em relação a essas referências que se produzem e se extinguem a partir de
uma performação elaborada a partir de uma poética do neutro. Todos os títulos das obras de Blanchot,
344
ficcionais ou ensaísticas, indicam ou aludem a um enigma, a um estranhamento ou, melhor, a uma cena que
poderíamos dizer primordial e irremissível, exatamente no sentido de algo que existe ou existiu e
necessariamente teve início, mas não se pode estabelecer uma referência absoluta a esse evento pois seu
movimento pressupõe uma espécie de metamorfose reiterável de sua própria relação com sua origem, desde
sempre aquém de qualquer domínio atributivo de sentido que não seja já um recuo, um distanciamento (é-
loignement). Por exemplo alguns títulos : Thomas l’Obscur, Aminadab, Le pas au-delà, Celui qui ne
m’accompagnait pas, Faux pas, Le Dernier Homme, Après coup. Précédé par Le ressassement éternel,
L’amitié, L’écriture du desastre, etc.
Essas paragens blanchotianas são percorridas por Derrida do único modo possível, a saber, se misturando à
maresia e ao torpor que essa abertura sem fim entre o aberto e o fechado das paragens litorâneas promete
quando se segue ou se acompanha tal sutileza e performance de pensamento que procura entreter-se nos
limiares entre “um” dentro (dedans) e “um” fora (dehors) do pensamento. Se a atribuição de sentido sempre
caracteriza uma estadia no dentro das manifestações existenciais essa mesma estadia projeta-se desde sempre
para fora do manifesto quando uma potência reflexionante se descobre constituída desde sempre de uma
negatividade própria do sentido ontológico como tal. Negatividade da própria referência em relação a seu
sentido sempre já deslocado na extensão de sua própria atribuição.
A lógica ou o regime desse limiar entre o dentro e o fora do pensamento poderia assim ser descrito: o que é
atribuído é manifesto como referência a algo existente e simplesmente dado, ou seja, tem sua existência ôntica
em direção a um distanciar-se da origem desse mesmo movimento (a noção de “viens” como o próprio desse
chamado da palavra-escritura - Parole, Voix), origem que se interpela a sua própria destinação, ou seja, o
movimento e o início de sua atribuição, refere-se a algo constitutivamente extenso a partir de uma
configuração própria e singular a essa mesma extensibilidade, logo constitui-se como relação pré-ontológica
corpórea, participante da vertigem e do caráter abismal da matéria sanguínea, muscular e neurológica a um só
tempo animada no espírito (corpo-corpus), ou corpo sem órgãos desfigurado e refigurado pelo traço e pela
força poética da escritura, orbitando o desejo como campo de forças ativas e retroativas, assinalando na própria
extensão os campos de proximidade e distância entre a imagem e o sensível, entre uma sensibilidade sobre a
imagem e uma imagem da sensibilidade exposta como neutralidade e fascínio, ou seja, as afecções mesmas a
que a consciência pode aceder nesse nível de teatralidade dessa poética.
Desse modo, Derrida performa ou sobre-performa as máquinas aporéticas blanchotianas (lógica do double-
bind) desdobrando seus efeitos em outros efeitos que não pretendem interpretar (como domínio de
subjetivação) seu registro, mas apenas “acompanhar” o movimento de circunscrição elíptica que as imagens
blanchotianas, a nosso ver, teatralizam. Por exemplo, quando Derrida desdobra a potência retórica e
performática do sans/pas/sauf. Cada uma dessas palavras se atribuindo uma função indecidível (nem adjetivo
nem preposição, mas performando uma potência de atração ou repulsão do sentido na frase e a partir daí
tensionando essa linha vibrátil e obscura que se integra na ausência e no espaço entre o atribuível e o referível)
opera uma verdadeira teatralização de efeitos e articulações sintagmáticas capazes de fazer reverberar aquela
linha de tensão entre o dentro e o fora que associamos à cadência marítima e sua destituição gloriosa na linha
litorânea.
Derrida comenta essa potência a partir da palavra sauf e lembremos, toda a reflexão derridiana passa a um grau
acima liberando o seu próprio “dentro” especulativo ao se performar e se teatralizar citacionalmente e
fragmentariamente no texto blanchotiano a partir da duplicação do efeito infinito do “entre-ter-se” dessa
performance acoplada, sobre-performada ou teatralizada dos textos ficcionais de Blanchot:
[...] que veut dire sauf ?
- C’est un mot puissant et dérobé, plus ou moins qu’un mot, ni adjectif ni préposition, l’un et l’autre, presque
un nom parfois, l’exception faite du langage aussi que se servent beaucoup de lui et fascine à partir de lui.
À former comme une phrase développée, à peine suspendue, l’unité syntagmatique capable de tout, l’immense
squelette ascétique marchant dans tous les sens et au-delà du sans, sans/pas/sauf donneraient l’illusion de
dominer ou de rassembler la totalité du corpus si chacune des notions ou des oppositions que je viens
d’avancer pouvait s’arriver jamais à elle-même, ne s’effritait ou ne s’effondrait sur son bord ; et si chaque faux
terme de cette puissante formalisation n’interdisait à l’ensemble de se comprendre en soi, désarticulant la loi de
la phrase et rompant l’identité de l’autre terme qui déjà se recoupe et remarque lui-même. Oui, de rien sauvé
sauf du dehors auquel elles sont vouées. Rien, sauf le dehors. Encore ce projet de sauvetage appartient-il au
projet d’écrire d’ « autrefois » : celui qui aurait donc cherché à sauver au-dedans, le dedans, à réapproprier
dans la garde de l’abri, dans l’intériorité assimilante de la maîtrise. Il est vrai que le dedans peut être aussi
terrible et que la compulsion vers le dehors organise parfois la défense : Sauf le dehors, tout sauf le dehors.
345
Porém essa “saída” não se dá nunca como um movimento simplesmente possível e constituído em sua
própria direção “para fora” do que adviria de um dentro subjetivo, provavelmente ficcional, rememorado ou
inventado. Não, esse movimento para fora é a própria existência do dentro em convulsão poética ou a própria
experiência do que Blanchot chama, a seu modo, “exposição ao fora” e que expõe em sua poética própria, ou
em sua estética do neutro, a pulsão ou o pulsional do que chamamos de experiência limite da literatura e que
necessariamente atravessa um corpo como corpus de um movimento de desejo e de criatividade poética.
De fato se trata de provarmos ou experimentarmos como experiência de épreuve crítica alguns
movimentos de dentro para fora ou de fora para dentro que escorrem ou que deslizam a partir da escolha de
algumas cenas desses textos. Talvez seja preciso afinar essas transferências, as quais seremos obrigados a
tornar atribuíveis em outras configurações que viemos chamando de teatralizações do literário e que sobre-
determinamos como uma possibilidade de descrição de séries entre séries múltiplas que se estabeleceriam entre
esses dois textos.
No que diz respeito à épreuve crítica, se trataria simplesmente de convocar essa exposição ao fora em
cada um dos textos a uma espécie de confrontação inaudita, recuperando a liberdade desse acaso iminente que
se virtualiza no silêncio próprio dos textos e que se lança numa paradoxal e desfigurante realização inusitada
da leitura.
Nessa épreuve, indicaríamos que entre o espectador e a cena se dão multifacetados, uma série de
solilóquios lançados ao umbral dos palcos imaginários que induzimos a se atualizarem como uma espécie de
sobre-ficcionalização da ficção experimentada, aí nesse espaço literário aberto dessa épreuve, como um relance
destituído de materialidade que não seja a da própria fuga da imagem no olho, ou simplesmente o desgaste e a
asfixia da imagem reconvocada pelo esquecimento próprio a sua exposição interseccionada nesses dois textos.
Essas imagens desmaterializadas entre as cenas que procuramos fazer dobrarem-se umas nas outras,
devem poder fazer ressoar o problema próprio à origem e dessa origem ser diferente do que se inicia como
Qu’il reste sauf sans nous. Le pas au-delà ne laisse plus intacte une quelconque opposition du dedans et du
dehors. La parole sauve, ici, répond néanmoins au projet d’autrefois : « Mais ce n’est qu’une idée d’autrefois,
je ne puis espérer leur donner ce dont je suis dépourvue, je n’en ai même pas le désir, elles me plaisent souvent
extraordinairement ainsi (c’est là un autre aspecte du danger) : Elles me séduisent par cette désœuvrement
affairé... » Autrefois ne renvoie pas à une date, au passé d’un événement, plutôt á la structure du rapport à elle,
la parole, à elles. Le moment... (« Pas » in : Parages. Paris, Galillé, 2003, p. 79.)
A palavra Outrora (autrefois), entre essas falas ou entre essas vozes que estão em jogo nessa performance,
toma o lugar do movimento vibratório e atópico do entre-ter-se das vozes. O momento se esparrama entre o
dentro e o fora da expressão poética sob a ameaça de sua perda total ou do perigo de seu extravio na
pluralidade monstruosa da vacância do sentido. É necessário criar uma força de atração e repulsão a partir de
palavras em double-bind, palavras que teatralizariam a própria imagem entre sua força geradora e sua “anti-
força” de desgaste e de impulsão ao fora que não faz mais do que reverter e despolarizar incessantemente essa
atmosfera litorânea (Parages), em perpétuo desgaste e esgotamento de sua “substancialidade”; aí onde um
“ser” da palavra, ou melhor, uma imanência da palavra ou mesmo um acesso à imensa atividade fática ou
entrópica da palavra, pode ao mesmo tempo em que aceder à obscura glória de sua emergência sígnica,
também, por isso mesmo, deve deteriorar-se durante sua passagem à ambivalência de seu eterno movimento
denegativo e paradoxal, no sentido de sua facticidade ou finalidade referencial posta a nu em sua instabilidade
constitutiva. Toda atribuição contempla uma retirada de sua referência, produzindo o movimento próprio da
346
“início”. Pois a imagem que se busca ao se referir à cena inaugural é originária e inicia algo que não pode ser
descrito categoricamente como tendo uma origem. Pois a escritura literária nesse caso, ou seja, como
exposição ao fora, e como expressão de um limite que se refere ao “irreferível” da própria referência é a
inauguração do “des-originário” como escape irrefreável ao que tem existência na duração.
Mas há uma insistência nessa impossibilidade de se agarrar o originário e que é atualizada como o
início ou o começo do que começa, a inauguração do poético é propriamente uma certa atribuição do sentido
do ser pela forma-força que toma em sua extensão própria ou em seu espaçamento singular, o literário, como a
duplicidade que literalmente vive na dimensão “monstruosa” do corpo-corpus da literatura. A tarefa da
possibilidade de acompanhamento e não de cooptação do movimento desse corpo-corpus literário que tem
como potência uma espécie de eficiência em se ex-por ao fora, é o que desejamos fazer ressoar como uma
tarefa, um gesto, ou um obrar ou desobrar próprio de uma experiência de teatralização nesses e desses dois
textos.
Não há encarnação, iluminação ou epifania nesses textos. O que há é o que gostaríamos de chamar de
transvaloração teatrológica das vozes desses textos. A luz que pode ser descrita como pertencente a essas
experiências narrativas é do tipo de luz que escapa ao olhar assim como o ponto cego é a refração de uma
objetividade direta e impossível de ser referida pela enorme distância e pelo desvio que, por sua razão
refratária, se coadunam ao próprio olhar. Não existem necessariamente temas próprios a esses textos, pois a
propriedade desses textos é fazer revolverem-se todos os temas numa figuração relacionada ao extático e à
duração do corpo como corpus de uma travessia; corpus de uma faticidade irredutível à potência de seu próprio
acontecer e acontecer justamente em direção ao inexpressivo, em direção ao informe dessa continuidade
sempre já inaugurada, seja o nascimento do próprio corpo como manifestação de uma crise em uma dramática
da escrita, ou a um “arremessar-se” no desejo de escritura, mesmo que esse desejo seja para além da ordem do
erótico, em direção ao gesto de uma convalescença do angustioso enquanto tal.
Fora do texto há o corpo, mas fora do corpo há toda uma relação com o textual e seu limite plausível
que se apaga na indescritibilidade de suas metamorfoses e que, ao retornarem sem jamais terem realmente
saído do corpo (como numa economia fabular dos afectos) figuram a imagem teatral dessa textualidade
reatualizada no corpus enquanto literatura.
Essa voz narrativa reverbera uma continuidade ausente que me institui (e já sempre anteriormente
reinstitui o gesto autoral, nele desobrando e (in)operando seu próprio sentido, sua teatralidade esquiva – o
nome próprio passível de uma espécie de re-transcendentalização - no paradoxo de uma ausência que se lança
a suas reverberações na ambigüidade de um porvir de sua leitura) ao mesmo tempo em que me seduz na via de
uma espécie de transgressão de sua própria imagem imaterial.
Ela (a voz narrativa) se reatualiza pelo modo do desvio e da insegurança, sob a marca do que não pode
se alojar a não ser no espaço fluido, neutro e inexato da aporia, na cadência pós-metafísica do poético, pensado
como potência sem lastro inteligível que não se reconfigure como a própria traição de sua origem, ou seja, que
transferência postergada do sentido para a pluralidade dos sentidos, neutralizando-se no porvir dessa espécie de
thanatografia teatrológica da própria escritura enquanto gestualidade e performance no seio do poético.
347
a cada vez que procuro escutar essa voz, a escuto rapidamente sob a égide de sua potência mais própria, a do
evanescimento ativo de sua atribuição, mas logo em seguida, e a cada vez, não podendo reter sua singularidade
(im)potente e livre, recaio no desilusório de sua retomada fora de seu solo inaugural, fora de sua origem desde
sempre já fruída e acalentada na esperança de sua “impossível morte anterior”.
“Impossível morte anterior”, pois justamente nessa dimensão da aporia do neutro, ou, no espaço que
abre uma poética do neutro, se trataria dessa voz sempre já soar como a reverberação de uma promessa, vale
dizer, como um existenciário constitutivo da própria poética do neutro, ou da teatralidade maquínica, esta força
do porvir coexiste como espera e dessa espera como suspensão no próprio seio da atribuição do “enquanto tal”
apofântico, relança como traço de escritura literária que prepara uma vinda inexorável e ao mesmo tempo já
instalada como premonição ou espera atenta do que não se pode anteceder faticamente, a saber, a morte não
percebida como finitude, mas, sobretudo, como emblema improvável do que não pára nunca de chegar
389
.
A potência da escritura, ao se direcionar para sua finalidade mais premente, a saber, a de se atualizar
no espaço convulsionado e neutro, indecidível e desobrado (no sentido que pensa Derrida num de seus últimos
textos sobre Blanchot, ou seja, como poética blanchotiana inspirada na diferença ontológica heideggeriana,
exposta no sentido do “motivo intraduzível do Walten (força, violência, poder, antes de toda determinação
onto-teológica ou teológico-política da soberania) como origem da diferença entre o ser e o ente, a origem do
en tant que tel’ apofântico, portanto daquilo que distingue o Dasein do vivente animal, etc”)
390
de sua criação,
espaço interseccionado pela inorganicidade atônita do tempo, ritualiza com espasmo teatral sua figuração
estética, lançando o corpo a partir de seu próprio arremesso inaugural a uma extensão ou ao espaçamento
singular de uma nova abertura, cesura esta rachada de borda a borda por uma outra invaginação, a qual situa o
espaço sóbrio e angustiosamente necessário onde se posta a voz do narrador e suas possíveis reverberações
narradoras, os personagens e suas situações. A essa conjuntura nomeamos teatralidade ficcional.
Essas imagens de algo que “vem” e não deixa nunca de “advir” como um chamado silencioso dado
como teatralidade ficcional tanto em Clarice quanto em Blanchot e que interpretamos na forma de uma
economia da promessa e da premonição, podem ser lidas num certo ethos dos personagens claricianos que
permanecem tentando entender o mundo “fenomenológico” a sua volta enquanto uma espécie de relação
angustiosamente estática. Há distância quase solipsista entre os vários protagonistas e os personagens
coadjuvantes, como por exemplo, no caso de Martin de A maçã no escuro, que precisou passar por uma
espécie de peregrinação no umbral do real, muito semelhante à de Thomas de Thomas l’obscur, para em
seguida, aos poucos, perceber que sua reentrada na realidade do mundo, mesmo como fugitivo de um crime
389
A esse respeito, indicamos o vertiginoso texto de Blanchot Le pas au-delà de 1973, livro que explora numa
potência expressiva ainda mais plena e abismal, a maior parte das problemáticas blanchotianas em relação à
densidade das questões que se possam desdobrar de sua poética ou estética do neutro.
390
O trecho completo no original: « Heidegger a toujours tenté de penser, souvent à travers le lexique et le
motif intraduisible du walten (force, violence, pouvoir, avant toute détermination onto-théologique ou
théologico-politique de la souveraineté), l’origine du « en tant que tel » apophantique, donc de ce qui distingue
le Dasein du vivent animal, etc, donc d’un walten qui vient « avant » e rend possible, la produisant, la
différence (Unter-schied) ontologique (la walten de l’Austrag qui n’est encore ni l’être, ni l’étant qu’il
rassemble en les tenant séparés. » Cf. « Maurice Blanchot est mort » - Jacques Derrida, in: Maurice Blanchot -
Récits Critiques. Sous la direction de Christophe Bident et Pierre Vilar. Tours, Farrago, 2003, p. 622.
348
ilusório, teria de se fazer muito lentamente, e finalmente ao se realizar, levá-lo ao encarceramento. Em
Blanchot, não é preciso dizer que seus personagens não só coexistem numa relação angustiosa com o real, mas
a realidade desse real é posta constantemente em suspensão a partir da paradoxologia e da tensão própria à
poética do neutro que verifica nela mesma sua possibilidade de teatralização de uma cena tão terrificante
quanto poderosa, de uma lucidez filosófica que ao mesmo tempo em que desgasta e implode qualquer forma de
transcendentalização da realidade, informa a impossibilidade de uma estadia pacífica no seio da imanência que
emerge dessa mesma lucidez em relação à potência própria e aporética do sentido da escritura.
Se pudemos ler com Derrida que este pôde, de algum modo, situar a discussão sobre a força
convulsionante e “quase” inapreensível do walten (quase pois se trataria de permanecer sempre atento a essa
“economia da imaterialidade da imagem ou da cena, ou do gesto”, como quisermos, que propõe uma poética
do neutro como resto ou restância necessária a uma gramática suspensiva da factuidade, se assim podemos
dizer) a partir da noção de neutro, é porque procuramos perceber esse interstício “figural” ou a economia de
imagens “intervalares”
391
como um movimento potencialmente transversal da literatura, e essa, apreendida
aqui, no sentido amplo de uma institucionalização do literário para além simplesmente dos sistemas
semiológicos textuais, invadindo, por assim dizer, uma dinâmica disseminante e potencialmente ontológica de
seus efeitos (dinâmica teatrológica portanto, no sentido que gostaríamos de expor ou de épreuver
criticamente).
Essa região intervalar observada como espaço paradoxal de uma dinâmica do sentido
estético, é o problema que, nos parece, Blanchot levou ao limite de sua execução, ali onde
uma teatralidade do neutro deveria poder ser percebida no espaço que abre o próprio
movimento que executa ou premedita a voz narrativa enquanto experiência do imaterial,
tanto de uma imaterialidade do resultado dos efeitos estéticos, quanto de sua própria
formalização expressiva, dada pela potência de seus elementos retóricos e suas funções
gramatológicas.
Esse jogo de tensões que compõe a poética do neutro põe em jogo, ao
mesmo tempo, a instauração do próprio evento como impossibilidade de apreensão do
instante de sua eventualização. Ali onde o tempo deve se espacializar ao se defrontar com o
391
Jacques Derrida, um parágrafo abaixo do mesmo texto que acabamos de citar, aproxima ainda mais essa
noção tão próxima à noção de neutro em Blanchot que é, ao nosso ver, sua teatralidade ou gestualidade
performadas e potencialmente intervalares entre uma produção estética e uma reflexão filosófica, as quais
fazem esse sobrevôo e “performance” do qual gostaríamos de perceber seu movimento paradoxal e “quase”
inapreensível de forças centrífugas e centrípetas numa relação com a problemática da diferença ontológica em
iteração permanente. Aí onde poderíamos pensar o movimento suspensivo da literatura, podem se “figurar” -
na forma do que chamamos de economia do imaterial, os deslocamentos, as saídas e reentradas em relação
àquele “enquanto tal” (en tant que tel) apofântico ao qual se remete Derrida - na forma dessa teatrológica
ficcional que para nós é, tanto em Blanchot quanto em Clarice, o próprio movimento do que faz de seus textos
uma intensa e reiterada procura ou experiência da literatura como pensamento no umbral de sua prova-ção
(leia-se o próprio dessa experiência do fora que não pode ser pensada sem relação intrínseca e constitutiva com
o seu dentro mais premente e historial no sentido heideggeriano).
349
interstício dessa pré-ontológica convulsionante que abre e fecha constantemente o espaço do
neutro na forma de uma economia da aporia.
É nessa região instável, onde se tensiona o espaçamento intervalar entre corpo e
corpus, entre o ser e o ente em incessante convulsão, que emerge a economia do imaterial
enquanto possibilidade de acesso ao regime de forças que compõe o que chamamos de
teatralidade maquínica da literatura, para além de uma fenomenologia da criação estética e
em direção ao evento de performance que realiza o gesto ficcional e ensaístico como o de
Maurice Blanchot em imagens como a da afecção ou percepção anfibológica sobre Anne e
sobre a própria ausência e duplicidade de Anne quando o tempo literalmente se espaça e se
abisma a partir de uma composição de imagens que teatraliza a inconsistência e a própria
(in)operância das forças sempre neutralizadas e conquistadas pela aporia constante que se
teatraliza pela voz narrativa do récit em Thomas l’Obscur:
C’est qu’on voyait, d’un naturel si familier, devenait, par le seul fait que manifestement ce
n’était pas cela qu’il fallait voir, une énigme qui finissait non seulement par aveugler l’œil,
mais par lui faire éprouver, à l’égard de cette image, une véritable nausée, expulsion de
détritus de toutes sortes à laquelle se forçait le regard en essayant de saisir dans cet objet
autre chose que ce qu’il pouvait y voir. A la vérité, si c’est qui était entièrement changé dans
un corps absolument identique, l’impression de dégoût imposée à tous les sens obligés de se
considérer comme insensibles, si le caractère insaisissable de la nouvelle personne qui avait
dévoré l’ancienne en la laissant telle qu’elle était, si ce mystère enfoui dans l’absence de
mystère n’avait expliqué le silence qui s’écoulait de la dormeuse, on aurait été tenté de
chercher dans un tel calme des indices sur la tragédie d’illusions et de mensonges dont s’était
enveloppé le corps d’Anne.
392
Ou no “final” do périplo estático de G.H. que, no quarto da empregada, adentra
numa convulsão nos domínios da pura paixão como rasgo de uma experiência limite,
apercepção” da condição abismal do “humano” como intervalar na consciência fática de
sua própria finitude, nesse espaço onde um devir-humano-fêmea deve se imiscuir ao devir-
inseto-barata, teatralizando, pela vasta dramática dessa cena onde se performa uma
despersonalização desastrosa, uma poética do não-poder e do não-saber e da
obscura glória
da existência enquanto passagem e finitude que compõe essa comunidade inconfessável à
que alude Blanchot.
Enfim, quebrara-se realmente o meu invólucro, e sem limite eu era. Por não ser eu era. Até o
fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não
for; pois “eu” é apenas um dos espasmos do mundo. (...) Da organização geral que era maior
392
BLANCHOT, Maurice. Thomas l’Obscur. Paris, Gallimard, 2005, p. 72-3 (448)
350
que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos. Mas agora eu era muito menos que
humana – e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como
estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já não era eu, ao que já é inumano. (...)
O mundo independia de mim – esta era a confiança a que eu tinha chegado: (...) A vida se me
é e eu não entendo o que digo. E então adoro. _ _ _ _ _ _
393
Enfin, enfin mon enveloppe s’était brisée réellement, et sans limites, j’étais. De ne pas être,
j’étais. Jusqu’au but de ce que je n’était pas, j’étais. Ce que je ne suis pas, je suis. Tout sera
en moi si je ne suis pas ; car « je » n’est qu’un des spasmes momentanés du monde (...) De
l’organisation générale qui était plus grande que moi, je n’avais jusqu’alors perçu que des
fragments. Mais maintenant j’étais beaucoup moins qu’humaine – et je ne réaliserais ma
destinée spécifiquement humaine qu’en m’abandonnant, comme j’étais en train de
m’abandonner, à ce qui n’étais plus moi, à ce qui était déjà inhumain. (...)
Le monde indépendait de moi – voilà la confiance à laquelle j’était arrivée : (...) la vie m’est.
La vie m’est, et je ne comprends pas ce que je dis. Et alors j’adore ...
394
Nota-se, infelizmente, a falta dos traços finais nessa ótima tradução do texto de
Clarice, tradução que não pôde ainda em seu momento, perceber a potência performática e
importantíssima que os traços marcam nessa ficção, justamente por provocarem uma
teatralização de repetição que é movimentada em cada um dos “capítulos” ou dos
fragmentos (como preferimos nomeá-los) do relato de G.H., cumprindo finalmente a virtual
interminabilidade da experiência-limite dessa escritura/leitura que se inicia também com seis
traços, e não com reticências como aparece na tradução francesa. O traço por si só já revela
um poder de espaçamento, é linha e se desenvolve numa duração; já o ponto ou os três
pontos como aparece na tradução, além de marcarem o código da pontuação normativa,
permanecem, na melhor das hipóteses, como se remetendo à seqüência tripla do ponto, ou
seja, fixação pontual e centralizante, finitude de sua própria agudeza em si. Diferente do
traço ou da linha que comportaria essas finitudes pontuais numa relação infinita e
descontínua, quando observamos a seqüência dos traços que potencializariam, pela ausência,
também os vazios entre suas aparições. Lembremos do capítulo “Nietzsche e a escritura
fragmentária” que comentamos a partir de Blanchot.
A respeito do que chamamos de “imagens intervalares” e do que essa imagem deve à economia que o
neutro blanchotiano promove ou pré-move em relação ao trabalho de sua teatrológica ficcional de um
pensamento limite como leitura performática da própria problemática do Walten como região pré-ontológica
intervalar à diferença ontológica heideggeriana, Derrida escreve:
Or le neutre, ce que Blanchot nomme ainsi, se situe (si du moins on peut parler ici de
lieu et de topologie) avant et au-delà de cette différence qui ouvre et que se trouve
393
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, pp. 178-9. (229-230)
394
LISPECTOR, Clarice. La passion selon G.H. Trad. Claude Farny. Paris, Des femmes, 1998, pp. 229-230
351
ouverte, qui se trouve ouvrir ou ouverte par la possibilité de la manifesteté, de
l’Offenbarkeit du en tant que tel, à savoir ce qui est censé distinguer le Dasein humain
de l’animal. Le Walten produit, porte, effectue, ouvre (tous ces mots sont sans
pertinence rigoureuse et touts inadéquats au Walten), le Walten ouvre, porte, effectue la
différence ontico-ontologique et donc n’appartient encore ni à l’être ni à l’étant. Pas
encore, ce n’est pas une question chronologique de temps, ni une question logique
d’ordre, mais cela désigne une sorte de pré-différence, voire une in-différence á la
différence ontologique, une pré-indifférence néanmoins intéressé à la différence et que
prépare ou précède, hors de l’ordre du temps, de la logique ou de la causalité, la
différence qu’elle n’est pas encore – ou qu’elle est sans être encore. Si c’était une force
ou une violence, elle ne serait rien, mais un rien qui n’est pas rien, un rien que n’est pas
une chose, ni un étant, ni l’être, mais qui force on efforce ou enforce, enforces, dirait-on
peut-être en forçant l’anglais, la différence entre l’être et l’étant. Le Walten ressemble à
ce neutre que n’est ni ceci ni cela, ni le positif ni le négatif, ni le dialectique, qui n’est ni
n’est pas l’être ni l’étant mais au-delà ou en deçà de l’être et de l’étant.
395
É isso que procuramos fazer todo o tempo quando aproximamos esse movimento de uma região
espaço-temporal pré-ontológica numa acepção heideggeriana ou blanchotiana e que Deleuze descreve a partir
de outra estratégia, a saber, de uma espécie de conceptualidade dramática ou uma economia energética dos
acontecimentos tomados como hecceidades numa cartografia dinâmica entre linhas e/ou planos atuais-virtuais.
Ou, de outra maneira, performance, melhor dizendo, pelo trabalho de descrição conceitual-signalética de
potencialidades afectivas, atuantes numa estética da sensação seja na música, na pintura ou no cinema,
devendo aqui termos em mente as diferenças estratégicas ou cartográficas, diríamos, dessa economia de forças
de Deleuze e Deleuze e Guattari quando se trata da literatura, tratando-se - nessa produção e ou economia
crítico-estética do literário - mais de uma signalética da imagem vinculada ao desdobramento expressivo do
signo, do que da concatenação ou interpenetração das figuras ou dos blocos perceptivos agenciados nas
imagens plásticas e ou cinematográficas
396
.
Daí projetarmos para uma cadência entre a imersão nos territórios teóricos afins e a experiência de
interpenetração entre algumas cenas dos textos que vamos teatralizar. Se uma certa linha ou conjunto de linhas
se entrelaçam num espectro teórico desde Nietzsche, Heidegger, Blanchot, Derrida e Deleuze, bem como
outros críticos que se situam nessa convergência dinâmica de perspectivas que chamamos de uma teatrológica
ficcional em Blanchot, é porque mais do que nunca percebemos que poderíamos, ou seríamos obrigados por
uma questão estratégica, a pensar numa figuração desse tour de force da crítica. Vale dizer, articular a
complexidade de uma descrição econômica do imaterial enquanto performance de uma poética do neutro com
a literatura pensada em seu espaço de crise, ou seja, em duas manifestações que percebemos como limites entre
uma obrigatoriedade representacional e a possibilidade dessa representação expressar-se como o próprio limite
dessa crise de “apresentação” de um movimento do pensamento para fora de seu espaço literário “genérico”
diríamos.
Pois como comparar textos se não a partir de suas bordas em erosão permanente, a partir de sua
regiões de atrito e diferença, ali onde poderíamos chegar somente pelo que de semelhante apreendemos como
395
DERRIDA, Jacques. “Maurice Blanchot est Mort”, in: BLANCHOT, Maurice. Maurice Blanchot : Récits
Critiques. Textes réunis par Christophe Bident et Pierre Vilar. Editions Farrago, Tours, 2003. P. 622.
352
regime de uma restância de suas “quase” e infinitas (des)semelhanças? Como comparar textos se não a partir
daquilo que os mantêm juntos somente por suas diferenças, no tempo, no espaço e no trânsito paradoxal de um
a outro? Daí essa obsessão com uma espécie de plástica do espaço-tempo que nomeamos em seu movimento:
teatrológica ficcional ou teatrológica do ficcional, do literário.
Daí que essa teatrológica do ficcional deverá penetrar como no refluxo inflamado de seu sentido
subreptício (o que está entre o enunciado e sua enunciação) na ordem figurativa e incorpórea do movimento
dramático que cabe à literatura em sua expressividade limite. O que chamamos de potência da (in)operância
será justamente, no sentido que buscamos descrever como épreuve crítica, o que movimenta o caráter de uma
liberdade fulgurante da literatura como a compreendemos no sentido blanchotiano e que também lemos em
Clarice, a saber, o espaço da ficção elevada à potência de uma experiência do pensamento que se esgota ou se
desobra (désoeuvre) no movimento infinito de uma contestação atroz sobre o real e que tem em Nietzsche sua
força constitutiva e em Blanchot sua própria poética (do) neutro.
A teatralidade que chamamos maquínica pode repetir o movimento em diferença dessa contestação
infinita e reversível sobre si mesma, assim como o podemos perceber a partir de trabalhos como os de Deleuze
sobre Nietzsche partindo dos conceitos de ativo e reativo ou a partir de um ensaio como “No caminho de
Nietzsche”
397
de A parte do fogo de Blanchot.
Pois é justamente esse movimento de contestação e esgotamento infinito e sem resolução que não seja
eternamente seletiva e a-moral (movimento que descrevem tão bem os sentidos das maquínicas conceituais do
Eterno Retorno e da Vontade de Potência nietzscheanos) que pode repetir a literatura como teatralidade
maquínica de signos ou como pura experiência limite de pensamento, dada por esse mesmo movimento de
instauração de uma diferença repetível (devir mimético da proposição como metonímia do próprio metafórico).
A teatralidade que pensamos aqui tem a ver, nesse sentido, com uma conjunção complexa: a) uma
filiação filosófica dada pelo pensamento de Nietzsche com as teorias críticas no século XX; b) a
expressividade de uma experiência de escritura filiada a Nietzsche (literária e crítica) de Maurice Blanchot; c)
essa expressividade tanto em “a” quanto em “b” também pertence, a seu modo, à obra de Clarice Lispector; d)
em um sentido abrangente essa filiação desenvolve toda uma série de tendências e temas que são expressos por
uma poética do neutro, e que para nós é pensada em termos de uma teatralidade da literatura como resultante
em processo do problema mais amplo do pensamento em sua abertura interminável; e) essa resultante como
matéria incorpórea (que se expressa numa teatralidade) deve ser apreendida em seu movimento
necessariamente relacionado ao trabalho de desouvrement que opera uma poética do neutro sobre o corpo e o
corpus da literatura (semiologia ou energética do movimento dramático no interior da própria teatralidade
ficcional).
O teatral aqui exposto e em processo não é relacionado diretamente a sua semiótica mais funcional,
mas desliza de um modo que chamamos maquínico, em direção ao problema de uma potência do (in)operante.
Pois o movimento dessa “teatrológica” pode de modo paradoxal se exercer enquanto expressividade dos
396
Sobre a perspectiva descritiva de uma economia estética deleuzeana nos apoiamos no livro de
SAUVAGNARGUES, Anne. Deleuze et l’Art. Paris, PUF, 2005.
353
corpos ou dos personagens necessários para se criar a dimensão de complexidade que os temas nietzscheanos
lançaram como contestação e consternação infinitas no plano historial do pensamento.
A contestação infinita que tem lugar na poética do neutro blanchotiana é da ordem dessa leitura dos
problemas contidos no esquema maquínico do eterno retorno e da vontade de potência de Nietzsche. De algum
modo, a paradoxológica blanchotiana tanto nas figurações ficcionais quanto no estilo ensaístico e crítico que aí
se performam provam esse desencadeamento do contestatório infinito da metafísica do nome de Deus em seu
mais absoluto sentido. Essa contestatória infinita que se dá também em Clarice, pôde então para nós ser
pensada como a experiência de uma literatura brasileira da segunda metade do século XX que, em resumo,
experimenta uma literatura pensante, se articulando numa dramática e numa teatralidade que em diversos
sentidos atravessa as mesmas problemáticas que uma poética do neutro também encena tanto no sentido de sua
direção interior ao texto (gramatologia dessa expressividade) quanto em suas linhas de fuga semânticas mais
próprias e que põe em jogo todo o problema do pensamento do próprio impensado ou dos limites do
pensamento que são sondados e teatralizados pelo que chamamos de épreuve crítica ou experiência da
literatura como pensamento dramático do real enquanto (in)forme absoluto do real enquanto “plano de
imanência”.
Uma performance sobre a potência do fragmentário (épreuve das cenas nos dois textos tematizados de
Clarice e Blanchot) se impõe como necessidade para a movimentação dos efeitos da própria potência
(in)operante de um conceito de teatralidade da literatura, pois esse conceito do fragmento pode aceder à
complexidade do movimento de repetição e diferença que caracteriza a maquínica nietzscheana do eterno
retorno enquanto seleção “a-tópica”, “a-temporal” , “a-moral” e paradoxal do movimento que é possibilitado
pela eclosão do intervalo que realiza a existência como pontualidade aiônica de uma diferença ontológica no
seio do devir (Uni-verso do real enquanto plano de imanência).
THOMAS:
“Thomas s’assit et regarda la mer”. “Thomas senta-se e observa, (olha, vê) o mar”.
Como traduzir “regarda”? Como escolher por uma ou outra palavra que possa fazer a
passagem de um signo a outro na mesma referência alegorizada? Talvez nessa pergunta
resida muito do que procuramos fazer ressoar até agora. Pois há uma força de decisão que
manipula (modula o gesto das mãos sempre junto à evocação da idéia) a própria potência
397
In: BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Trad. Ana M. Scherer. Rio de Janeiro, Rocco, 1997, p. 276.
354
do (in)operante, essa região temporal onde se dão as coisas do mundo, seus gestos e suas
atribuições no devir.
Não estará aí a imagem que gostaríamos de dar de uma teatralidade maquínica da
literatura? Vale dizer - e lembrando agora a importante nota do projeto de livro de Barthes
(Vita Nuova) que recolocamos ou redistribuímos como epígrafe no início desta segunda
parte – que tentamos explorar (exploiter, e não explorer, como diz Barthes em seu “Les
sorties du texte”, sobre Bataille) fazer a usura e o gasto ou desgaste dessas imagens
literárias que pairam no limite de sua própria gestualidade ficcional, pois desse modo,
nessas franjas do real,essas imagens justamente se aproximam de uma reverberação
corpórea, dada pelas imagens dos personagens e de seus atos atraídas muitas vezes a
movimentos corpóreos e que em torno a Thomas percebemos a imagem de nossa
(in)operância teatrológica da literatura, ou em outra palavras, percebemos a encenação ou
a teatralidade do que Christophe Bident chama em seu texto “Les mouvements du neutre”,
Poétique du Neutre.
Se “la mer” é feminino, nosso mar em língua portuguesa é masculino. Qual a
diferença quase imperceptível, pois sempre já atraída para o espaço do habitus a-
fundamentado e absolutamente constituído dessa imagem de mar masculina que se tem em
língua portuguesa, que poderia ser instalada nessa tradução? Essa diferença se perde numa
infinidade de efeitos que se transbordam uns aos outros, fazendo toda imagem nesse texto
reinventar-se na semelhança impossível de sua tradução e mesmo assim isso é possível (no
Anexo da versão completa desta tese encontra-se a nossa tradução de Thomas l’Obscur). Aí
também vemos uma ação (in)operante, calcada nessa potência da vontade que Heidegger
discerne como um combate entre o desenvolvimento do natural e a passividade do círculo
do possível e a gestão de uma impossibilidade no seio da técnica, esta reverberação do
artificial que leva o homem ou a cultura a se estabelecer como uma resultante de força
(in)operante, de desgaste exacerbado e produtor desse impossível que é excesso e que
Barthes pensa como a imagem mesma entre o escrever e a inoperância, entre l’Écrire e
l’Oisivité.
O corpo se gesticula pela grafia e pela estilização da palavra. Há aí toda a
complexidade que se desdobra do (in)operante e que uma teatralidade da literatura deveria
355
poder assumir como compromisso (im)possível ou como uma “responsabilidade infinita”
como diria Emmanuel Levinas. Barthes surgiu para nós - ou ressurgiu - como o produtor
dessa gramatologia semiótica do corpóreo enquanto imanência da literatura (Derrida,
Barthes, Nancy, Deleuze). Nos demos conta (“Eu-eu” e meus “outros eus” que escrevem
esta tese, pois cada um desses “eus” se imiscua ao estilo e aos traços das matérias
desobradas por esses pensadores, se aproximando e se distanciando, se espaçando nessas
órbitas), nos demos conta do trabalho de descrição elaborada e em progressão que faz
Barthes sobre o corpo em relação a sua imanência própria transvalorada na matéria
textual ou literária. Foi o que procuramos explorar a partir da sua leitura de Bataille. Pois
esse problema da leitura e da escritura literárias não pode mais ser pensado sem acesso a
uma movimentação invaginada que ocorre numa espécie de atitude da escrita, de
gestualidade do literário que contemporaneamente não se dissocia mais de uma idéia
energética do estético.
Uma poética do neutro é uma teatralidade do (in)operante enquanto gesto literário.
Thomas não deixa em nenhum momento de se desobrar em suas andanças. Ele se desobra
quando olha, quando caminha e quando pensa, aí mais do que nunca pois o pensamento é
o espaço de imanência do désoeuvrement. Uma teatralidade do (in)operante é o próprio
trabalho dessa voz narrativa que performa e dramatiza o sentido em deslize da poética do
neutro que encena Thomas e Anne e todos os fantasmas que escorregam entre suas cenas.
Eis o limite que paradoxalmente não pode ser ultrapassado sem um retorno imediato a sua
pulsão de transgressão, pois o (in)operante é uma espécie de dívida sem credor ou a
imagem de um puro dom como doação sem crédito que se impõe ao humano (Dasein) como
sua eclosão no seio do intervalo (existência).
Eclosão do existente em sua finitude possível e em seu gesto ou em sua teatralidade
existenciária, corpórea, no interior dessa dobra que é o devir do próprio intervalo (a
temporalidade do espaçamento que é e devém corpo-corpus no mundo) onde se realiza
inexoravelmente o desdobramento de sua mais secreta e imanente (in)operância. Pois não
se trata, nesse sentido, de um desobramento como potência de uma (in)operância do
literário, do sentido de moral nem de ética relacionadas aos movimentos de um corpo no
trajeto de sua existência no intervalo, senão de uma situação mais sutil e mais grave porém
também possivelmente mais leve e alegre (dessa alegria de dançarino de Nietzsche e do seu
356
“Gai Savoir”) que entorna essas relações concretas e/ou coletivas, é que para nós pode-se
observar na relação limite do homem com sua própria voz e com as vozes que lhe entornam
umas as outras, que lhe envolvem “finalmente” mas apenas nesse “durante” de sua
existência, ou seja, no devir do intervalo no qual dá-se como dom sua significação mais
própria, e na qual ou diante da qual essa doação incondicional é percebida em sua própria
existência no intervalo, no circuito (in)operante de seu processo.
Sem mais onto-teleo-logia para fixar uma rota predeterminada dessa infinitude que
nos cerca e na qual coexiste nossa própria eclosão no seio do intervalo, nos referimos à
literatura como região ou território da promessa de um alegre saber sobre o intervalo e sua
passagem. Uma “miraculosa” (acontecimento sem explicação racional como a própria
existência, surgida como dom, sem sentido e, contudo, pro-eminente, in-cidente e e-minente,
pois pode acontecer em qualquer lugar ou tempo) potência de criação daí pode ter lugar e
irreprimir o próprio dom, fazendo ressoar e vibrar em outras paragens os traços que se dão
no decorrer da eclosão.
Nem tudo são flores e a potência própria do (in)operante também deve fazer ressoar
os percalços que “maus encontros”(Deleuze com Espinoza) permitem fazer surgir. A
literatura, especificamente em Thomas, essa perspectiva da variação entre os bons e os
maus encontros, encontra uma espécie de regulação neutra.
O dolorido e o angustiante são remetidos às fontes de sua origem (um gesto ou um
movimento que traz a história do arranjo do evento bom ou ruim - por exemplo, os eventos
no cinema envolvendo Irene, personagem que desaparece na segunda versão de Thomas -
desse sorriso ou dessa lágrima, ou da frieza inabalável de uma situação tornada anônima
pela própria falta de seu arranjo ou a presença figurada de seu acaso) ao mesmo tempo em
que um movimento de forças relativizadoras e a instauração de todo um movimento
paradoxológico devolve a essa organização de forças e de seus arranjos algo de uma
condução que quase se apropriaria do devir (é dessa imagem de apropriação que se trata
na literatura, da impossibilidade dessa apropriação e da força que essa mesma
impossibilidade dá à teatralidade literária em Thomas sua expressividade em difusão e em
processo aporético) não fosse a impossibilidade fática desse acontecimento, pois o que é
possível é a apropriação de um devir literário sempre igual mas em deslocamento a um
357
suposto devir fático. Essa apropriação do devir “é e não é”(força do paradoxo) apropriada
no próprio devir, pois em certo sentido o acontecimento da leitura devolve ao devir da
escritura uma imagem de seu porvir já prometido (exatamente como dom, sem prova, sem
necessidade de contrapartida, apenas lançamento no devir) no ato imponderável e
inominável de sua eclosão no acaso, mais ou menos como ocorre na eclosão da existência
no seio do intervalo.
Nessa força paradoxal que coexiste tanto na literatura quando na vida fática,
potência da eclosão do acaso na forma de uma apropriação casual no devir (lembramos a
leitura de Barthes sobre o problema do olhar, em “Droit dans les yeux”), aí nos
instalaremos para uma possível descrição dessa amplitude (“amplitude”, pois o olhar é
uma relação, uma posição intervalar, onde uma significação não tem a unidade do signo e
por isso mesmo é significância) que é o olhar na experiência ficcional de Thomas.
Un signe, c’est ce qui se répète. Sans répétition, pas de signe, car on n’est pourra le
reconnaître, et la reconnaissance, ce c’est que fonde le signe. Or, dit Stendhal, le regard
peut tout dire, mais il ne peut se répéter textuellement. Donc le regard n’est pas un signe,
et cependant il signifie. Quel est ce mystère. C’est que le regard appartient à ce règne de
la signification dont l’unité n’est pas le signe (discontinu), mais la signifiance [...] En
opposition avec la langue, les arts en général relèvent de la signifiance. [...] Dans la
signifiance, il y a sans doute quelque noyau sémantique assuré, faute de quoi le regard
ne pourrait vouloir dire quelque chose : à la lettre, un regard ne saurait être neutre, sinon
pour signifier la neutralité ; et s’il est vague, le vague est évidement plein de duplicité ;
mais ce noyau est entouré d’un halo, champ d’expansion infini où le sens débord,
diffuse, sans perdre son impression (action de s’imprimer) : et ce bien ce qui se passe
quand on écoute une musique ou contemple un tableau. Le « mystére » du regard, le
trouble dont il est fait, se situe évidement dans cette zone de débordement. Voila donc
un objet (ou une entité) dont l’être tient à son excès.
398
Thomas s’assit et regarda la mer. Pendant quelque temps il resta immobile, comme s’il
était venu là pour suivre les mouvements des autres nageurs et, bien que la brume
398
Cf. BARTHES, Roland. Oeuvre Complètes, V. Paris, Seuil, 2002, p. 353. Gostaríamos de poder fazer surgir
a idéia de que em Thomas l’Obscur particularmente, mas em todo o corpus blanchotiano, esse excesso nos
parece ser da ordem da potência da (in)operância. O que excede é o próprio movimento do neutro, que
chamamos em outro lugar de sur-époché. Caberia a uma épreuve crítica fazer ressoar esse movimento sem
representá-lo, ou seja, procurar acompanhar o movimento sem amarrá-lo numa proposição dominante ou
indiscreta que não soubesse fazer desmedida desse excesso que excede a si próprio e não uma referência
exterior a seu caráter ôntico (expressividade de um estilo) e sua significância ontológica (a reunião dos efeitos
de estilo e de reverberação semântica e filosófica na experiência dessa poética). Esse “acompanhamento” é o
que procuramos fazer neste trabalho, criando aqui e ali linhas de fuga que possam fazer derivar uma outra
(in)operância em relação aos textos-cena tematizados, já não apenas referenciada a um telos “originário” em
relação ao qual coexistiria um suposto monumentalismo do corpus dessas obras (clariciana e blanchotiana),
mas procurando, de outro modo, tornar-se nesse acompanhamento um espaçamento e uma temporalização de
uma (in)operância intervalar e fragmentária dos textos em sua iterável deriva.
358
l’empêchait voir très loin, il demeura, avec obstination, les yeux fixés sur ces corps qui
flottaient difficilement.
399
Deslocando-nos um pouco do que nos informa Barthes e procurando performar essa
semiótica do olhar que ele nos apresenta, diríamos que essa cena inaugural de Thomas
l’Obscur poderia ser pensada como a instauração de uma significância (este desobramento
da significação em que (se) teatraliza a literatura) que começa desde o princípio se
instalando em um movimento de assentar-se, ou de (in)operar-se (ao menos no sentido de
uma ação mais contemplativa) para em seguida “começar” a fazer algo que propriamente
não desenvolve nenhuma ação (o olhar que em seu movimento atrai toda a ação para sua
imobilidade centrípeta, para o fascínio que lhe é próprio) e que, contudo, faz deslizar uma
totalidade tão vasta e infinita em seus movimentos (o mar enquanto potência de fluxos
inumeráveis, elevados a uma complexidade aleatória) que têm por um outro viés, diríamos,
uma sobre-potência em relação a Thomas, vale dizer, uma força feminina, “la mer”, sua
oposição complementar e suplementar, seu jogo de diferenças ainda mais uma vez
sobredeterminado na extensão dessa imagem, no espaçamento desse mesmo olhar o qual
designa a indeterminação e os “limites” ontológicos que coexistem na imagem dos corpos
ao longe; nesse perigoso movimento de um nadar dos nadadores em meio ao mar por mais
próximos que estejam da costa.
Movimento que se dá no intervalo móvel do próprio movimento dos nadadores, que
flutuam e afundam ao mesmo tempo a partir do esforço ritmado sobre o fluido e caótico
vibrar de uma atividade (in)operante do corpo, e justamente por ser indispensável nessa
sinestesia (corpo que nada, e que exerce propriamente essa relação intervalar com seu
meio, meia profundidade e meia superfície atualizadas na dinâmica de seu próprio
movimento) exercendo um esforço que em sua falta torna-se a própria fatalidade na
imersão decisiva do possível afogamento, e pela morte, se instaurando para fora do
intervalo, ou em direção a essa “outra noite” como o a nomeia Blanchot constantemente.
399
BLANCHOT, Maurice. Thomas l’Obscur. Paris, Gallimard, 1950, 2005, p. 9.
359
O QUARTO (a cena do luto):
Thomas deverá passar por muitas provas e em cada uma delas ele e “nós” não
saberá/saberemos verdadeiramente porque ele deveria ter coexistido nessas ações ou se
elas realmente puderam ter tido lugar, apesar de que esse fato não pode ser posto em
dúvida. É um dos efeitos da teatralidade em que se criam os efeitos paradoxais da voz
narrativa que narra os movimentos de Thomas. Como em um sono sem sonhos e, no
entanto, sem ter perdido nunca a consciência, Thomas coabita uma relação de atração e
espanto, de repulsão e tranqüilidade com Anne.
C’est dans cet état nouveau que, se sentant devenir elle même une réalité énorme et
incommensurable dont elle nourrissait son espérance, á la manière d’un monstre dont
personne, pas même elle, n’aurait eu la révélation, elle s’enhardit encore et tournant
autour de Thomas, finit par attribuer á des motifs de plus en plus faciles à pénétrer les
difficultés de ses relations avec lui, pensant par exemple que ce qui était anormal, c’est
qu’on ne pût rien savoir de sa vie et qu’il restât, en tout circonstances, anonyme et privé
d’histoire.
400
Thomas se vê em torno a Anne e Anne começa a adoecer. Mas eis que essa doença é
tomada como um espasmo de outra natureza ligado de forma irredutível à singularidade
única de Anne e que, antecedendo a destinação obstinada e incontornável da morte, esse
estado soberano (pois a soberania é tomada aqui em seu sentido limite, na transvaloração
de sua idéia política, vale dizer no sentido da potência aberta do “não saber” e que pode
aceder à existência como humildade da consternação no seio da experiência-limite, ou
ainda em outro sentido, e aqui aproximando da experiência de G.H., a paixão como
vertigem e delírio do agônico é experimentada até seu esgotamento sem comiseração e
advindo dessa estranha resolução, torna-se a experiência de uma potência neutra,
(in)operante. Essa cena é exposta no gesto inevitável de expressividade originária, que
teatralizaria a atmosfera própria do destino incerto que em Anne se expõe como o
prenúncio de uma convalescença poderosa e impossível.
Quand on la découvrit étendue sur un banc du jardin, on a crut évanouit. Mais elle
n’était pas évanouie, elle dormait, elle était entrée dans le sommeil par un repos plus
profond que le sommeil. Désormais, sa marche vers l’inconscience fut un combat
solennel où, ne cédant au frisson de l’assoupissement que blessée, déjà morte elle
défendit jusqu’au dernier instant son droit à la conscience et sa part de pensées claires. Il
n’y avait aucune complicité entre elle et la nuit. Dès que le jour baissait, écoutant
400
BLANCHOT, Maurice. Thomas l’Obscur. Paris, Gallimard, 1950, p. 56. (443)
360
l’hymne mystérieux qui appelait vers une autre existence, elle se préparait à la lutte où
elle ne pouvait être vaincue que par la ruine complète de la vie. Les pommettes rouges,
les yeux brillants, calme et souriante, elle rassemblait ardemment toutes ses forces. Et le
crépuscule avait beau lui faire entendre son chant coupable, c’est en vain qu’à la faveur
de l’obscurité un complot s’ourdissait contre elle. Aucune douceur ne pénétrait dans son
âme par la voie de la torpeur, nul simulacre de la sainteté qui s’acquiert par le bon usage
des maladies.
401
Essas passagens movimentam os três últimos capítulos do relato e levam a cena final
a um quarto aparentemente tornado o leito estranhamente fúnebre onde terminará a
história, quando, de um momento para o outro, no curso dos últimos dois episódios, já não
se tem muita certeza (mesmo que se saiba que Anne está morta) da existência ou não da
morte nesse espaço ou mesmo se a morte pode efetivamente ter lugar em algum momento da
existência de Anne ou de qualquer outra existência.
E é importante notar que não se trata absolutamente na história de Thomas de
nenhum gesto de crença religiosa ou de qualquer aposta transcendente de uma vida após a
morte. É da própria impossibilidade de se atravessar a morte permanecendo de posse de
qualquer experiência que se trata, e nesse limiar, se encena a elaboração de uma
multiplicidade de imagens que a um só tempo elaboram a empiria impossível de uma
espécie de teatralidade paradoxal própria do relato obscuro e neutralizante em que são
narrados os acontecimentos em torno a Thomas.
Como veremos em G.H, o quarto é um espaço importante na economia dessa
experiência-limite. É o reduto simbólico da intimidade do indivíduo e onde nos
aproximamos desse campo de forças onde a densidade e o mistério da noite ou da “outra
noite” pode ser presenciado sem, contudo, poder ser nomeado ou decifrado.
É no leito de morte crivado no espaço solitário do quarto onde pode ter lugar à cena
em que a própria morte se teatraliza e se descreve em uma espécie de paixão inominável,
estertor e colapso último de uma existência. É nesse espaço de convalescença esgotada,
portanto, que ocorre a descrição impossível da própria chegada, da entrada e da
posteridade da morte. Anne vacila aí entre um acima e um abaixo de dois mundos
superpostos. E é nesse intervalo ou na eclosão desse intervalo, é nesse espaçamento
carregado de imagens vacilantes que se pressupõem e se desobram umas às outras, que um
401
Op. Cit., p. 80. (451)
361
outro nível oriundo do próprio ritmo do relato faz com que Thomas se interponha a seu
próprio intervalo. Lado a lado à impossibilidade desde então de acesso à Anne, como a
instauração de uma coadjuvância sem fim, ele parece até desaparecer por algum tempo sob
os traços de uma experiência sem limite e sem testemunho, qual seja, a da percepção de
Thomas sobre a morte e a própria impossibilidade do relato da morte enquanto tal.
Lorsque Anne fut morte, Thomas ne quitta pas la chambre et il parut profondément affligé.
Cette douleur, à tous ceux qui étaient là, causa un grande malaise et ils eurent le
pressentiment que ce qu’il se disait à cet instant préparait un drame dont la pensée les
consterna. Tristement, ils se retirent et il resta seul. [...] Corps sans consolation, elle
n’entendait pas la voix qui demandait : « Est-ce possible », et personne ne songeait à dire
d’elle ce qu’on dit des morts sans courage : [...] elle dort. Elle n’est dormait pas. Elle n’était
pas changée non plus. Elle s’était arrêtée au point où son visage, n’ayant que l’expression
d’Anne, troublait les regards. Je lui pris la main. Je posai mes lèvres sur son front. Je la
traitais comme une vivante et, parce qu’elle était la seule morte ayant encore une visage et
une main, mes gestes ne semblaient pas insensés. Avait-elle donc l’apparence de la vie ?
Hélas ! tout ce que l’empêchait d’être distinguée d’une personne réelle, c’est ce qui vérifiait
son anéantissement. Elle était toute en soi dans la mort, surabondant de vie. [...] dans sa fin,
elle semblait avoir besoin de plus d’être et, morte justement de ce surcroît qui lui permettait
de se montrer tout entière, elle donnait à la mort toute la réalité et toute l’existence qui
formaient la preuve de son propre néant.
[...] Car mourir, telle avait été sa ruse pour donner au néant un corps. Au moment où tout se
détruisait elle avait créé le plus difficile et non pas tirer quelque chose de rien, acte sans
portée, mais donné à rien, sous sa forme de rien, la forme de quelque chose. L’acte de ne pas
voir, avait maintenant son oeil intégral. Le silence, le vrai silence, celui qui n’est pas fait de
paroles tues, de pensées possibles, avait une voix. Son visage de instant en instant plus beau,
édifiait son absence. [...] C’était vraiment la nuit.
402
Eis o desobramento acolhido no interior mesmo da própria imagem da morte,
Thomas enuncia, pelo desvio necessário de sua voz solitária, a aforística paradoxal que
escava a (im)potência vertiginosa do neutro. Essa (in)operância é o próprio espaço do
intervalo de uma ascese impossível, e sua figuração pode ser a do rosto cadavérico que não
realiza em Thomas mais nada (talvez um traço sublime da ausência?) que não fique retido
entre a consternação e o vazio que a origina. Esse lapso pode ser pressentido como uma
estranha força que impede o corpo de Anne de ser simplesmente esquecido em prol de uma
reverberação transcendente, impede esse corpo de ser simplesmente substituído por uma
idéia levíssima e improvável da alma que não seja o desdobramento desse próprio corpo, de
sua efervescência e metamorfose ou do peso próprio que é a marca imanente da nova
402
Op. Cit., p. 99-102. (458-59).
362
inexistência que aí se encarna e se apresenta dúplice, fecundo e efêmero como o vazio de
minha própria afeição, a estranha dor desse luto se realiza na premonição de meu lugar no
seio desse espaço comum e atraído ao movimento do irrevogável.
Nessa (in)operância que realiza o luto de Thomas, o sentido está duplamente em
retirada e mais uma vez é pressentido como a voz silenciosa que se eleva teatral como uma
invisibilidade atuante.
A morte de Anne não se expõe ao sentido de uma esperança transcendente, acessada
pela pacificação lenta, sofrida e mortuária do luto. O luto, que é encenado no fim do relato
de Thomas, realiza o atravessamento da própria morte pela impossibilidade de se chegar a
termo nessa experiência absoluta do outro, e na retirada perene de toda possibilidade de
acesso à imensa implosão do sentido que pode significar o desaparecimento do outro, pelo
sentido fundante que este faz incidir sobre minha própria possibilidade e singularidade em
meio a quem dependo pela figuração em negativo do que se realiza pelo psiquismo dessa
diferença constitutiva.
“Eu é sempre um outro”e eis que, na morte, esse outro não retorna, crivando-se em
sua mais autêntica presença ao corpo de minha afecção mais constitutiva, fixando em mim,
pelo tempo desse luto, a ausência sempre aquém e além de mim mesmo, espaço de
realização de minha existência, tempo de meu intervalo e retorno periódico da repetição
que funda na diferença entre cada um a existência enquanto faticidade de uma comunidade
inconfessável.
363
G.H.:
G.H. é a sombra móvel de um corpo-corpus, assim como Thomas também o é. Mas
essa sombra não é orgânica senão o efeito signalético e cinestésico que possibilita a
linguagem poética ou a linguagem literária.
G.H. é apenas o traço volátil e incorpóreo de um corpo que retira sua força de uma
difícil sutura na extensão do tempo. A sombra que se entifica na linguagem e articula sua
entropia pelo signo, deve encenar sua perda, sua falta e sua imaterial consistência
ficcional.
Se a poesia é a instauração de um clamor que se materializa na imaterialidade da
imagem do poema e retira sua força de seu decrescimento e de sua ritmada decrescência no
seio do perecível, se essa (in)operância da poesia é a verdade de sua existência assim como
a finalidade de sua eclosão, a prosa é uma espécie de cadência onde o corpo se entremeia
ao poético na feitura e no abscesso que institui o corpus da obra.
A teatralidade que se dissipa necessariamente no intervalo entre a prosa e o poético
que imaniza a sombra que é G.H. é um conjunto de imagens que se coadunam sem duração,
pois não podem pertencer a mais que um feixe de durações e em cada um desses feixes,
destronar qualquer outra apresentação das imagens que já não lhe pertença por direito,
atrelada à leitura de seus fragmentos.
Essas sombras que se evadem e retornam feitas entidades impossíveis, devem
retroceder até sua origem pela força de sua própria voz, voz que duplica a própria sombra,
na instalação do enunciado. Narração da voz e da sombra, G.H. se dissipa em si mesma
quando se refere constantemente a seu próprio retorno (im)possível. Mas se o retorno é
incerto é apenas porque a voz se mantém no infinito de sua promessa. Promessa do signo e
da cadência, pressentimento da forma e da força que aí se instala imprópria, heteróclita
por constituição.
G.H. não existe e no entanto é repetida muitas vezes de forma real pela voz dúplice
de seu acaso, acaso falsamente existente, pois já atribuído a outro acaso anterior, não mais
verdadeiro, mas apenas outro, antecedido por sua própria imagem, por sua contingência
corpórea, pela voz que se prometia na existência de sua própria ficção.
364
G.H. é a própria existência do signo, é a artimanha na qual o real se faz visível e
escorregadio, metaforicidade impermanente da ficção, na qual a voz permanece sem
promessa, mas pressentida como esquecimento tardio. Assim como em Thomas, com outro
timbre de voz, em outra acepção das imagens.
O ser da sombra é o mesmo ser que permanece falível na origem do seu corpo e na
finalidade do seu corpus, instaurando em toda a extensão do fragmentário seus próprios
fragmentos feitos de composições de signos, na correnteza signalética de seus efeitos
dispersos tanto na escritura quanto na leitura.
Esse ela, G.H. no couro das valises, era eu; sou eu – ainda? Não.
403
A uma teatralidade das ações de G.H. corresponde, sem promessa absoluta de êxito,
uma teatralidade das ações de Thomas. A voz de G.H. pode existir também fora de seus
travessões, sendo apenas sombra de voz, e como sombra, nessa vizinhança indiferente,
totalmente real, duplicada pela origem fática de sua eclosão necessária e depositária no
porvir de um rastro obtuso, de sua própria morte vindoura. A voz de Thomas também é
sombra quase sempre presa aos travessões, mas muito rara e podendo existir ou não,
dependendo de seu lugar de aparição e das formas de sua emergência, do anúncio de sua
impossível presença real que não desdobre seu constante esgotamento.
A teatralidade que se impõe como vozes dúplices em G.H. deve ser como a relação
de ligação (le rapport de liason) entre o poético que se descola da objetividade significativa
da linguagem (a eclosão da (in)operância) e a cadência narrativa da própria voz em sua
duplicidade narradora.
O poético observa como se estivesse fora da linguagem, mas ele está
intrinsecamente dentro do ritmo que permanece como sendo a própria eclosão do intervalo
(existência), sua promessa e sua finalidade sem sentido, seu meio, seu entre e sua
impossibilidade de realidade que não reflua na inconsistência de sua materialidade, ou, na
lei entrópica do seu desígnio imaterial.
O prosaico é a observação da promessa da imaterialidade, sua atração ao poético
vinga a indeterminação que coexiste indelével à designação da lei entrópica do imaterial da
365
ficção, do incorpóreo que é a sombra da voz narrativa instituído na eclosão dentro do
intervalo de outro intervalo que é a série feita na imagem da cena em que coexiste G.H. e
sua voz narrativa.
A literatura-limite se dá como voz teatral em prosa-poética.
O estilo se refere sem promessa absoluta ao encapsulamento momentâneo da
vontade na forma expressiva da voz narrativa repetida pelo signo e sua potência frasal. O
estilo não existe em si, apenas para-fora-de-si. O estilo é um desdobramento do corpo pela
expressividade de um corpus na extensão da duração que cabe ao corpo em sua eclosão
intervalar. O estilo não é nada, é antes movimento e desgarramento progressivo da energia
corpórea encapsulada numa organização efêmera que coexiste à lei entrópica do desígnio
de uma finalidade sem sentido, pois apenas promessa de sua passagem, pressentimento
inominável, sua finitude.
G.H. é o corpo de um estilo, ou seja, a sombra de uma voz narrativa, seu
desdobramento possível, sua variabilidade no seio do intervalo, a eclosão de outro intervalo
como potência e (in)operância repetida na cadência intervalar que é a ficção. Ou seja, sua
disposição de coexistência ao entrópico do desígnio da finitude, a própria situação de uma
reverberação expressiva do corpo, sua finalidade e imagem deslocada da infinitude que
problematiza e reivindica o próprio da degradação e da sobrevivência, refluxo incorpóreo
da entropia como estado anterior de sua finalidade mais própria. Porque a entropia é um
processo e não se confunde nunca plenamente com seu desígnio de finalidade e finitude.
O Quarto (a cena da ausência do outro como ausência de si):
Unheimlich, Inquiétant étrangeté. Familiaridade inquietante é, pelo sentido
precisamente ambíguo ou em “double bind” que carrega esse termo, aquilo que descreveria
a sensação de G.H. quando entra no quarto da empregada. E poderemos talvez dessa cena
403
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 32, « Cette femme, G.H.
dans le cuir des valises, c’étais moi. Suis-je encore moi ? Non. »
366
tirar algumas considerações ou sinais de uma operação cartográfica sobre alguns afectos
bem expressivos de G.H.
Mas ao abrir a porta meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico.
404
Os olhos se contraem num movimento de reverberação e fisicamente o corpo é
tomado de um “desagrado”. Seis meses sem entrar no quarto, G.H. se depara com um
quarto arrumado contrariamente a sua expectativa de encontrar um espaço escuro, sujo e
desarrumado. Uma luz a ofusca, seus olhos se franzem novamente. Inversão das
expectativas, um acontecimento progressivamente irá inaugurar em instantes toda a
experiência limite que provará essa sombra narrativa, hibrida e esquiza que é a
protagonização dúplice de G.H.
Esperara encontrar escuridões, preparara-me para ter que abrir escancaradamente a
janela e limpar com ar fresco o escuro mofado.
405
Há uma espécie de inversão ou de desestabilização do sentido habitual e cotidiano
de uma percepção moral. G.H. já desde o início confessa ter que descrever um
acontecimento limite. Um dia solitário e sem a empregada no apartamento a faz perceber-
se em um estado de constante desejo às vezes transgressivo (quando, por exemplo, joga o
filtro do cigarro pela janela do prédio) de experimentação do vazio e da solitude, mas
também num sentido gozoso, de estranhamento e divagação auto-reflexiva. Encontrar um
quarto arrumado a faz surpresa ao invés de contente, pois a empregada que fora embora e
vivera ali, teria se “apossado” inclusive, da própria “desorganização” (e esse dado sendo
já uma posição de desvio da norma, ou da doxa, introduzindo uma excentricidade na
personagem) ou vocação de armazenagem que teria para G.H. aquele espaço.
Veremos em outro momento que essas posições morais “excêntricas” de G.H. se
transformam e se abandonam à radicalidade do “acontecimento limite do Neutro” - da sur-
époché que se instalará no centro disperso, esvaziado e agônico de G.H. - indicarão pouco
404
Op. Cit., p. 37. (57)
405
Idem.
367
a pouco em seu desdobramento, uma relação com uma figura extásica reincidente e que
elabora em sua própria figuração a singularidade de um embate entre uma cena
unheimlich”e a propriedade de elaboração de uma espécie de egologia como
autobiografia paródica
406
.
Da porta eu via agora um quarto que tinha uma ordem calma e vazia. Na minha casa
fresca, aconchegada e úmida, a criada sem me avisar abrira um vazio seco. Tratava-se
agora de um aposento todo limpo e vibrante como num hospital de loucos onde se
retiram os objetos perigosos.
407
O vazio e o estranhamento são indicados pela hiperbólica imagem expressa pela
expressão “como num hospital de loucos onde se retiram os objetos perigosos”. Exílio e
loucura podem se agregar inicialmente à cena da entrada de G.H. como índices pontuais do
desregramento e da experiência do neutro que se condensará pouco a pouco até o estertor
de uma relação absolutamente agônica com o impensado de um absoluto da imanência
extravagante da vida.
A cena do neutro começa então a se constituir em certos índices que se elaboram
como a construção desse espaço como lugar “fora do eixos”, instauração de uma topologia
do estranhamento, espaço do fantástico que se realiza numa articulação realista. Nesse
406
Pensamos numa autobiografia paródica como tensão de uma egologia e de uma experiência de unheimlich
nos inspirando na leitura de Claude Morali sobre Freud e o conceito de “inquiétant étrangeté”, pois a cena
unheimlich é descrita no mesmo movimento de sua inscrição como escritura limite de um acontecimento
radical de despersonalização no quadro de uma paródia generalizada sobre as escrituras bíblicas. O paródico é
em G.H. o acesso pela forma da transgressão; inversão semântica de vários enunciados de uma cena que
chamamos trans-histórica, pois elaborada na tradição da escritura judaico-cristã e instituidora de uma
verdadeira maquínica conceptual metafísica sobre o sentido da existência. O próprio conceito de um caráter
“demoníaco” é em G.H. uma elaboração teatralizada e paródica de uma imanência como forma de acesso ao
evento do neutro enquanto região agônica limite do impensável e que deverá, no decorrer do relato, ser descrita
como mergulho na potência do (in)operante no sentido de entrada numa espécie de ética da desistência e do
abandono de si como realização catártica de compreensão ou de desapego de pulsões “narcísicas” mal
elaboradas. “E o neutro era a vida que antes eu chamava de nada. O neutro era o inferno”. (Op. Cit., p. 85.
(113).
407
Op. Cit., p. 37-8 (58) A tradução não repassou a marca da expressão “hospital de loucos”. Traduzindo
expressão por chambre d’asile”, desvia-se o sentido e perde-se sem dúvida a força semântica que essa
expressão carrega, justamente por ser usada no lugar da palavra “hospício” que traduziria a idéia denotada de
forma mais econômica. Hospital de loucos parece para nós se remeter de forma hiperbólica a todo o processo
de “unheimlich” que desencadeará a experiência limite de G.H. e que procuraremos desenhar em alguns
movimentos de sua cartografia quanto ao espaço do quarto da empregada que foi embora, o espaço sui generis
dessa ausência do outro dentro da casa da própria personagem. A ausência do outro e a redescoberta de sua
estranha plenitude como diferença absoluta a si, pode levar a uma entrada numa plenitude traumática de
percepção autobiográfica da própria existência.
368
momento também, como em vários outros momentos, G.H. é descrita em sua percepções
como se figurando num vai e vem em relação aos objetos a sua volta, transposição de uma
diferença ontológica dada pelo efeito de subjectilidade constantemente reiterado pela
escritura clariciana. Se há uma fenomenologia em G.H. ela é sua própria impossibilidade
pois seu traço é dissipado na referência do olhar que migra de um lado a outro de sua
potência perceptiva. O estranhamento transtorna as posições do sujeito em sua própria
referência, tornando o espaço do quarto relação indecidível desde seu ponto de vista
exterior e ao mesmo tempo internalizante à cena que compõe sua dramática constituição.
Essa voz dúplice que se relata a si própria como cindida e referida a um inexplicável
constantemente enunciado é a própria maquínica teatralizante que figura a intensa e
metódica aproximação ao impensável do neutro da vida que G.H. associará ao espaço
paródico do inferno como acesso limite ao âmago da experiência do neutro.
Diríamos que essa é a estratégia de acesso ao neutro em G.H., ou seja, pelo
movimento paródico e teatralizante de uma dramática da experiência extásica dada na
forma de uma prolixidade barroca e de um uso poético da prosa, da repetição cadenciada
como encadeamento rítmico dos parágrafos criando um efeito de aceleração e de atração
entre cada uma das cenas, ou cada um dos atos desse relato que teríamos a tentação de
chamar egológico negativo.
A luz, por exemplo, é a energia que transtorna nessa cena o sentido doxal do
desconhecido como escuridão e penumbra, desorganização e promiscuidade. A secura e a
limpeza do ambiente criam a imagem de um despossuimento radicais e de uma entrada no
infinito pela via do branco e da claridade extremas, a cegueira pela claridade e a
experiência do ofuscamento, eis a extase e a forma que o paradoxo toma em G.H. e que
culminarão na imagem do neutro enquanto espaço infernal de uma imanência absoluta da
vida como despersonalização extremas. Diluição do intervalo na continuidade infinita do
tempo. A imagem do neutro em G.H. poderia ser pensada como a instauração de uma
“deflexão” do descontínuo, espaço de existência da eclosão do intervalo, situação de
qualquer modo insuportável e tornada possível apenas como alusão e poética do neutro.
Aquilo que podemos experimentar quando Thomas entorna a experiência neutra fantástica
da “morte” de Anne, quando nessas imagens, pelo recurso singularíssimo da
paradoxologia blanchotiana a uma sur-époché, é exercida no modo da radicalização da
369
suspensão do sentido e da cadência do tempo diegético da narrativa, se é que ele em algum
momento existiu
408
.
É o quarto “minarete”
409
que se suspende acima do apartamento, de algum modo já
“fora dos eixos”, e inaugura a cena do estranhamento constitutivo em relação à imagem do
outro e prepara a entrada para a experiência do neutro de G.H.
Nesse momento nos vem em mente um pequeno desvio da cena do quarto minarete
mas que indica uma relação importante com o relato blanchotiano de Thomas. A voz
narrativa que se bifurca e paira como em sombra negativa sobre G.H., também como em
Thomas, informa sobre si mesma na forma de uma cadência do (in)operante pela
expressividade aforística de uma força paradoxológica. Por exemplo, como os vários
momentos em que essa voz, ao mesmo tempo em que informa ou sinaliza uma percepção ou
uma reflexão sobre si mesma, imediatamente parece neutralizar esse gesto inicial ao
complementar o primeiro argumento com uma predicação inversa. O caráter de certas
situações comentadas por G.H. a respeito de si própria é uma das situações que mais
impressionam e nos fazem procurar pensar a singularidade do texto de Clarice junto à
escritura blanchotiana. E não se trata de pensar no devir-masculino da personagem, apesar
de ser uma linha de fuga interessante numa cartografia gestual desse corpo ficcional, mas
de perceber propriamente na teatralidade retórica, a potência (in)operante da “aforística”
clariciana, como bem nos mostrou Dominique Rabaté em relação à poesia de Louis-René
des Forêts.
408
Trabalhamos principalmente com a nova versão de Thomas l’obscur, de 1950, onde se observa uma relação
com o fragmentário já muito mais intensa no sentido da própria intenção do gesto de republicação de Blanchot
ao reinserir o texto numa outra “economia” narrativa, no duplo sentido dessa palavra. Um dos efeitos que
pudemos perceber é o próprio ritmo diegético que se acelera e torna-se mais opaco, dando lugar à força
vertiginosa do relato em sua potência dramática e imagética. Lembramos aqui a potência (in)operante decisiva
que pode se desprender desse gesto de Blanchot, pois se a forma expressiva do texto em nada muda, uma
potência neutra se exerce de forma clara quando o texto é diminuído em dois terços de sua totalidade. O texto
inteiro se transforma ao mesmo tempo em que em sua base narratológica e semântica muito pouco ou nada é
mudado.
409
Minarete remete tanto à saída de uma cena trans-histórica judaico-cristã, pois reclama como alegoria a
existência tríplice das religiões “monoteístas” do Ocidente, com a agregação dessa referência islâmica, quanto
remete ao espaço do ofuscamento radical que sobrevém pela luz, no sentido de sua etimologia, ao mesmo
tempo em que eleva esse espaço de uma oração estrangeira, estranha à sur-époché em relação à altura do
próprio apartamento. Deslocado para cima, o quarto da empregada sai dos eixos mais uma vez, se elevando a
uma relação metafórica e hiperbólica a um só tempo, pois o minarete situa uma outridade suplementar no seio
da cena unheimlich que se prepara de forma anacrônica já desde o início do relato (lembremos que é um relato,
a experiência já aconteceu). Cf. LISPECTOR, C. A paixão segundo G.H. P. 38. (58).
370
Nesse sentido, ao descrever sua situação como escultora amadora, G.H. se situa
numa espécie de neutralidade indiferente com relação a sua própria percepção identitária,
o que a impõe remeter-se a si própria pela enunciação ambígua de sua posição social. É
quase um desdém cínico a respeito da imagem que a situa entre os outros. E aqui não se
pode deixar de perceber uma sinalização autobiográfica quando se sabe que Clarice se
interessava muito por artes plásticas.
[...] a mim se referem como alguém que faz esculturas que não seriam más se tivesse
havido menos amadorismo. Para uma mulher essa reputação é socialmente muito, e
situou-me tanto para os outros como para mim mesma, numa zona que socialmente fica
entre homem e mulher. O que me deixava muito mais livre para ser mulher, já que eu
não me ocupava formalmente em sê-lo.
410
Mesmo que essa maquínica de neutralização dos enunciados não seja tão elaborada
ou incidente como na paradoxologia blanchotiana, poderemos perceber em vários
momentos se exercer no texto de G.H.
De volta ao quarto da empregada, Janair, voltemo-nos agora para o encontro do
mural inesperado onde três figuras se inscrevem na parede e a partir do qual mais uma
etapa em direção à experiência do neutro terá lugar.
Na parede caiada, contígua à porta, (...) estava quase em tamanho natural o contorno a
carvão de um homem nu, de uma mulher nua e de um cão que era mais nu do que um
cão. Nos corpos não estavam desenhados o que a nudez revela, a nudez vinha apenas da
ausência de tudo o que cobre: eram os contornos de uma nudez vazia.
411
É o encontro de G.H. com a singularidade ausente da empregada que se representa
no quarto como impondo uma assinatura anônima e que para os olhos da protagonista
desenhavam uma estranha duplicação de si mesma.
E fatalmente, assim como ela era, assim deveria ter me visto? Abstraindo daquele meu
corpo desenhado na parede tudo o que não era essencial, e também de mim só vendo o
contorno. No entanto, curiosamente, a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu
mesma.
412
O espaço do quarto revela, a cada parágrafo, sua natureza unheimlich
concentrando em suas descrições os elementos que juntos irão elaborar toda a simbólica de
um retorno a uma espécie de ancestralidade imanente do mundo até o encontro com a
barata e sua manducação. No quarto se elabora um processo lento de estranhamento
extremo do outro e da vida que ali se alojara e estranhamento, por conseqüência, de si
410
Op. Cit., P. 26. (41)
411
Op. Cit., P. 38.(59)
371
própria na percepção inversa de sua mutua relação quase inexistente, ao mesmo tempo tão
íntima e contudo revelada na presença forcluída dos gestos da empregada impregnados
pelo quarto. Esse processo o visualizaremos apenas em sua irrupção no espaço do quarto a
partir do peso que evolui da imersão progressiva de G.H. na experiência do neutro que
pode, a princípio, ser percebida já na sensação sonora e desagradável do “som inaudível
do quarto [que] era como [...] um chiado neutro de coisa, [...] fazia a matéria de seu
silêncio.”
413
Esse ritmo de estranhamento e de formação da crise chega ao ponto da enunciação
da própria duplicidade ou da percepção da existência extrema que desestabiliza a princípio
uma primeira assertiva em relação à estabilidade do “Eu” da personagem, ou de sua
visibilidade a si e à agudez de uma reflexão sobre o sentido da existência em meio a um
processo de abismamento ao espaço do neutro como despersonalização.
Como explicar, senão, o que estava acontecendo, o que não entendo. O que queria essa
mulher que sou? [...]
Como te explicar: eis que de repente aquele mundo inteiro que eu era crispava-se de
cansaço, eu não suportava carregar nos ombros – o que? – e sucumbia a uma tensão que
eu não sabia que sempre fora minha. Já estava havendo então, e eu ainda não sabia, os
primeiros sinais em mim do desabamento das cavernas calcárias subterrâneas que ruíam
sob o peso de camadas arqueológicas estratificadas [...]
414
E a teatralidade da potência (in)operante que há pouco nos remetemos e que é dada
no modo aforístico de uma enunciação paradoxal, pode ser percebida mais uma vez como
criadora desse campo de lento e progressivo tensionamento psicológico que também é posto
em jogo pela repetição de cada última frase das partes que separam o relato, remetendo a
voz narrativa à repetição cadenciada de seu fluxo, marcando no psiquismo segundo uma
intuição freudiana, a eterna reiteração do pulsional, como permanência do intervalo e
reposicionamento recorrente de forças thanatológicas e libidinais. A escritura aí se
posiciona como imanência do devir-egológico e de seu embate com sua duplicidade
constitutiva, sua designação entrópica, ou sua pulsão de morte.
É que apesar de eu já ter entrado no quarto, eu parecia ter entrado em nada. Mesmo
dentro dele, eu continuava de algum modo do lado de fora.
415
412
Op. Cit. P. 41. (62)
413
Op. Cit., p. 43. (64)
414
Op. Cit., p. 44. (65)
415
Op. Cit., p. 45. (66)
372
Não seria preciso lembrar o quão criativamente e parodicamente é aqui aludida a
escritura kafkiana, até porque se tratará de fazer dessa parodia, ou desse canto lateral que
transvalora o poético na forma de uma repetição diferencial do mesmo, uma teatralidade de
gestos que poderiam ser pensados em sua complexidade disseminante.
O espaço da cena da experiência do neutro de G.H está descrito e para ser possível
que essa cena se traduza em espaçamento da temporalidade própria do corpo da
experiência limite, o quarto deve ser provado fora de sua espacialidade corriqueira e
descrito como espaço ilimitado onde uma descontinuidade essencial pode ter lugar como
espaço do próprio intervalo, eclosão da existência nos termos da ficção,
O quarto não tinha um ponto que se pudesse chamar de seu começo, nem um ponto que
pudesse ser considerado o fim. Era de um igual que o tornava indelimitado.
416
A experiência limite que tem lugar no quarto da empregada remete a uma constante
subjectilidade, ou a uma ambigüidade constitutiva entre sujeito e objeto de narração. O
corpo de G.H. se adentra progressivamente na percepção do intrincamento e da experiência
radical de uma posição intervalar entre as coisas e as sensações sobre as coisas, entre um
eu que cinde sua posição de sujeito e a ambiência desse espaço que remete a escritura a sua
própria potência de forclusão, (in)operante, invaginativa; a sua constituição de uma
extensibilidade que atravessa ou espaça tanto o corpo da voz narrativa quanto os objetos
que nesse ponto do relato não fazem mais do que informar sua indissociação da matéria
narrada, ou seja seu caráter vertiginoso e “subjectil”, sua potência intervalar e a
coabitação de suas forças simbólicas no engendramento da potência teatralizante da
escritura limite.
Assim é que o guarda-roupa do quarto, ao ser observado por dentro, parece também
observar G.H. na espessura de seu silêncio material.
Abri um pouco a porta estreita do guarda roupa, e o escuro de dentro escapou-me como
um bafo. Tentei abri-lo um pouco mais [...] Dentro da brecha da porta, pus o quanto
cabia de meu rosto, E, como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos
espiando sem nos vermos.
417
G.H. encontrará em seguida a barata que a levará, na densidade de um processo
indescritível, ao processo agônico e ao ápice da experiência limite de seu despossuimento,
416
Idem.
417
Op. Cit. p. 46. (67)
373
de sua experiência imanente do intervalo enquanto existência crua descrita como chegada à
“desistência” de uma certa posição existencial no mundo e que para nós se realiza na
teatralidade de uma escritura que apreende nessa imagem neutra do esgotamento, a
potência irrepresentável que nomeamos (in)operante, mas que é como a dinâmica
intraduzível do próprio movimento da ficção enquanto escritura de si para fora-de-si, em
direção a sua própria origem, ou ao intervalo que se instala entre Eu-eu-outro (Je-moi-
autre) ou, finalmente, o intervalo que movimenta “essencialmente” o próprio de um “nós”
(essa comunidade inconfessável); movimento do desejo de desejar o próprio do outro, sua
ausência no mesmo momento em que se nos apresenta a falta preenchida e esvaziada
reiteradamente a qual a literatura (campo de uma duplicidade própria do real, onde
paradoxalmente ele se realiza pela ficção) pode mais uma vez duplicar, criando assim um
outro intervalo, e o fascínio transposto dessa potência mais uma vez aludida, remetida de
algum modo agora ao outro de nós mesmos pela forma de um controle (in)operante, livre,
da criação como espaço neutro da solitude.
Glória e vacância da imagem, como o resto que se re-tiraria do próprio fracasso
designante da linguagem, diríamos a potência de sua (in)operância, esse campo dúplice
onde co-existe o real como acesso escorregadio e em eterna retirada, é a premonição sobre
a eclosão do intervalo como sendo essa experiência-limite que é finalmente o
atravessamento de um desobramento de cada singularidade, embate enigmático diante do
irrefreável nessa eclosão que impõe, numa estranha e pacífica violência, desde o
nascimento, a vida (existência).
A gradual deseroização de si mesmo é o verdadeiro trabalho que se elabora sob o
aparente trabalho, a vida é uma missão secreta. Tão secreta é a verdadeira vida que nem
a mim, que morro dela, me pode ser confiada a senha, morro sem saber de quê. [...]
A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque
é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até em fim atingir a altura de poder
cair – só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construído toda
uma voz. [...] é exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir
a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. [...]
Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da voz. Minha voz é o modo como
vou buscar a realidade; a realidade, antes de minha linguagem existe como um
pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e sou impelida a precisar saber o
que o pensamento pensa. [...]
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor de se ter uma linguagem. Mas eu
tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria prima, a
linguagem é o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar e não do
achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem
374
é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as
mãos vazias. Mas, volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do
fracasso de minha linguagem. Só quando fracassa a construção é que obtenho o que ela
não conseguiu.
E é inútil tentar encurtar o caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já
começando por ser despessoal. Pos existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um
modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver nunca se pode chegar
antes. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega
quando se experimentou o poder de construir.
418
Nessa última passagem, da penúltima parte de G.H. onde há toda uma descrição do
processo de aproximação da experiência caústica a que se remete a potencia do
(in)operante, que G.H. chama de “desistência” como propriedade de uma percepção
soberana da equivocidade da linguagem, poderia muito bem ser lida ao lado da citação que
faz Christophe Bident de uma passagem de Lautréamont e Sade que Maurice Blanchot
consagra a Ducasse. Essa experiência-limite, que Clarice avisa não poder ser tomada
apressadamente, tendo que ser experimentada no seio de sua própria trajetória, em todo
seu processo e a partir de sua obscura e equivoca soberania, parece estar em Blanchot
quando avalia o efeito desmesurado da experiência em Lautréamont. Nos impressionamos o
quanto esse efeito se aproxima do que acabamos de ler no relato de G.H:
Tenir les yeux ouverts quand l’obscurité est souveraine et jouir commodément de la
tranquille clarté moyenne, l’homme qui passe de la première attitude à la seconde n’est
plus le même, et il change d’autant plus que, se jugeant plus changé qu’il ne l’est,
lorsqu’il se retourne vers un passé qu’il repousse, il ne veut plus reconnaître dans cette
lutte d’autrefois au milieu de la nuit qu’une complaisance malsaine pour la nuit, dans
cette volonté ténébreuse qu’une faiblesse, un jeu et une expérience sans sincérité et sans
valeur
419
Pois é o espaço em curva, no qual transitam, nessa força de gravidade, os gestos de
Clarice ou de Blanchot, e onde se encena e, arriscaríamos mesmo a dizer, onde teatraliza-
se pela escritura literária a potência agônica que se forma lentamente no trabalho de
désoeuvrement do escritor, (pelo menos de uma escritura que tenha se aproximado desse
campo de atração que chamamos (in)operância do neutro); espaço onde se esboçam e se
perdem os traços da imanência inominável que coexiste como pulsão e gesto poético e que
418
Op. Cit., pp. 174-176. (223-226)
419
Apud. BIDENT, Christophe. Maurice Blanchot: Le partenaire invisible. Champ Vallon, Seyssel, 1998, p.
258. “Ter os olhos abertos quando a escuridão é soberana e gozar comodamente da tranqüila claridade média,
o homem que passa da primeira atitude à segunda, não é mais o mesmo, e ele muda tanto mais quanto, se
julgando mais mudado do que o é, quando ele se volta ao passado que o rejeita, não quer mais reconhecer
nessa luta de outrora em meio à noite, a não ser que uma complacência malsã para a noite, e nessa vontade
tenebrosa, [apenas] um jogo e uma experiência sem sinceridade e sem valor.”
375
acede, pelas bordas e no limite do próprio corpo, àquilo que pressentimos como a eclosão
do intervalo em seu sentido irredutível ao que precede a morte como travessia (existência).
Ou ainda, nas palavras de Blanchot, se trata aí daquilo que se dá ou se doa como
enfrentamento e experiência da noite e da “outra noite”, também lida muitas vezes como a
“experiência do fora” e que inexoravelmente também antecede ou precede o espaço
luminoso do intervalo, o dia.
A cena literária como espaço de prova-ção do “aberto”.
Georges Didi-Huberman na “Ouverture” de seu livro L’image ouverte, percorre a
posteriore, ou après coup, como ele mesmo afirma, temas da crítica de arte trabalhados já
alguns anos antes, por textos produzidos a partir de uma viajem a Itália. Estes textos
procuraram pensar o sentido da imagem na sua complexidade teórica em relação ao que ele
chama de o “aberto” na questão da imagem analisada no contexto da história da arte
ocidental.
De fato, o título funciona sempre junto ao subtítulo que lhe segue na contracapa:
“L’image Ouverte: Motifs de l’incarnation dans les arts visuels”, se pensarmos na própria
exposição que dá Huberman do termo “motif” e da questão estética que se elabora a partir da
questão de “l’incarnation” que se mede em grande medida pelo estudo dos temas da
representação da paixão e crucificação do Cristo na história da arte no Ocidente.
Didi-Huberman explorará as relações em double bind que sua noção de motivo
(motif) desempenha, desdobra e elabora em termos de uma economia tanto estrutural quanto
derivada de uma leitura estética, se assim podemos dizer, da psicanálise (Freud, Lacan,
Biswanger) dos temas ou das figurações complexas nas quais se movimentam os “motivos”
do corpo e da carne, do sofrimento e da redenção relacionados à encarnação e que se
expressam na arte ocidental.
Um pouco aquém de toda a complexidade teórica que o livro de Huberman elabora,
nos reteremos à ponte que esse tema do aberto pode fazer relacionar com as perspectivas
teóricas da imagem e da teatralidade da literatura que procuramos desenvolver a partir da
leitura de A paixão segundo G.H. e Thomas l’Obscur.
376
Com esse intuito, associaremos fragmentariamente certos trechos da introdução de
L’image ouverte às duas cenas escolhidas nas ficções de Clarice Lispector e Maurice
Blanchot, no intuito de pensarmos mais uma vez na questão da literatura desempenhando
uma teatralidade maquínica quando percebemos a existência e a produção de imagens no
texto literário como legítima, mesmo que sua substancialidade se dê mais como uma
disseminação difusa de cenas do que como uma referencialidade plástica e visual em seu
suporte físico de origem.
As três “figuras” na parede do quarto da empregada de G.H.
Dando seguimento à questão do “motivo da encarnação” (le motif de l’incarnation)
Huberman trata do sentido dessa imagem aberta como uma situação no nível de uma
experiência sensória-motora, crítico sintomática e operando nos termos da “afectividade”
corpórea (no léxico de Deleuze) no qual a imagem na arte ocidental (dentro da
especificidade dos exemplos do livro) faria ressoar de forma imanente, não apenas um
complexo de temas característicos da “doutrina ou da religião cristã”, mas sim, se remeteria
a esses motivos “crítico sintomáticos” (dor, agonia, mas também redenção e extase) ao
modo de um:
[...] fantasme bien plus vaste culturellement, um fantasme exploratoire quant aux limites
de l’imitation: limites franchies dans la fiction d’une image animé, tactile, désirante et
qui ouvre son corps au corps du spectateur. Mais pour être un fantasme, l’incarnation de
l’image ainsi entendue n’en est pas moins efficace et, comme on ne cessera pas de le
vérifier historiquement, opératoire. Ce qu’elle imite alors n’est plus le corps mais la
conversion dont le corps se rend capable dans le symptôme, avec sa façon si troublante
de s’offrir, de souffrir et de s’ouvrir au regard d’un spectateur.
420
Nesse sentido e dando seqüência ao desenvolvimento da especificidade semio-
ontolólogica que toma sentido no desenvolvimento crítico da abertura de seu livro, Didi-
Huberman diz:
420
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image ouverte. Paris, Gallimard, 2007, p. 31. “[...] fantasma bem mais
vasto culturalmente, um fantasma exploratório quanto aos limites da imitação: limites ultrapassados na ficção
de uma imagem animada, táctil, desejante e que abre seu corpo ao corpo do espectador. Mas para ser fantasma,
l’incarnation de l’image entendida desse modo não é menos eficaz e, como não cessaremos de verificar
historicamente, operatória. O que ela imita então, não é mais o corpo, mas a conversão na qual o corpo se torna
capaz no sintoma, ao seu modo tão transtornante de se oferecer, de sofrer e de se abrir ao olhar de um
espectador.”
377
Image e ouverture, chair et inconscient sont indissociables comme la matière elle-même
est indissociable des intervalles qui la font, justement, tenir ou consister . L’ouverture est
dans l’image, un fait de structure, un portant, un principe d’animation – ce que j’ai nommé
un motif – et non un simple thème à traiter iconographiquement ou typologicament. (…)
L’ouverture n’est pas seulement un état de fait ou un « dispositif » comme on dit. C’est un
act, un processus d’alteration. C’est donc un fait de structure qui porte atteint à la structure
(voilà, d’ailleurs, exactement ce qui pourrait une définition opératoire, critique et non
clinique, du symptôme). (…)
C’est que l’image ouverte traverse les temps sur le mode de l’impensé, du symptôme, de la
survivance : refoulements et retours du refoulé, répétitions et après coups, traditions et
maillons manquant, mouvements tectoniques et séismes de surface. (...) L’image ouverte
est, à sa façon, l’image toujours survivante du motif, immémorial et immédiat, de
l’ouverture. Façon de dire que dans l’image, les problèmes de spatialité – puisque, aussi
bien, ouvrir nous dit d’abord une certaine opération sur l’espace – sont inséparables des
problèmes de temporalité.
421
Pensamos a partir desse movimento a especificidade da imagem literária. E nos
indagamos sobre como desdobrar o processo que envolve a cena que acabamos de descrever
sob o título de “Quarto”.
A princípio nos indagaríamos a respeito de certos traços ou figuras que se remetem a
situações específicas no espaço ficcional vivido por G.H. Tal é por exemplo a seqüência do
encontro das figuras desenhadas na parede onde há a descrição da leitura estética dessas
figuras. A observação por parte de G.H de que “o traço era grosso, feito com ponta quebrada
de carvão. Em alguns trechos o risco se tornava duplo como se o traço fosse o tremor do
outro. Um tremor seco de carvão seco”.
422
A descrição do traço remete claramente ao modo tosco como as figuras foram
desenhadas na parede, mas para além de um juízo de valor o que mais parece ser informado
na seqüência descritiva da personagem é um certo caráter brutal do desenho, duplicado e
revertido pelo seu caráter semântico, às palavras, ao uso e à escolha dessas palavras:
E foi numa das paredes que nun movimento de surpresa e recuo vi o inesperado mural.
Na parede caiada, contígua à porta – por isso eu ainda não tinha visto – estava quase em
tamanho natural o contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão
que era mais nu que um cão. Nos corpos não estava desenhada o que a nudez revela, a
nudez vinha apenas da ausência de tudo o que cobre: eram os contornos de uma nudez
vazia. [...]
A rigidez das linhas incrustava as figuras agigantadas e atoleimadas na parede, como de
três autômatos. Mesmo o cachorro não tinha a loucura mansa daquilo que não é movido
por força própria. O malfeito do traço excessivamente firme tornava o cachorro uma
coisa dura e petrificada, mais engastada em si mesmo do que na parede.
423
421
Op. Cit., pp. 32-34. “Image et ouverture”.
422
Op. Cit. p. 39. (59)
423
Idem.
378
Há uma série de movimentos afectivos que correspondem aos estados de humor da
personagem narradora e diria, nesse sentido, que uma forma de pensar na teatralidade
maquínica desta cena, poderia se dar a partir da possibilidade de se vincular os elementos
descritivos do humor (afectos) da personagem ao tom e ao uso das palavras que utiliza G.H
em sua descrição do mural oculto deixado de forma clandestina pela empregada em seu
quarto.
Essa cartografia de humores poderia ser discernida a partir de um movimento
oscilatório. Da surpresa inicial da visão a um grau de distensão dessa surpresa, provocando
uma “surpresa divertida”, G.H chegará ao constrangimento, depois à coação, ao mal estar e
o ódio, finalmente se colocará em dúvida quando à origem deste ódio, se imaginado como
reflexo de um “ódio silencioso” que a empregada sentiria por ela, ou finalmente se ela
mesma, G.H, é que experimentara o estranho sentimento de não conhecer alguém que
naquele momento, no interior do quarto abandonado, mesmo que estando tão próxima,
percebia que sempre fora uma desconhecida.
É toda uma economia afectiva que se desenvolve em torno à imagem das três figuras
ocultas. E há mesmo nessa cena toda uma intensa pesquisa, se assim pudermos dizer, em
relação ao processo de descoberta, descrição, vivência e transformação de si através da
experiência de estranhamento que se descola dessa imagem.
O contorno que delineiam as formas ocas indicando apenas as massas vazias dos
corpos grosseiramente delineados remete, na descrição de G.H., à duplicidade e à oscilante
distância que pode se desprender da relação com o outro. Estranha presença de um desenho
que remete à possível falta de contato da protagonista com sua empregada, e desvela toda
uma pulsão afetiva de transformação agônica de G.H.; presença de uma ausência, afinal, a
imagem oculta torna a ausência de Janair, a empregada, mais presente do que nunca e como
em negativo (fotografia em negativo, onde as bordas dos corpos geralmente comportam o
interior esbranquiçado), essa presença é pressentida como o próprio prenúncio da chegada
da crise que mais adiante no relato desembocará na experiência limite da manducação da
barata e da entrada de G.H num estado de despersonalização radical, experiência do que a
narradora chama muitas vezes de neutro.
379
Uma série de elementos indicam aquilo que Didi-Huberman fala quando se referindo
a Freud, Paul Schilder e Biswanger
424
e quando nessa explanação relaciona a questão da
percepção da imagem a estados de ânimo ou a estados patológicos que influenciariam na
percepção do espaço. Primeiro, Didi-Huberman retoma uma intuição tardia de Freud à qual,
e não poderíamos nos esquecer, ele se refere como enigmática:
Il se peut que la espacialité soit la projection de l’extension de appareil psychique.
Vraisemblablement aucune autre dérivation. Au lieu des conditions a priori de l’appareil
psychique selon Kant. La psiché est étendue, n’en sait rien.
425
A espacialidade, segundo a descoberta de Freud da memória inconsciente, se
deduziria devendo ser compreendida como:
La temporalité, dans son ouverture, sa trouée, sa vocation à l’orifice, à la blessure, à
l’intervalle. Et formulons notre hypothèse que c’est bien la chair dont il est ici question.
Notre psyché est étendue d’une étendue pliée, chiffonnée, trouée par maints endroits.
Notre psyché est incarnée, n’en sait rien. Mai elle ne le sent que trop bien lorsqu’un
événement, un symptôme, tout à coup vient l’ouvrir à elle même.
426
Em seguida, Huberman relembra com Paul Schilder o desenvolvimento dessas
questões “estésicas” (l’esthésie) da percepção em relação ao espaço e ao inconsciente como
no exemplo que dá a partir do relato de Freud sobre o “Rêve de l’injection d’Irma”.
Voilà bien où l’ouverture ne se séparé pas de la chair, selon une économie plus générale
que Paul Schilder a commencé d’analyser sous l’angle d’une esthésie primordiale de
l’espace : « l’espace primitif [...] est centré autour les orifices du corps [en sorte que, par
exemple,] les dimensions de l’espace sont modifiés autour de zones érogènes. » Il
revient à Ludwig Binswanger d’avoir, dans les mêmes années, proposé un cadre
d’intelligibilité susceptible de nous faire comprendre comment les modifications
pathiques de l’espace peuvent en reconfigurer les qualités esthétiques »
427
G. H. descreve gradualmente sua própria experiência em relação a esse encontro com
uma imagem clandestina em sua própria casa e que, valeria lembrar, pode ser pensada como
um encontro com a própria marca da ruptura com o outro. Uma série de elementos na
descrição de G.H. poderiam nos fazer pensar de um modo teatrológico (ou seja, que essa
descrição se dá de forma silenciosa como uma gestualidade própria da escritura desse relato,
vale dizer, sendo tanto o primeiro texto em primeira pessoa da escritora, quanto uma relação
de duplicação autobiográfica da voz narrativa em relação ao modo de sua expressão, por
exemplo, se remetendo a si mesma como terceira pessoa) na produção pela voz narrativa de
um espaço de estranhamento familiar (pois as imagens se dão por construções de repetições,
424
Cf. Op, Cit.
425
Ibid. Op. Cit., p. 34.
426
Op. Cit., p. 34.
427
Ibid. Op. Cit., p. 35.
380
hipérboles, paradoxos e oximoros se remetendo a uma experiência que de qualquer modo
tem lugar na própria casa da protagonista) sensações agônicas, preparando a entrada no
espaço propriamente da crise e da progressão dos afectos limites que passam a se fixarem
cada vez de forma mais intensa.
Eis a imagem de um rasgo de luz, pouco antes da descoberta de G.H da imagem
delineada numa parede no quarto da empregada:
Da porta eu via o sol fixo cortando com uma nítida linha de sombra negra o teto pelo
meio e o chão pelo terço. Durante seis meses um sol permanente havia empenado o
guarda roupa de pinho, e desnudava em mais branco ainda as paredes caiadas.
428
“Sol fixo”, “nítida linha de sombra negra”, “o teto pelo meio e o chão pelo terço”,
“durante seis meses”, “empenado o guarda roupa de pinho” e “desnudava em mais branco
ainda as paredes caiadas”. Cada um desses sintagmas se remete a um movimento que se
elabora em relação aos outros, desdobrando uma imagem de estranhamento que já vinha
sendo descrita desde o início do relato. Por exemplo, no movimento que inaugura a
descrição que faz a narradora de sua visita aos fundos e às dependências de serviço de seu
apartamento. O quarto “minarete”. Estranha descrição de um espaço cheio de luz (a
metáfora da luz do deserto das regiões islâmicas?) onde a fixação do que não pode ser fixo
como, no caso, movimento do sol, dá à cena o aspecto de suspensão do tempo.
Esse mesmo sol geometriza o ambiente com uma linha “nítida” de sombra, fazendo
dessa imagem o motor de um “motivo” que chamaríamos de teatralidade barroca em A
paixão segundo G.H. Essa sombra relaciona uma imagem a um sentido de espaço ao mesmo
tempo em que traça uma linha pelo meio do quarto, também retraça em outro movimento
paradoxalmente fixo, nítido, portanto estagnado, lento; uma outra direção, dividindo o
quarto também em outro traçado.
Seis meses é uma imagem que em sua contigüidade, em relação aos sintagmas
anteriores, estabelece uma temporalidade alegórica - pois não importando que nesse sema
trate-se de uma metáfora do tempo de exposição do armário, a sensação criada é a de que na
fixidez de uma linha de sombra - um tempo se estenderá por seis meses o que foi
expressado, na verdade, em apenas um instante do olhar de G.H. sobre a linha indicial da
sombra. A marca desse tempo estranhamente percebido na confluência de um suposto
paradoxo, apenas pressentido como teatralidade da cena, se exterioriza na transformação e
428
Op. Cit., p. 38. (58-59)
381
na destruição vagaroza e perceptível do armário, aí onde começa a ocorrer o acontecimento
limite de G.H.
Outra imagem que nos chama a atenção e que poderia se relacionar diretamente à
questão do “aberto” da imagem que explora Didi-Huberman e que viemos chamando de
teatralidade da narrativa de Clarice em G.H, ocorre já no final do “capítulo”, alguns
momentos depois da cena da descoberta das “figuras nuas” e impessoais.
É o momento em que G.H se depara com a o armário ressecado pelo tempo e pelo
sol e quando a narradora começa a “adentrar’ ou começa a penetrar no espaço dessa
experiência inominável do neutro, depois de observar o pequeno vão escuro da porta do
armário onde se abre uma escuridão interior descrita por G.H. nos seguintes termos:
Abri um pouco a porta estreita do guarda-roupa, e o escuro de dentro escapou-se como
um bafo. Tentei abri-lo um pouco mais, porém a porta ficava impedida pelo pé da cama,
onde esbarrava. Dentro da brecha da porta, pus o quanto cabia meu rosto, E, como o
escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos espiando sem nos vermos. Eu
nada via, só conseguia sentir o cheiro quente e seco como o de uma galinha viva.
Empurrando, porém, a cama para mais perto da janela, consegui abrir a porta uns
centímetros a mais. Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos
embranquecem.
429
Didi-Huberman, na citação que leremos em seguida, fala da questão da porta como o
modelo mais radical de significação de uma certa experiência, seja simplesmente espacial
seja em termos psicológicos ou mesmo numa significação estético literária. A porta
permitiria um acesso metafórico (no sentido mais dinâmico deste conceito) à experiência do
umbral (seuil), este termo pensado numa referência direta ao problema da posição limite do
sentido (fruição estética, pensamento ou construção da idéia, etc, e aqui deveríamos lembrar
de toda a discussão que apresentamos segundo vários pensadores contemporâneos a respeito
das economias críticas do “entre” como espaço do oscilatório e das poéticas do neutro de
Blanchot, como experiências de um pensamento híbrido, pensamento estético ou literário).
Posição do pensamento a respeito de um verdadeiro afrontamento ou, em movimento
inverso, posição de expectativa em relação a uma experiência diante da imagem aberta. E
nesse ponto é que Huberman não deixa de se remeter a Kafka em seus usos da imagem do
umbral e da suspensão corrosiva do sentido que se articulam signaleticamente como
imagens e situações diante de portas, através ou entre portas. Aqui relembramos no mesmo
429
Op. Cit., p. 46. (67-68)
382
sentido a dramática situação de Thomas quando se vê imerso no estranho hotel de
Aminadab.
A imagem da porta como essa posição diante do sentido e que poderia ser pensada
funcionando como operatória das questões que se remetem ao “atravessamento” (“son désir
à l’ouvre” nas palavras de Didi-huberman) de uma situação estética ou existencial à outra
situação que dependeria de uma decisão no plano das ações (ficcionais ou fáticas) é também
confrontada na metáfora fenomenológica da “janela”, metáfora aparentemente insuficiente
por não pôr em movimento, em seu sentido operatório e conotativo, a possibilidade do
“atravessamento corpóreo e se “limitar”, se assim pudermos dizer, à fixidez da observação
visual.
É a partir desse confronto entre essas duas imagens conceituais articulatórias de um
verdadeiro gesto de reflexão especulativa contemporânea que pretenderemos pensar na
singularidade da imagem literária clariciana enquanto movimento teatrológico de um
pensamento literário:
Didi-Huberman assim se refere a essas questões:
Du point de vue phénoménologique, le modèle de la fenêtre albertienne est un modèle
insuffisant, confortable : une fenêtre peut être à la fois fermée (physiquement) et ouverte
(optiquement), en sorte que voir au-delà – l’enjeu même du regard, son désir à l’ouvre –
ne met pas notre corps en mouvement : on peut se contenter de rester assis à sa fenêtre
pour voir ce qui se passe au-dehors. Une porte est bien plus dramatique : sans même
aller jusqu’aux paradoxes chers à Kafka, elle [la porte] nous oppose une clôture bien
plus violente à quoi ne peut s’opposer que le caractère tranchant du geste qui l’ouvrira,
afin que notre corps, mû par cette ouverture, en franchisse le seuil. Ce n’est pas un
hasard si Georges Bataille éprouvait l’image en relation avec l’idée d’une porte qui vole
en éclats.
430
A abertura da imagem é, portanto, uma situação de alteração e de imiscuimento do
sujeito e do objeto no movimento próprio da atitude do desejo em relação à obra, desse
movimento que atravessa ou realiza a passagem através do umbral. Essa economia é o
próprio processamento complexo de imagens afectivas que se dão como fantasmagoria
simbólica, como recalque ou como produção da obra enquanto extensão do corpo no mundo,
seu sentido constituidor de significação no mundo. Essa constituição de significação passa
por hesitações e suspensões, premonições e retardamentos, e essa variação afectiva que
modela os corpos em seu movimento e em sua gestualidade poderia ser pensada em termos
dramáticos, vale dizer, em termos teatrológicos.
430
Op. Cit., p. 36
383
Assim, G.H. é atraída pela atmosfera desértica e pela textura árida do “quarto
minarete”, e nesse espaço observa a abertura de uma experiência limite em sua existência.
Observando a fresta (a abertura em suspensão) da porta do armário envelhecido - G.H se
afronta e é afrontada: “E, como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos
espiando sem nos vermos”
431
– que recorta ou cinde a mesma escuridão dessa presença
paradoxal que poderia bem ser sua própria curiosidade, ou seu desejo de retomar uma
compreensão sobre a ausência ou a diferença radical entre ela e sua empregada demitida.
Mas o que G.H. presencia é o afrontamento a sua desfiguração quando dessa escuridão ela
tiver o primeiro encontro com a barata.
Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como cabelos embranquecem.
De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na
meia escuridão, movera-se a barata grossa. Mas meu grito foi tão abafado que só pelo
silêncio contrastante percebi que não havia gritado, O grito ficara me batendo dentro do
peito. [...]
Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu
descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado – mas
restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial.
432
A moral do “joujou”.
Toda a questão da imagem e da “abertura” da imagem, sua complexidade e seu
suposto hermetismo se dissipam em grande parte ao final da abertura do livro de Didi-
Huberman. Isso porque o problema desse “duplo fundo” que se descola no interior da
reflexão da imagem em sua “abertura”, passa a ser melhor compreendido à luz de um
431
Cf. Op. Cit., pp. 46. (67) « Et, comme si l’obscurité de l’intérieur m’épiait, nous restâmes un instant à nous
guetter sans nous voir. » Ou seja, aí se dá o movimento de uma experiência propriamente “afectiva”, em
termos deleuzeanos, onde sujeito e objeto se sobredeterminam na posição oscilante do próprio umbral. Vale
dizer que essa imagem bem poderia ser pensada como a de um devir-coisa de G.H. Em outro sentido, diríamos
que G.H. é ela mesma já uma personagem “coisificada” pela sua própria atribuição “quase-anônima”, sendo
que esse “quase” tem aqui uma potência ainda mais singular nesse caso, pois situa a nomeação do narrador em
um “umbral” (seuil ou espace neutre de la signification semiotique de la voix narrative) permanente no
desenvolvimento do relato; umbral sobre umbral, o relato de G.H se infinitiza numa série de sobreposições
intervalares que culminam na imagem das repetições rítmicas entre “capítulos” e que situam o relato num
“encavalamento” (enchevêtrement) de suas partes. Essa dimensão propriamente “fractal” da cadência do
movimento do relato opera o desobramento que tem lugar como despersonalização e desfiguração radicais da
voz que narra a história. Ora, essa desfiguração ocorre na mesma medida em que situa a potência dramática
que se apodera do relato pela sua força poética, gerando uma dimensão que insistimos em chamar teatrológica,
potência que se constitui como potência de (in)operância, poética neutra. Lembramos do livro de Eveline
Grosmann La défiguration, Artaud, Beckett, Michaux. (Paris, Minuit, 2004), onde há uma leitura desse tipo de
movimento poético em double bind em ralação ao qual todo um trabalho de destruição ativa do sentido tem
lugar como constituição do que viemos chamando de potência do (in)operante e que é nada mais nem nada
menos do que uma teatralidade maquínica sobre uma poética do neutro, do umbral ou do intervalo.
384
conceito de Georges Bataille que Huberman cita no final de sua apresentação. Trata-se do
conceito de “paradoxe de l’emotion” que equaciona o duplo movimento que faz parte do
movimento “forcluído” da imagem no sentido de sua relação “psicogenética” em relação à
constituição afectiva humana. O espaço do jogo e da descoberta do mundo passa
necessariamente pelo embate violento da manipulação transversal do corpo e dos objetos
com os quais nos relacionamos. O desdobramento desse processo dá-se de forma complexa
como gênese psico-somática no cerne da experiência do desenvolvimento psíquico.
Huberman, antes de chegar à tese do paradoxo da emoção, introduz um pequeno
texto de Charles Baudelaire no qual é discutida a dinâmica dessa constituição onto-psiquico-
genética articulada como relação fundante (ao menos em sua estruturação primária) desse
relacionamento constitutivo da imagem com a psiquê.
Há um intrincamento essencial entre o movimento de descoberta e de
experimentação do sujeito e a retroatividade própria desse movimento em direção ao objeto,
no caso o brinquedo da criança. Alma (como orgão “meta-orgânico” relacionado às
efecções) e corpo (invólucro irredutível à alma como “extensão” imanente da psiquê) se
relacionam no intrincamento imediato do movimento de individuação da criança, ou seja, se
realcionam a todo um jogo de descoberta, de atravessamento dos umbrais que podem ser
metafóricos e/ou físicos, ou ainda em certo sentido, metafísicos.
Didi-Huberman desenvolverá o comentário sobre o texto baudelairiano para em
seguida remeter-se ao equacionamento bataillano do problema da forclusão inerente à
imagem. Relembro que Huberman deixa clara também a referência ao termo “Imago” de
Lacan que em outro sentido que o de “forclusão” que utilizamos em alguns momentos desta
pesquisa, também se relaciona com a mesma economia indecidível dessa estrutura psíquica
“intervalar” entre figura e fundo pensadas aqui como absolutamente co-participantes e
indiscerníveis de seu próprio movimento (se é que essa imagem “dialética” de figura e fundo
ainda pode dar conta da complexidade da problemática da imagem... E sabemos ao lermos
os pensadores que lemos que é necessário justamente fazer do jogo da negatividade um
surplus” de significação ou a tarefa de uma desconstrução de seus mesmos pressupostos
logocêntricos).
Huberman comenta o texto de Baudelaire :
432
Op. Cit., p. 47. (69-70).
385
Si l’adage baudelairien va droit à l’essentiel, c’est parce qu’il n’hésite pas devant la
tâche de ne pas désintrinquer – exercice courant de la raison – ce que les images, en effet
savent si bien et si irraisonnablement amalgamer . Baudelaire a su prendre les frivoles
joujoux au sérieux de leur fonction d’images (« menus objets qui imitent l’humanité »),
et celles-ci au sérieux de leur fonction métaphysique (« c’est une première tendance
métaphysique »). Il a su formuler le paradoxe qui noue l’activité du jeu et celle de la
connaissance (« voir l’âme »). Il a compris que celle-ci ne va pas sans manipulations,
sans technique du corps (« il a remplit ses doigts et ses ongles d’une agilité et d’une
force singulières »). Il nous montre que tout cella est affaire de désir, même si le désir
joue avec le sens, expriment en tous sens jusqu’à jouer dans le « sens inverse ». Il nous
décrit parfaitement le rythme de l’ « excitation » et de l’hébétude liées à l’expérience
d’ouvrir, c'est-à-dire de découvrir ce que l’on a détruit en ouvrant (« la vie merveilleuse
s’arrête »). Il n’oublie pas l’essentiel teneur religieuse (« une colère superstitieuse ») et
cérémonielle (« une espèce d’épreuve maçonnique ») que revêt un tel acte ; Enfin, il
nous enseigne le lien natif du désir et de la destruction, comme si l’image était le
meilleur joujou que l’homme se soit inventé pour aimer à loisir, c’est-à-dire aimer à
détruire, détruire à loisir dans l’image qui nous ressemble …
433
A imagem carrega de forma inata esse duplo vínculo paradoxal, que nasce como
constituição dramático metafórica a partir e no seio do jogo de forças ativas e reativas, em
meio a uma conformação orgânica complexa e dinâmica; jogo de excitações e extenuações
repetitivas e diferenciais dados a partir da complexidade da constituição de uma organização
psíquica.
Abrir é inaugurar ou reinaugurar uma força violenta que deve adentrar o espaço de
uma interioridade anterior ao próprio movimento de entrada nesse espaço de tensionamento
onto-psico-genético.
Ouvrir donc: faire violence à la surface sensible pour que l’intérieur – « l’âme », le
principe de cette sensibilité, l’organe du mouvement – devienne accessible. Mais quand
l’intérieur est là, déplié devant vous, le corps lui-même, son enveloppe détruite, s’en
trouve sacrifié, mis à néant, désormais immobile. Et l’âme n’est plus là bien sûr. Il y a
ainsi dans l’ouverture un acte irreparable qui noue l’incarnation à l’arrachement,
l’arrachement à la profanation et celle-ci à l’angoisse devant la mort .
434
Talvez seja este mesmo ato irreparável que tenha experimentado pela ficção a
escritura clariciana na voz de G.H. Quando na cadência deste relato incessante marcado por
um ritmo de repetições, inauguram cada um desses momentos (desses “capítulos”) uma
nova e mesma entrada no movimento ou na gestualidade da escritura que deve ser
relembrada e relatada como a teatralidade necessária para se “representar” a própria
destruição ou destituição incessante de si mesma. Não a entrada na morte como finalidade
ou entrada no desconhecido absoluto, mas a expressão plausível da morte como símbolo de
uma significação existencial. Nesse sentido a escrita é uma saúde que procura no movimento
433
Op, Cit., pp. 60-61.
434
Op. Cit., p. 61.
386
catártico de esvaziamento das cargas afectivas e ressentidas expurgar numa performance
fabulativa, a abertura necessária à imagem de si mesmo.
Bataille, portanto, como havíamos dito seguindo o comentário de Didi-Huberman,
havia equacionado o problema da forclusão da imagem enquanto signo-complexo “arqui-
psico-genético” do desejo e da morte na expressão de um “paradoxe de l’émotion”.
Se a criança manipula em todos os sentidos ou direções o brinquedo que lhe assegura
a descoberta de um “outro” mundo para fora de seu próprio corpo-mundo, numa articulação
multivalente de sua motricidade e do psiquismo que se elabora nesse movimento de
modelação ontológica, articulando um complexo “perceptivo-afectivo-conceptivo” (alma-
corpo-corpus), é porque ela (a criança em sua individuação) precisa absolutamente, nesse
mesmo movimento, acompanhar de forma equivalente (ou seja violenta, diferencial e
repetitiva) o movimento de seu devir-indivíduo (arranjamento incessante das forças
cósmicas numa individuação intervalar ou seja, numa eclosão do intervalo (existência tanto
do sujeito quanto da individuação) no seio do cosmos (l’informe como possibilidade de
todas as possibilidades e também do impossível, ou seja, de sua organização racional pela
linguagem).
Esse movimento dúplice (da individuação (for/da) e do devir (plano de imanência)
que chamamos em outros momentos de entrópico (e que é a expressão simplificada do
movimento dúplice e inominável do devir-individuação) se remete constantemente a sua
origem (a atitude da criança (sujeito) que lança o brinquedo (objeto) longe do berço numa
excitação violenta e gozosa e se angustia logo em seguida com a perda do brinquedo) como
força de constituição de si, ou seja, desejo de saída e desejo de reentrada em sua própria
individualidade. Esse movimento é a constituição motriz do psiquismo (esse processo é
expresso pelo conceito de l’objeu de P. Fédida).
A destruição do brinquedo, ou o lançar para fora de seu domínio e a angústia
referente a essa perda, essa repetição constitutiva do psiquismo é a expressão de uma
ecologia atualizada do mundo enquanto tal. É a expressão do limite de uma cadeia
“evolutiva” e que situa um movimento mais geral da natureza em sua continuidade e
descontinuidade incessantes (devir-mundo), na produção e destruição imanentes a que as
forças cósmicas necessariamente se conformam segundo leis complexas que de um modo ou
de outro se remetem à própria abertura.
387
Huberman faz referência a Bataille:
Or, ce « point fulgurant » – cette promesse d’explosion des limites – nous fascine dans
l’image plus que le reste. « Mais quelles raisons avons nous d’être séduits par la chose même
qui nous signifie, d’une façon fondamentale, un dommage, qui même a le pouvoir de évoquer
la perte plus entière que nous subirons dans la mort ? », demande Bataille. La réponse, il la
nomme « paradoxe de l’émotion », et ce paradoxe tient au fait que ce qui nous met en
mouvement est toujours l’ouverture – insensée, précise-t-il – d’un autre espace dans l’espace
oú nous sommes confinés. Si l’« autre espace » par excellence est celui où s’inversent toutes
les apparences, alors Bataille peut affirmer que « l’art, sans doute, n’est nullement tenu à la
representation de l’horreur, mais [que] son mouvement le met sans mal à la hauteur du pire
et, réciproquement, [que] la peinture de l’horreur en révèle l’ouverture à tout le possible.
C’est pourquoi nous devons nous attarder à l’accent qu’il atteint dans le voisinage de la mort.
Cet accent donne le rythme d’une expérience intérieure qui ne consiste justement pas à
réflechir son moi, à le confiner, mais à le blesser, à l’ouvrir grand pour y laisser entrer
l’altérité du réel. L’image devient alors notre objet de non-consolation. Parce qu’elle ouvre
sur l’informe de sa – de notre – propre constitution.
Talvez G.H. e Thomas também tenham tido a necessidade de adentrar na violência
inominável de sua desfiguração agônica (de si mesmos ou a partir daquela do outro, G.H e
Janair, Thomas e Anne - esse outro a quem nós mesmos nos configuramos numa
negatividade agônica, processual e existenciária) a partir desse embate ou dessa
transvaloração pelo contato do abjeto enquanto tal (“ponto de fulguração” perfeito do desejo
de saber e da fobia diante do conhecimento que só pode se findar no instante desse medo,
que não é outro que o encontro com um complexo simbólico arqui-originário da expectativa
da morte futura) e a partir - no caso de G.H. - do gesto arqui-originário da mordida e do
corte ao meio da barata com seus próprios dentes. Nesse gesto talvez G.H tenha podido se
aproximar o bastante da abertura da imagem, quando a individuação de um ego passa a ter
que ser pensada em termos menos racionais e o limite do que pode ter sido um espaço real,
até ali, se dissolve como o interior informe da barata jorrando o próprio enigma do tempo
(como “informe”), marcado tantas vezes pelas palavras que se orientavam na direção desse
passado imemorial da terra, quando a vida lentamente pululava na forma de existências mais
subterrâneas, nossos antepassados mais originários.
388
Considerações fragmentárias e incompletas.
Uma leitura das teatralidades maquínicas nessas duas literaturas não foi se não uma
leitura das formas mais exteriores a esse “ponto de fulguração” que expressa o paradoxo da
emoção de Bataille. E é nesse ponto, ponto que na verdade se estende em linhas de fuga e de
desejo na forma e na expressividade da escritura ficcional (bio ou altero-gráfica), que
Thomas e G.H são atores ou personagens singulares em suas teatralizações narrativas, pois
puderam permanecer numa suspensão ativa de seus corpos altero-gráficos, puderam
permanecer numa neutralização imponderável das forças que atuam nesses limites tão
exteriores quanto a expressividade literária pode criar através da potência singularíssima de
sua (in)operância. Potência de “não consolação”.
Na imagem de um teatro abstrato dado pela literatura, Thomas parece não pertencer
ao mundo que o cerca a pesar de estar completamente impregnado das forças que o
envolvem e em outro plano neutraliza cada movimento de suas ações remetendo-se a um
investimento ainda mais intenso devido a essa mesma aparente neutralidade, devido à
intensidade que é gerada pelas suas relações ilimitadas por suas próprias condições
aporísticas.
E G.H., que relata seu movimento em direção ao outro de si mesma, devendo se
desfigurar até o afrontamento com o que ela chama de neutro. Estranho e imponderável
espaço de (in)operância que ela chama finalmente desistência, e que elabora, no âmago de
um processo de individuação, uma difícil liberdade que parece não poder ser descrita a não
ser como enigma ou mistério de cada existência em sua passagem de solidão e comunidade
irredutíveis ao mundo.
389
Movimento de síntese fragmentária de uma longa jornada de exploração conceitual
e épreuve crítica.
Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde –
quero dizer, so mais tarde teria uma profunda falta de
sentido. Só depois é que eu iria entender: o que parece
falta de sentido – é o sentido. [...] tomar consciência da
falta de sentido teria sido sempre o meu modo
negativo de sentir o sentido? fora a minha
participação. (C. Lispector. A paixão segundo G.H. p.
35)
Il semble que le vide ne soit jamais assez vide.
Aspiration éternelle des images, erreur qui nous
souléve et sans cesse nous mêle dans le desordre de la
nuit, perdues et toujours rassemblées dans un élan
joyeux où nous nous retrouvons. Illusion, bonheur de
l’illusion, pourquoi lui résister ? (M. Blanchot. Le
Dernier Homme. P.145)
Par l’attention, le langage a avec la pensée le même
rapport que la pensée voudrait avoir avec cette lacune
en elle – ce malheur – qu’eele est et qu’elle ne peut se
rendre présente. Le lengage est le lieu de l’attention.
(M. Blanchot. L’entretien infini, P. 179)
Não saberíamos dizer se encontraríamos melhor indicação do conceito de
“teatralidade maquínica da literatura” durante esta pesquisa do que na explanação de
Blanchot apontando uma imagem do movimento de suspensão, de fragmetação e de
“copulação” do sentido que é operado pelas forças paradoxais presentes numa literatura
limite como a de Kafka, no caso específico em que o francês comenta o escritor de Praga:
O mistério é o seguinte: estou infeliz, sento-me à minha mesa e escrevo “sou infeliz.”
Como é possivel? Vemos porque esta possibilidade é estranha e até certo ponto
escandalosa. Meu estado infeliz significa esgotamento de minhas forças, a expressão de
minha infelicidade, acréscimo de forças. Do lado da dor, existe a impossibilidade de
tudo, de palavras harmoniososas, desenvolvimentos exatos, imagens felizes. Além disso,
expressando minha dor, afirmo o que é negação e, contudo, afirmando-a, não a
transformo. Faço a maior boa sorte carregar a mais completa desgraça, e a desgraça não
é atenuada. Mais tenho a sorte, isto é, mais tenho dons para tornar sensível minha
infelicidade por desenvolvimentos, adornos, imagens, mais essa má sorte do que essa
infelicidade significa é respeitada. É como se a possibilidade representada por minha
escrita tivesse como essência carregar sua própria impossibilidade – a impossibilidade
de escrever o que é minha dor -, não apenas de colocá-la entre parênteses ou de recebê-
la em si sem destruí-la nem ser por ela destruída, mas também de ser possível, somente
dentro e em razão de sua impossibilidade. Se a linguagem, e especialmente a linguagem
literária, não se lançasse constantemente, previamente, para sua morte, não seria
possível, pois é esse movimento em direção a sua impossibilidade que é sua condição e
seu fundamento; é esse movimento que, antecipando-se ao seu nada, determina sua
390
possibilidade, que é ser esse nada sem realizá-lo. E, em outras palavras, a linguagem é
real, porque pode se projetar para a não-linguagem que ela é e não realiza.
435
Não poderíamos deixar de relembrar o quanto “A literatura e a vida” de Deleuze se
relaciona a esse texto de Blanchot que data de 1949. Nesse texto, Deleuze faz sua leitura das
relações que procuramos nomear tomando de empréstimo o uso de uma expressão que tem
sua significação ligada a outra arte, por assim dizer, de algum modo mais usualmente e
diretamente relacionada com uma dinâmica dos corpos, dos movimentos e temporalidades
corpóreas no espaço físico, vale dizer, o teatro.
Tivemos a tentação, é preciso confessar, de explorar uma “economia crítica do
estilo” em relação às obras de Clarice Lispector e Maurice Blanchot, e desembocamos numa
espécie de impossibilidade latente ou de desgaste das vias que, num primeiro momento,
haviam nos seduzido a iniciar esse movimento de reflexão crítica ou, melhor dizendo,
teórica sobre o problema da relação da forma expressiva e das forças (que se elaboram como
desejo e/ou angústia, ou melhor, e de algum modo, como as duas faces da mesma moeda de
uma energética da relação da escritura e do corpo-corpus) em jogo na construção do sentido
da narrativa ou do relato ficcional nesses autores.
De fato, uma teatralidade maquínica da literatura dependeria da exploração dessa
economia crítica do estilo e nesse sentido foi o que tentamos (em vão) construir de forma
fragmentária, por via da leitura em rede e em chave pós-esruturalista, dos autores que nos
pareceram se vincular de forma bastante forte ao movimento e ao gesto crítico de Maurice
Blanchot como teórico-escritor e de Clarice Lispector como escritora de uma literatura
“literariamente filosofante”.
A imagem da arte teatral funcionando ou funcionalizando uma dinâmica de forças
mais evidente dos corpos e da textualidade que os atravessa pelo texto ou pelo contexto de
sua produção ou ainda, e de forma mais tranversal, constituindo sua instituição estética e
política, deveria ter podido, de algum modo, suprir os desencadeamentos que as
interpretações e análises sobre as forças da escritura começaram a desempenhar na crítica e
na teoria literária da vertente das “filosofias da diferença” na segunda metade do século XX.
Estas, como sabemos, passaram a se preocupar com a arte no sentido da observação não
435
“ Kafka e a Literatura”, in: BLANCHOT, M. A parte do fogo. Trad. Ana Maria Scherer. Rio de Janeiro,
Rocco, 1997, pp. 26-27.
391
simplesmente dos objetos que a constituem ou suas formas de uso e técnica, mas como
verdadeira tessitura de uma energética ou de uma semiótica do “subjectil” (conceito tríplice
da lógica das afecções, percepções e concepções conduzida pela via crítica de Blanchot e,
para além, sem deixar de aí confluir a via de cruzamento com Deleuze e Barthes,
direcionada aqui a uma economia estética do literário enquanto movimento de forças
afectivas).
Ou seja, no que tange ao sentido geral dessa teatralidade do literário, tratou-se de se
fazer uma leitura tão singular quanto nos foi possível da desconstrução do paradigma dos
polos binários relativos às noçoes de sujeito e de objeto de conhecimento de uma
fenomenologia da escritura literária e de sua relação com o corpo escrevente e seu corpus de
produção estética na forma do ficcional literário.
Nesse sentido, gostaríamos de poder ter explorado nesta tese a deriva de uma
intenção quase epistemológica do traçado de uma rede de interlocuções teóricas
relacionadas ao que se chama “gesto” de pensamento de Maurice Blanchot e a uma
experiência crítica necessária e desdobrada desse mesmo gesto; algo que poderia justamente
ter se materializado como o fruto de uma intenção em desvio, seja pela força do fragmento e
da citação (que funcionam aqui como rede de afluências e paradigmas a serem provados e
experimentados como processo interno de uma épreuve crítica, ou seja, aquilo que nos
pareceu ter ficado sem objetividade explícita mas que tem sua força na protensão, como
diria Barthes, de uma intenção futura desse mesmo movimento de experiência do teórico e
do crítico, do literário e do biográfico), seja como a preparação e a postergação deste
“subjectil” arisco e arredio que se tornou, no decorrer do trabalho de tese, o próprio
enfrentamento da variedade de perspectivas teóricas e o direcionamento de uma certa
objetividade em relação a uma “síntese” do movimento teórico e da elaboração crítica
enquanto tais.
Nesse sentido, a crítica é movimento e é gesto, finalmente; tem algo de tópico e de
sistêmico, mas procede por uma relação de tensão que advém em “última” instância da
própria matéria de sua pre-ocupação, ou seja, da linguagem e do corpóreo enquanto
entrecruzados, duplicados e remetidos, nessa pretensão, ao ilimitado de suas conversões e
introjeções, seja de uma materialização concreta no espaço literário de suas confluências,
seja de uma abstração materializável de sua própria instituição como embate da fantasia e da
392
efetividade fática (processo de individuação) no mundo das trocas simbólicas e físicas,
pressupondo a temporalidade múltipla dessas gestualidades tanto da crítica quanto da
literatura.
Já em outra direção, agora em relação a um certo desejo de estrutura de
inteligibilidade que de algum modo esteve recalcado numa tese evidentemente de “gosto”
pós-estruturalista, desejariamos que as epígrafes fossem lidas como fazendo parte do próprio
movimento de força fragmentária da linguagem (Blanchot com Nietzsche e o tema difícil do
eterno retorno) e essa força funcionando enquanto sistema de repetição e diferença em torno
às forças mais vastas e caóticas da própria vida (ou seja, trataria-se aqui do que se poderia
chamar enérgética de uma transversalidade signalética do corpo-corpus na produtividade
teatrológica da literatura, ou seja da posição do “subjectil” literário enquanto estratégica e
tática da voz narrativa na maquínica da fabulação do relato, o que faz Barthes de forma
bastante “técnica” e exemplar em A preparação do romance, seu último curso). Desse
modo, pois, não nos privariamos de ainda poder contar com essa mesma força de reiteração
que se estabelece na coexistência, nem sempre fácil, entre a leitura e a escrita de textos
forçados a se direcionar numa perspectiva acadêmica.
As epígrafes servirão, portanto, para uma espécie de reenvio de imagens e de cenas
outras, cenas “extra”-foco, no que se relaciona aos textos que são ao mesmo tempo focos e
desfocamentos em relação à amplitude das obras de Clarice e Blanchot e com os quais nos
propusemos a tentativa de épreuve, vale dizer, de experiência crítica possível de alguns
traços de seu regime de afecções ou, em outras palavras, a épreuve de sua teatralidade
maquínica que se desenvolve, como dissemos, como analítica do “subjetil” da literatura.
Desse modo, acreditamos que pela inclusão das epígrafes aqui e ali, ainda que de
forma breve ou na latência de suas injunções imprevissíveis (a força de uma performance do
literário ou do ensaístico como acréscimo “casual” de leitura sobre o corpus como um todo),
pudemos acrescentar elementos para fazer migrar ainda outros elementos das duas obras e
que não puderam, talvez, serem supridos como referência nem pela esperada variabilidade
infinita possibilitada pela interpretação dos dois textos focados na tese, Thomas l’Obscur e A
paixão segundo G.H, nem pelo intuito de explorar teoricamente uma série de assuntos e
noções no interior da obra de cada um dos autores que focamos em sua experiência
ficcional. Autores estes que pudemos ler sob a luminescência de um de seus textos e
393
progressivamente no movimento e gestos em confluência com os temas de uma energética
transversal do corpo e do corpus literário e que chamamos de teatralidade literária.
Thomas l’Obscur e A paixão segundo G.H localizaram, portanto, o momento e o
espaço onde o desejo e a expressão de uma investigação tornou-se uma experiência em
deriva, sedenta por encontrar em seus próprios descaminhos alguns pontos de atração
(sentido da metáfora da energética da atração de Foucault sobre a obra blanchotiana) de
algum modo irredutíveis aos problemas teóricos e às modulações críticas necessárias para o
desenvolvimento de um alcance desse “correlato subjectil” que indica a literatura como uma
gestualidade própria de uma “teatralidade paradoxal” da expressão narrativa e ficcional. Ou
seja, é o próprio sentido do subjectil operando o jogo inerente às tensões entre as bordas do
corpo e do corpus de uma economia estética do estilo na literatura o que procuram Blanchot
e Barthes segundo estratégias e estilos muito diferentes mas que se aproximam no que diz
respeito à visualidade e à teatralidade de um espaço de produção literária movimentando-se
como entre lugar entre um corpo e um corpus de atividade literária. Aí observaremos a
potência de uma leitura do biográfico como sendo vertente da própria possibilidade crítica
da obra, mas pensado justamente como o território de tensão e de inexplicatividade da obra e
não o ponto de pacificação e resolução fática do sentido da obra e da escritura.
Então, diriamos que se há uma fabulação necessária a todo teatro, partindo do
movimento da escrita à movimentação dos corpos no espaço e nos lugares cênicos (idéia de
uma semiótica teatral que vê no espetáculo o próprio paradoxo de uma confluência entre
efetividade da existência fática e a produção fantasmática do fabulatório (tendo o espectador
enquanto advindo da própria qualidade ficcional da performance teatral), há também um
movimento de entrelaçamento dinâmico com a existência objetiva da consciência, mesmo
em suas derivas irredutíveis de ida e vinda em direção às forças e matérias do inconsciente.
O paradoxo da volatilidade dinâmica e extática dos corpos como fronteira porosa
entre a escrita e a leitura dos corpos cênicos poderia liberar hipoteticamente (e essa é a nossa
hipótese) um pouco mais uma imaginação crítica sobre uma problemática da dinâmica das
forças fabulativas e expressivas presentes no processo de compreensão da literatura como
teatralidade maquínica do próprio desejo narrativo, ou seja, sua protensão ou tendência à
constituição da escrita (a formação do subjectil literário enfim), escrita desde sempre
transformada pelo próprio desejo de escritura, ou seja, transformada no “correlato subjectil
394
literário” do corpo escritor; vale dizer, a transformação de uma intenção de sobrevida, pela
constituição e instituição de um espaço literário como campo de encenação da energética de
suas forças afectivas, perceptivas e conceituais.
Ou por outra via, essa transformação, que se dá no nível da produção da escritura e
que procuramos “moldar” como metáfora de um movimento no espaço e a partir de um jogo
de temporalidades que é uma espécie de alegoria ou maquínica de uma teatrológica ligada
ao literário, é de algum modo a situação de existência própria dessa vontade de escrita (que
emerge nessa acepção mais intensamente a partir da metade do século XIX: romance pós-
romântico, escrita de si, escrita da escrita de si e em catacrese), e é elaborada a um só tempo
como espasmo e decadência do corpo em seu desdobramento pela linguagem em direção,
segundo entendemos, a uma produtividade paradoxal do corpus literário como
materialização possível do próprio desejo de individuação, sua energética organizada numa
teatralidade literária que não deixa de remeter nunca a um caráter de deriva e de des-
subjetivação próprio do estatus (uma prática e uma teoria) dessa “modernidade tardia” da
literatura que procuramos ler em Maurice Blanchot e Clarice Lispector.
Nesse sentido, uma série de reflexões focadas em textos específicos desses escritores
tentou fazer funcionar, de forma fragmentária, a série de assuntos, temas e noções filosóficas
que percebemos basicamente a partir de textos críticos e teóricos de Maurice Blanchot no
que concerne à amplitude do debate intra-teórico e filosófico que se desdobra a partir de
algumas problemáticas mais densas desse pensador, tais como por exemplo o problema do
paradoxo como expressividade própria de um pensamento agudo sobre a literatura, o Neutro
como conceito aglutinador dos problemas lógicos vinculados ao paradoxo, o eterno retorno,
como maquínica de extrapolação e desdobramento das questões existenciais ligadas à
escritura e ao pensamento sobre a literatura, o (in)operante como conceito de uma
experiência própria da literatura dada no limite de uma produção de sentido que excede um
entendimento do sentido como síntese dialética e se direciona a uma experiência de
sobresuspensão do sentido, aí onde a literatura provoca, evoca e conota seu próprio jogo de
diferenças e sua posição ética particular, a de não resolução mas de protensão e premonição
de uma tarefa “moral” sobre o inacabado do sentido.
O caso da noção-conceito, ou do quase-conceito de Neutro, poderia ser descrito
como exemplar. O Neutro é, no sentido proposto pela nossa tese, um subjectil abstrato, uma
395
noção-conceito ou um quase-conceito como na acepção derridiana que tem sua existência
vinculada e relacionada a toda a obra blanchotiana, bem como exerce uma força de atração e
de magnetismo em vários dos pensadores que relacionamos por comodidade ao que alguns
teóricos franceses chamam de forma geral de filosofias da diferença
436
.
Foucault, Deleuze, Derrida, Bataille, Barthes, Jean-Luc Nancy, Lacoue-Labarthe,
Sollers, Didi-Huberman, Agambem, Morali, Sloterdijk, para citar alguns dos pensadores
contemporâneos que lemos, cada qual a seu modo e segundo uma economia crítica singular,
nunca sem tensões e louváveis debates, compartilham, se assim pudermos dizer, porque não,
de uma leitura não dialética e diferencial do conceito de identidade. Não-dialética, ou
adialética, porque há no trabalho desses pensadores - ou pelo menos parece se impor a
necessidade de uma postura teorética que assim se elabora - a intenção de fazer com que a
identidade “a si” do objeto de reflexão se desintegre ou se desgaste ou se re-elabore
disjuntivamente no movimento de sua própria contestação. Não há intenção de uma
contradição produtiva e em direção a uma síntese dos contrários, mas sim permanência no
processo de contradição por meio de uma crítica fundamental da constituição dos
pressupostos lógicos contidos nas nõções de diferença e identidade, estas advindas de uma
postura reflexiva e dialética da filosofia ocidental voltada eminentemente para uma
metafisica da presença a si do conceito sem relação com o caráter constitutivo da diferença
no interior da identidade, instaurando o jogo entre presença e ausência como a própria
possibilidade do pensamento filosófico.
Pois bem, esse assunto é vasto e complexo demais e gostaríamos de apenas apontar
para a direção, não menos trabalhosa, que indica o fruto teórico das preocupações de
Blanchot com a literatura e que se disseminam de um modo ou de outro nos autores que
procuramos ler neste trabalho de tese.
A capacidade de impermanência permanente (caráter de jogo intrínseco ao
pensamento) ou de possibilidade de uma referência sempre relançada ao impossível de uma
identidade estática da linguagem literária se daria como fazendo parte do espaço
absolutamente móvel, gestual e teatrológico que comporta o Neutro como expressão lógica
(diríamos, informal) para a performance de literaturas como as de Clarice Lispector e
Maurice Blanchot e como também acontece em tantas outras literaturas que coexistem em
436
Cf. DESCOMBES, Vincent. Le Même et l’Autre. Paris, Minuit, 1979, pp. 160-195.
396
formas e sob regimes expressivos diferentes no interior dessa maquínica iterável da
instituição literária.
O Neutro blanchotiano elabora, desse modo, a idéia de um espaço (im)ponderável
que, por isso mesmo, pode exercer a força ou constituir uma verdadeira economia de uma
paixão do Neutro. Não se trata de entender o que se passa no interior desse espaço pois não
há interior nem exterior ao Neutro, visto que ele elabora e “maquiniza” justamente a
coexistência e a dobradura que significa o trabalho de abstração do pensamento em sua
vertiginosa construção e fragmentação de sentido pela linguagem.
Se o teatro pode ser percebido como uma confluência de espaços, tempos, materiais
e matérias co-existentes como constrição e expansão das capacidades conscientes de
percepção e fruição da existência individual e coletiva, a literatura poderia ser pensada como
expressão expurgada dos elementos espaciais e institucionais “específicos” do teatro. A
literatura passaria a ser pensada, como pretendemos, a partir da possibilidade de existência
de um entre-lugar ou “espaço do neutro”, que elabora um jogo de forças sensíveis-
inteligíveis absolutamente correlatos e inseparáveis entre a possibilidade de escrita e a
possibilidade da vida dessa escrita como leitura e desse desdobramento semiótico
funcionando como “aproche” existencial entre um corpo e um corpus da literatura em um
sentido transversal, vale dizer, imanente e transcendental, individual e coletivo a um
tempo, obsservados como processos históricos e culturais que devem ser ora desmembrados
ora reorganizados em outros corpos-corpus de sentido e, por que não, de sensação. Este
processo é o que pretende uma economia crítica do estilo enquanto prova-ção ou épreuve
crítica.
Esse espaço do entre, dado pela noção do Neutro, poderia ser percebido também
como fazendo parte de toda possibilidade de uma crítica dialética do sentido, aí onde o
sentido não precisa ser categoricamente contradito, mas questionado em seu jogo “interno”
em relação a sua exterioridade latente. Ou seja, já não se nega simplesmente para alcançar
pela negatividade um contrário oriundo de uma operação de contradição de uma
positividade, mas se observa em toda negatividade um jogo de positividades reversas mais
ou menos estáveis, mais ou menos instáveis e que não podem serem fechadas num círculo
dialético, mas apontam justamente para o ilimitado das forças que agem e reagem
irredutíveis a um sentido final.
397
A paixão do neutro é em maior ou menor grau a paixão de Kafka pela Literatura
enquanto fazer literário de uma escrita de si fadada à verdade de sua fragmentação, tanto
lógica quanto psíquica, tanto estética quanto filosófica, mas de algum modo permanecendo
como uma aproximação do impensado do próprio pensamento, mesmo que nessa aparente
contradição seja necessário atravessar os mesmos territórios institucionais dos regimes de
saber que acabamos de citar como instituidores de modos do pensar.
Porque a literatura, no que concerne a essa sobrevivência no espaço de paixão do
Neutro, não se atém a uma finalidade que não seja ela mesma eterno recomeço, eterna
reelaboração de um desejo que se dá não como resultante e sim como projetividade para
além de seu próprio presente e em direção a essa fomentação teatral da literatura e sobre a
qual Deleuze desdobra conceitos como devires-força no seio da apresentação das cenas e
das ações dos personagens literários. A esse respeito, ou seja, no que concerne a uma
espetacularidade dos movimentos no interior das narrativas-limite - como chamamos esses
textos que nos atrairam neste trabalho - ou de um outro modo, a questão das “vozes” e
particularmente da voz narrativa como espaço e movimento do neutro na literatura,
procuramos “pôr em cena” uma certa experiência crítica em seu desdobramento de
comentário, funcionando essa estratégia como a possibililidade justamente (in)operante de
uma intenção que poderiamos por enquanto chamar de pós-crítica. Pois como haviamos
apontado, o caráter de (in)operância dessa crítica tem a ver não com uma impotência de
alcance de seus temas e focos e sim com uma rejeição de leituras redutoras a pressupostos
de inteligibilidade desde sempre relativos e que não poderiam suportar o ilimitado da
experiência-limite com a que nos deparamos a partir dos gestos literários de Clarice
Lispector e Maurice Blanchot e que situam o próprio movimento da escritura como re-
elaboração fática e fabuladora de suas ficções.
A (in)operância como força ou gesto de leitura crítica é portanto, nesse sentido, uma
postura (uma “teatrológica” da leitura-escritura do literário em geral) ético-crítica que se
situa “em meio” ou em trânsito (numa transversalidade) em relação ao processo ou ao
procedimento do comentário, em meio ao desdobramento proliferativo de tendências
teóricas e práticas literárias, nessa diagonal em que pode alcançar o corpo suas
reverberações mais micropolíticas, portanto microscópicas e macroscópicas que se
desencadeiam por meio da possibilidade de uma escritura generalizada de políticas
398
corpóreas em meio aos “corpus” de fazeres e saberes sempre inacabados, fragmentários,
excedentes às resoluções instituidoras de condutas dos poderes centralizadores. Ler é
inscrever-se numa atividade coletiva, trans-histórica, onde o próprio corpo se realiza como
resultante e produção de uma sensibilidade corpórea de potência (in)operante,
desafiadoramente e preformaticamente individuante (silenciosamente ou não).
Palcos virtuais
Uma teatralidade maquínica da literatura deveria poder provocar a confluência de
algumas preocupações teóricas e críticas que a experiência deste trabalho de tese procurou
segundo uma espécie de elaboração performática, gestual, mesmo que tenha tomado para
todos os efeitos uma certa estruturação esquemática formal, com uma parte de exposição
teórica e um direcionamento progressivo a um processo chamado de prova-ção ou da
experiência mesma de uma épreuve, como nomeamos o conceito da confluência entre a
teoria e a prática crítica na literatura. Também, e em particular, procuramos na experiência
de leitura dessas literaturas-limite, como as chamamos, o gesto agônico e de descrição de
um impensado dos textos comentados de Clarice e Blanchot, como também, pela via
“teórica”, uma certa postura crítica sobre algumas experiências literárias-limite, desde
basicamente os ensaios de L’entretien infini de Blanchot, escrito em 1969, L’experience
interieure de Bataille, bem como a leitura dos ensaios reunidos no livro de Philippe Sollers,
L’écriture et l’experience des limites, e as obras de Deleuze e de Foucault, obviamente, em
tudo o que se realcionam à literatura como expressividade de um espaço de exterioridade
convulsiva da linguagem.
Se Deleuze, - seguindo uma via analítica cara a Blanchot - pode dizer em “A
Literatura e a Vida”, de Critique et Clinique, que a tendência da experiência literária vai na
direção de uma “terceira pessoa”, ou seja, que essa experiencia se projeta em direção a uma
entidade narrativa “ele” (le “il”, le neutre de L’entretien infini) ; no caso de A paixão
segundo G.H, esse movimento de deslocamento da voz narrativa não deixa de acontecer
mesmo que se dê na forma de um relato em primeira pessoa e, de forma ainda mais
conclusiva, diriamos que esse movimento em direção ao impessoal, ou seja, que o
movimento de “deslocamento” em direção ao Outro portanto (subsumido como um
399
questionamento transubjetivo – vale dizer, como uma maquínica de um subjectil Eu-eu-
outro, a que chamamos, em sua expressão narrativa, teatralidade literária), opera a partir de
uma retoricidade propria a figura do paradoxo, se encadeando a partir das próprias forças
expressivas em torno das quais opera a esfera de abstração do neutro.
Essa terceira pessoa, então, se assume ou se escamoteia como Eu, mascarando no
interior de sua narratividade tanto a condição da experiência literária como movimento em
direção a “ele” quanto retromovimento de retorno ao Espaço de vertigem onde se con-forma
em sua teatralidade maquínica o escritor a partir do movimento e da economia do
narrador
437
.
Nesse sentido, diriamos que G.H não é nunca Clarice Lispector, sendo já de antemão
sua destituição progressiva e dissimulada e, paradoxalmente, sua constituição exclusiva-
inclusiva, extensiva e intensiva, diriamos com Nancy e Deleuze (e aqui precisamente opera
o jogo de tensões que observamos assim como o par “teatrológico” corpo orgânico-
libidinal/corpus de escritura literário), como escritura própria de uma literatura limite que
se extende justamente em processo bivalente (eterno retorno de um processo signalético dos
corpos e da linguagem ou do discurso) nesse espaço de “fermentação” da experiência
“limite” do escritor de que fala Blanchot quando se refere a Kafka.
Vale dizer que observamos aqui, em camadas, em Clarice Lispector e em M.
Blanchot, tanto o parodoxo da irredutibilidade estrutural da linguagem literaria, quanto a
deriva e a multiplicação polifônica dos gêneros literarios em que se movimenta a literatura
contemporanea e que procuramos nomear nessa operatoria, a partir do conceito de voz
narrativa, teatralidade maquínica da literatura.
Breve olhar sobre o gesto narrativo de G.H.
Ao mesmo tempo em que G.H descreve sua experiência limite num dia ensolarado e
comum em um apartamento em Copacabana no Rio de Janeiro, o narrador dessa experiência
437
A esse respeito, vale dizer, ao que chamamos de subjectil Eu-eu-outro, são insuperáveis as reflexões
contidas na aula do dia 15 de dezembro de 1979 do curso A preparação do Romance, II de Roland Barthes,
onde observa-se uma verdadeira, vasta e erudita prática do que chamamos de épreuve crítica no que diz
respeito a uma investigação psicanálitica de uma maquínica Eu ideal/Ideal de Eu numa perspectiva diferencial
entre a escrita e o Eu ideal que Barthes lê a partir de Freud/Lacan. Cf. BARTHES, R. A Preparação do
Romance. v. II. Trad. Leyla Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 2005, pp. 67-98.
400
sofre um processo de ambigüização , se bifurcando e se disseminando, diriamos, de forma a
participar tanto de um devir-Eu narrador, quanto de um devir-mulher-dona-de-casa ou um
devir-escritora, quanto de um devir-outro-personagem.
Esses complexos de devires tornados “maquínica” de um subjectil literário,
mascaram ou dissimulam, pela vertente subjetiva e introjetiva de um eu “com minúsculas”
(moi) ao lado do primeiro EU “com maiúsculas” (Je), a co-presentividade narradora e
personificativa, escritural e autoral a um só tempo, dispersa numa institucionalidade limite
da literatura a qual prefirimos nomear tetralidade maquínica e que desenvolve, pela voz
narrativa, grande parte de sua potência de acesso às zonas - limites, às zonas de vizinhança
onde as identidades das forças expressivas, modais (retóricas e performáticas) devem se
fragmentar e se rearranjar na repetição de seus processos diferenciais, maquínica estrutural
da linguagem como discurso, na reorganização ou reterritorialização extensiva e intensiva
do movimento teatrológico dessa escritura-limite.
Essa subjetividade de algum modo alter-biográfica pôde gerar o que quisemos
mostrar como fazendo parte do que Blanchot chama de “voz narrativa” operando como
espaço-tempo de movimento do “correlato subjectil” do neutro na literatura que funcionaria
a grosso modo como o infuncional, o espaço necessário ao jogo, lugar da diferença enquanto
absense, diferenciação no seio da produção da identidade do conceito.
Há no complexo maquínico e teatrológico da passagem do Eu-Tu ao Ele um
movimento quase espasmódico, movimento relacional inteiramente indiscernível a não ser
na forma desses esquemas lentos baseados numa dicotomização de pares binários de tensão
contraditória tais como objetividade/subjetividade, interior/exterior, dentro/fora,
inteligível/sensível, forma/conteúdo, etc, os quais substituimos, ao menos em intenção
abstrata, pelo trilema Eu-eu-outro que implica o relançamento ao “fora de si” que se toma e
se dá, na forma desse “terceiro excluído” que coexiste como “excluído-incluído” For/Da de
Freud, e que retorna sempre na forma do desejo, seja de escritura, seja de solidão, ou de
comunhão, mesmo que talvez impossível de se materializar formalmente segundo formas
cotidianas, mas que talvez possa se manifestar pelo modo transitório que o sentido do
literário vem a forjar como uma teatralidade da leitura-escritura.
Há uma destituição do poder de dizer Eu, na mesma medida em que um “ele” é
lançado para fora desse eu dúplice e tríplice, a um só tempo, fazendo ou criando linhas de
401
fuga onde a linguagem de algum modo pode escavar suas próprias saídas ou retroceder a
suas próprias reentradas, na superfície híbrida desse tecido fabulador em que se invagina a
experiência do pensameno e a experiência-limite da escritura literária em direção a seu
próprio retorno sem origem, ou seja, ao impensado. Pensar se ealbora em signos que
devolvem ao pensamento sua origem sem fundamento que não seja o de uma
transversalidade entre coletividade e individuação.
E é aí de forma irredutível que se re-apresenta na forma dessa teatrologia silenciosa e
galopante que descrevemos finalmente como o apelo ou gesto de afirmação de um devir-
imperceptível sobre o qual se lançou ou se destituiu a própria voz neutra de G.H.; e que em
sua experiência (paixão do neutro como instauração de processos de vizinhança e de trocas
entre suas linhas de fuga, reterritorializações entre suas forças de coesão e dispersão do
sentido da presença de seu próprio corpo, ou do sentido das sensação corpóreas de sua
experiência existencial limite), descreve o ritmo e o desvario de sua experiência dupla
(vivida e relatada) como a entrada num espaço ou numa “região neutra” da vida.
Se há um neutro mais “alegórico” ou mais “conceitual” em G.H ou em Thomas, em
Clarice ou em Blanchot, esses elementos de diferença poderiam ser observados como
justamente a possibilidade do trânsito e da vertigem que uma experiência limite da literatura
pode fazer se movimentar na superfície porosa instaurada pelo desejo de uma épreuve de
escritura crítica aguda; fazendo ressoar aí a propriedade de um pensamento sobre a escritura
que constituvivamente ao modo do literário atravessa outras regiões de saberes, seja como
jogo de intensidades mais estruturais, seja como jogo das variações múltiplas no seio da
experiência estética, sensorial e corpórea, como a própria experiência de uma escritura
literária limite.
Thomas e a performação do impensável
Thomas, como G.H a seu modo, literariamente ou teatrologicamente como
queremos, performa, sob diversos aspectos a própria maquínica deste subjectil conceptual
que queremos associar como sendo da ordem do próprio Neutro blanchotiano.
Poderiamos apontar diversos momentos onde ocorrem como que “jogos de
máscaras” narrando as ações de Thomas ou as cenas em que Anne e Thomas parecem de
402
algum modo se digladiarem com uma presença fantasmática, paradoxal, nem negativa nem
positiva em relação à direção valorativa do discurso ou ao encadeamento diegético do relato
(presença conceitual, performativa, retorica? - todas?).
Nessa narrativa também se movimenta como que de forma eclipsada e cadenciada,
mas sem o sentido de uma sincronia apaziguadora, uma força paradoxológica, um circuito
de referências e descrições dos movimentos de um personagem que literalmente se desgasta
num sentido simbólico e existencial ao mesmo tempo, sem finalidade objetiva, que
escorrega entre as cenas como se se representasse como a alegoria de um desgaste infinito e
sem finalidade prática, quase como a representação ampla de uma espécie de visão entrópica
do movimento coextensivo entre o espaço e o tempo, o escorrimento vagaroso e a vertigem
de uma imaginação literária sobre a incerteza e a potência infinita e enigmática da
existência.
É aí também nesse espaço literário de performação paradoxal e de luminescência
obscura do neutro, onde o próprio discurso potencializa uma espécie de neutralização do
sentido ou de uma finalidade prática das ações na história ou da relação das atitudes no
interior e no decorrer dos curtos e lacônicos diálogos entre os personagens.
Seja a própria presença dos personagens Anne, Thomas ou alguns outros mais ou
menos coadjuvantes mas não menos importantes de algum modo, finalmente há a
performance de uma relação paradoxal entre a aparente presença de seus corpos ou dos
efeitos que seus corpos provocam e a invocação de uma reticente negação inconclusiva
desses efeitos, retornando na forma de voltas e de duplos efeitos de contradição a uma
espécie de “grau zero” das intensidades e dos meios discursivos de se orientar o relato. Em
outras palavras, ou melhor, nas palavras de Barthes, essa performance é da ordem de uma
“escritura branca”, neutra, da ordem de um movimento de temporalidade em que se
referenciam os objetos no passado simples, esse tempo verbal que articula e constitui o
acesso à própria teatralidade da voz narrativa no relato (récit)
438
.
Mas isso não impede que o relato flua, porém no ritmo paradoxal de um movimento
que lentamente retorna várias vezes para seu próprio reinício e parece dar um passo atrás a
cada dois passos à frente.
438
Cf. Barthes, R. Le degré zéro de l’écriture. In: OC, v.I, p. 189.
403
Em Thomas l’Obscur caberia pensar ainda mais diretamente no que acabamos de
colocar a respeito dessa paradoxal destituição do Eu em direção ao outro, ou em relação
àquela terceira pessoa (Ele) para onde se extende e se “espaça” (s’é-loigne, como afirma
Derrida em Parages) a voz narrativa; se distendendo ao mesmo tempo nessa co-presença em
que pode se posicionar uma voz ou mais vozes, teatralizando o “complexo signalético” que
poderiamos chamar, por enquanto, auto-bio-esquizo-gráfico, alter-biográfico, ao qual nos
referimos pela noção já citada do Eu-eu-outro, noção esta dada imperativamente sempre e a
partir da dinâmica da linguagem (literária), a partir da instância fabular do ficcional,
enquanto processo no interior do qual se performa uma teatralidade do jogo entre o que
Barthes chama de Ideal do Eu (“do lado do Simbólico”) e Eu ideal (“do lado do
imaginário”)
439
.
Uma noção de épreuve crítica não deveria nunca ser associada a uma interpretação
laboratorial e de prova ou de experiência no sentido da constatação empírica tout court.
Muito antes, essa “experiência” crítica enquanto épreuve se aterá ao movimento de
deslizamento da investigação ao sentido e do sentido a sua posta em jogo (l’enjeu da atitude
crítica, da literatura e da teoria) pelo movimento expresso pela noção de subjectil do neutro
ou da “paixão do neutro” como via de acesso à particularidade dessas literaturas que
chamamos limite.
Pois uma épreuve crítica deveria poder, ao mesmo tempo em que tematiza a cena
literária em seu sentido amplo, também se abster de ultrapassar
440
os limites dos jogos
próprios em cada expressividade ficcional de que trata. Não se trataria nesse sentido de
“explicar” ao modo de uma hermenêutica agudíssima, (apesar de existir a tentação), os
meandros alegóricos e as sutilezas simbólicas que talvez puder-se-ia encontrar nessas
literaturas, mas sim, poder de algum modo “acompanhar” - pelo regime (in)operante do
comentário - o “movimento”, ou a “gestualidade” implícitas-explícitas na economia de estilo
observável nessas literaturas e numa certa constância fragmentária de seus processos de
complicação e de criação de suas cenas, suas preocupações temáticas e os modos narrativos
em que os relatos são construídos.
439
Cf. Op. Cit. Barthes, R. A preparação do romance, V. II., pp. 72-3.
440
Não ultrapassar, mas se ater ao limiar dessa aproximação, o neutro na verdade “se dá” ou opera no limiar
dos limites, ou seja, participa, descreve ou se inscreve nas zonas de vizinhança e de fusão entre linhas de fuga
404
Observação e síntese de uma leitura ao modo de uma épreuve crítica.
Por exemplo, há em vários textos de Clarice, senão em todos, uma espécie de luta
interna de algum modo sustentada por uma potência neutra de sua sintaxe, na qual se
aglutinan muitas vezes como verdadeiras performances teatrais (o exemplo mais claro
inclusive em sua formatação, é o texto póstumo Um sopro de Vida de 1978 onde os
significantes “Escritor” e “Angela” são os personagens que performam um embate
aparentemente solipsista, mas totalmente interseccionado na voz narrativa que
subrepticineamente coexiste nas duas vozes que dialogam sem se encontrarem) imagens
paradoxais e barrocas na construção de suas cenas e mesmo na atitude ou na gestualidade
própria a seus personagens.
Nesse sentido, os contos também são uma mostra bastante eloqüente de
questionamentos não apenas existenciais, mas de algum modo invadindo uma agudeza
agônica (traço semântico geral de estilo em Clarice, desenvolvendo de formas variadas
problemáticas a respeito de uma incomunicabilidade latente entre a consciência de seus
personagens e do mundo cotidiano) a respeito do embate entre uma potência espiritual
presente ou pressentida no mundo, e seu correlato objetivo expresso pela fria e material
realidade dos fatos, sejam cruéis ou banais ou geralmente esses dois traços factuais
ocorrendo ao mesmo tempo e se apresentando na forma irônica e na maior parte das vezes
grave e consternada em que nos são relatados pela voz narradora.
Mas essa exploração de uma potência amgua dos fatos e dos questionamentos de
consciência de seus personagens, ou a própria construção de suas cenas, ambientalizando às
vezes mundos de uma luminosidade estranha (diriamos mesmo obscura: “O ovo e a
galinha”, “Os desastres de Sofia”, A paixão segundo G.H, Água Viva, etc.) e que podem
resvalar sensações de onirismo e fantasia, ou muitas vezes a aparente perda da objetividade
(aparente pois há sempre um critério e um retorno à imagem paradoxal desenvolvida pelo
narrador ou pelo personagem e que tende geralmente a permanecer suspensa, iluminada
obliquamente por imagens filosófico-poéticas muitas vezes herméticas - nesse sentido, há
das forças estéticas em jogo numa expressividade teatrológica; como no exemplo conhecido de Deleuze, do
devir-híbrido da orquídea e da mariposa e onde um outro devir de proliferação se reterritorializa.
405
em Clarice também uma paixão do neutro) é permeada de uma intensa problematização
extremamente existencial, agônica, mas que não deixa de propor uma espécie de doçura
latente e melancólica no fato de sua descrição, uma série de traços e remarcas éticas,
estéticas e de incrível tensão teológica, tendendo finalmente a uma espécie de especulação
da ordem de uma teologia negativa aplicada à existência.
Porém, é imprescindível que se diga que o que gostariamos de ter conseguido fazer
no que diz respeito a essas “cenas” claricianas seria mostrar a teatralidade potencializada por
um gesto que aproximamos diretamente da paixão do neutro blanchotiana e que poderia ser
pensado como a elaboração do percurso conceitual e teórico em vias de se projetar ao
embate propriamente crítico e à leitura de algum modo “alegórica” das cenas e de algumas
performances na escritura e na matéria desses relatos.
Pensemos em G.H. e em toda sua experiência agônica. Há o tempo todo uma série de
momentos que variam em suas intensidades e alturas em relação aos quais a personagem se
encoleriza ou se pacifica, entrando em frenesi ou se alastrando de modo a pressentir-se
como um vai e vêm de forças psíquicas e “existenciárias” (a relação é com Heidegger
mesmo) que levam G.H. por vezes e se questionar sobre sensações, visões e gostos, sabores
neutros (daí um traço fortemente corpóreo, sanguíneo, uma relação intensa com uma
primitividade selvagem, um assédio tenebroso do desastre porém domado por uma espécie
de esperança nostálgica de uma ascese impossível). Entre as séries de crise, a visão e a
experiência de um espaço não vazio, mas antes, pleno de uma ausência incolor e insípida e
de uma projeção dessas sensações tão forte e aterrorizante quanto estranhamente
pacificadora.
Ao invés de uma espécie de moralidade notória ou de fundo, o que se vê nos
julgamentos constantes de G.H sobre sua experiência agônica e existencial são seus
questionamentos em relação aos outros ou às suas atitudes que descrevem um contorno ético
impresso como transparência de franqueza e que se baseia sobretudo num linguajar que
hibridiza a complexidade e agonia lexical com simplicidade e banalidade linguageira,
rementendo-nos a uma sensação de estranhamento sobre um relato que de algum modo tem
uma relação enigmática com o cotidiano, apesar de ser de algum modo uma experiência de
despersonalização e de mergulho quase psicótico nas profundezas de si como ser finito entre
outros seres finitos e a infinitude do próprio fato existencial em si, ou o fato de um certo
406
quid apofântico a ser necessariamente e imperativamente experimentado em sua extensão
finita.
Uma ascese (talvez antes deveriamos pensar numa “descese” no caso de G.H) ou
experiência limite de tal envergadura ocorre finalmente e, por incrível que pareça, durante o
dia, num apartamento de classe media-alta carioca, com uma mulher comum, um pouco
dona de casa um pouco artista, um pouco solitária, um pouco ressentida e de algum modo
existencialmente sob a égide de um confronto consigo mesma, para daí, sim, alcançar uma
verdadeira entrada no domínio de uma solidão essencial que se realiza no relato, no
testemunho da experiência.
Como em Kafka e em Blanchot, há a seu modo em Clarice uma potência neutra de
afirmações negantes ou de negações afirmativas e que de algum modo (certamente uma
série de modos sintáticos, semânticos e temáticos que se extendem pela obra) fazem de sua
escritura uma teatralização suspensiva de cenas que indicam finalmente um mundo que não
depende de quem já não se remete ao mundo como simples objeto deste, mas sim como um
sujeito que vive ao modo de uma duplicidade latente e disseminada ou projetada na
performação do embate de suas vozes (narrador/personagens), ou seja, a partir de um quase
inverossímil processo de aporias e sonhos, desejos e volições, para daí em diante, como
numa metáfora geral sobre a atividade limite da escrita, não precisar compreender mais o
que se dizer, pois pareceria haver nesse ponto o encontro e a cegueira própria em relação a
uma paixão neutra do mundo.
Se o desejo da escrita, como afirma Barthes em A preparação do Romance, se
relaciona ao embate e ao relançamento indefinido de uma idealização “protensiva” (que
investe nesse processo porvir de afirmação narcísica, criando e reverberando um Ideal de
Eu) de uma escritura que procura fazer valer o valor próprio de um Eu ideal do escritor, em
Clarice essa protensão parece buscar um arrebatamento desde sempre postergado numa
esfera de apaziguamento de algum modo afirmativo, mas que detém em sua conclusão, no
caso de G.H, a posse de uma abertura a uma espécie de impessoalidade contemplativa.
Abandono de toda objetividade do questionamento existencial ou teológico em prol de uma
astúcia conquistada pelo sofrimento de uma paradoxal ascese deceptiva. A partir do menos
se encontra uma desenvoltura neutra, uma espécie de mensagem de desapego em relação ao
407
oriundo de uma mortificação egoica, que procura e se posiciona na afirmação deste mesmo
mundo.
Desse modo, é no fim do relato que G.H se remete a uma singularidade decisiva de
sua experiência limite. Ela não precisaria mais pertencer ao mundo, porém, diz que assim
como em um passe de mágica ou, poderia se dizer, no modo de uma “linha de feitiçaria” (ou
o impensado eclodindo como uma força de consistência do sujeito) como o diria Deleuze,
ela (G.H, essa força teatrológica maquínica tornada voz narrativa) pressente que “a vida se
me é”. E nessa reflexividade marcada pelo pronome oblíquo, é marcada uma bivalência ou
retrovalência incomensurável, onde essa voz (voz como performance do próprio subjectil
narrativo, relatável e teatralizável portanto), parece poder já não precisar mais entender o
que diz
441
. Mas todo o relato se inicia como o esforço sobre-humano de testemunhar uma
experiência finalmente indizível ou incompreensível portanto. A escritura aí se performa
como a infinitude do desejo da escrita, reverberando “em seu meio”, pelo seu meio, ou na
extensão de seu próprio espaçamento, sua única possibilidade, a saber, dizer entre seu desejo
e sua finitude ou sua morte (fim da obra, relançamento do desejo assinalado pelo retorno ao
amor incomensurável da vida, vida talvez de um novo desejo, repetição dos travessões,
retomada do desejo sobre a morte “parcial”, postergada dessa obra).
Vertigem da escritura, pelo sentido poético, o mundo se abre ao delírio de uma
experiência limite da linguagem enquanto indício teatralógico sob o corpóreo e nessa
produção, a visão premonitória de um reencontro enigmático com a própria vida feita ou
reelaborada como pertencimento sem finalidade aparente que não seja o da premonição de
um retorno ou de uma espécie de reflexividade - não apenas no sentido especular, mas no
sentido, existenciário, homoestático, sinestésico enfim das forças afetivas postas em cena
pela voz narrativa - exaltante em relação à vida. “Então eu adoro. ------”. Há aí uma espécie
de neutralização do conflito e das cargas afetivas descritas no relato e dadas finalmente
como uma potência (in)operante de uma compreensão limite sobre a vida. Potência do
“Adorar”, passividade exaltante e paradoxalmente afirmativa diante do impensado como
441
Cf. o último parágrafo de A Paixão segundo G.H. p. 179. «Le monde independait de moi – voilà la
confiance à laquelle j’étais arrivé : le monde independait de moi, et je ne comprend pas ce que je raconte ;
jamais ! Jamais je ne comprendrai ce que je dirai. Car, comment pourrait-je parler sans que la parole mente
pour moi ? Comment pourrai-je dire, sinon timidement : la vie mest, et je ne comprends pas ce que je dis. Et
alors j’adore ------». Cf. Lispector, C. La passion selon G.H. Trad. Claude Farny. Paris, Ed. Des Femmes,
1998, pp. 229-30.
408
força amplamente ilimitada e que ultrapassa o próprio dizer, pois sempre engloba todo dizer
no seu próprio limite, limiar portanto que desdobra a finitude da obra em ilimitado diante do
qual se adora, ou em outras palavras, se ama sem limites.
Todo o jogo descritivo e sintático se baseia numa paradoxologia que “resvala” (passa
perto e se embebe nessa aproximação) uma teologia negativa que se neutraliza por fim, ao
afirmar situações de negação que de algum modo complementam o argumento de forma
novamente positiva. “O que não sou eu, eu sou”. Lembremos da imagem da perna amputada
no início do relato onde toda uma economia paradoxológica se elabora como a própria
imagem primitiva da experiência limite, fazendo sentir a ausência como presença perdida e
latentemente (im)pulsionada pelo próprio relato.
A escrita, o signo portanto, e para nós aqui, teóricamente, a própria economia
teatrológica dada como signalética de suas forças afetivas e expressivas, assim como nos
lembra Blanchot, torna a referência (em G.H, essa referência situa e posiciona o fantasma do
desejo da própria escrita – a tensão entre o simbólico e o imaginário, entre o Ideal do Eu e o
Eu Ideal - que relatará o que já não é mais, mas que logo será novamente a sobre-
determinação de seu objeto, ou seja, o que chamamos subjectil) o próprio elemento de
disseminação como o efeito de sua prática, a retomada do paradoxo como afirmação de sua
imaginação fabuladora. A boa narrativa é particularmente o canal possibilitador desses
encontros seriais, materializando como gestualidade narrativa o próprio efeito dessa
dissimulação replicante do signo e de sua signálética que se referencia ao que tem existência
como retorno da imagem ou materialidade emancipatória do vivido enquanto desejo de
posição atualizada, re-presentada ao modo do jogo cênico das vozes narrativas e narradoras.
Em G.H ainda diriamos que uma ambiência particularmente ligada ao que
entendemos como paixão do neutro é de algum modo afirmada categoricamente no final. “O
mundo independia de mim” é uma frase que remete àquela imagem da literatura que nos dá
Blanchot e que lembramos no início, pois quem diz algo no mundo faz parte de alguma
forma desse espaço de ampla turbulência que se nos apresenta como espaço fático e onde
concretamente nos extiguiremos seja por transcêndencia ou por pura desintegração
imanente. Por outro lado, se essa mesma voz afirma que o mundo não depende de si, então
haveria aí uma relação potencialmente neutra, pois ao dizer afirma a força do dito e nesse
dizer se desloca toda relação daquele que diz à finalidade ou ao objeto para o qual se diz.
409
Essa postura ou esse gesto indica o ápice da vertiginosa experiência limite expressa
por G.H., e nesse ápice não há nenhuma elevação ou sucumbimento, transcendência de
nenhum tipo tem aí lugar. Talvez antes, poderiamos dizer, em lugar de ascese, há uma
“descese”, como já afirmamos, ou “decepção” nos termos de uma espetacularidade epifânica
esvaziada de sua finalidade transcendente. Talvez o efeito, e uma potência desse modo
(in)opera nos limiares desse fim de relato, tenha sido apenas a exposição do Corpus de uma
reflexividade da voz narrativa sobre a vida, ou do mesmo modo e correlativamente, da vida
sobre a voz neutra que diz então simplesmente “Então eu adoro.------”.
Em relação a Thomas e por outra via de acesso ao movimento gestual dessas ficções,
G.H. dizer timidamente “a vida se me é” e então dizer “Então eu adoro. ------” nos remete de
algum modo, mesmo que numa espécie de inversão de potências afetivas no final de Thomas
l’Obscur, à entrada do protagonista no mar, mas antes talvez, remeta mais ainda à hesitação
suspensiva deste, antes de entrar nu nas águas do mar que fechariam o relato no mesmo
elemento em que deram início a suas primeiras palavras, quando Thomas via ao longe
nadadores aparentemente a nadar.
Há então, em Thomas l’Obscur, no final da narrativa, um retorno à imagem do mar
(retorno ao começo e ao recomeço, simbolicamente ou estruturalmente) e de pessoas
anônimas que se entregam como num recomeço de suas existências ao “renascimento”
mesmo que doloroso de algo que não necessariamente pode ser afirmado como a própria
vida. Mas a relação que se poderia estabelecer nesse ponto se dá mais como o processo de
visões pelo que passa Thomas do que pela imagem final, daquele retorno aparentemente não
desejado a uma existência que lhe havia sido mostrada no penúltimo capítulo, eterna e
ciclicamente repetível como numa espiral infinita de imagens quase impensáveis que
contrapunham a morte de Anne à inexistência, a vida ao que não se esgota na morte mas
que, contrariamente é feita de algum modo da própria morte, esta impossível de ser vivida
enquanto pura finitude plenamente experienciável. (Como se sabe, este é um tema profundo
e absolutamente tenebroso do que poderiamos chamar do “ateismo cético de Blanchot. O
fato da consciência individual se saber, perante a impossibilidade do conhecimento fático da
morte e, no entanto, condenada a pressentir concreta e “eternamente” essa impossibilidade
existencial. Isto gera uma percepção a nosso ver “decpetiva” e (in)operante sobre os fatos da
410
existência. Ou seja, é necessário se voltar constantemente e sem fim a essa finalidade
imponderável da existência.)
A potência da (in)operância para nós é, nesse sentido, a operatória do fato da
existência ser a própria possibilidade do impossível como eclosão do intervalo entre finitude
e infinitude, descontinuidade e continuidade. Já Jankélévitch aprofunda de forma
filosoficamente aguda toda uma densa especulação sobre essa problemática que
encontramos em Blanchot ensaisticamente e literariamente desenvolvida.
Adorar um mundo que não depende de quem o adora ou a vida em direção a uma
sobre-vida dentro da própria vida como morte inevitável, seria talvez retornar a um estado
existenciário onde não importe o que se fizer. Haveria algo que após o relato de uma
experiência limite lhe seria dado, e sob esse efeito, imporia uma espécie de sobre-
experiência infinita
442
, tracejada por seis traços que recomeçam sempre novamente no início
da narrativa no caso de G.H de Clarice ou marcada pelo retorno envergonhado à nudez dos
recomeços no caso de Thomas de Blanchot.
Se para Blanchot a morte é impossivel devido à impossibilidade experiencial desse
evento de algum modo “absoluto em si mesmo”, ou, uma vez que a morte é sempre um
desvio de enunciação a outrem, uma relação desastrosa de impossibilidade experiencial, mas
também evento no qual um efeito de atração se manifesta como o espaço inenarrável onde a
própria esperança, - numa perspectiva materialista é claro -, se esgota em sua
impossibilidade, gerando uma espécie de ciclo infinito de uma espera paradoxalmente
impossível; para Clarice o modelo de uma reflexão sobre a inenarrabilidade da morte em sua
paradoxologia na existência fática cede lugar entretanto a uma exposição do lado oposto ao
evento absoluto e inefável da morte.
Como numa inversão, G.H parece ter “entrado” ou “saído” (depende apenas da
postura em relação aos efeitos éticos e estéticos do relato) em uma espécie de “entre-lugar”
calcado sobre a vida e a morte (a dúvida existencial e o questionamento teológico a partir
442
A impossibilidade fática da morte para o sujeito morrente e a dignidade de uma sobria posição quanto a
isso? Ou o movimento que se dá a partir daí como paixão do neutro e deveria ser trabalhado como trabalho da
escrita, de uma escrita infinita sem finialidade que não o esgotamento do sentido pelo sentido poético? A busca
de um “não-desejo” como wu wei em Barthes? Ou trabalho infinito de sobre-suspenção, sur-epoché do sentido
enquanto potência de uma (in)operância ética, estética, política no interior da existência? A paixão do neutro é
uma estética de efeitos (in)operantes no seio da existência, como uma espécie de virtude de uma ação
deceptiva, recorrente, infinta e calcada numa especulão sobre os efeito de efeitos da escrita? Uma pragmática
reflexiva sobre a potência da aporia na prática literária?
411
dessa posição fundamentam e alimentam a própria crise) e a partir daí levada ao encontro
com um re-começo no qual a experiência do “espaço neutro da vida” tem lugar como o
gesto do relatar-se em transformação de si.
Nem viva nem morta, como num espaço de trânsito, G.H experimenta uma linha de
força que a transmigra em devires objetos, coisas, tempos, e finalmente na experiência da
abjeção limite e concomitantemente experiencia de um puro desejo agônico que a leva a
uma outra experiência primordial, nesse ponto, na imersão em um devir-evolutivo reverso
(relato das fases históricas e geológicas da terra, seu percurso evolutivo e os
questionamentos que daí advêm). Em outro momento, o devir-híbrido da barata e da mulher
eclodindo como experiência de uma “eclosão do intervalo” no seio da infinitude do cosmos
e a final dissipação na materialidade de uma dissolução apaziguada no próprio movimento
da vida. “O que não sou eu, eu sou.” (P. 178 ou 229 de La passion selon G.H.)
Thomas, desde o princípio da narrativa se desenvolve e atua no refluxo de
experiências elípticas, adentrando no âmago da paixão do neutro, ou seja, penetrando e se
imiscuindo nessa relação imponderável que poderiamos chamar “essência da linguagem
como o trânsito necessário com seu próprio fora”, ou em outros termos, a relação paradoxal
que se estabelece como ponto de encontro eternamente em desvio numa acepção
fenomenológica entre a idéia e o conceito, entre a “identidade a si” do conceito da idéia e
sua diferença da idéia do conceito, se assim pudermos dizer sem a evocação de um lastro
epistemológico imediato.
Ao se duplicar com Anne, ou ao se misturar às coisas e materiais do mundo a sua
volta, ao migrar por entre os espaços e tempos de suas percepções e afecções sensíveis,
estas sensibilidades sempre em desvio e distanciamento de suas origens referenciais, se
pudermos utilizar essa imagem, pois descritas no distanciamento infinito e na produção de
uma pseudo ausência gerada em toda representação de objeto pela linguagem, enfim,
quando Thomas, numa verdadeira experiência narrativa do ponto de vista de quem pudesse
perceber o tempo em sua relação mais contigua à extensibilidade do espaço e
concomitantemente na reversibilidade dessas duas categorias e após a visão absolutamente
impressionante de uma forma de descrição do tempo e da produção dos seres e entes
existenciais num todo infinito que poderiamos chamar de imagem literaria de uma
“eternidade” delirante, ou em outras palavras, a neutra (des)aparição de todas as coisas,
412
Thomas, o protagonista obscuro que só vivenciara essas imagens pelo contato poderoso com
a experiência da morte de Anne (experiência em desvio, experiência inacessível da finitude
deslocada do outro em relação a minha (im)permanência, finalmente é lançado dentro da
imagem do recomeço melancôlico e desilusório que descrevemos acima. Lançado à nudez
de uma reentrada oceânica nas reverberações flotantes das imagens imponderáveis que
assistira junto à inexistencia de Anne.
Do infinito da finitude à falsa finitude do infinito dada no evento paradoxal da morte
(quem morre, o “ele” que todos “nós” pressentimos ser como um outro “eu”, não tem jamais
o acesso a essa temporalidade eternamente deslizante do acontecimento limiar e
imponderável) há tanto em Thomas como em G.H. uma tematização ou teatralização que
temeriamos muito em chamar metafísica, visto que há um caráter de estupenda vinculação
existenciária na produção de suas imagens, no trato e na densidade das ações desses
personagens e dessas vozes que de algum modo, ao se lançarem para fora do mundo fático
por segundos, horas ou na infinita extensão do tempo, retornam o questionamento sem fim
sobre o impensável (essa região de deslocamento onde se dobra o próprio pensamento)
como o sentido da possibilidade do pensamento, da existência e da vida enquanto “eclosão
do intervalo” que caracteriza a existência da linguagem e do mundo.
Talvez arriscariamos a dizer que seja de algum modo (por modulações infinitas) na
confluência dessas três linhas de continuidade e descontinuidade, essas três linhas
densificadas e dobradas umas sobre as outras que possa ser enunciada pela literatura uma
visão da verdade como ficção e na via de trânsito dessa relação irrevogável (apofântica),
essa mesma enunciação possa ser dita, da ficção como a verdade (in)operante e neutra da
literatura.
Ainda mais uma palavra a respeito do que pretendemos chamar de épreuve de uma
potência (in)operante de uma teatralidade literária e que se localiza no ponto descentrado e
infinitamente estranho em que (se) situa o “pensamento do fora” e que participa, como
gostariamos de ter apontado, de uma literatura limite.
A potência de uma (in)operância enquanto teatralidade da literautra equivale em sua
operatória à possibilidade de leitura da literatura como espaço privilegiado onde a
linguagem pode espacializar o problema do descontínuo no seio de uma continuidade
413
desejada do infinito. A isso chamamos, próximos de Bataille e com Blanchot, de eclosão do
intervalo.
Quando Blanchot lê Simone Weil, ele não deixa de fazer o percurso de criação de
uma cena que situa a leitura da existência como evetual acontecimento de uma desistência
de Deus de uma hipotética continuidade absoluta do (in)existente enquanto tal. Deus é a
palavra que informa a necessidade de representação desse lapso onde eclode a possibilidade
do vão, do vazio que se espaça entre a (in)existência absoluta e a existência de toda
negatividade, ou seja o intervalo, a posição variável e diferencial dialética por excelência.
Pensamento cabalístico (le Tsimtsum) que Blanchot lê em primeiro grau a partir de
Isaac Luria, pensador do século XVI, essa explanação derivada de sua leitura de Weil,
desenvolve a sutileza e a profundidade sem fundo da problemática da linguagem como
espaço da aporia e materialidade intervalar do próprio tempo e da existência.
Se há algo que gostarimos de relembrar neste resumo de tese é que a teatralidade
maquínica como a pensamos exerceria uma via de acesso (in)direto, ou melhor, catacrético
(potência de uma “metáfora branca” com Derrida, “potência do neutro” ou “paixão do
neutro” com Blanchot, “transgressividade” na forma de uma descontinuidade sobre o Uno-
Todo com Bataille) em relação à potência (in)operante que observamos na literatura
enquanto se a-presentando aí a linguagem como espaçamento (é-loignement) do tempo pela
expressividade inata do corpo em processo entrópico indefinido e prometido à finitude de
sua singularidade.
Uma teatralidade maquínica aí pode intervir como a possibilidade da “atenção”
pensada enquanto conceito, se manifestar numa potência sempre intervalar, mediada desde
sua origem (espaço sem começo e sem fim evidentes, visto que a “atenção” se incia como
desejo e desejo de desejo da cena portanto) pelo efeito da condição afectiva do corpo no
mundo (le malheur) condição esta de “infelicidade” que no sentido da leitura de Blanchot de
S. Weil é a propria “iniquidade” irredutível do abandono de Deus a sua própria eternidade
de (in)existência.
Pela linguagem, dá-se a “atenção” que se desvia do objeto (l’étant) na mesma
medida em que com ele imperativamente tem relação, e é essa relação mesma que se opera e
se faz prova-ção, (s’épreuve para nós) entre o desejo da linguagem, de algum modo aqui, o
ato da escritura literária simplesmente, e sua relação de deslocamento constitutivo em
414
relação às forças e aos afectos (ou seja, o mal estar ou a alegria) que atravessam
constantemente o corpo e o corpus na forma desses “vestígios” ou dessas “massas” de
superposições modais, gradativas e indelimitáveis objetivamente mas não poéticamente que
se dão finalmente como a eclosão do próprio intervalo no seio da finitude.
É poeticamente que pode ter lugar a potência do (in)operante, pois gera em seu
espaçamento de linguagem (a potência do fragmentário da linguagem é de algum modo uma
deriva do problema da origem do universo, começo sem origem que não seja o
pressentimento de uma situação limite e irredutível, operatória da diferença e do intervalar
como potência de arranjo e concatenação metafórica do sentido) o próprio caráter de desvio
e obliquidade da atenção em relação ao regime indeterminado e opaco da forças afectivas,
ativas ou reativas no corpo e na deriva deste entre os efeitos do corpus “literário-teatral”,
nesse ponto observados como espaço, cena e movimento de uma teatrologia maquínica.
Talvez a idéia de uma teatralidade maquínica da literatura advenha desta situação
limite da que deve fazer parte o “ator” em geral, mas nesse momento, teatral, que é a de
permitir-se pela atenção um domínio (in)operante de seu papel, uma continuidade relutante
em se submeter à égide dessa ausência momentánea de si, para, na confluência paradoxal de
seu mergulho para fora-de-si, pertencer-se ainda mais ao mal estar ou à felicidade
desencadeadas em cada proporção e fragmentação dessa relação imemorial e sem origem
clara do esquecimento e da recuperação de si próprio.
Assim, talvez, a literatura também se processe como destinação inconclusa de um
desvio e de uma aproximação à tarefa infinita (que tem lugar na eclosão intervalar de cada
ser e/ou de cada ente, pois no limite, trate-se talvez justamente aí, de uma curva infinita
entre o ser e o ente - ou seja, a propria “eclosão do intervalo” como curvatura da existencia
entre infinitos - produzida entre essas polaridades metafísicas, ou como indicamos, uma sur-
époché evocada pela “paixão do neutro”) que se desdobra como lenta (in)operância de uma
épreuve da própria linguagem sobre o limite de sua existência, ou seja, o impensado
postergado pelo próprio pensamento de sua eclosão no porvir.
Abandonar-se ao fluxo criador de uma escritura ou ao processo do jogo cênico
literário, não será portanto localizar-(se) o próprio corpo (a reflexividade é absolutamente
proposital) numa situação ou numa posição de (in)operância onde se dá, sempre em
processo, matéria “palimpsestica” de uma imaginação sobre si mesmo, uma prova-ção pelo
415
desvio (e aqui está toda a infinita problemática que é pensada por Blanchot como “paixão do
neutro”) do encontro em relação a uma atenção que nos faria reencontrar paradoxalmente a
plenitude vazia do desejo satisfeito, ou da insatisfação prometida a seu porvir de realização e
relançamento?
A linguagem aí remete-se a partir de seu próprio descentramento incessante ao
enigma onde o Ser não pode senão ser como uma palavra que diz-se a partir do gesto
próprio de sua necessidade, a partir desse movimento incessante que é paradoxalmente sua
participação constitutiva enquanto eclosão de uma potência (in)operante, vale dizer, aquela
que precisa ser dita ou escrita para simplesmente ser e, sendo desse modo, reverberar
eternamente um deslocamento constitutivo em relação a sua impossibilidade, a de que não
dita, não poderia ser, mas que só pode ter existência nessa negatividade, ou seja em seu
“não-ser” ao se produzir como efeito de algo que se nega ao se afirmar.
É nesse espaçamento ou na vertigem desse espaçamento (intervalar, ou seja, liso e
estriado a um só tempo, aion-chronos de uma temporalidade em curva da existencia) que
poderiamos localizar, enfim, o espaço onde a imagem e a cena dessa afirmação incessante
têm lugar na leitura de Blanchot sobre Simone Weil e que de algum modo, teatraliza
literariamente uma comparação possível com a leitura que desejamos poder ter feito sobre
os textos onde se movem, enfim, em seus intervalos (reais e ficcionais), G.H e Thomas,
Clarice Lispector e Maurice Blanchot.
416
Anexos
417
Thomas L’obscur: tradução da segunda versão de 1950.
418
Maurice Blanchot
Thomas o obscuro
Gallimard,
Nova versão, 1950
Maurice Blanchot (1907-2003) foi romancista e crítico. Sua vida foi inteiramente dedicada à
literatura e ao silêncio que lhe é próprio.
419
Há, para toda obra, uma infinidade de possíveis variantes. Às páginas intituladas Thomas o
Obscuro, escritas a partir de 1932, enviadas ao editor em maio de 1940, publicadas em 1941,
a presente versão nada acrescenta, mas como ela lhe retira muito, podemos dizê-la outra e
mesmo, nova, mas também igual se entre a figura e aquilo que aí é ou se crê o centro, temos
razão de não distinguir, cada vez que a figura completa não exprime ela mesma a não ser a
busca de um centro imaginário.
420
I
Thomas sentara-se e olhara o mar. Durante algum tempo ele ficara imóvel, como se
ele ali tivesse vindo para acompanhar os movimentos dos outros nadadores e, mesmo que a
bruma o impedisse de ver mais ao longe, ele permanecera, com obstinação, os olhos fixos
sobre os corpos que flutuavam com dificuldade. Em seguida, uma onda mais forte o tendo
tocado, descera por sua vez sobre o desnível de areia e escorregara em meio aos
redemoinhos que logo o faziam submergir. O mar estava tranqüilo e Thomas tinha o hábito
de nadar durante muito tempo sem se cansar. Mas hoje ele tinha escolhido um novo
percurso. A bruma escondia a praia. Uma nuvem descera sobre o mar e a superfície se
perdia numa luminescência que parecia a única coisa verdadeiramente real. Os redemoinhos
o chacoalhavam, sem lhe dar, contudo, a sensação de estar em meio às ondas e de se
envolver em elementos que ele teria conhecido. A certeza que a água faltava, impunha a seu
esforço por nadar o caráter de um exercício frívolo, o qual ele não retinha a não ser por
desencorajamento. Talvez tivesse sido suficiente a ele se controlar para capturar tais
pensamentos, mas seu olhar, não podendo se agarrar a nada, fazia-lhe parecer que
contemplava o vazio na intenção de encontrar alguma segurança. É então que o mar,
sublevado pelo vento, se agitara. A tempestade o transtornara dispersando-o em regiões
inaccessíveis, as rajadas transtornavam o céu e, ao mesmo tempo, havia um silêncio e uma
calma que faziam pensar que tudo já estava destruído. Thomas procurava se livrar do afluxo
insípido que o invadia. Um frio vivo e intenso lhe paralisava os braços. A água se revolvia
em turbilhões. Era realmente água? Quanto mais a espuma se revirava diante de seus olhos
como flocos esbranquiçados, mais a ausência de água tomava seu corpo e o carregava
violentamente. Ele respirara mais lentamente, durante algum tempo ele guardara na boca o
líquido que as rajadas lhe empurraram contra a cabeça: morna doçura, estranha bebida de
um homem privado de paladar. Em seguida, seja por cansaço, seja por uma razão
desconhecida, seus membros lhe deram a mesma sensação de estranhamento que a água na
qual se envolviam. Esta sensação lhe pareceu de início quase agradável. Ele alcançava,
nadando, um tipo de alucinação na qual se confundia com o mar. A embriaguez de sair de si,
de se infiltrar no vazio, de se dispersar no pensamento da água, lhe fazia esquecer todo mal
estar. De qualquer modo, mesmo quando este mar ideal no qual ele se transformava cada
vez mais intimamente tivesse se tornado, por sua vez, o verdadeiro mar onde estava como
afogado, ele não se emocionara tanto quanto o deveria: havia alguma coisa de insuportável
em nadar desse modo, à aventura de um corpo que lhe servia unicamente para pensar que ele
nadava, mas ele experimentava também um alívio, como se tivesse finalmente descoberto a
chave da situação, e que tudo fosse limitado a continuar uma ausência de organismo numa
ausência de mar, sua interminável viajem. A ilusão não perdurara. Fora-lhe necessário rolar
de uma borda à outra, como um barco à deriva, na água que lhe dera um corpo para nadar.
Qual a saída? Lutar para não ser carregado pela onda que era seu braço? Ser submerso?
Afogar-se amargamente em si? Teria sido certamente o momento de se extinguir, mas uma
esperança lhe restava, ele nadava ainda, como se no seio de uma intimidade restaurada ele
tivesse descoberto uma nova possibilidade. Ele nadava, monstro privado de nadadeiras. Sob
o microscópio gigante, ele se fazia uma aglomeração, empreendendo cílios e vibrações. A
421
tentação tomara um caráter inteiramente insólito, quando da gota de água ele buscara se
infiltrar numa região vaga e, todavia, infinitamente precisa, algo como um lugar sagrado,
apropriado tão bem a ele mesmo, que lhe bastaria estar ali, para ser; era como um oco
imaginário onde ele se enfiava, pois que antes que aí estivesse, sua impressão já estaria
marcada. Ele fizera então um último esforço para se mobilizar totalmente. Isso fora fácil, ele
não encontrava nenhum obstáculo, ele se regozijava, se confundia consigo próprio
instalando-se neste lugar onde nenhum outro poderia penetrar.
Finalmente, deveria retornar. Ele encontrara tranqüilamente o caminho de retorno e
se estabelecera em um lugar que alguns nadadores utilizavam para mergulhar. O cansaço
havia desaparecido. Nas orelhas ele guardava uma impressão de burburinho e nos olhos,
ardor; seria necessário ali esperar depois de um longo período na água salgada. Ele se
atinava, quando se voltando em direção ao tecido sem fim sobre o qual refletia o sol, tentara
reconhecer em qual direção tinha sido levado. Havia nesse momento, um verdadeiro
nevoeiro à sua frente, e ele distinguia qualquer coisa nesse vazio transtornado que seu olhar
perfurava febrilmente. A força de muito observar, ele descobrira um homem que nadava
bem longe, meio perdido sob o horizonte. Nessa distância, o nadador lhe escapava
incessantemente. Ele o via e não o via mais e, no entanto, tinha a sensação de seguir todos
os seus movimentos. Não somente de percebê-lo muito bem, mas de se aproximar dele de
uma maneira totalmente íntima, e de um modo que não poderia ter sido melhor com
nenhuma outra forma de contato. Ele ficara muito tempo a olhar e esperar. Havia nesta
contemplação algo de doloroso que era como a manifestação de uma liberdade imensa, de
uma liberdade obtida pela ruptura de todos os laços. Seu rosto tremulara ganhando uma
expressão inusitada.
422
II
Ele decidira, entretanto dar as costas ao mar e penetrara num pequeno bosque onde
deitara após ter dado alguns passos. O dia iria terminar; não havia quase mais luz, mas
continuava-se a ver bem claramente certos detalhes da paisagem e, em particular, a colina
que limitava o horizonte e que brilhava, despreocupada e livre. O que inquietava Thomas era
que ele estava deitado ali na relva com o desejo de permanecer muito tempo, se bem que
essa posição lhe fosse proibida. Como a noite caia, ele tentara se ajeitar e, as duas mãos
apoiadas no chão, pusera o joelho na terra, enquanto sua outra perna balançava; depois,
fazendo um movimento brusco, conseguira ficar inteiramente reto. Ele estava então de pé.
Em verdade, tinha na sua maneira de ser uma indecisão que deixava uma dúvida quanto ao
que fazia. Desse modo, mesmo que ele tivesse os olhos fechados, não parecia que tivesse
renunciado a enxergar nas sombras, era antes, o contrário. Assim, quando ele começara a
caminhar, poder-se-ia acreditar que não eram suas pernas, mas o desejo de não andar que lhe
fazia avançar.
Descera numa espécie de caverna que ele tinha a princípio acreditado ser enorme,
mas que logo lhe parecera de uma extrema exigüidade: em frente, para trás, acima dele, por
toda parte onde ele levava as mãos se chocava à parede tão sólida quanto um muro de
construção; por todos os lados o caminho lhe era barrado, por toda parte um muro
infranqueável, e esse muro não era o maior obstáculo, seria preciso também contar com a
vontade que estava preguiçosamente decidida a lhe deixar dormir ali, numa passividade
parecida com a morte. Loucura, portanto; nessa incerteza, procurando pelo tato os limites da
cavidade côncava, ele colocara seu corpo inteiro contra a muralha e esperara. O que o
dominava era o sentimento de ser empurrado para frente pela sua recusa de avançar. Mesmo
assim, nem tanto se surpreendera, de tal modo sua ansiedade lhe mostrava distintamente o
porvir, quando um pouco mais tarde, se viu levado alguns passos adiante. Alguns passos,
não era de se acreditar. Sem dúvida, seu avanço era mais aparente que real, pois, neste novo
lugar, não se distinguindo do antigo, ele encontrava as mesmas dificuldades e era, de uma
certa maneira, o mesmo lugar de onde ele se distanciava pelo terror dali se afastar. Nesse
momento, Thomas cometeu o erro de lançar um olhar à sua volta. A noite estava mais
sombria e opressora do que ele poderia esperar. A obscuridade a tudo submergia, não havia
nenhuma esperança de atravessar as sombras, mas atingia-se a realidade numa relação cuja
intimidade era transtornante. Sua primeira observação fora que ele poderia ainda se servir de
seu corpo, em particular de seus olhos; não era que ele visse alguma coisa, mas que ele
olhasse, e com o tempo se punha em relação com uma massa noturna que percebia
vagamente como sendo ele mesmo e na qual ele imergia. Naturalmente, não formulara essa
impressão a não ser a título de hipótese, como uma visão que era cômoda, mas à qual só a
necessidade de discernir as circunstâncias o obrigava a recorrer. Como ele não tinha nenhum
meio de medir o tempo, esperara provavelmente horas antes de aceitar este modo de ver,
mas, para ele mesmo, era como se o medo o tivesse carregado de pronto e, com um
sentimento de vergonha, levantara a cabeça acolhendo a idéia que tinha tido: fora dele se
encontrava algo de parecido a seu próprio pensamento que seu olhar ou sua mão poderia
tocar. Devaneio repugnante. Logo a noite lhe pareceu mais sombria, mais terrível que
qualquer outra noite, como se ela tivesse realmente saído de uma corte do pensamento que
não se pensava mais, do pensamento tomado ironicamente como objeto por outra coisa que
o pensamento. Era a própria noite. Inundavam-lhe imagens que faziam sua obscuridade. Ele
423
não via nada e, longe de estar por isso oprimido, fazia desta ausência de visão o ponto
culminante de seu olhar. Seu olho, inútil para ver, tomava proporções extraordinárias, se
desenvolvia de maneira desmesurada e, se estendendo sobre o horizonte, deixava a noite
penetrar em seu centro para aí receber o dia. Por esse vazio, era então o olhar e o objeto do
olhar que se misturavam. Não somente este olho que não via nada apreendia algo, mas
apreendia a causa de sua visão. Ele via como objeto aquilo que fazia que ele não visse. Nele,
seu próprio olhar entrava sob a forma de uma imagem, no momento onde esse olhar era
considerado como a morte de toda imagem. Daí resultavam para Thomas novas
preocupações. Sua solidão não lhe parecia mais tão completa, e ele tivera mesmo o
sentimento que alguma coisa de real e escorregadia lhe tinha atingido. Talvez pudesse ele
interpretar esta sensação de outro modo, mas lhe era necessário sempre ir ao pior. Sua
desculpa era de que a impressão era tão distinta e tão penosa que nela era quase impossível
de não se abandonar. Mesmo se disso ele não tivesse contestado a verdade, ele teria tido
muita dificuldade em não acreditar em algo de extremo e violento, pois em toda evidência
um corpo estrangeiro se tinha alojado em sua pupila e se esforçava em ir mais longe. Era
insólito, perfeitamente incômodo, tanto mais incômodo quanto não se tratava mais de
pequeno objeto, mas de árvores inteiras, de todo o bosque ainda tremulando e pleno de vida.
Sentia isso como uma fraqueza que o desacreditava. Ele não prestava mais atenção aos
detalhes dos acontecimentos. Talvez um homem deslizasse pela mesma abertura, ele não
poderia afirmar nem negar. Parecia-lhe que as ondas invadiam a espécie de abismo que ele
era. Tudo isto só lhe preocupava mediocremente. Ele só prestava atenção às suas mãos,
ocupadas em reconhecer os seres misturados a ele, as quais elas discerniam parcialmente o
caráter, cão representado por uma orelha, pássaro substituindo árvore sobre a qual ele
cantava. Graça a esses seres que se entregavam a atos que escapavam a toda interpretação,
edifícios, vilas inteiras se construíram, vilas reais feitas de vazio e milhares de pedras
amontoadas, criaturas rolando no sangue e por vezes rasgando as artérias, que faziam o
papel daquilo que Thomas chamara outrora de idéias e paixões. Desse modo, se apossara
dele o medo, e este em nada se distinguia de seu cadáver. O desejo era este mesmo cadáver
que abria os olhos e, se sabendo morto, remontava desengonçadamente até a boca como um
animal engolido vivo. Os sentimentos o habitavam, depois o devoravam. Ele era
pressionado, em cada parte de sua carne, por mil mãos que não eram a não ser que sua
própria mão. Uma angústia mortal batia contra seu coração. Em volta a seu corpo ele sabia
que seu pensamento, confundido com a noite, velava. Ele sabia, certeza terrível, que ela
também procurava uma saída para entrar nele. Contra seus lábios, na sua boca, ela se
esforçava em uma união monstruosa. Sob as pálpebras ela criava um olhar necessário. E ao
mesmo tempo ela destruía furiosamente este rosto que ela abraçava. Vilas prodigiosas,
cidades arruinadas desapareciam. As pedras foram relançadas para fora. Transplantaram-se
as árvores. Carregaram-se as mãos e os cadáveres. Só, o corpo de Thomas subsistira privado
de sentido. E o pensamento, retomado nele, estabelecera contatos com o vazio.
424
III
Retornara ao hotel para jantar. Ele poderia sem dúvida ter ocupado seu lugar habitual
na grande mesa, mas renunciara a isso e se pusera à parte. Comer, isso nesse momento não
era sem importância. De um lado, era tentador, porque assim ele se mostrava ainda livre
para voltar atrás; mas por outro lado era ruim, porque riscava de reconquistar sua liberdade
numa base muito estreita. Ele preferira então adotar uma atitude menos franca e avançara
alguns passos para ver como os outros aceitariam sua nova maneira de ser. De início,
prestara atenção; havia um som confuso, grosseiro que do mesmo modo que se elevava com
força, se atenuava e tornava-se imperceptível. Certamente, não tinha como se enganar, era
um som de conversa e, de resto, quando a linguagem tornava-se mais doce, ele reconhecia
palavras muito simples que pareciam escolhidas para que ele pudesse compreendê-las mais
facilmente. Mas as palavras, não o tendo satisfeito, lhe fizeram interpelar as pessoas que lhe
faziam frente, abrindo caminho em direção à mesa: uma vez ali, permanecera sem dizer
nada, observando estas pessoas que lhe pareciam, todas, ter certa importância. Acenaram-lhe
para sentar. Ele negligenciara este convite. Chamaram-lhe mais alto e uma mulher, já de
idade, voltara-se para ele perguntando-lhe se ele banhara-se naquela tarde. Thomas
respondera que sim. Houve um silêncio; uma conversa era então possível? Entretanto, aquilo
que ele tinha respondido não devia ser muito satisfatório, pois a mulher o observara com um
ar de reprovação e se erguera lentamente, como alguém que, não tendo podido terminar uma
obrigação, guarda não se sabe qual remorso, o que não a impedia de dar a sua partida a
impressão que ela renunciava voluntariamente a seu papel. Sem refletir, Thomas pegou o
lugar livre e, uma vez sentado numa cadeira que lhe pareceu impressionantemente baixa,
mas confortável, não pensou mais que em se fazer servir o almoço o qual ele recusara até
então. Não era tarde demais? Ele teria amado, em relação a isso, consultar as pessoas
presentes. Evidentemente, elas não se mostravam, a seu respeito, verdadeiramente hostis, ele
podia mesmo contar com sua bondade, sem a qual ele não teria sido capaz de permanecer
nem sequer um segundo naquele lugar; mas também havia na atitude deles algo de sombrio
que não autorizava a sentir confiança, nem mesmo de quaisquer relações. Ao observar sua
vizinha, Thomas ficou consternado: era uma moça grande e loira, cuja beleza se revelava a
medida que ele a olhava. Ela parecia ter sentido um prazer muito vivo no momento em que
ele fora se sentar ao lado dela, mas agora ela tinha um tipo de rigidez, com a vontade pueril
de permanecer a distância, tanto mais estrangeira quanto ele se aproximava para obter um
sinal de encorajamento. Ele continuara, entretanto, a lhe fixar o olhar, pois toda sua pessoa,
iluminada de uma luz impressionante, o atraía. Tendo escutado alguém a chamar: Anne
(com uma voz muito aguda), vendo que ela, tão logo, erguera a cabeça, pronta a responder,
ele se decidira a agir e, com todas as suas forças, batera na mesa. Erro de tática, ele não
podia duvidar, gesto pouco feliz: o resultado não se fez esperar. Cada um, como indignado
por uma extravagância que não se tolera a não ser a ignorando, se fechara numa reserva
contra a qual nada mais era possível. Horas se passaram desde esse momento sem fazer
renascer a mínima esperança, e as maiores provas de docilidade eram votadas ao fracasso,
assim como todas as formas de revolta. A partida, portanto, parecia pedida. É então que
Thomas, para transtornar as coisas, se pôs a encarar todos, mesmo aqueles que se viravam,
mesmo aqueles que, quando cruzavam os olhares com o seu, o fixavam neste momento,
menos do que nunca. Ninguém teria tido humor para suportar por muito tempo este olhar
vazio, exigente, que reclamava não se sabe o que e que vagava sem controle, mas sua
425
vizinha o tomou particularmente mal: ela se levantara arrumando seus cabelos, enxugara seu
rosto e preparara sua partida em silêncio. Como seus movimentos eram cansados! Um pouco
mais tarde, é a luz banhando sua figura, o reflexo iluminando seu robe, que tornava sua
presença tão reconfortante, e agora este brilho se evanescia. Não havia mais que um ser cuja
fragilidade surgia na beleza pálida e que perdia mesmo toda sua realidade, como se os
contornos do corpo não tivessem sido desenhados pela luz, mas pela fosforescência difusa,
emanada, acreditar-se-ia, dos ossos. Nenhum encorajamento se esperaria mais dela. Se
obstinando com indecência na sua contemplação, não se poderia a não ser, penetrar em um
sentimento de solitude onde, tão longe quanto se quisesse ir, perder-se-ia e continuar-se-ia a
perder-se. Contudo, Thomas recusara de se deixar convencer por simples impressões. Ele se
voltara intencionalmente em direção à jovem, se bem que ele não tivesse em suma, tirado os
olhos dela. Em volta dele cada um se levantava numa desordem e num burburinho
desagradáveis. Levantara-se ele também e, na sala agora mergulhada na penumbra, medira
com o olhar a distância que lhe seria necessário atravessar para alcançar a porta. Nesse
instante, tudo se iluminara, as lâmpadas elétricas brilharam, iluminaram o vestíbulo,
irradiaram ao exterior onde parecia que se deveria entrar como numa espessura mole e
morna. No mesmo momento, a jovem o chamara de fora com uma voz decidida, quase
excessivamente forte, que ressoava de uma maneira imperiosa, sem que se pudesse
distinguir se esta força vinha da ordem que era transmitida ou somente da voz que a tomava
muito a sério. O primeiro movimento de Thomas, muito sensível a este convite, fora
obedecer se precipitando no espaço vazio. Depois, quando o silêncio tivesse recoberto o
apelo, ele não estava mais tão certo de ter realmente escutado seu nome e ele se contentara
de prestar atenção, esperando que o chamassem novamente. Escutando atentamente, ele
sonhava com a dispersão de todas essas pessoas, com seu mutismo absoluto, com sua
indiferença. Era pura infantilidade esperar ver todas as distâncias suprimidas por um simples
chamado. Era mesmo humilhante e perigoso. Nesse ponto, ele reerguera a cabeça e, tendo
constatado que todos haviam partido, ele por sua vez, deixara o lugar.
426
IV
Thomas permanecera a ler em seu quarto. Estava sentado, as mãos juntas acima de
sua fronte, os polegares apoiados contra a raiz dos cabelos, tão absorvido que não fizera um
movimento quando a porta se abriu. Aqueles que entraram, vendo seu livro sempre aberto
nas mesmas páginas, pensavam que ele simulava ler. Ele lia. Ele lia com uma minúcia e uma
atenção insuperáveis. Ele estava junto a cada signo, na situação na qual se encontra o louva
deus macho quando a fêmea vai lhe devorar. Um e outro se observavam. As palavras saídas
de um livro que adquiria uma potência mortal exerciam sobre o olhar que lhes tocava uma
atração doce e serena. Cada um deles, como um olho semi-aberto, deixava entrar o olhar
excessivamente vivo que em outras circunstâncias não teria se oferecido. Thomas deslizara
então através desses corredores aos quais se aproximara sem defesa até o instante onde ele
fora percebido pela intimidade da palavra. Isso não era ainda temeroso, era ao contrário um
momento quase agradável que teria querido prolongar. O leitor consideraria prazerosamente
essa pequena centelha de vida que ele não duvidava ter despertado. Ele se via com prazer
nesse olho que o observava. Seu prazer, de qualquer modo, se tornava enorme. Ele se
tornava tão grande, tão impiedoso que ele o sofria com um tipo de temor e que estando
erigido, momento insuportável, sem receber de seu interlocutor um signo cúmplice,
percebera toda a estranheza que havia em ser observado por uma palavra ou por um ser
vivo, e não somente por uma palavra, mas por todas as palavras que se encontravam nessa
palavra, por todos aqueles que o acompanhavam e que por sua vez continham neles mesmos
outras palavras como uma seqüência de anjos se abrindo ao infinito até o olho do absoluto.
De um texto tanto quanto proibitivo, longe de se afastar, ele pôs toda sua força em possuí-lo,
recusando obstinadamente a retirar seu olhar, acreditando ser ainda um leitor profundo,
quando já as palavras o dominavam e começavam a lê-lo. Ele fora tomado, petrificado por
mãos inteligíveis, mordido por um dente pleno de seiva; ele entrara com seu corpo vivo nas
formas anônimas das palavras, lhes doando sua substância, formando suas relações,
oferecendo à palavra ser seu ser. Durante algumas horas, ele se mantivera imóvel com, em
lugar dos olhos, de tempos em tempos a palavra olhos: ele estava inerte, fascinado e
desvelado. E mesmo mais tarde, quando, abandonado e olhando seu livro, se reconhecera
com desgosto sob a forma do texto que lia, ele guardara o pensamento em sua pessoa já
privada de sentido, tanto que, elevada sobre as costas, a palavra Ele
443
e a palavra Eu
começariam sua carnificina, permaneceriam falas obscuras, almas desencarnadas e anjos de
palavras, que profundamente o exploravam.
443
O pronome Il em francês tem uma acepção, além da terceira pessoa do singular masculino, neutra e que
traduzido para o português, torna-se simplesmente desinencial desaparecendo em sua marca sígnica. Nesse
caso a tradução de toda a amplitude de sentido que é exposta nessa remissão à neutralidade do pronome Il é
absolutamente problemática. Lembramos que essa questão onto-gramatical é fulcral em toda a obra
blanchotiana, particularmente no que concerne ao conceito de uma poética do neutro que articula essa onto-
gramaticalidade ou essa onto-poética da voz narrativa em toda uma referencialidade filosófica a Husserl e
Heidegger que se vincula ao estatuto ontológico da linguagem e das inúmeras figurações especulativas que são
trabalhadas nesse sentido. Não seria preciso lembrar que esses temas estão todos criptografados na própria
narratividade do recit blanchotiano e nos temas fenomenológicos que são aí performados no limite de sua
consistência lógica. De forma semelhante, existe a impossibilidade do alcance em português da marca de
duplicidade inter-subjetiva do pronome em primeira pessoa Je/Moi em francês. (N. do trad.)
427
A primeira vez que ele distinguira esta presença, era a noite. Por uma luz que descera
ao longo das venezianas e dividira a cama em dois, ele vira o quarto inteiramente vazio,
incapaz de conter um objeto que a vista tolerasse. O livro apodrecia sobre a mesa. Ninguém
andava naquela peça. Sua solidão era completa. E, entretanto, tanto mais ele estava certo de
que não havia ninguém no quarto, e mesmo no mundo, tanto mais ele estava certo que
alguém estava lá, que habitava seu sono, o aproximava intimamente, que estava em torno a
ele e nele.Por um movimento ingênuo, se levantara sobre seu assento e procurara perfurar a
noite, tentando com a mão se dar a luz. Mas era como um cego que, escutando um barulho,
acendia precipitadamente sua lanterna: nada podia lhe permitir discernir sob uma forma ou
outra esta presença. Estava preso a qualquer coisa de inacessível, de estrangeiro, algo do
qual poderia dizer: isto não existe, e que todavia o preenchia de terror e que sentia vagar no
ar de sua solidão. Toda a noite, todo o dia, tendo velado com esse ser, assim que procurava o
repouso, bruscamente era advertido que um outro tinha substituído o primeiro, também
inacessível, também obscuro e, entretanto diferente. Era uma modulação naquilo que não
existia, uma maneira diferente de estar ausente, um outro vazio no qual ele se animava.
Agora era certo, alguém se aproximava dele, que se dava não em parte alguma e por toda
parte, mas a alguns passos, invisível e evidente. Por um movimento que nada pararia, que
nada muito menos precipitaria, vinha ao seu encontro uma potência à qual ele não podia
aceitar o contato. Ele quis fugir. Se lançara ao corredor. Ofegante e quase fora de si, não
pôde dar quaisquer passos sem reconhecer o progresso inevitável do ser que vinha a ele.
Retornara ao quarto. Se entrecheirou atrás da porta. Ele esperara, as costas apoiadas na
parede. Mas nem os minutos nem as horas esgotaram sua espera. Sentia-se sempre mais
próximo de uma ausência cada vez mais monstruosa à qual o encontro pedia o infinito do
tempo. Ele a sentia a cada instante mais próxima dele e a avençava de uma parte ínfima, mas
irredutível, da duração. Ele a via, ser aterrorizador, que no espaço já se comprimia contra ele
e, existindo fora do tempo, restava infimamente distanciado. Espera e angústia tão
insuportáveis que elas se descolavam dele mesmo. Uma espécie de Thomas saia de seu
corpo, e ia à frente da ameaça que se escamoteava. Seus olhos tentaram olhar não na
extensão, mas na duração e num ponto do tempo que não existia ainda. Suas mãos
procuravam tocar mum corpo impalpável e irreal. Era um esforço tão penoso que essa coisa
que se distanciava dele e, se distanciando, tentava o atrair, lhe pareceu a mesma que aquela
que indizivelmente se aproximava. Ele caíra no chão. Tinha o sentimento de estar coberto de
impurezas. Cada parte de seu corpo sofria de uma agonia. Sua cabeça era obrigada a tocar o
mal, seus pulmões de respirá-lo. Ele estava lá sobre o assoalho, se contorcendo, em seguida
entrando nele mesmo e depois saindo. Rastejava pesadamente, em pouco diferente da
serpente que ele quis tornar-se para acreditar no veneno que ele sentia em sua boca. Metera
sua cabeça sob o leito em um canto cheio de poeira e se deitou sobre os dejetos como num
lugar refrescante onde ele se via mais limpo que nele mesmo. Era nesse estado que se sentia
aficionado ou estupefato. Ele não podia saber pelo que lhe parecera ser uma palavra, mas
que se assemelhava antes a um rato gigantesco, com olhos perfuradores, com dentes puros, e
que era uma besta todo-poderosa. Vendo-a há algumas polegadas de seu rosto, ele não pode
escapar ao desejo de a devorar, de a levar a intimidade a mais profunda consigo. Ele se
lançara sobre ela, lhe fincando suas unhas sobre as entranhas, procurara a fazer sua. O fim
da noite vinha. A luz que brilhava através das venezianas se apagara. Mas a luta com a besta
assustadora que se tinha enfim revelado de uma dignidade, de uma magnificência
incomparáveis, durara um tempo que não se podia medir. Esta luta era horrível para o ser
deitado por terra que rangia os dentes, se lavrava o rosto, se arrancava os olhos para aí fazer
428
entrar a besta e que tivesse se assemelhado a um demente se ele tinha se assemelhado à um
homem. Ela era quase bela para essa sorte de anjo negro, coberta de pelos ruivos, os quais os
olhos cintilavam. Logo, um acreditava ter triunfado e via descer nele com uma náusea
incoercível a palavra inocência que o corrompia. Logo o outro o devorava por sua vez, o
arrancando pelo buraco de onde ele tinha vindo depois o relançando como um corpo duro e
vazio. A cada vez Thomas era impulsionado novamente até o fundo do seu ser pelas
palavras mesmas que o haviam obcecado e que ele perseguia como seu pesadelo e como a
explicaçlão seu pesadelo. Ele se encontrava sempre mais vazio e mais pesado, ele não se
remexia a não ser como uma ínfima fatiga. Seu corpo depois de tantas lutas, tornou-se
inteiramente opaco e, àqueles que o observavamele dava a relaxante impressão do sono, si
bem que ele não tivesse cessado de estar acordado.
429
V
Em meio à segunda noite, Thomas se levantara e descera em silêncio. Ninguém lhe
percebera a não ser um gato quase cego que vendo a noite mudar de forma, correra atrás
dessa nova noite que ele não via. Após se ter deslizado por um túnel onde não se reconhecia
nenhum odor, este gato começara a miar, empurrando do fundo da garganta o grito rouco
pelo qual os gatos se dão, a saber, que são animais sagrados. Ele se insuflava e arfava. Ele
tirava do ídolo que ele se tornava a voz incompreensível que se endereçava à noite, e falava.
“O que é que se passa? Dizia esta voz. Os espíritos com os quais eu estou
normalmente em comunicação, o espírito que me puxa o rabo quando o prato esta cheio, o
espírito que carrega de manhã e me deita em almofadas confortáveis e o espírito, o mais
belo de todos, aquele que mia, ronrona e se assemelha tanto que é como meu próprio
espírito, todos desapareceram. Onde estou eu agora? Se eu inspeciono docemente com
minha pata, eu não encontro nada. Em lugar algum, não há nada. Estou no limite de uma
calha, de onde eu não posso a não ser cair. E cair, não é isso que me assustaria. Mas a
verdade é que eu não posso nem mesmo cair; nenhuma queda é possível; estou em meio a
um vazio especial que me impulsiona e que eu não saberia atravessar. Onde estou eu,
portanto? Infelicidade sobre mim. Outrora eu penetrava, tornando-me bruscamente uma
besta que podia-se jogar impunemente no fogo, segredos de primeira ordem. Eu conhecia,
por um clarão que me dividia, pelo golpe de garras que eu dava, as mentiras, os crimes,
antes que eles fossem cometidos. E agora eu sou um ser sem visão. Eu escuto uma voz
monstruosa pela qual eu digo o que digo sem que eu o saiba uma só palavra. Eu penso, e
meus pensamentos me são tão inúteis como o seriam as vibrações de pelos e os toques nas
orelhas das espécies estrangeiras as quais eu dependo. Só o horror me penetra. Eu me viro e
reviro fazendo entender o lamento de uma besta abominável. Eu me sinto, praga terrível, um
rosto tão grande quanto aquele de um espírito, com uma língua lisa e opaca, língua de cego,
um nariz disforme, incapaz de pressentimento,com enormes olhos, sem esta chama
escrupulosa que nos permite de ver as coisas em nós. Minha pelagem se fende. Isso é, sem
duvida, a operação suprema. Logo não será mais possível, mesmo nesta noite, tirar de mim,
esfregando meus pelos, uma luz sobrenatural, é o que será o fim. Eu sou a noite da noite. Eu
vou através das sombras as quais me distingo pois eu sou a sombra, ao encontro do gato
superior. Em mim, agora, nenhuma inquietude. Meu corpo, que é inteiro semelhante àquele
de um homem, corpo de boa-venturança, guardadas sua dimensões, mas minha cabeça é
imensa. Um som se faz ouvir, som que eu jamais tinha escutado. Uma luminescência que
tem o ar ao sair de meu corpo, mesmo que terno e úmido faz em torno a mim um círculo que
é como um outro corpo ao qual não posso sair. Eu começo a distinguir uma paisagem. No
momento que a escuridão torna-se mais pesada, uma enorme figura esbranquiçada se eleva
diante de mim. Eu digo eu, guiado por um instinto cego, porque desde que eu perdi meu
rabo que me servia de direção no mundo, eu não sou, manifestamente mais eu mesmo. Esta
cabeça que aumenta sem parar e, em lugar de uma cabeça, parece ser apenas um olhar, o que
é exatamente afinal? Eu não a vejo sem incômodo. Ela meche, ela se reaproxima. Ela esta
justamente voltada para mim e, todo olhar que ela é, me dá a impressão terrível de não me
perceber. Esta sensação é insuportável. Se eu ainda tinha pêlos, eu os sentiria se erguer em
torno ao meu corpo. Mas, em meu estado, eu não tenho meios de provar o medo que eu
sinto. Eu estou morto, morto. Esta cabeça, minha cabeça, não me vê, pois estou aniquilado.
Porque sou eu que me olho e não me distingo. O gato superior que eu soutornouse um
430
instante para constatar meu falecimento, eu vou agora desaparecer para sempre. Eu cesso
agora de ser um homem. Eu retorno a ser um pequeno gato frio e inabitável, estendido ao
chão. Eu suspiro ainda uma vez. Lanço uma ultima olhadela sobre esta cova que vai se
fechar e onde eu vejo um homem, gato superior ele também. Eu o escuto remoer o solo,
provavelmente com suas garras. Aquilo que chamamos além esta terminado para mim.”
De joelhos, as costas encurvadas, Thomas escavava a terra. Em torno dele se
estendiam algumas fossas, as quais em suas bordas, o dia tinha se recalcado. Pela sétima
vez, ele preparava lentamente, deixando no solo a marca de suas mãos, um grande buraco
que ele alargava ao seu tamanho. E à medida que ele o escavava, o vazio, como se tivesse
sido preenchido por dúzias de mãos , em seguida por braços, enfim, pelo corpo inteiro, dava
a seu trabalho uma resistência que logo ele não poderia mais vencer. A tumba estava plena
de um ser cuja ausência ela absorvia. Um cadáver inabitável ali se afundava, encontrando
nesta ausência de forma a forma perfeita de sua presença. Era um drama cujo horror era
sentido, em seu sono, pelos homens do vilarejo. Tão logo a cova terminada, Thomas se
lançava nela, tendo suspendido ao seu pescoço uma pedra pesada, ele se batia à um corpo
mil vezes mais duro que o solo, o próprio corpo do coveiro, já entrado na tumba para a
escavar. Essa cova que tinha exatamente seu tamanho, sua forma sua espessura, era como
seu próprio cadáver, e cada vez que ele procurava ali se aprofundar, ele se assemelhava a um
morto absurdo que tivesse tentado enterrar em seu corpo seu próprio corpo. Ele tinha então,
desde esse momento, em todas as sepulturas onde ele poderia ter tido lugar, em todos os
sentimentos que são também tumbas para os mortos, neste aniquilamento pelo qual ele
morria sem permitir que o acreditássemos morto, aí havia um outro morto que o tinha
ultrapassado e que, idêntico a ele, levava até o extremo a ambigüidade da morte e da vida de
Thomas. Nesta noite subterrestre onde ele tinha descido com os gatos até o sonho dos gatos,
um sósia, envolvido de bandagens, os sentidos fechados à sete selos, o espírito ausente,
ocupava seu lugar, e este sósia era o único com o qual ele podia pactuar, pois que ele era o
mesmo que ele, realizado no vazio absoluto. Ele pendia sobre essa tumba glacial. Como o
homem que se pende, após empurrado o banco sobre o qual ele ainda se apoiava , ultima
paragem, em lugar de ressentir o salto que ele faz no vazio, não sente a não ser a corda que o
envolve, tomado até o fim mais que nunca amarrado, ligado como ele jamais o seria para sua
existência, a qual ele gostaria de se desligar, ele também se sentava, no momento em que se
sabia morto, ausente, inteiramente ausente de sua morte. Nem seu corpo que lhe deixava ao
de si mesmo o frio que passa o contato de um cadáver e que não é o frio mas a ausência do
contato, nem a obscuridade que transpirava de todos os seus poros e, mesmo quando era
visível fazia que não se pudesse servir de nenhum sentido, de nenhuma intuição e muito
menos de um pensamento para o ver, nem este fato que sob titulo algum não poderia passar
por vivo nem bastaria a fazê-lo passar por morto. E isto não é um mal entendido. Ele estava
realmente morto e ao mesmo tempo afastado da realidade da morte. Ele estava, na morte
mesma, privado da morte, homem temerosamente aniquilado, impedido no nada por sua
própria imagem, por este Thomas corriqueiro à frente dele, portador de flâmulas acesas e
que era como a existência da ultima morte. Agora, desde então que ele se pendia sobre este
vazio onde ele via sua imagem na ausência de todas as imagens, tomado pela mais violenta
vertigem que fosse, vertigem que não o fazia cair, mas o impedia de cair e que tornava
impossível a queda que ele tornava inevitável, agora a terra se rarefazia em torno dele, e a
noite, - uma noite que não responde a mais nada, que ele não via e a qual ele não sentia mais
a realidade, pois que ela era menos real que ele, - o envolvia.Sob todas as formas, ele era
invadido pela impressão de estar no coração das coisas. Igual à superfície desta terra onde
431
ele não podia penetrar, ele estava no interior desta terra a qual o dentro o tocava por todas as
partes. Por todos os lados a noite o confinava. Ele via, ele escutava a intimidade de um
infinito no qual ele estava encerrado pela ausência mesma de limites. Ele sentia como uma
existência horripilante a inexistência deste vale da morte Pouco a pouco vinham até ele os
eflúvios de uma terra acre e molhada. Como aquele que, vivo acorda em seu esquife, ele via
com medo a terra impalpável onde ele flutuava se transformar em ar sem ar, pleno de odores
de terra de madeira apodrecida, de úmido estofo. Agora realmente enterrado, ele se
descobria, sob camadas sobrepostas de uma matéria que parecia gesso, numa cova onde ele
se asfixiava. Ele imergia num meio congelado entre os objetos que o esmagavam. Se ele
existia ainda, era para reconhecer nesta câmara plena de flores fúnebres, de luz espectral, a
impossibilidade de reviver. Ele reencontrava o fôlego na asfixia. Ele reencontrava a
possibilidade de andar, de ver, de gritar no seio de uma prisão onde ele estava confinado
num silêncio e na escuridão impenetráveis. Estranho horror o seu, quando atravessando as
ultimas barreiras, ele aparecia sobre a porta estreita de seu sepulcro, não ressuscitado, mas
morto e tendo a certeza de ser arrancado ao mesmo tempo da morte e da vida. Ele andava,
múmia pintada; ele olhava o sol que se esforçava por fazer aparecer sobre sua figura ausente
um rosto sorridente e vivo. Ele marchava, único e verdadeiro Lázaro cuja própria morte era
ressuscitada. Ele avançava, passando por cima das ultimas sombras da noite, sem nada
perder de sua glória, coberto de ervas e de terra, indo, sob a queda das estrelas, de um passo
igual, do mesmo passo que, para os homens que não são envolvidos de um sudário , marca a
ascensão em direção ao ponto mais precioso da vida.
432
VI
Anne, sem surpresa, o vira se aproximar, este ser inevitável em que ela reconhecia
aquele que ela teria em vão levado a fugir, que ela reencontrava todos os dias. Cada vez ele
vinha direto à ela, seguindo numa marcha inflexível um caminho traçado sobre o mar, as
florestas, e mesmo o céu. Então, cada vez que ele não tinha a não ser o sol no mundo e esse
ser imóvel em pé ao seu lado, envolvido numa imobilidade silenciosa carregado por esta
profunda insensibilidade que a descobria, sentindo por ele condensar-se nela toda a calma do
universo. Anne, no momento em que repercutiu o estrondo cintilante do ultimo meio-dia,
confundido com o silencio, pressionado por uma enorme paz, não ousando fazer um gesto,
nem ter um pensamento se quer, se via queimar, morrer, os olhos, as bochechas em fogo, a
boca entreaberta, exalando, como um último suspiro suas formas obscuras em pleno sol,
morte perfeitamente transparente ao lado desta morte opaca que próximo dela se coagulava
sempre mais e, mais silenciosa que o silêncio abismava as horas e desgarrava o tempo.
Morte justa, soberana, momento inumano e vergonhoso que cada dia recomeçava e ao qual
ela não podia se salvar. Cada dia, ele retornava à mesma hora, ao mesmo lugar. E era
exatamente a mesma hora, era também o mesmo jardim. Com a ingenuidade de Josué
parando o sol para ganhar tempo, Anne acreditava que as coisas continuavam. Mas as
árvores terríveis, mortas na folhagem verde que não podia ressecar, os pássaros que voavam
acima dela, sem remorso! dar o troco nem conseguir se fazer passar por vivos, guardavam
solenemente o horizonte e lhe faziam eternamente recomeçar a cena que ela tinha vivido no
dia anterior. Entretanto, neste dia, como se um cadáver que carregamos num leito em
seguida em outro, mudasse verdadeiramente de lugar, ela se erguera caminhara à frente de
Thomas e adentrara através do pequeno bosque vizinho sobre uma rota aonde aqueles que
vinham ao seu encontro o viam se distanciar ou o acreditavam imóvel. Na verdade ele
realmente caminhava e, com um corpo semelhante aos outros, bem que aí estivesse três
quartos consumados, ele penetrava numa região onde, se ele mesmo desaparecia, ele via no
mesmo momento os outros cair em outro nada que os afastava mais dele que se eles
continuassem a viver. Sobre esta rota, cada homem que ele cruzava morria. Cada homem, se
Thomas voltava os olhos, morria com ele de uma morte que nenhum grito anunciava. Ele os
olhava, e nesse momento ele os via perder sob seu olhar, toda semelhança, tendo na testa um
pequeno corte pelo qual escapava seu rosto. Eles não desapareciam, mas eles não apareciam
mais. Do mais longe que eles surgissem, eles eram informes e mudos. De mais perto, se ele
os tocava, se ele dirigisse sobre eles, não seu olhar, mas o olhar deste olho brilhante e
invisível que era a todo instante todo inteiro, mais perto ainda, quase confundido com eles,
os tomando sejam por suas sombras, sejam por almas mortas , os respirando, os lambendo,
se lambuzando com seus corpos, ele não recebia a mínima sensação, nem a mínima imagem,
tão vazio deles que eles mesmos dele. Enfim, eles passaram. Eles se foram definitivamente.
Eles deslizaram sobre uma queda vertiginosa em direção a uma região onde nada mais deles
era visível, se não fosse às vezes, como grandes vestígios de luz, seu último olhar
fosforescente próximo ao horizonte. Era uma espoliação misteriosa e terrível. Atrás dele
nada de falas, nada de silêncio, nada atrás e nada à frente. O espaço que o envolvia era o
contrário do espaço, pensamento infinito onde aqueles que entravam; a cabeça coberta de
um véu, não existiam a não ser que por nada.
Neste abismo, Anne, só, resistia. Morta, dissipada no meio o mais próximo do vazio,
ela aí encontrava ainda pedaços de seres com os quais ela se entretinha, durante o naufrágio,
433
uma espécie de semelhança familiar em seus traços. Se ele a abordasse de frente,
brutalmente, para a surpreender, ela lhe apresentaria sempre um rosto. Ela mudaria sem
cessar de ser Anne. Ela era Anne não tendo mais nenhuma semelhança com Anne. Com sua
figura e todos os seus traços, e todavia inteiramente parecida com outra, ela restava a
mesma, Anne, Anne por inteiro que não se podia negar. Sobre o caminho ele a vira vir como
uma aranha era idêntica a jovem e, entre os cadáveres desaparecidos, os homens esvaziados;
passeava no mundo deserto com uma estranha tranqüilidade, última descendente de uma
raça fabulosa. Ela caminhava com as oito patas enormes como sobre duas pernas finas. Seu
corpo negro, seu aspecto feroz que fazia com que tão logo ela fosse fugir, acreditar-se-ia que
ela fosse morder, não sendo diferente do corpo vestido de Anne, do ar leve que ela tinha
quando experimentássemos vê-la de perto. Ela avançava de uma forma cadenciada, tanto
devorando o espaço em alguns saltos, tanto se deitando sobre o caminho, protegendo-o, o
tirando dela mesma como um fio invisível. Sem mesmo se engelhar, ela penetrava na região
que envolvia Thomas. Ela se aproximava irresistivelmente. Ela se estancava diante dele.
Então, nesse dia, tomada por esta valentia e esta perseverança inacreditáveis, reconhecendo
nela algo de indiferente que não podia se esvaecer em meio no meio das provas e que
ressoava como uma lembrança de liberdade, a vendo se erguer sobre suas longas patas,
manter-se ao nível de seu rosto para comunicar com ele secretando um turbilhão de nuances,
de odores de pensamento, ele se voltara e olhara amargamente para trás, como um viajante
que tendo errado o caminho se distancia, se engelha e termina por desaparecer no
pensamento de sua viajem. Sim, este bosque, ele o reconhecia. E este sol poente, ele o
reconhecia, e estas árvores que secavam e estas folhas verdes que escurecem. Ele
experimentara chacoalhar o peso enorme de seu corpo, corpo que lhe faltava e o qual ele
carregava a ilusão como um corpo de empréstimo. Ser-lhe-ia necessário sentir este calor
fático que irradiava dele mesmo, como de um sol estrangeiro ouvir hálito que corria de uma
fonte falsa, escutar o batimento de um falso coração. E ela, a reconheceria ele, esta morta
por armadinhas por trás de uma semelhança imunda, pronta a surgir tal qual ela era num ar
constelado de pequenos espelhos onde cada um de seus traços sobrevivia? “É você?”
perguntara ele. Sem demora, ele vira uma chama nos olhos, uma triste chama e fria sobre
um rosto. Ele estremecera neste corpo desconhecido, no momento em que Anne, sentido
entrar nela um espírito doloroso, uma juventude fúnebre que ela era destinada a amar,
acreditava tornar-se novamente ela mesma.
434
VII
Anne vivera dias de grande alegria. E mesmo ela não tinha jamais sonhado felicidade
mais simples e ternura tão amável. Com ela, de repente ele era um ser que ela dispunha sem
perigo. Se ela dispunha dele ,era com uma liberdade enorme. Sua cabeça, ele abandonava a
ela. Suas falas, antes de serem pronunciadas, estavam indiferentemente em uma das duas
bocas, tanto ele deixava ela fazer o que quisesse. Havia, na forma que Anne jogava com
toda a sua pessoa e na ausência de risque que lhe permitia tratar este corpo estrangeiro como
se tivesse lhe pertencido, uma frivolidade tão perigosa que qualquer um teria o coração
prevenido. Mas ela não via nele a não ser que boca fútil, olhares levianos e, em lugar de
experimentar um mal estar, - constatando que um homem que ela não podia se aproximar,
que não podia sonhar em fazer falar, consentia em rolar sua cabeça sobre seus joelhos, - ela
aí se divertia. Isso era, por seu lado, uma conduta difícil de justificar. De um instante a outro
se podia prever, entre esses dois corpos ligados tão intimamente por laços tão frágeis, um
contato revelaria de uma maneira aterradora, suas fracas ligações. Mais ele recuava ao
interior dele mesmo, mais ela avançava levianamente. Ele a atraía, e ela se aprofundava no
rosto o qual ela pensava ainda acariciar os contornos. Agia ela assim sem precaução, pois
que ela acreditava ter relação com alguém inacessível ou, ao contrário, ter um acesso muito
fácil? Seus olhares se ligavam a ele, era isso um jogo impudente ou um jogo desesperado?
Suas palavras se umectavam, mesmo seus mais frágeis movimentos a colavam contra ele,
enquanto nela crescia o peso dos humores de onde ela tiraria talvez no momento oportuno
um poder de extrema adesão. Ela se cobria de ventosas. Ela não era, no interior e no
exterior, a não ser que feridas buscando cicatrizar, carne em via de transplante. E, malgrado
tal mudança, ela continuava a gozar e a rir. Do mesmo modo que ela lhe estendia a mão, ela
lhe dizia:
- No fundo, que pode você fazer?
Não havia nesta observação nenhuma questão propriamente falando. Como pôde ela,
tão distraída que fosse, interrogar um ser cuja existência era uma terrível questão posta a ela
mesma? Mas ela parecia achar surpreendente e ligeiramente chocante, sim, verdadeiramente
chocante, de não ter sido capaz de medir, não de compreender, o que já teria sido uma
grande presunção, mas, e desta vez a imprudência ultrapassava todos os limites, de receber
qualquer informação sobre ele. E esta audácia não lhe bastava, pois que o remorso que ela
tinha de não conhecê-lo, em lugar de procurar se justificar na sua forma insólita, pela
violência e loura da expressão, era apresentado como um remorso desenvolto e quase
indiferente. Era, sob a aparência benigna que têm todas essas operações, um verdadeiro
ensaio para tentar Deus. Ela o olhara bem de frente:
- Mas, quem é você?
Ainda que ela não esperasse para escutá-lo responder e mesmo estando certa que ele
não responderia, ela não lhe tinha, em verdade lhe questionado, havia tal abuso na sua forma
de supor que ele poderia dar uma resposta (bem entendido, ele não responderia, ela não lhe
pedia resposta, mas, pela questão que ela lhe havia feito pessoalmente e em relação à sua
pessoa, se dava o ar de poder interpretar seu silêncio como uma recusa acidental por
responder, como uma atitude que podia um dia ou outro mudar), era um modo tão grosseiro
de tratar o impossível que Anne tivera súbita a revelação da cena na qual ela se lançava com
os olhos crispados e, em um instante, saindo de seu torpor, ela percebera todas as
conseqüências de seu ato e a loucura de sua conduta. Seu primeiro pensamento fora de
435
impedi-lo de responder. Pois o grande perigo, agora que ela vinha, por um ato inconsiderado
e arbitrário, de tratá-lo como um ser que se pudesse questionar, era que ele se tratasse, por
seu lado, como um ser que podia responder e lhe fazer entender sua resposta. Esta ameaça,
ela a sentia decantada no fundo dela mesma, em lugar da palavras que ela tinha
pronunciado. Agora ele pegava a mão que a ele era oferecida. Ele a agarrava cruelmente,
dando a crer à Anne que compreendia suas razões e que depois de tudo havia talvez entre
eles um contato possível. Agora que ela estava convencida com seu rigor impiedoso, ele lhe
diria, se ele falasse, tudo o que ele tinha a dizer, sem nada lhe dissimular, dizendo-lhe tudo
para, quando cessasse de falar, seu silêncio, o silêncio de um ser que não tem mais nada a
entregar e que todavia não tendo nada entregue, fosse ainda mais assustador, ela estava
convencida que ele falaria. E esta certeza era tão grande que ele se mostrava a ela como se já
tivesse falado. Ele a envolvia como um abismo. Ele rodeava em torno dela. Ele a fascinava.
Ele ia devorá-la transformando suas palavras mais inesperadas em palavras que ela não
poderia mais esperar.
- O que eu sou...
- Cale-se.
Era tarde e, sabendo que as horas e os dias não concerniam a não ser a ela, ela gritava
mais forte na escuridão. Ela se aproximara, deitara em frente à janela. Seu rosto fundira-se,
fechara. Quando a obscuridade era completa, se inclinando com seu aspecto envelhecido em
direção àquele que ela agora nomeava seu amigo em sua nova linguagem, vinda das
profundezas; e sem preocupar-se em que estado se encontrava, ela quis, como um bêbado
que não se agüenta em pé e que explica justamente por isso, não poder mais andar, ela quis
ver porque suas relações com este morto não avançavam. Tão baixo quanto ela caísse, e
provavelmente porque desse fundo ela percebia bem que havia entre eles uma diferença e
uma grande diferença, mas não tal que suas relações devessem sempre ser condenadas, ela
desconfiava súbito de todas as gentilezas que eles teriam trocado. Nas dobras onde ela se
escondia, ela se dizia com ar de profunda dissimulação, que ela não se deixaria enganar pela
aparência desse jovem perfeitamente amável, e é com aperto no coração que ela se lembrava
dos gestos acolhedores e da facilidade de aproximação. Se ela não chegava a suspeitar de
hipocrisia (ela podia lamentar-se, ela podia chorar vergonhosamente porque ele a mantinha à
trinta braças abaixo da verdade entre palavras vãs e brilhantes; mas não lhe vinha ao
espírito, malgrado suas tentativas insidiosas para falar dela e dele com as mesmas palavras,
que ele tivesse, - naquilo que ela chamava o caráter de Thomas, - uma duplicidade), é que
nada que a transtornasse
444
, no silencio onde ele devia estar, ela o adivinhava tão
infranqueável que ela sentia como dissimulado, tudo o que havia de ridículo à lhe dizer. Ele
não a enganava, e, entretanto ela era enganada por ele. A traição girava em torno deles, com
mais forte e terrível razão é que ela o traia e se enganava por ela mesma, sem ter esperança
de por fim a tal delírio, pois que, não sabendo quem era ele, era sempre um outro que ela
encontrava em seu peito. Mesmo a noite aumentava seu erro, mesmo o tempo que lhe fazia
recomeçar sem trégua as tentativas, sempre as mesmas, as quais ela escolhia de um modo
humilhado e hostil. Era uma história vazia de acontecimentos, vazia ao ponto que toda
lembrança e toda perspectiva estando suprimidas, e, entretanto tirando desta ausência seu
curso inflexível que parecia a tudo carregar de um irresistível movimento em direção a uma
catástrofe iminente. O que iria acontecer? Ela nada sabia, mas, pondo toda sua vida a
aguardar, sua impaciência se confundia com a esperança de participar de um cataclismo
444
C’est que rien qu’à tourner la tête... P. 54
436
geral onde ao mesmo tempo em que os seres, seriam destruídas as distâncias que separavam
os seres.
437
VIII
É neste estado novo que, se sentindo tornar ela mesma uma realidade enorme e
incomensurável na qual ela nutria sua esperança, ao modo de um monstro que ninguém, nem
mesmo ela, tinha tido a revelação, ela ousara de novo e, gravitando em torno à Thomas,
terminara por atribuir motivos cada vez mais fáceis às suas dificuldades de relação com ele,
pensando por exemplo que aquilo que era anormal, e que não se podia saber de sua vida e
que restara, de todas as circunstancias, anônimo e privado de história. Uma vez engajada
nesta via, ela perdia qualquer toda chance de poder parar a tempo. Melhor valeria tivesse
dito qualquer coisa, sem outra intenção que de por as palavras à prova. Mas, longe de
condescender à estas precauções, ela acreditou melhor, - numa linguagem cuja solenidade
contrastava com sua condição miserável, - se elevar a uma profanação, que se ater a uma
presunção de suas palavras. O que ela lhe dissera tinha a forma de uma linguagem direta.
Era um grito pleno de soberba que reverberava na véspera com o caráter mesmo do sonho.
- Sim, dissera ela, eu gostaria de vê-lo quando estiveres só. Admitindo que eu
pudesse me encontrar diante de você me separando inteiramente de ti, eu teria uma chance
de me juntar a você. Ou melhor, eu sei que não me juntarei a você. A única possibilidade
que eu teria de diminuir a distancia que nos separa seria a de me distanciar infinitamente.
Ora, eu estou já infinitamente longe e não posso me distanciar mais. Desde que eu lhe toque,
Thomas...
Acabadas de serem ditas, estas palavras a transportaram: ela o vira, ela brilhara. A
cabeça virada para trás, de sua garganta se elevava um som muito doce que liberava as
lembranças; não havia agora, nenhuma necessidade de gritar, seus olhos se fechavam, seu
espírito estava embriagado; sua respiração tornara-se lenta e profunda, suas mãos se
reencontraram: isto racionalmente deveria durar para sempre. Mas como se o silêncio
tivesse sido também convidado a voltar (pois ele não se engajava a nada), ela se deixara ir,
reabrira os olhos, reconhecera o quarto e, uma vez mais, tudo recomeçara. Que ela não
tivesse a explicação desejada, esta decepção a deixava indiferente. Não lhe era certamente
mais possível pensar que ele lhe revelaria isto que, para ela, era uma espécie de segredo e
isto que, para ele, não tinha de modo algum, o caráter de um segredo. Por outro lado, se
agarrando à idéia que isto que ela pudesse dizer permaneceria de todo modo, ela desejava
muito lhe fazer saber que, mesmo que ela não ignorasse a extraordinária distancia que os
separava, ela se obstinaria até o fim em manter um contato com ele, pois se havia algo de
impudente, havia também algo de muito tentador em seu cuidado de dizer que isso que ela
fazia era insensato e que malgrado isso, ela o fazia deliberadamente. Mas poder-se-ia
acreditar, todavia, que mesmo tão infantil que isso o fosse ela o pudesse fazer por si própria?
Falar, sim, ela poderia se pôr a falar, com o mesmo sentimento de culpabilidade que um
cúmplice trai seu companheiro, não confessando aquilo que ele sabe - ele não sabe nada -,
mas confessando aquilo que ele não sabe, pois ela não tinha meios de nada dizer que fosse
verdadeiro ou que tivesse ao menos a aparência; e, entretanto aquilo que ela dizia, sem lhe
fazer entrever em que isso seria a verdade, sem lhe dar em compensação a menor pista sobre
o enigma, o submetendo tão pesadamente, mais pesadamente talvez que se tivesse entregue
os coração das coisas secretas. Longe de poder se insinuar nos caminhos perdidos onde ela
teria tido a esperança de se reaproximar dele, ela não fazia a não ser se desgarrar em seu
itinerário e conduzir uma ilusão que, à seus olhos, não era mais que uma ilusão. Malgrado o
obscurecimento de sua visão ela duvidava que seu projeto fosse pueril e que mais que isso,
438
ela cometia uma falta grave sem proveito, malgrado ela tivesse também este pensamento – e
estava aí justamente a falta – que a partir do momento em que ela cometia uma falta por
causa dele ou a respeito dele, ela criava entre eles relações as quais ele teria que levar em
conta. Mas ela não adivinhava tampouco quanto era perigoso de ver nele um ser tendo
conhecido acontecimentos sem dúvida diferentes de outros, mas no fundo análogos aos
outros, de o mergulhar na mesma água que havia corrido sobre ela. Isso não era, fosse qual
fosse o contexto, uma pequena imprudência, a não ser a de misturar o tempo, seu tempo
pessoal, àquele que tinha horror do tempo, e ela sabia que nada poderia resultar de bom para
sua própria infância, que a imagem caricatural – e era pior se a imagem era perfeita – que
desse da infância aquele que não podia ter caráter histórico. A inquietude nela aumentava,
portanto, como se o tempo tivesse desde já sido corrompido, como se todo seu passado,
novamente posto em questão, fosse oferecido a um futuro árido e irremediavelmente
culpado. E ela não podia nem mesmo se consolar pensando que, tudo o que ela tinha a dizer
sendo arbitrário, o risco ele mesmo era ilusório. Ela sabia ao contrario, ela sentia, com uma
angustia que parecia ameaçar sua própria vida, mas que era mais preciosa que sua vida, que
mesmo que ela não devesse nada dizer de verdadeiro, de qualquer maneira que ela falasse,
ela se expunha, não retendo a não ser uma versão entre tantas outras, à relançar germes de
verdade que ela sacrificava. Mas ela ainda sentia, com uma ansiedade que ameaçava sua
pureza, mas que lhe trazia uma nova pureza, que ela ia ser forçada, mesmo se ela tentava se
abrigar atrás da evocação a mais arbitrária e a mais inocente, de introduzir em seu relato
algo de sério, uma reminiscência impenetrável e terrível, de tal sorte que à medida que esta
falsa figura emergisse da sombra, adquirindo por uma minúcia inútil uma precisão cada vez
maior e cada vez mais artificial, ela mesma, a narradora, já condenada e entregue aos
demônios, se ligaria de uma forma irremissível à figura verdadeira a qual ela nada saberia.
- O que você é, diz ela... E, dizendo estas palavras, ela parecia dançar em torno dele e
fugindo o incitar à uma armadilha imaginaria. O que você é...
Ela não podia falar e, contudo ela falava. Sua língua vibrava de tal maneira que ela
tinha o ar de exprimir sem palavras o sentido das palavras. Em seguida, bruscamente, ela se
deixara encadear por um fluxo de palavras que ela pronunciava com a voz quase baixa, com
inflexões variadas, como se ela procurasse apenas se divertir com os sons e estalidos das
sílabas. Dir-se-ia que falando uma linguagem na qual o caráter infantil não permitisse que o
tivéssemos por linguagem, ela dava às palavras o aspecto de palavras incompreensíveis. Ela
não dizia nada, mas nada dizer para ela era um modo de expressão muito significativo, sob o
qual ela conseguia ainda ao menos dizer. Ela se distanciava indefinidamente de seu balbucio
para entrar em outro ainda menos sério que ela desdenhava, contudo, como muito sério, se
preparando, por uma retirada sem fim para além de toda seriedade, o repouso no
infantilismo absoluto até aquilo que seu vocabulário, à força de nulidade, tomara a aparência
de um sono que era a voz própria da seriedade. Então, como se no seio desta profundidade
ela se sentisse repentinamente vigiada pela atenção de uma consciência implacável, ela num
sobre-salto lançasse um grito, abrisse os olhos de uma terrível clarividência e, suspendendo
um instante seu relato:
- Não, diria ela, não é isso. O que você é verdadeiramente...
Ela mesma tomava uma aparência pueril e frívola. Sob um ar lamacento que após
alguns instantes cobria seu rosto atravessavam expressões que lhe faziam parecer uma
ausente. Aspecto tão leve que a observando não se alcança a fixar sua atenção sobre seus
traços nem sobre o conjunto de sua pessoa. Com mais forte razão estava ela incomodada de
se lembrar do que dizia e aí agregar um sentido. Não se podia mesmo saber do que ela
439
falava. Às vezes ela parecia se orientar à Thomas, mas só o fato dela se orientar à ele
impedia de discernir seu verdadeiro interlocutor.As vezes ela não se orientava a ninguém e,
tão inútil que fosse seu sibilar, chegava um momento onde, levada por este vagabundeio sem
fim diante uma realidade sem razão, ela parava bruscamente, emergindo do fundo de sua
frivolidade com um rosto repugnante. A saída era sempre a mesma. Ela bem tinha procurado
o mais longe seu itinerário e se perdido em digressões infinitas – e poderia ser que sua
viajem tivesse durado sua vida inteira -, ela sabia que ela se aproximava a cada passo do
instante onde lhe seria necessário não somente parar, mas suprimir seu caminho, seja porque
tivesse encontrado aquilo que não poderia ter encontrado, seja que ela não pudesse jamais o
encontrar. E não lhe era possível abandonar seu projeto. Pois, como poderia ela se calar, ela
cuja a linguagem era em muitos graus abaixo do silêncio? Cessar de estar aí, cessar de
viver? Outros estratagemas derrisórios, ela não teria a não ser se precipitado por sua morte,
fechando todas as saídas, o curso eterno no labirinto de onde, tanto quanto ela tenha a
perspectiva do tempo, ela guardaria a esperança de sair. Também não via ela tanto mais
quanto ela se reaproximava insensivelmente de Thomas. Ela o seguia passo a passo, sem se
render conta, ou se ela se apercebia querendo o deixar e fugir, era-lhe necessário fazer um
enorme esforço sempre. Sua lassitude tornara-se tão apavorante que ela se contentara de
mimar sua fuga e ficara colada à ele, os olhos transbordantes, implorando-lhe, suplicando-
lhe por fim a esta situação, tentando ainda, se inclinar sobre esta boca, formular palavras
para continuar a qualquer preço seu relato, o mesmo relato que ela consagraria suas ultimas
forças a interromper e estrangular.
É neste estado de abandono que ela se deixara arrastar pelo sentimento da duração
Com doçura, suas mãos se contraíram, seus passos a deixaram e ela se abandonara numa
água pura onde, a cada instante, ultrapassando transbordamentos eternos, ela parecia passar
da vida à morte e, coisa pior, da morte à vida
445
num sonho atormentado já absorvido por
um sonho tranqüilo. Súbito, depois ela entrara, num estrondo de tempestade, numa solitude
feita da supressão de todo espaço e, rasgada violentamente pelo chamado das horas, ela se
desvelara. Era como se ela fosse encontrada numa vala esverdeada onde, convidada a ser o
ritmo individual, a cadência impessoal de todas as coisas, ela se tornaria, com sua idade e
sua juventude, a idade, a velhice dos outros. Ela descera de início, ao fundo de um dia
inteiramente estrangeiro aos dias humanos e, entrando plena de gravidade na intimidade das
coisas puras, em seguida se elevando através dos do tempo soberano, afogada em meio aos
astros e as esferas, longe de conhecer a paz dos céus, ela se pusera a tremer e a sofrer. Fora
durante esta noite e esta eternidade que ela se preparara para transformar-se no tempo dos
homens. Sem fim, ela vagara ao longo de corredores vazios, iluminados pelos reflexos de
uma luz que se subtraía sem cessar e que ela perseguia sem amor, com a obstinação de uma
alma já perdida, incapaz de retomar a razão das metamorfoses e o objetivo desta marcha
silenciosa. Mas, no momento quando ela passara diante de uma porta que se assemelhava
àquela de Thomas, reconhecendo que a trágica explicação continuava, ela soube então que
ela não discutia mais com ele á partir de palavras e de pensamentos, mas pelo tempo mesmo
que ela esposara. Agora, cada segundo, cada suspiro – e era ela, ninguém além dela –
atacavam surdamente a vida impassível que lhe opunha. E em cada um desses
445
Poder-se-ia aqui fazer uma referência ao capítulo de nossa tese que comenta alguns textos de Peter
Sloterdijk, no que diz respeito a sua preocupação temática - exposta nas conferências de Frankfurt de 1988,
reunidas no livro Venir al mundo Venir al lengaje, - de se pensar a questão ontológica do nascimento, em
contraponto ao problema da finitude, principalmente no último ensaio.
440
discernimentos, maiôs misteriosa ainda que sua existência , ela provava a presença mortal
do adversário, deste tempo sem o qual, para sempre imobilizado, não podendo não podendo
vir do fundo do futuro, ele teria sido condenado a ver sobre seu cume desolado, como a
águia profética dos sonhos, a luz da vida se apagar. Discernia portanto, com o mais intimo
de seu argumento o absoluto opositor, ele pensava com o fundo de seu pensamento, seu
perfeito antagonista, este tempo, Anne, e a recebendo misteriosamente nele, ele se via
misteriosamente e pela primeira vez em conflito numa grave conversa. Era nessas condições
que ela penetrara, forma indecisa, na existência de Thomas. Tudo parecia desolado e
nostálgico. Litorais desertos onde se desagregavam lentamente, - abandonados após um
grandioso naufrágio, por um mar nunca retirado, - ausências cada vez mais profundas. Ela
passara por estranhas cidades mortas onde, em lugar de formas petrificadas, de
circunstâncias mumificadas, ela encontrara uma necrópole de movimentos, de silêncios, de
vazios; ela se debatera com a extraordinária sonoridade do nada feito do inverso do som e,
diante dela, se estenderam quedas admiráveis, o sono sem sonhos, o desfalecimento que
inumava os mortos numa via de sonhos, a morte pela qual todo homem, mesmo o espírito
mais frágil, torna-se o espírito mesmo. Nesta exploração que ela tinha empreendido tão
ingenuamente, acreditando encontrar a frase decisiva sobre ela mesma, ela se reconhecera
apaixonadamente em busca da ausência de Anne, do nada o mais absoluto de Anne. Ela
acreditou compreender – oh cruel desilusão – que a indiferença que escorria por sobre
Thomas, como uma água solitária, vinha da infiltração, de regiões onde ela não deveria
jamais ter penetrado, da ausência fatal que conseguira romper todas as barreiras, de modo
que, querendo nesse momento descobrir esta ausência nua, este negativo puro, o equivalente
da luz pura e do profundo desejo, ela devia, para alcançá-la se dobrar a grandes
provações
446
. Fora-lhe necessário, durante vidas, polir seu pensamento, a desembaraçar de
tudo o que faz essa miserável desordem, o espelho que se mira, um prisma com o sol
interior: Ser-lhe-ia necessário um eu sem sua solidão de vidro, sem esse olho apagado desde
tão longo tempo de estrabismo, olho cuja suprema beleza é envesgar o mais possível, olho
do olho, pensamento do pensamento.Poder-se-ia tê-la adivinhado correndo face ao sol e
lançando a cada desvio do caminho em um abismo cada vez mais ávido, uma Anne cada vez
mais pobre e mais rara. Teríamos lhe confundido com este mesmo abismo onde, se tendo
acordado no seio do próprio sono, o espírito livre do saber, sem luz, não levando em seu
446
Nesse ponto, apenas indicaremos, a título de contextualização, esse momento de emergência nesta cena
especifica da ficção, da idéia ou da imagem vinculada à palavra épreuve, como articulando uma experiência
pensada como dimensão específica de um gesto ficcional limite na abordagem ou na performance literária
blanchotiana. Daí toda nossa preocupação em fazer reverberar nessa imagem de uma experiência literária que
identificamos como sendo da ordem de um limite ou limiar sobre o pensável, o trabalho ininterrupto de
Maurice Blanchot sobre o fundo móvel de problemas ontológicos que poderíamos afirmar a princípio, como
eminentemente constitutivos; desde a perda ou o desgaste á referência metafísica do conceito de essência, seja
da linguagem, do pensamento ou de um trabalho de fabulação, estes tomados como elementos indissociáveis
de uma experiência se assim podemos dizer, filosófica do ficcional e ficcional do filosófico, desde sempre
atrelada á densidade dos problemas filosóficos contemporâneos. Veremos que essa tematização se repetirá
quase infatigavelmente em nossa prova-ção crítica e que procuramos por em marcha no desenvolvimento
crítico da tese, anterior a esse anexo, que apresenta a nossa tradução livre de Thomas L’obscur, livro que ora
analisamos junto A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, escritora que acreditamos tratar a seu modo, a
experiência limite de uma literatura pensante. É a partir dessa imagem maquínica do sentido da palavra
épreuve e junto à noção de teatralidade na literatura que identificamos na tese uma referência direta ao gesto
literário blanchotiano e clariciano e ao qual procuramos ler e experimentar no sentido o mais libertário e
potente possível. (N. do Trad.)
441
encontro com o pensamento nada à pensar, ela se prepararia para avançar tão longe dela
mesma, que em contato com a nudez absoluta, passando maravilhosamente através, ela
poderia aí reconhecer sua pura e sua própria transparência. Docemente, munida do único
nome de Anne, que deveria lhe servir para voltar à superfície depois do mergulho, ela
deixara subir com a maré as primeiras, as grosseiras ausências – ausência de som do
silencio, ausência de ser da morte; Mas depois desse nada tão morno e tão fácil onde
permanecera Pascal, infelizmente amedrontado, ela fora dominada por ausências de
diamante, a ausência do silencio, a ausência da morte, onde não podia chegar a não ser por
noções inefáveis, os não sei o que, esfinges de estrondos inauditos, as vibrações que fazem
estilhaçar o éter dos sons os mais lancinantes; e os fazem estilhaçar, ultrapassando em seu
élan, os próprios sons. E ela caíra nos círculos maiores, análogos àqueles do Inferno,
passando, clarão de razão pura, pelo momento critico, onde seria necessário, um instante
ínfimo, permanecer no absurdo e, tendo abandonado aquilo que poderia ainda representar-
se, acrescentar indefinidamente a ausência e a auncia da ausência e a ausência de ausência
de ausência e, assim, com esta maquina aspirante, produzir desesperadamente o vazio. Neste
momento começa a verdadeira queda, aquela que se abole, nada sem cessar devorado por
um nada mais puro. Mas neste limite, Anne toma consciência da loucura de sua tentativa.
Tudo o que ela acreditara ter suprimido dela, ela tivera a certeza a certeza que ela
reencontrara inteiramente. Neste momento supremo de absorção, ela reconhecia no mais
profundo de seu pensamento um pensamento, o miserável pensamento de que ela era Anne,
a vivente, a loura e, oh horror, a inteligente. Imagens a petrificaram, a infantilizaram, a
produziram. E lhe viera um corpo, um corpo mil vezes mais belo que o seu, mil vezes mais
corpo; ela era visível, ela irradiava a matéria a mais inalterável, ela estava no seio do
pensamento nulo a rocha superior, a terra frágil, sem nenhum gás, aquela a qual não se
poderia nem mesmo criar Adão; enfim, ela iria se vingar se debatendo ao incomunicável
com este corpo o mais grosseiro, o mais feio, corpo de barro, com esta idéia vulgar que ela
desejava vomitar, que ela vomitava, levando á maravilhosa ausência sua parte de
excrementos. É então que no coração do inaudito um som lancinante reverbera e ela põe a
urrar Anne, Anne, com uma voz furiosa. No seio da indiferença, ela queimara de uma só
vez, plena tocha, com toda sua paixão, seu ódio por Thomas, seu amor por Thomas. No
coração do nada, ela se introduzira como uma presença triunfante e ela aí se lançara,
cadáver, inassimilável nada, Anne que ainda existia e que não mais existia, suprema derrisão
ao pensamento de Thomas.
442
IX
Quando ela retornara ao dia, desta vez inteiramente privada de palavras, evitando
uma expressão tanto mais aos seus olhos que a seus lábios, sempre estendida sobre o chão, e
nesse ponto o silêncio lhe mostrara tão unida ao silencio que ela o abrassara furiosamente
como uma outra natureza, cuja a intimidade a teria aliviado do desgosto. E parecia que
durante esta noite, ela tivesse assimilado algo de imaginário que lhe era como um espinho de
fogo e a forçava expulsá-lo ao exterior como um dejeto primitivo, sua própria existência.
Imóvel contra a muralha, o corpo misturado ao puro vazio, as nádegas e o ventre unidos a
um nada sem sexo e sem órgãos, as mãos comprimindo convulsionadamente uma ausência
de mãos, a figura bebendo isso que não era nem sopro nem boca, ela tinha se transformado
em um outro corpo cuja a vida, penúria e indigência supremas, a tinham feito tornar-se
lentamente a totalidade daquilo que ela não podia se tornar. Ali onde estava seu corpo sem
cabeça, cabeça sem corpo, corpo de miséria. Nada tinha sem dúvida mudado em seu
aspecto, mas o olhar que se lançasse sobre ela e que a mostrasse igual a qualquer outra, não
tinha nenhuma importância e, lhe identificar sendo justamente impossível, era na
semelhança perfeita de seus traços, no verniz natural e na sinceridade depositadas pela noite,
que o horror de vê-la tal qual ela havia sempre sido, sem a mínima transformação, mesmo
que ele estivesse certo que ela estava totalmente mudada, tomava sua fonte. Espetáculo
interdito. No momento em que se suportasse a visão de um monstro, não haveria sangue frio
que pudesse se ater contra a impressão desta figura sobre a qual durante horas, numa procura
que não chegasse a nada, o olho procurava distinguir um signo de aberração e estranheza. O
que se via, de um natural tão familiar, tornava-se, pelo simples fato que manifestamente não
seria necessário ver, um enigma que terminaria não somente por cegar o olho, mas lhe faria
provar, concernente a esta imagem, uma verdadeira náusea, expulsão de detritos de todos os
tipos aos quais se forçaria o olhar experimentando agarrar nestes objetos outra coisa que
aquilo que ele ali, poderia ver. Na verdade, se isso que estava completamente mudado num
corpo absolutamente idêntico, a impressão de desgosto imposta a todos os sentidos
obrigados de se considerar como insensíveis, se o caráter inapreensível da nova pessoa que
havia devorado a antiga a deixando tal qual era, se este mistério enterrado na ausência de
mistério não tivesse explicado o silêncio que escorria da sonolenta, ter-se-ia sido tentado
procurar em tal calma de indícios, a tragédia de ilusões e de mentiras as quais se tinha
envolvido o corpo de Anne. Havia com efeito em seu mutismo, algo de terrivelmente
suspeito. Que ela não falasse, que ela não guardasse na sua imobilidade a discrição
447
de
447
O tema da discrição é outra noção importante para Blanchot e tem a ver com um gesto ético-estético do
pensador e escritor francês que se relacionaria com uma energética ou poética do neutro se assim podemos nos
referir. Ao elevar a reflexão sobre a literatura a uma posição reflexiva dos limites do pensável e da necessidade
crítica sobre-determinante desses limites, ou seja, ao elevar essa reflexão ao trabalho de uma experiência do
limite do pensável como experiência (im)pura da linguagem e do pensamento filosófico performado como
insuficiente a si próprio em sua própria construção de sentido constitutiva e ilimitada, Blanchot pode falar de
uma potência da discrição ao se construir um pensamento que vai do espectro arqui-originário dos clássicos á
contemporaneidade sempre re-atualizante da experiência ficcional da literatura, que em seu sentido mais amplo
dilata e cria uma intersecção entre as fronteiras ou os limites epistemológicos dos campos da experiência do
próprio pensar, seja estético, científico ou filosófico. Um exemplo dessa energética ou do que críticos como
Christophe Bident e Dominique Rabaté chamam de Poética do neutro ou Poética da voz narrativa, pode ser
lido neste mesmo capítulo e logo acima da marca desta nota. Observemos a descrição dessa maquínica de
paradoxos e de construção desse corpo “absurdo” que ao se duplicar em uma imagem autofágica de si próprio,
443
alguém que mesmo na intimidade de seus sonhos guarde o silêncio, era em suma natural e
não seria por este sonho anexado ao sonho que ela poderia se trair. Mas seu silêncio não
tinha mesmo direito ao silêncio, e por este estado absoluto se exprimia melhor à completa
irrealidade de Anne do que a presença indiscutível e indemonstrável desta Anne irreal da
qual ele emanava, a partir deste silêncio, um tipo de terrível humor o qual se toma
incomodamente consciência. Ela girava em derrisão, como se tivesse havido ali uma massa
de espectadores intrigados e emocionados, a possibilidade que a vivêssemos, e uma
impressão de ridículo se liberasse desta muralha contra a qual ela estava estendida num
desenho que pudéssemos, oh tolice, tomar pelo sono, desta câmara onde ela estava
confinada, envolvida num manto de lã, e onde o dia começava a penetrar com a intenção
derrisória de por fim à noite dando esta palavra de ordem: “a vida continua.” Mesmo só,
havia em torno a ela uma curiosidade insaciável, uma surda interrogação que a tomando por
objeto, se deslocava também, indistintamente sobre todas as coisas, de modo que ela existia
como um problema capaz de dar a morte, não à maneira da esfinge, pela dificuldade do
enigma, mas pela tentação que ela portava de resolver o problema na morte.
Quando viera o dia, e como ela acordara, podia-se acreditar que ela tinha sido tirada
do sono pelo dia. Entretanto, o fim da noite não explicava que ela tivesse aberto os olhos, e
seu despertar era apenas um lento esgotamento, a marcha suprema através do repouso:
Havia se tornado impossível dormir pela ação de uma força que, longe de ser oposta a noite,
podia muito bem ser chamada noturna. Ela se vira só, mas mesmo que ela pudesse se
levantar apenas no mundo de sua solidão, este isolamento lhe restara estranho e, na
passividade onde ela permanecia, era sem importância que sua solidão cintilasse nela como
alguma coisa que ela não precisasse sentir e que a carregaria ao domínio para sempre
separado do dia. Mesmo a infelicidade já não era provada como presente. Ele errava em
torno à sua pessoa sob uma forma cega. Ele avançava na extensão da resignação onde não
lhe era possível tocar ou atingir. Através da fatalidade traída, ele vinha até o coração da
jovem e a tocava pelo sentimento de abandono, pela ausência de consciência onde ela se
precipitava numa grande desolação. A partir deste instante, nenhum desejo - qualquer que
fosse- de elucidar a situação a qual ela estava, não lhe viera, e o amor se reduzira à
impossibilidade de exprimir e de sentir este amor. Thomas entrara. Mas a presença de
Thomas não tinha, ela mesma, importância. Era ao contrário terrível observar a que ponto
era opaco o desejo de apreciar mesmo da forma mais banal, esta presença. Não somente
todo motivo de comunicação estava destruído, mas para Anne, parecia que o mistério deste
remete à especulação de uma impressionante economia entrópica do corpo e dos limites de se pensar essa
dimensão da existência humana como relação de uma espécie de ontologia da decrepitude que o discurso
ficcional opera como potencia própria para se fazer construir um sentido eminentemente poético ou no limite
energético, vale dizer, da construção de imagens que privilegiem uma noção de força, a partir de uma figuração
e ima desfiguração das formas descritivas da cena ficcional. A duplicidade e a ambiência esquizofrênica seriam
nessa poética de descrição da cena catastrófica de transformação de Anne e Thomas, a referência a uma
descrição da complexidade psíquica e subjetiva de uma espécie de pós-fenomenologia da subjetividade
escritural do Ego e de suas possíveis figurações obsessivas na escritura literária. Essas maquínicas de desgaste
e de esgotamento do sentido, suas experiências de modulação estética em detrimento de uma formalização
enquanto produção da forma poética, podem ser pensadas enquanto variações e teatralisações maquínicas
próprias a essa imagem codificada do Neutro, operando como conceito de uma “sur-époché” blanchotiana,
funcionando critica e esteticamente como verdadeira potência conceitual de uma poética do neutro. Poética do
neutro = estratégia de reflexão sobre as regiões ou territórios de “avizinhamento”, onde conceitos como o de
sujeito e objeto devem ser afectados em seu próprio transito, em sua colabortação “hiperfenomenológica”, ou
melhor, energética.
444
ser tivesse se dado dentro de seu próprio coração, ali mesmo, onde ele não podia mais ser
discernido, a não ser como uma questão eternamente mal formulada. E ele, ao contrário, na
silenciosa indiferença de sua vinda, surgia numa claridade ofensiva, sem o mais frágil, o
mais tranqüilizador índice de um segredo. Ela bem o tinha observado com olhares
tumultuosos de sua paixão degradada. Era como o homem o menos obscuro que ele
escapava da noite, banhado na transparência pelo privilégio de estar abaixo de toda
pergunta, personagem transfigurado porém anódino, de onde os problemas agora se
distanciavam, da mesma maneira que ela também se via desviada dele por este espetáculo
dramaticamente nulo, desviada dela mesma, onde não havia nem riqueza nem plenitude,
mas o adensamento de uma morna saciedade, a certeza que não sobreviria nem um outro
drama que o desenrolar de um dia onde se afogavam esperança e desespero, a inútil espera
tornada em razão da supressão de seu fim e do tempo ele mesmo, uma máquina cujo
maquinismo, tinha por única função a de medir, numa exploração silenciosa, o movimento
vazio de suas inúmeras peças. Ela descera no jardim e, ali, pareceu se liberar, ao menos em
parte, da condição a qual os elementos da noite a tinham precipitado. A visão das árvores lhe
impressionara. Seus olhos se transtornaram. O que era impressionante agora, era a extrema
impotência que ela mostrava. Não havia mais nenhuma resistência em seu organismo e, com
sua pele diáfana, a grande palidez de seu olhar, ela parecia tremer de esgotamento, cada vez
que alguém ou alguma coisa se aproximava dela. Na verdade, poder-se-ia perguntar como
ela suportava o contato do ar e o grito dos pássaros. Pela maneira que ela se orientava no
jardim, ter-se-ia quase a certeza que ela se encontrava em outro jardim: não que ela
passeasse, como uma sonâmbula, em meio às imagens de seu sono, mas ela conseguia
avançar pelo campo pleno de vida, sonoro ensolarado, até um campo esgotado, sombrio e
apagado que era uma segunda versão da realidade que ela percorria. No momento em que
via-se ela parar, ofegante e respirando com dificuldade o ar vivo que a golpeava, ela
penetrava numa atmosfera rara onde lhe era suficiente, para retomar o fôlego, de cessar toda
respiração. Enquanto ela caminhava com dificuldade sobre o caminho onde a cada passo ela
deveria suscitar seu corpo, ela se engajava, corpo sem joelhos, sobre uma rota em todos os
pontos semelhante a primeira, onde entretanto só ela poderia passar. Esta paisagem a
relaxava, e ela aí sentia o mesmo alívio que si, revirando completamente seu corpo ilusório
cuja intimidade a esmagava, ela teria podido, em relação ao sol que lhe clareava como a um
astro obscuro, exibir, sob a forma de seu peito descoberto, de suas pernas dobradas, de seus
braços pendentes, o amargo desgosto que lhe compunha no fundo dela mesma uma segunda
pessoa absolutamente escondida. Nesse dia tempestuoso, ela podia confessar a repulsão e o
pavor no qual nenhuma imagem chegaria a circunscrever a extensão, e ela conseguiria quase
prazerosamente fazer sair de seu ventre, larvas tendo ritmicamente a forma de seu rosto, de
seu esqueleto ou do corpo inteiro, os sentimentos inexprimíveis que tinham atraído nela,
pelo horror que lhe inspirava, o mundo total das coisas repugnantes e insuportáveis. A
solidão, para Anne, era imensa. Tudo aquilo que ela via, tudo aquilo que ela sentia era a
rasgadura que a separava daquilo que ela via e sentia. As nuvens fúnebres, se elas cobriam o
jardim, todavia permaneciam invisíveis na neblina que as envolvia. A árvore, erguida à
alguns passos, era a árvore em relação a qual ela era ausente e distinta de tudo. Em todas as
almas que a envolviam como em tantas clareiras a que ela podia se aproximar tão
intimamente como a sua própria alma, ela tinha, única claridade que lhe permitia as
perceber, uma consciência silenciosa, rígida e desolada, e é esta solidão que criava em torno
dela o doce campo das relações humanas onde, entre infinitas relações plenas de harmonia e
de ternura, ela via vir em à seu encontro seu sofrimento mortal.
445
X
Quando foi encontrada sobre um banco do jardim, acreditara-se que ela desfalecia
448
.
Mas ela não desfalecia, ela dormia, ela tinha entrado no sono por um repouso mais profundo
que o sono. Daí em diante, sua marcha através o inconsciente fora um combate solene onde,
não cedendo ao estremecimento da sonolência que ferida, já morta, ela defendia até o ultimo
instante, seu direito À consciência e sua parte de pensamentos claros. Não havia nenhuma
cumplicidade entre ela e a noite. Desde o momento em que caía o dia, escutando o hino
misterioso que a chamava para outra existência, ela se preparava para a luta na qual ela não
podia ser vencida a não ser pela ruína completa da vida. As bochechas vermelhas, os olhos
brilhantes, calma e sorridente, ela reunia impetuosamente todas as suas forças. E o
crepúsculo havia bem lhe feito entender seu canto culpado, era em vão que em favor da
obscuridade um complô se urdia contra ela. Nenhuma doçura penetrava em sua alma pela
via do torpor, nenhum simulacro de santidade que se adquire pelo bom uso das doenças. À
morte, sentia-se que ela não confiaria outra a não ser Anne e que, soberbamente intacta,
guardando até o fim tudo o que ela era, não aceitaria se salvar, por nenhuma morte
imaginaria, da verdadeira morte. A noite durara, e nunca noite alguma havia sido tão doce,
ou melhor, feita para dobrar uma doente. O silêncio transbordava, e a solidão plena de
amizade, a noite, plena de esperança, comprimia o corpo estendido de Anne. Sem delírio,
ela acordava. Não havia narcótico nas sombras, não havia estas carícias suspeitas que
permitem à obscuridade de magnetizar aqueles que resistem ao sono. A noite tratava
nobremente à Anne. E era com as próprias armas da jovem, a pureza, a confiança a paz, que
ela aceitava de a combater. Era doce, infinitamente doce, sentir entorno a si, em um
momento de enorme fragilidade, um mundo a este ponto privado de artifício e de perfídia.
Que esta noite era bela, e não doce, noite clássica que o medo não tornava opaca, que
cassava seus fantasmas e que apagava igualmente a falsa beleza do mundo. Tudo aquilo que
Anne ainda amava, o silencio e a solidão, se chamava noite. Noite absoluta onde não havia
termos contraditórios, onde o branco encontrava no negro uma substancia comum. E noite,
todavia sem confusão, sem monstro, diante da qual, sem fechar os olhos, ela encontrava a
noite pessoal que lhe faziam, habitualmente, ao se fecharem, suas pálpebras. Em plena
consciência, em plena claridade, ela sentia sua noite se juntar a noite. Ela se descobria nesta
grande noite exterior no mais íntimo dela mesma, não tendo necessidade, para alcançar a
calma, de passar por uma alma agre e atormentada. Ela estava doente, mas como esta doença
não era a sua, que era a saúde do mundo, era boa! Como o sono qui a envolvia, que não era
448
Évanouir pode ser tanto desfalecer como evanescer, desvanecer, partir, morrer, perder consciência,
desaparecer ou volatizar-se. Optou-se pelo sentido mais óbvio e concreto, apesar das imagens e das cenas
sugerirem entretanto, na seqüência dos acontecimentos que se encadeiam entre Anne e Thomas, um real
evanescimento ou vaporização da personagem, seguindo uma trajetória de fusão ou de desintegração entre as
consciências individuais e o espaço do impensável que se abre ao fora de uma experiência do horizonte
fenomenológico tal qual. Essa experiência da aurora ou do crepuscular é da ordem do que se invagina entre o
dia e a noite, entre o sono e a vigília; é de algum modo uma metaforicidade maquínica ou espaço próprio de
teatralidade do neutro enquanto conceito chave banchotiano, espaço também onde se dá uma reflexão
fenomenológica ou pós-fenomenológica do próprio limite de uma experiência reflexiva ou categorial da
consciência volitiva enquanto espaço-tempo próprio de articulação entre as categorias homeostásicas de sujeito
e objeto pressupostos como o próprio horizonte materialmente ideal do pensável. (n. do Trad.)
446
o seu, que se confundia com a suprema consciência das coisas, era puro! Então Anne
adormecia.
Durante os dias que se seguiram, ela entrara em um campo de paz deliciosa onde a
todos, ela parecia banhada na embriagues da cura. Diante deste aspecto magnífico, ela
provara, também, nela mesma esse gozo do universo, mas como um gozo congelado. E ela
esperava que isso que não podia ser nem o dia nem a noite começasse. Alguma coisa que era
o prelúdio, não de uma cura, mas de um estado de força surpreendente, se insinuava
próximo à ela. Ninguém compreendia que ela iria passar pelo estado de cura perfeita, num
ponto maravilhosamente equilibrado da vida, pendulo que iria de um mundo a outro mundo.
Sozinha, através de nuvens rapidamente dispersas acima dela, À velocidade de uma estrela,
vira se aproximar esse momento onde, retomando contato com a terra, retomaria a existência
banal, não veria nada, não sentiria nada, onde ela poderia viver, viver enfim e talvez mesmo
morrer, maravilhoso episódio. De muito longe, ela a percebera, esta Anne muito distinta,
que ela não conhecia, através da qual ela iria derramar-se em alegria. Ah! Instante cintilante.
Do seio das trevas, uma voz lhe diz: Vai.
Sua verdadeira doença começara. Ela não vive a não ser que de raros amigos, e
aqueles que ainda vinham cessaram de lhe pedir noticias. Cada um compreendia que o
tratamento não mais afrontava o mal. Mas Anne reconhecera ali um outro engano e sorriu.
Qualquer que fosse sua sorte, havia nela mais vida e mais força do que nunca. Imóvel,
durante horas, dormindo com e em seu sono, a potencia, a velocidade, a leveza, ela parecia
um atleta que ficara muito tempo deitado, e seu repouso era igual ao repouso de todos os
homens que são excepcionais correndo e lutando. Ela terminara por experimentar por seu
corpo um estranho sentimento de fidelidade; ela gozava admiravelmente de seu ser; um
sonho grave lhe fizera sentir que ela estava muito viva, completamente viva, e que ela teria
ainda mais esse sentimento de viver se ela pudesse eliminar as complacências e as fáceis
esperanças. Misteriosos momentos durante os quais, privada de toda coragem e incapaz de
movimento, ela parecia nada fazer, quando, cumprindo um trabalho infinito, ela não cessava
de descer, de lançar ao mar pensamentos de vida, pensamentos de morte para se escavar nela
um asilo de extremo silêncio. Em seguida surgiram os astros funestos e ela devia se
apressar: ela se privara de seus últimos prazeres, se desfizera dos últimos sofrimentos. A
incerteza era a de saber onde ela seria levada. Ela já sufocava. Meu Deus, ela esta bem; não,
ela é; ela é perfeita do ponto de vista ser, ela têm elevado ao mais alto, o gozo do maior dos
espíritos, encontrando seu mais belo pensamento. Ela é; não, ela esta bem, ela perde pé,
sobre ela caem tempestades de sensações, ela sufoca, ela grita, ela se entende, ela vive. Que
felicidade! Damos-lhe de beber, ela chora, nós a consolamos. È ainda à noite. Entretanto,
seria necessário que ela se desse conta: em volta dela muitas coisas mudaram, e um clima
desolado a envolvia, como se espíritos sombrios tivessem procurado atraí-la para
sentimentos inumanos. Vagarosamente separamos dela, por um protocolo impiedoso, a
ternura e a amizade do mundo. Pedia ela as flores que ela amava, oferecíamos-lhe rosas de
imitação que não tinham perfume e não lhe ofereciam, únicos seres mais mortais que ela, o
prazer de declinarem, de murcharem, de morrerem diante de seus olhos. Seu quarto tornara-
se inabitável: e pela primeira vez ao Norte, não tendo mais que uma janela de onde vinha
apenas o sol do fim do dia, cada dia, privado a de um objeto agradável, este quarto era com
toda evidencia, desmobiliado clandestinamente para que lhe viesse o desejo de deixá-lo mais
cedo. O mundo também estava devastado. Tínhamos exilado as doces estações, rogado às
crianças que gritassem sua alegria em outro lugar, chamado na rua toda a cólera das cidades,
e era uma muralha infranqueável de sons lancinantes que a separava dos homens. Por vezes
447
ela abria os olhos e olhava com surpresa: Não somente as coisas mudavam, mas os seres que
lhe estavam muito ligados também se transformavam; como duvidar? Havia nela uma
trágica diminuição da ternura. Daí em diante, sua mãe, enfiada durante horas em seu sofá
sem dizer uma palavra, o rosto terroso, cuidadosamente privado de tudo o que poderia lhe
tornar amável, não lhe deixava ver de sua afeição
449
a não ser um sentimento que a enfeava,
no momento que ela mesma precisava mais do que nunca em sua vida, de coisas jovens e
belas. Aquilo que ela havia amado outrora em sua mãe, a alegria e o rir e as lágrimas, todas
as expressões da infância relembradas numa pessoa importante, tinham desaparecido deste
rosto que não exprimia a não ser a fadiga, e era só longe daqui que ela imaginava de novo
poder ser capaz de chorar, de rir – rir, que maravilha! Ninguém riria nunca mais aqui -, mãe
de todo mundo menos de sua filha. Anne erguera a voz e lhe perguntara se ela havia se
banhado. “Cale-se, lhe disse sua mãe. Não fale, você vai se cansar.” Evidentemente, não
havia confidencias à fazer a uma condenada, nenhuma relação entre ela e aqueles que
brincam, aqueles que vivem. Ela suspirara. Entretanto sua mãe lhe assemelhava e mesmo a
cada tarde acrescentava um traço novo a essa semelhança. Contrariamente à regra, era a mãe
que tomava por modelo o rosto da filha, o envelhecia, lhe mostrava o que ela seria com
sessenta anos. Esta Anne obesa, que tinha passado ao cinza não somente seus cabelos mas
também seus olhos, era Anne sem dúvida, se ela cometesse a loucura de escapar a morte.
Inocente comédia: Anne não era tola. Malgrado Tudo aquilo que faria a vida para se fazer
detestar, ela continuaria a amar a vida. Ela estava pronta à morrer, mas ela morria amando as
flores, mesmo artificiais, se sentindo amedrontadamente órfã na morte, sofrendo
apaixonadamente esta Anne feia e impotente que ela nunca seria. Tudo aquilo que lhe era
insidiosamente proposto para que ela não se apercebesse que ela perdia muito deixando o
mundo, esta cumplicidade de moralistas e de médicos, a escamoteação tradicional do sol,
dos homens, que oferece o ultimo dia como ultimo espetáculo, as imagens e as figuras as
mais feias que em obscuras alcovas, nas quais é bem evidente, morre-se contente de morrer,
todas estas artimanhas fracassavam. Era inteiramente viva que Anne compreendia passar à
morte, esquivando os estados intermediários que são o desgosto e a recusa de viver.
Entretanto, circunscrita pela duração, vigiada por seus amigos que, com um ar inocente a
testavam dizendo: “Nos não podemos vir amanhã, desculpe-nos”, e que em seguida, como
ela respondesse em verdadeira afeição: “Não tem importância, não se incomodem”,
449
Em francês affection advêm de : Affectio, de afficere, de ad (voy. À) et facere (voy. FAIRE) ; provenç.
affectio; espagn. afección ; ital. affezione. É importante notar, seguindo a direção que toma a figuração cênica
ou a teatralidade que gostaríamos de supor nesse texto, que este termo para nós pode indicar a energética de
afecções e não de afeições a que uma poética do neutro põe “em marcha” (debreando um fluxo paradoxológico
na ficção) segundo uma economia muito particular, onde todo um movimento de forças estéticas é performado,
desde as relações mais subjetivas e afetivas até as reverberações que a descrição dos espaços e dos objetos
produz em relação a essa economia ou a essa energética do desgaste e da (in)operância, da paciência e do
silêncio que se correlacionam no limite, a esta reflexão das fronteiras ou sobre as fronteiras de uma experiência
literária voltada à performação daquilo que, por falta de melhor termo, nomeamos ‘consciência volitiva’
pensada aqui especificamente diante da iminência imponderável da morte como acontecimento limiar entre o
pensável e o impensável. Não é preciso lembrar aqui que Maurice Blanchot leva ao limite nesse relato ficcional
o desenvolvimento heideggeriano das relações capitais da presença enquanto o ser-o-aí (Dasein), e do ser-
para-a-morte, desenvolvimento que se encontra no primeiro capítulo da segunda seção de Ser e Tempo. É
Gilles Deleuze quem mais contribuiu e desdobrou a questão da afecção como conceito chave pensado como
noção imanente de uma dinâmica infinita das relações múltiplas dos modos do Ser na sua leitura da Ética de
Espinoza. Essa reflexão se encontra em seu Curso sobre Espinoza ministrado em Vincennes nos anos de 1978-
1981.
448
pensavam: “Como ela se tornou insensível, ela não se interessa mais por nada”, diante desta
triste conjuração para a reduzir aos sentimentos que, antes de morrer, deviam a degradar e
tornar as ressentimentos supérfluas, chegava a hora a qual ela se vira traída por seu pudor,
sua discrição, justamente o que ela guardava de suas maneiras de ser habituais. Logo dir-se-
ia: “Não é mais ela, melhor seria que ela morresse”, em seguida: “Que alívio para ela se ela
morresse!” Doce, irresistível pressão, como se defender? Que lhe restaria para que ela
fizesse saber que ela não mudara? No momento em que, a cada instante, ela devesse se
pendurar no pescoço de se seus amigos, dizer a seu médico: “Salve-me, eu não quero
morrer” – nesta condição, talvez ter-se-iam considerado como ainda fazendo parte do
mundo -, elle se contentaria de acolher, num aceno de cabeça, Àqueles entravam, e ela lhes
dava o que lhe era mais caro, um olhar, um pensamento, puros movimentos, A pouco ainda,
os signos da verdadeira simpatia, mas que pareciam agora a fria reserva de alguém ao menos
obscurecido com a vida. Tais cenas a atingiam e ela compreendera que a um agonizante não
se pede a retidão nem a delicadeza, sentimentos que convêm as civilizações saudáveis, mas
sim a infâmia e o frenesi. Pois que esta era a lei, pois que esta era o único modo de provar
que ela não tinha jamais tido, por todos os que a envolviam, tanta afetividade, ela fora
tomada do desejo de vociferar, pronta a acentuar um grau a cada ligação, a ver em seus
próximos seres mais próximos. Por infelicidade era tarde demais: ela não tinha mais o rosto
nem o corpo de seus sentimentos, e não lhe era mais possível ser alegre com alegria. Agora,
à todos aqueles que vinham, não importava quem, isso não tinha importância, o tempo urgia,
ela exprimia, com seus olhos fechados e seus lábios contraídos, a maior paixão que poderia
ter sido sentida. E a afeição não lhe bastaria para dizer a todos quanto ela os amava, ela
recorrera também aos movimentos os mais duros e frios de sua alma. Era verdade que nela
tudo se enrijecia. Até então lhe restava o sofrimento. Ela sofria para abrir os olhos, para
receber as mais doces palavras: única maneira, para ela, de se emocionar e jamais tinha
havido mais sensibilidade do que neste olhar que obtinha como único prazer observar por
rasgos cruéis. Mas, agora, ela quase não sofria mais; seu corpo atingia o ideal do egoísmo
que é o ideal de todo corpo; Ele era o mais rígido no momento de tornar-se o mais frágil,
corpo que não gritava sob os golpes, não emprestava nada ao mundo, se fazia, ao preço da
beleza, o equivalente de uma estátua. Essa dureza pesava terrivelmente sobre Anne; ela
sentia como um imenso vazio a ausência nela de todo sentimento, e a angustia a
estrangulava. Então, sobre a forma desta paixão primordial, não havendo mais que uma alma
triste e silenciosa, tendo um coração morto e vazio, ela oferecia sua ausência de amizade
como a amizade a mais pura e verdadeira; ela aceitara, nesta escura região onde ninguém a
alcançava, responder à afeição banal dos seus por esta dúvida suprema sobre o seu ser, pela
consciência desesperada de não ser mais nada, por sua angustia; ela fizera o sacrifício,
sacrifício pleno de estranheza, de sua certeza de existir para dar um sentido a este nada de
amor que ela tinha se tornado. E desse modo, já selada no fundo dela, já morta, se formara a
paixão a mais profunda. Àqueles que choravam sobre ela, inconsciente e fria, ela devolvia
centuplicado aquilo que eles lhe haviam dado, lhes consagrando o pressentimento de sua
morte, sua morte, o sentimento puro, nunca tão puro, de sua existência no pressentimento de
sua inexistência. Ela retirara dela não as frágeis emoções, a tristeza, o remorso, que eram a
quinhão daqueles que lhe envolviam, acidentes insignificantes que arriscavam nada os
transformar, mas a única paixão capaz de ameaçar seu próprio ser, aquela que não é
permitido alienar e que continuaria a queimar quando todas as luzes estivessem apagadas.
Pela primeira vez, ela elevara à sua verdadeira significação as palavras se doar: ela doava
Anne, ela doava muito mais que a vida de Anne, ela doava, dom último, a morte de Anne;
449
ela se separava de seu sentimento terrivelmente forte de ser Anne, terrivelmente angustioso
de ser Anne ameaçada de morrer, e o transformando num sentimento ainda muito mais
angustioso de não mais ser Anne, mas sua mãe, sua mãe ameaçada pela morte, o mundo
inteiramente sobre o ponto de ser aniquilado. Jamais neste corpo, ideal de mármore, monstro
de egoísmo, que justamente fazia de sua inconsciência o símbolo de sua consciência
alienada, ultima garantia de amizade, não tinha havido mais ternura e jamais neste pobre
corpo reduzido a menos que morte, despojado de seu tesouro o mais íntimo, sua morte,
impedido de morrer, não pessoalmente, mas por intermédio de todos os outros, não tinha
havido mais ser, mais perfeição de ser. Assim, ela tinha conseguido: seu corpo tinha sido
bem o mais forte, o mais feliz; esta existência, tão necessitada e tão limitada que ela não
podia nem mesmo receber seu contrário, a não-existência, era bem isso que ela buscava. Era
bem isso que a permitia ser igual aos outros até o fim, plenamente em forma para
desaparecer, extremo vigor para o ultimo combate. Durante os instantes que se seguiram,
uma estranha cidade se erguera em torno a Anne. Ela não se parecia com uma vila. Não
havia ali nem casa, nem palácio, nem construção de nenhum tipo; Era antes um imenso mar,
si bem que as águas fossem invisíveis e o litoral evanescente. Nesta cidade, construída longe
de todas as coisas, triste e último sonho desgarrado em meio à escuridão, enquanto o dia
caía, e que se erguiam docemente os prantos, na perspectiva de um estranho horizonte, como
algo que não pudesse mais se representar, não mais ser humano, mas somente ser,
maravilhosamente ser, entre as libélulas e os sois declinantes, entre átomos agonizantes e
espécies condenadas, em meio a doentes feridos, Anne se acrescia ao curso das águas onde
debatiam-se germes obscuros. Aonde chegara, ela não tinha, oh dor! nenhum meio de o
saber, mas eis que se confundiam numa triste e vaga inconsciência os ecos prolongados
desta noite enorme, gemendo e buscando numa lamentação que parecia a trágica destruição
de algo de não-vivente, entidades vazias despertaram e, como monstros mudando
constantemente sua ausência de forma contra outras ausências de forma e domando o
silêncio a partir de reminiscências de silêncio, eles escapavam em misteriosa agonia. O que
eram essas formas, seres, entidades funestas, isso não saberia ser dito, pois, para nós, em
pleno dia, poderia algo aparecer que não fosse o dia, algo que numa atmosfera de luz e de
limpidez representaria o arrepio de medo de onde o próprio dia escapa? Mas eles,
insidiosamente, se fizeram reconhecer, no umbral do irremediável, como as leis obscuras
chamadas a desaparecer com Anne. O que resultara desta revelação? Dir-se-ia que tudo fora
destruído, mas que também tudo recomeçara. O tempo saindo destes lagos, a fizera rolar
num imenso passado e, mesmo que ela não pudesse deixar inteiramente o espaço onde ela
ainda respirava, a atraíra até insondáveis vales, onde o mundo parecia retornado ao
momento de sua criação. A vida de Anne – e esta palavra ressoava, neste meio onde não
havia vida, justamente como um desafio, - participara em meio a noções indolentes, ao
primeiro raio lançado de toda a eternidade. As forças vivificantes a banharam, como se elas
tivessem encontrado bruscamente, em seu seio consagrado à morte, o sentido em vão
buscado pela palavra vivificante. O capricho que erigia a infinidade de suas combinações,
para conjurar o vazio, o tomara, e se ela não perdera toda sua existência, seu mal estar fora
pior, sua transformação maior que, si realmente, em seu tranqüilo estado humano, ela havia
abandonado a vida, pois não haveria absurdidades as quais ela escapasse e ela tornara-se,
durante o intervalo de um tempo simulado pela fusão da eternidade e da idéia do nada, todos
os monstros nos quais a criação se ensaiava em vão. De um só golpe – e nada jamais fora tão
brusco – os fracassos do acaso terminaram, e aquilo que jamais poderia ser esperado,
recebera de uma mão misteriosa, seu alcance. Momento inacreditável onde ela reaparecera
450
sob sua própria forma, porém maldito instante, pois esta combinação única, entrevista num
clarão, se dissipara num clarão, e as leis inquebrantáveis que naufrágio algum não pudera
ainda submergir, foram quebradas, cedendo o passo a um capricho ilimitado. Acontecimento
tão grave que ninguém perto dela percebera e, mesmo que a atmosfera fosse pesada e
bizarramente alterada, ninguém sentira aquilo que havia de estranho. O médico de inclinara
e acreditara que morria segundo as leis da morte, não vendo que ela já atingira ao instante
onde nela as leis morriam. Ela tivera um movimento imperceptível, ninguém compreendera
que ela se debatia, no instante onde a morte, destruindo tudo, podia tamm destruir a
possibilidade do aniquilamento.
450
Sozinha, ela vira se aproximar o momento do milagre e
ela não recebera nenhuma ajuda. Oh tolice daqueles que são rasgados pela dor. Ninguém
sonhara, próximo daquela que era bem menos que morrente, que estava morta, à multiplicar
os gestos absurdos, À se por, se liberando de toda conveniência, nas condições da criação
primeira. Ninguém procurava os seres falsos, os hipócritas, os seres equívocos, todos
aqueles que ridicularizam a idéia de razão. Ninguém diz no silencio: “Apressemos-nos e,
antes que ela esteja fria, precipitemo-la no desconhecido. Façamos sobre ela a obscuridade
para deixar a lei se abandonar deslealmente ao impossível. E nós também, separemos-nos,
percamos toda a esperança: A própria esperança deve ser esquecida.”
Anne agora abria os olhos. Não havia mais, com efeito, esperança. Este momento de
suprema distração, esta armadilha, onde aqueles que, quase vencida a morte, tombam,
olhando, supremo retorno de Eurídice, uma última vez, em direção àquilo que se vê, Anne
também, acabara de tombar. Ela abria seus olhos sem a menor curiosidade, com a lassitude
de alguém que sabe perfeitamente de antemão tudo aquilo que vai se oferecer á sua vista.
Eis aí, com efeito, seu quarto, eis aí, com efeito, sua mãe, seu amigo Louise, eis aí Thomas.
Meu Deus era bem isso. Todos aqueles que ela amava estavam lá. Era absolutamente
necessário que sua morte tivesse o ar de um adeus solene, que cada um recebesse sua
pressão de mão, seu sorriso. E era verdade que ela lhes pressionava a mão, que ela lhes
sorria, que ela os amava. Ela respirava docemente. Ela tinha o rosto voltado à eles como se
ela quisesse os ver até o ultimo momento. Tudo aquilo que era preciso fazer, ela o fazia.
Como cada morrente, ela se ia observando os ritos, perdoando a seus inimigos, amando seus
amigos, sem confessar, segredo que ninguém entrega, que tudo aquilo era já insignificante.
Agora ela já não tinha mais importância. Ela os olhava com um olhar cada vez mais
modesto, com um olhar simples que para eles humanos, era um olhar vazio. Ela lhes
apertava a mão cada vez mais docemente, de uma pressão que não deixava nenhum traço,
450
Essa imagem é particularmente informativa de uma problemática fundamental a Blanchot e que diz respeito
ao problema da impossibilidade de constatação fenomenológica do evento “em si” da morte. De fato é a
própria questão da abertura e do fechamento desse horizonte eventual e que marca essa comunhão de forças
que caracteriza o ser-o-aí ou Dasein heideggeriano enquanto ente privilegiado na analítica existencial de Ser e
Tempo. Esse espaço de impossibilidade de um modo ou de outro é preenchido pela construção das imagens e
de certa forma para nós é aludido enquanto espaço de jogo da literatura que pode ao postergar a experiência
descritiva, não se ater de forma cristalizada a problemática do sentido filosófico, mas invagina o campo dessa
experiência do impensável como experiência de um umbral de sua própria instituição figurativa, ou como
preferimos nomear, teatralógica e literária, a partir de uma performatividade própria e excedente da voz
narrativa que funcionaria como autêntica potência poética; facilitadora dessas tonalidades afectivas que
poderíamos chamar com Deleuze de zonas de avizinhamento ou indiscernibilidade. Finalmente, diríamos que a
poética do neutro blanchotiana é a expressão poética filosófica e performativa desse espaço limiar onde
transita o próprio (im)pensável como propriedade (a)fundante do pensamento. Em Deleuze este espaço limiar
se configura como hecceité, dimensão conceptual onde potências virtuais podem se atualizar a partir da criação
de conceitos em um plano de imanência.
451
pressão para eles insensível. Ela não falava. Era necessário que estes últimos instantes
fossem sem lembrança. Era necessário que seu rosto, seus ombros tornassem-se invisíveis,
como convinha a algo que evanescesse. Sua mãe gemia: “ Anne, tu me reconheces?
Responda-me, aperte-me a mão.” Anne escutava esta voz: Pra que afinal, sua mãe não era
mais que um ser insignificante. Ela também escutava Thomas; justamente, ela sabia agora o
que dizer a Thomas, ela conhecia exatamente as palavras que por toda a vida ela tinha
procurado para o alcançar. Mas ela se calara, ela pensara: Pra que afinal – esta palavra
também era a palavra que ela procurava -, Thomas é insignificante. Durmamos.
452
XI
Desde que Anne Morrera, Thomas não deixara o quarto e ele parecia profundamente
desolado. Esta dor, a todos aqueles que ali estavam, causara um grande mal estar tendo eles
o pressentimento que aquilo que se dizia nesse instante preparava um drama cujo
pensamento consternara. Eles se retiraram tristemente e ele ficara só. O que ele se dizia,
poderíamos acreditar que não podia de nenhuma maneira se deixar ler, mas ele tomara
cuidado de falar como se seus pensamentos pudessem ser escutados, deixando de lado a
estranha verdade a qual ele parecia preso.
Eu desconfio, disse ele, que Anne premeditou sua morte. Ela estava esta noite
apaziguada e nobre. Sem essa afetação que dissimula nos mortos seu verdadeiro estado, sem
essa última covardia que lhes faz esperar morrer pela mão do médico, ela, se dera em um
instante, inteiramente a morte. Eu me pus mais próximo desse cadáver perfeito
451
. Os olhos
estavam fechados. A boca não sorria. Não havia sobre o rosto nenhum reflexo da vida.Corpo
sem consolação, ela não escutava a voz que perguntava: “Isso é possível ?”, e ninguém
sonhava em dizer dela aquilo que dizemos dos mortos sem coragem, o que o Cristo disse
para humilhá-la , da jovem que não era digna do sepulcro: ela dorme. Ela não dorme. Ela
tampouco mudou. Ela se imobilizou no ponto onde ela não se parecia a não ser consigo
mesma, e onde seu rosto, tendo apenas a expressão de Anne, transtornava os olhares. Eu
peguei-lhe a mão. Toquei-lhe a testa com meus lábios. Eu a tratava como viva e, porque ela
era a única morta com um rosto e uma mão, meu gestos não pareciam insensatos. Tinha ela
a aparência da vida? Oh Dor! Tudo o que a impedia de ser distinguida de uma pessoa real
era aquilo que atestava seu aniquilamento. Ela estava toda em si: na morte, superabundante
de vida. Ela tinha o ar mais grave, mais senhora dela mesma. Nenhuma Anne faltava para o
cadáver de Anne. Todos tinham sido indispensáveis para Levá-la de volta ao nada. O ciúme,
451
Não se poderia deixar de comentar tão importante imagem conceitual blanchotiana. O cadáver tal qual é
apresentado teoricamente no livro O Espaço Literário, potencializa e discerne de forma complexa, toda a
paradoxologia blanchotiana no que diz respeito a “economia do neutro” ou poética do neutro. É toda a questão
de uma preocupação em se “estirar” os limites de uma pesquisa fenomenológica sobre o estatuto da imagem no
que concerne a essa figuração de uma ausência, todavia sempre ainda corpórea que se mostra na referência
cadavérica. De fato, essa atmosfera extremamente densificada em torno da qual a imagem do cadáver é como
um centro de gravidade, é descrita por Blanchot a partir de uma argumentação que busca neutralisar de algum
modo a referência simplesmente semiótica se assim podemos dizer, da imagem da morte em seu espaço de
experiência (im)pensável mas aludível. A ausência que se expõe na presença do cadáver, se impõe como uma
verdadeira força de dissimulação que atravessa esse evento que poderíamos também referencializar à
problemática do luto e do “estranhamento familiar” (unheinlich) freudianos. De fato o cadáver espacializa a
contradição transcedental (sentido de “campo transcendental” de Deleuze em seu ensaio “L’imanence, une
vie”) que sutenta uma espécie de ambigüidade essencial da imagem que passa a ter lugar nessa presença
paradoxal. A imagem cadavérica, como espécie de vórtice exemplar na potencia do neutro, se remete a um
aqui e agora e a um “alhures” e em outro-mesmo tempo. Aí se instala de algum modo, a promessa
insustentável e como em suspensão, potencia (in)operante dessa repetição impossível da intimidade
inalcançável da morte (morte “em si” e “para si” no agora irremediável e em incessante fuga que caracteriza
seu evento), e ao mesmo tempo sempre re-lançada ao porvir da própria vida que envolve esse centro
constantemente descentrado pelas forças (linguagem como campo semiótico de afecções estéticas), a qual esse
outro pólo da presença cadavérica, ou seja, a parte da consciência de quem experimenta essa imagem neutra,-
de quem fica, quem “sobre-vive” afinal - estimula e faz viver novamente o próprio desse acontecimento
paradoxal que se performa na presença do cadáver. É uma “ambiência” limite que se instaura como “absence”,
luto e estranhamento familiar que advêm como a potencia (in)operante do acontecimento limite de uma idéia
de facticidade premente da finitude.
453
a contemplação, a violência só serviram uma vez, para fazê-la inteiramente morta. Em seu
fim, ela parecia ter necessidade de mais ser para ser aniquilada do que para ser e, morta
justamente deste acréscimo que lhe permitia se mostrar toda inteira, ela dava à morte toda a
realidade e toda a existência que formavam a prova de seu próprio nada. Nem impalpável
nem dissolvida nas sombras, ela se impunha sempre mais aos sentidos. À medida que sua
morte tornava-se mais real, ele aumentava, ela inchava, ela escavava em seu leito uma
tumba profunda. Ela atraía, tão apagada, todos os olhares. Nós que permanecíamos próximo
à ela, sentíamos-nos comprimidos por este ser de grande formato. Nós nos asfixiávamos,
privados de ar. Aquilo que só os carregadores de caixão podem saber, que os mortos
duplicam de peso, que são os maiores, os mais fortes de todos os seres, cada um descobria
com angustia. Cada um carregava sua parte desta morte evidente. Sua mãe, a vendo tão
parecida a uma viva, elevou ingenuamente sua cabeça não podendo suportar a enorme
sobrecarga, prova da destruição de sua filha. Em seguida, eu permanecera só perto dela. Ela
estava certamente morta neste instante no qual podia-se crer que ela se elevava sobre mim.
Porque morrer, tal tinha sido sua artimanha para dar ao nada um corpo. No momento onde
tudo se destruía, ela tinha criado o mais difícil e não que ela tivesse tirado algo do nada
452
,
ato sem alcance, mas sim dado ao nada, sob sua forma de nada, a forma de alguma coisa. O
ato de não enxergar tinha agora seu olho integral. O silêncio, o verdadeiro silêncio, aquele
que não é feito de palavras caladas, de pensamentos possíveis, tinha uma voz. Seu rosto
progressivamente mais belo, edificava sua ausência. Nenhuma parte dela mesma que fosse
ao menos o apoio de uma realidade qualquer. É desde esse ponto, sua historia e a história de
sua morte se evanescendo juntas e ninguém mais existindo no mundo para nomear Anne,
que ela atingia o momento de imortalidade do nada
453
onde o que cessou de ser entra em um
sonho sem pensamento. Era verdadeiramente a noite. Eu fora envolvido de astros. A
totalidade das coisas me envolvera e eu me preparei para a agonia pela consciência exaltada
452
Neste caso em francês, rien. É fundamental ter em mente o uso das duas formas da palavra nada que são
usadas por Blanchot com um sentido de modulação semântica bem marcado. Rien, palavra que significa nada
como traduzindo a etimologia latina de res, ligando ao sentido dessa palavra algo de substancial, a ‘coisa’, a
algo de indeterminado. Etimologicamente portanto, rien informa uma certa imanência; diríamos enfim que rien
têm o sentido de um nada como “coisa nenhuma”. O jogo desses dois sentidos marcados pelas duas palavras
rien e neant, afirma e sobredetermina uma relação paradoxal da morte como economia de forças entre duas
posições do sentido do “não-ser”, onde o sentido do acontecimento da morte transitaria, diríamos, a partir das
figurações de uma poética do neutro, criando uma zona de indeterminação e de indiscernibilidade no interior
do conceito de “não ser”. Diríamos que entre neant e rien, alêm da imanência da própria linguagem coexiste
um jogo de forças necessariamente paradoxal no sentido da afirmação aporética desta verdadeira “posição
neutra” e de oscilação em que vacila o sentido na ficção de Blanchot. Diria ainda que na ficção blanchotiana o
sentido não advêm nem por positividade nem por negatividade, mas dá-se necessariamente como desgaste e
esgotamento do sentido que vacila a partir de uma retóricidade paradoxológica que, ao afirmar uma proposição
não o faz sem ao mesmo tempo estender essa mesma proposicionalidade a partir de um movimento de inversão
ou de relativisação desse sentido primeiro, na seqüência das proposições secundárias que muitas vezes
invertem o sentido primeiro ou apenas os desgastam numa neutralização ativa e suspensiva de seu sentido
incessantemente por vir. Esta análise de uma retoricidade e semânticas de neutralisação foi feita anteriormente
é preciso lembrá-lo, e de forma brilhante, por Jacques Derrida em seu livro Parages, livro com ensaios sobre a
linguagem ficcional e a ficção de Maurice Blanchot.
453
Neste caso em francês, neant. Neant, é em sua etimologia não-ser, advindo do Provençal. nien, nein, nient;
ital. niente; du lat. ne ou nec, et ens, entis, l'être (voy. ENTITÉ). Na palavra neant, esse nada é ligado a
negação do ser e ao sentido lógico desta ausência de algo, deste vazio dado por negação. Esse sentido do nada
como neant é de algum modo “mais transcendente” no sentido de sua etimologia latina trazê-lo próximo de
uma negação ou negatividade mais polarizada ao sentido do ser como positividade do que aquilo que é de
algum modo.
454
de não poder morrer. Porem, neste instante, aquilo que apenas ela até ali tinha entrevisto
apareceu manifesto a todos: Eu lhes revelara em mim, a estranheza de sua condição e a
vergonha de uma existência interminável. Certamente eu podia morrer, mas a morte brilhava
perfidamente para mim como a morte da morte, de modo que, tornando-me o homem eterno
que toma o lugar do moribundo, este homem sem crime, sem razão de morrer e que é todo
homem que morre, eu morria, morte tão estrangeira à morte, eu passava meu instante
supremo em um tempo onde não era mais possível morrer, e eu vivia, entretanto, todas as
horas de minha vida, na hora em que eu não mais podia as viver. Quem, mais que eu, fora
arrancado do ultimo minuto pleno de esperança, neste ponto privado da ultima consolação
que a lembrança oferece aos desesperados, àqueles que esqueceram justamente a felicidade
e se jogam do alto da vida paras se lembrarem dos prazeres? E entretanto, eu era
verdadeiramente um morto, eu era mesmo o único morto possível, eu era o único homem
que não dava a impressão de morrer por acaso. Toda minha força, o sentimento que eu tinha
de ser , tomando a cicuta, não Sócrates morrendo, mas Sócrates se acrescendo de Platão,
esta certeza de não poder desaparecer que tem só os seres atingidos de uma doença mortal,
esta serenidade diante do cadafalso que dá aos condenados sua verdadeira graça, fazia de
cada instante de minha vida o instante onde eu ia abandonar a vida
454
.Todo o meu ser
pareceu se confundir com a morte. Tão naturalmente quanto os homens acreditavam viver,
aceitando como um movimento inevitável à sucessão da respiração e o retorno do sangue, eu
cessava de viver. Eu tirava minha morte de minha própria existência e não da ausência da
existência. Eu mostrava um morto que não se limitava à aparência de um ser diminuído, e
este morto, pleno de paixões
455
mas insensível, solicitando seu pensamento a uma falta de
454
... où J’allais quitter la vie.
455
Remarco o tema da paixão que é particularmente importante ao relacionar tanto a temática da paixão do
Cristo e sua economia singular do ponto de vista do sacrifício último da profecia judaico cristã da morte e
ressurreição. G.H. de Clarice, a seu modo, investiga como corpo feminino uma paixão relacionada ao embate
desse corpo e dessa consciência ao enigma da existência enquanto passagem ou paixão da passagem como
intervalo onde eclode a existência. Diferentemente de Thomas de Blanchot que vive uma impossibilidade da
morte como mergulho homeoestásico no acontecimento impossível da consciência fenomenológica da morte,
G.H parece viver algo porém muito análogo quando se embate na própria abjeção do sentimento existencial
que lhe advêm como cena de uma trans-historicidade arque-originária; ou seja, dos confins da formação da
terra o corpo do inseto ao ser provado ou literalmente comungado por G.H, oferece-lhe uma espécie de
mergulho na paixão indizível de uma experiência agônica de despersonalisação. Há um caráter do conceito de
neutro nessas duas ficções que se torna evidente tanto na atribuição da palavra neutro em G.H., caracterizando
a todo momento o próprio movimento em direção a uma espécie de região hiperfenomenológica anônima,
ambígua e que adviria tanto da própria experiência de crise por que passa a personagem, quanto pela própria
economia estética do processo que vive G.H. ao se defrontar com uma relação de abertura e despersonalização
radical frente a existência. Esse acontecimento agônico é exposto numa relação que poderíamos aproximar do
limite de uma espécie de espasmo squizoide da consciência fática frente a densidade, diríamos ontológica, de
uma consciência singular em relação homeoestásica ao processo existencial global e trans-histórico.
Gostaríamos ainda de expor a relação complexa que se pode perceber no tratamento propriamente estético
dessas narrativas. Cada uma a seu modo, criam uma performance retórica que procura de modo teatrológico,
segundo nossa hipótese, aceder a essa mesma região de indiscernibilidade ou a essa cisão homeoestásica da
consciência fática. Uma diferença quanto a certa alegoriazação teológica nos dois textos se faz de algum modo
sutilmente exposta.
Se em Thomas l’Obscur apesar de haver uma referência clara a algumas cenas bíblicas do velho e do novo
testamento, expondo por exemplo cenas bíblicas para operar como em desvio hiperbólico à essas cenas;
aproximando de algum modo o tema da ressurreição à problemática de uma impossibilidade de experiência
fenomenológica da morte; - em Clarice a palavra e o nome Deus, é atribuído diversas vezes mas numa variação
de sua acepção que torna seu sentido particularizado e de algum modo “destranscendencializado”: trata-se da
455
atribuição do nome Deus quase sempre a partir do artigo definido masculino “o Deus”. Essa referência a “o
Deus” feita por G.H o torna de certa forma uma signo de imanência necessário a própria experiência de G.H.
que ultrapassa uma relação de “subserviência” em relação a uma potencia superior transcendente e se lança ao
espasmo de uma experiência limite atribuída ao que seria da ordem da “paixão do neutro” ou de uma relação
que nomeamos na tese como Potencia de (in)operância.
Se Deus para G.H. relaciona metafísicamente a totalidade de tudo o que há e sendo sua experiência agônica
relacionada ao próprio horror de uma abertura à inteligibilidade impossivel de todas as coisas; estar de algum
modo atrelada a um encadeamento trans-histórico imadiato, parece levar G.H. a descrever sua própria relação
figurada com “o Deus” a uma experiência limite de um ato de abjeção inaudito para a própria personagem, a
levando a uma espécie de sacrificio ou de experiencia ou prova-ção necessária para o cumprimento de uma
nova natureza de relação de sua consciência individual - que se vê homeoestasiada a uma totalidade que a
ultrapassa e que só poderia ser experiementada como prova de uma virtude negativisada, virtude da
experiência de um sacrifício da própria inteligibilidade, em prol de uma experiência de imersão no que viemos
chamando de paixão do Neutro.
Nesse sentido as duas ficções tematizam uma experiência comum com o Neutro, no sentido do lapso de uma
relação homeoestásica em relação a existência fática da finitude ou do ser-para-a-morte. As duas ficções se
encontram, se pensarmos que a experiência ou as experiências relatadas pelo narrador de Thomas l’Obscur, se
relacionam a descrição também de paixões enquanto percebidas como relações-limite que envolvem a cena da
morte, tendo como operadores de sensação toda uma economia do corpóreo entendido como espaço “real”
(afectivo) da sensação, onde o espaço de um estranhamento absoluto têm lugar, pois confronta a homeoestase
regulada da consciência fática dos personagens que acompanham o acontecimento limite do aniquilamento de
Anne, à posição de cisão homeoestásica em que figura a voz narrativa muitas vezes ocupada pelo próprio
personagem Thomas.
Nesse espaço de intensas figurações limite é que se dá um trânsito vertiginoso entre um fora da cena limite
dessa morte impossível de ser experienciada “in extremis” e a própria interioridade da cena que é transvalorada
numa performance ou numa teatralisação operada pelo jogo da própria cena que, ao operar a voz narrativa
entre os personagens reposiciona a potencia de atribuição de sua própria voz, ao relato de uma impossibilidade
paradoxalmente posta em movimento e tornada real nessa encenação. Se retoricamente a voz narrativa se
suspende ao gramaticalizar uma série de situações que parecem (in)operar a ação do relato, essa ação é
constamtemente re-operada numa diegesis que lenta e progressivamente reitera uma cadência ficcional que faz
com que Thomas pareça experimentar sua própria entropia ficica como experiência psicológica fantasmática,
seja no sentido psicanalítico, ontológico ou semiótico.
Se o narrador de A paixão segundo G.H. teatraliza mesmo que de um modo isolado ou talvez inevitavelmente
duplicado, sua experiência limite de crise homeoestásica da consciência fática do mundo; o narrador de
Thomas l’Obscur teatraliza suas cenas de desfiguração, acompanhado de mais personagens. Por outro lado,
existe uma cadencia comum nessas narratividades e que extrapola o sentido básico de relato da própria
experiência de unheinlich ou dessa experiência do neutro que se dá em torno à experiência
fenomenologicamente impossível da morte.
Essas experiências narrativas compõem, cada uma a seu modo, um processo de investigação sobre a própria
crise de representação mimética ou de outro modo indicam uma posição estética sobre um adentramento ao
espaço da crisecomo estranhamento existencial diante do mundo, estranhamento este que irrompe em meio a
descrição das crises dos personagens e que chamamos as vezes momentos de desfiguração ou de
despersonalização da consciência fática do mundo.
É importante notar que esse encadeamento ou essa progressão narrativa em cada um dos relatos, opera uma
série de possibilidades descritivas, mas que a principio, e em resumo, reunimos nos dois relatos como o
espectro de uma experiência ficiconal-limite teatralizada literariamente. Este processo que poderia também ser
chamado seqüência narrativa, põe em relação toda uma complexidade de modos retóricos do relato ficcional e
adentram tanto em G.H quanto em Thomas, uma crítica fundamental da linguagem literária. Essa critica se dá
no sentido em que a experiência de unheinlich ou a experiência de crise homeoestásica que tem lugar como
“poética do neutro” dessas ficções, deve procurar dinamizar-se numa relação de diferença e de desvio únicas
capazes de aceder a complexidade corpóreo-sensacionais que emergem do espaço dessa mesma experiência e
que para serem experimentadas apenas “aludem” paradoxalmente a imagens e alegorias que resvalam o
impensável das situações literárias que são descritas. Daí a singularidade retórica e paradoxológica e a
necessidade de uma “teatralidade” dessas cenas em uma poéticidade do neutro que explora, numa espécie de
estratégia barroca, o envolvimento semântico e retórico dos personagens em suas ações e em cada uma de suas
456
pensamento e entretanto separando com cuidado aquilo que ele poderia ter de vazio, de
negação, na vida, para não fazer de sua morte uma metáfora, uma imagem ainda
enfraquecida da morte habitual, figurava no mais alto grau o paradoxo e a impossibilidade
da morte. O que então me distinguiria dos vivos? Justamente aquilo que nem noite, nem
perda da consciência, nem indiferença não me chamariam fora da vida. E o que me
distinguiria dos mortos senão um ato pessoal no qual a todo instante, a margem das
aparências que geralmente bastam, seria-me necessário encontrar o sentido e a explicação
definitiva de minha morte? Não gostar-se-ia de crer, mas minha morte era a mesma coisa
que a morte. Em frente à homens que só sabem morrer, que vivem até o fim, vivos tocados -
leve acidente – pela termo de suas vidas, eu não tinha a não ser a morte como índice
antropométrico. Era isso mesmo que rendera meu destino inexplicável. Sob o nome de
Thomas neste estado escolhido onde poder-se-ia me nomear e me descrever, eu tinha o
aspecto de um vivo qualquer, mas como eu não era real a não ser sob o nome de morte, eu
deixava transparecer, sangue misturado ao meu sangue, o espírito funesto das sombras, e o
espelho de cada um de meus dias refletira as imagens confundidas da morte e da vida.
Assim minha sorte estupeficava as pessoas. Este Thomas, me forçava a parecer, estando
vivo, nem tanto o eterno morto que eu era e sobre o qual ninguém podia por os olhos, mas
um morto comum, corpo sem vida, sensibilidade insensível, pensamento sem pensamento.
No mais alto grau da contrariedade, eu fui esse morto ilegítimo. Representado em meus
sentimentos por um duplo para quem cada sentimento significava tanta absurdidade quanto
para um morto, eu atingi, no cume da paixão, o limite da estranheza e pareci elevado
456
à
condição humana por tê-la verdadeiramente cumprida. Sendo, em cada ato humano, o morto
que ao mesmo tempo o torna possível e impossível e, se eu andava e se eu pensava, este ao
qual a completa ausência permite apenas o passo e o pensamento diante das bestas, - seres
que não carregam consigo sua dupla morte- eu perdera minha última razão de ser. Houvera
entre nós um trágico intervalo. Eu cessava, - homem sem nenhuma parcela de animalidade,
com minha voz que não mais cantava, que não falava mais como aquela do pássaro falante, -
de poder me exprimir. Eu pensava, fora de toda imagem e de todo pensamento, em um ato
que consistia a ser impensável. A todo momento, eu era este homem absolutamente humano,
supremo individuo em exemplar único, em relação ao qual, no momento de morrer, cada um
se transfere e que morre só no lugar de todos. Comigo a espécie morria a cada vez
completamente. Consequentemente, se deixássemos estes seres compósitos que são os
homens morrer á vontade, os teríamos visto sobreviver miseravelmente em pedaços
divididos entre os diversos gêneros, reconstituídos numa mistura de inseto, árvore e terra, -
eu desapareceria sem deixar traço e eu levaria meu ofício de morto à perfeição. Eu fora,
portanto o único cadáver da humanidade. Contrariamente àqueles que dizem que a
humanidade não morre, eu fiz a prova em cada circunstancia de que a humanidade só pode
morrer. Eu me manifestei em cada um desses pobres moribundos, horríveis, no instante
experiências. Essas experiências não apenas relatam uma cisão em relação a capacidade descritiva ou racional
provada na imanência do próprio corpo ficcional (corpo-corpus da ficção) mas obrigam a uma reformulação do
próprio léxico conceitual que se relaciona à passagem de uma consciência de escritura literária pensante à
relativa impotência do discurso filosófico de dar conta com singular propriedade dessas experiências-limite.
Lida dessa forma a literatura se coloca como espaço e maquina teatrológica de pulsões e de uma inventoriação
fantasmática do desejo como produção ficcional.
456
Je parus ravis à la condition humaine. Em francês essa expressão parece ter o sentido religioso de ser
elevado ou transportado aos céus. Percebe-se nessa passagem a transgressão e a inversão desse sentido
metafísico à imanência e a materialidade próprias da condição humana.
457
pleno de beleza onde, renunciando a todas as suas ligações com as outras espécies, eles
tornam-se, - não renunciando apenas ao mundo, mas ao chacal, às trepadeiras – eles tornam-
se unicamente homens. Estas cenas ainda brilham em mim como festas magníficas. Eu me
aproximava deles e sua ansiedade crescia. Estes miseráveis que tornavam-se homens,
provando ao se sentirem homens, o mesmo pavor de Isaac diante do carrasco, em tornar-se
bode sacrificial. Nenhum deles reconhecera minha presença, e contudo havia, no mais
íntimo deles mesmos e como um ideal funesto, um vazio o qual eles sofriam a tentação, que
eles sentiam como uma pessoa com uma realidade tão completa e tão importante que lhes
seria preciso preferir em lugar de qualquer outra, mesmo ao preço de sua existência. Então
se abriram as portas da agonia e eles se precipitaram em seu engano. Eles se diminuíam se
esforçavam em se reduzir à coisa nenhuma
457
para corresponder a este modelo de nada
458
que eles tomavam por modelo da vida. Eles amavam apenas a vida e eles lutavam contra ela.
Eles morriam por um gosto tão vivo de viver que a vida lhes parecia esta morte a qual eles
pressentiam a aproximação, que acreditavam fugir se jogando ao seu encontro e que eles
reconheciam no único e último instante, quando a voz lhes dizia: “É muito tarde”, eu já
tomei seu lugar. O que acontecia então? Quando a vigia se tinha virado voltava, ela via
alguém que não se parecia com ninguém, um estranho sem rosto e o contrario de um ser. E a
amiga a mais afetuosa, o melhor filho diante desta forma estrangeira, vendo seus sentidos se
alterar e, lançando um olhar de horror para aquilo que eles mais amavam, um olhar frio
irreconhecível, como se a morte não tivesse atingido seu amigo, mas seus sentimentos, e
eram eles agora, eles vivos, que se transformavam tão profundamente que poder-se-ia
chamar isso uma morte. Mesmo entre eles as relações se alteraram. Se eles se debatiam, era
estremecendo, acreditando experimentar um contato desconhecido. Cada um, numa solidão
em relação ao outro, numa intimidade completas, cada um tornava-se para ou outro o único
morto e o único sobrevivente. E quando aquele que chorava e aquele que era motivo de
choro vinham a se confundir, fazendo apenas um, então explodia o desespero, esse momento
o mais estranho do luto, quando, na câmara mortuária, os próximos se juntam àquele ao qual
eles se rendem, sentem-se da mesma substância, tão respeitáveis quanto ele e mesmo se
consideram como o morto autêntico, único digno de se impor à tristeza comum. E tudo,
então, lhes parece simples. Eles dão ao defunto, depois de lhe ter tocado como uma
realidade escandalosa, sua natureza familiar. Eles dizem: “Eu jamais compreendi tão bem
meu pobre marido, meu pobre pai.” Eles se imaginam compreendendo, não somente tal qual
ele era vivo, mas como era morto, tendo dele o mesmo conhecimento que uma arvore
vigorosa tem do galho que cortou-se, pela seiva que ainda escorre. Pois, com o tempo, os
vivos se assimilam completamente aos que desapareceram. Pensar os mortos se pensando,
torna-se a formula do apaziguamento. Vemos-lhes entrar triumfalmente na existência. Os
cemitérios se esvaziam. A ausência sepulcral torna-se novamente invisível. As estranhas
contradições se evanescem. É num mundo harmonioso que cada um continua a viver,
imortal até o fim.
“A certeza de morrer, a certeza de não morrer, eis o que restou, para as pessoas, da
realidade da morte. Mas àqueles que me contemplaram, sentiram que a morte podia também
se associar à existência e formar esta fala decisiva: A morte existe. Eles tomaram o habita de
dizer da existência tudo aquilo que eles podiam dizer da morte para mim e, em lugar de
murmurar; “Eu sou, eu não sou”, de misturar os termos numa mesma e feliz combinação; de
457
Em francês, rien
458
Em francês, neant
458
dizer: “Eu sou, não sendo” e igualmente: “ Eu não sou, sendo”, sem que houvesse a menor
tentativa em reaproximar palavras contrárias usando-as umas contra as outras como pedras.
E era chamando sobre ela vozes que afirmavam a cada vez com a mesma paixão: é para
sempre, é para nunca mais, que minha existência à seus olhos, adquirira um caráter fatal.
Parecia que eu marchava comodamente sobre os abismos e que, inteiro, não meio fantasma e
meio homem, eu penetrava em perfeito nada
459
. Espécie de ventríloquo integral, em toda
parte onde eu gritava, era lá onde eu não estava e onde eu era em todas as partes igual ao
silêncio. Minha fala, como feita de vibrações muito altas, devorara à princípio o silêncio,
depois a fala. Eu falava, estava de uma só vez, imediatamente colocado no coração da
intriga. Eu me lançava no puro incêndio que me consumia ao mesmo tempo que me tornava
visível. Eu me tornava transparente ao meu próprio olhar. Veja os homens: O vazio puro
ordena seu olho de se dizer cego, e um perpétuo álibi entre a noite do fora e a noite do
dentro, lhes permite por toda a vida a ilusão do dia. Para mim, era esta ilusão que num lapso
inexplicável parece ter saído de mim mesmo. Eu me encontrara com duas imagens, coladas
uma à outra. Eu não cessava de tocas a duas margens. Com uma mão mostrando que eu
estava ali mesmo, com a outra, que digo? Sem a outra, com este corpo que, superposto ao
meu corpo real, mantido inteiramente à uma negação do corpo, eu me concedia a
contestação mais evidente.Tendo dois olhos no qual um era de uma extrema acuidade de
visão, era com aquele que não era olho a não ser por sua recusa de olhar, que eu via tudo o
que era visível. E assim com todos os meus órgãos. Eu tinha de mim uma parte imersa, e era
a essa parte perdida num constante naufrágio que eu devia minha direção, minha figura e
minha necessidade. Eu encontrava minha prova nesse movimento em direção à inexistência
onde, em lugar de se degradar, a prova que eu existia se reforçava até a evidência. Eu fiz um
esforço supremo para me ater aquém de mim mesmo, o mais perto possível do lugar dos
germes. Ora, longe de chegar, homem feito, adolescente, protoplasma, ao estado de
possibilidade; eu me encaminhava em direção a algo de consumado e eu entrevi, nesse
fundo, a estranha figura daquele que eu era realmente e que não tinha nada em comum com
um homem já morto ou um homem ainda por nascer: companheiro admirável com o qual eu
desejava com todas as minhas forças me confundir, mas separado de mim, sem nenhum
caminho para me conduzir a ele. Como o alcançar? Matar-me, absurdo estratagema. Entre
este cadáver, o mesmo que um vivo mas sem vida, e este inominável, o mesmo que um
morto mas sem morte, eu não via nenhum laço de parentesco. Nenhum veneno para me unir
a este que não podia suportar nome, nem ser designado pelo contrário de seu contrário, nem
concebido como uma relação a o que quer que seja. A morte era uma metamorfose grosseira
perto da nulidade indiscernível que eu justapunha entretanto, ao nome de Thomas. Era isso
então uma quimera, este enigma, obra de uma palavra malignamente formada para destruir
todas as palavras? Mas se eu prosseguia em mim mesmo, me esforçando em um labor
imenso em direção ao meu exato meio dia, eu provava, como uma trágica certeza, no centro
de Thomas vivo, a proximidade inacessível deste Thomas vazio
460
, e mais a sombra de meu
pensamento diminuía, mais eu me concebia, nesta claridade sem erro, como o hospedeiro
possível e pleno de desejos deste obscuro Thomas. Na plenitude de minha realidade, eu
acreditava tocar o irreal. Oh minha consciência, não era questão de te amputar sob a forma
de sonhos, de evanescimentos, de lacunas, aquilo que não podendo ser assimilado a morte,
deveria passar à coisa pior, tua própria morte. Que digo eu? Eu o sentia ligado este nada, à
459
Em francês, néant.
460
Em francês, néant.
459
tua extrema existência, como uma condição irrecusável. Eu sentia que entre tu e ele se
ligavam inegáveis razões. Todos os acoplamentos lógicos eram incapazes de exprimir esta
uniãoonde, sem portanto nem porque, ao mesmo tempo como causa e como filho, vocês se
encontraram inconciliáveis e indissolúveis. Seria teu contrário? Não, eu o dissera. Mas
parecia que eu teria chegado a termo, tendo perdido meu caminho mais certo e, sem voltar-
me sobre meus passos, progredindo admiravelmente de tua consciência, que é ao mesmo
tempo existência e vida, à tua consciência, que é ao mesmo tempo realidade e morte, eu teria
chegado a termo, lançado então dentro de um terrível desconhecido, numa imagem de meu
enigma que teria sido ao mesmo tempo nada
461
e existência. E, com essas duas palavras, eu
poderia destruir sem cessar o que significava um, pelo que significava o outro e o que
significavam os dois, e eu teria destruído ao mesmo tempo, por sua contrariedade, o que
havia de contrário entre esses contrários e eu terminaria por misturá-los sem fim para fundir
o que não podia se tocar, por ressurgir no mais próximo de mim mesmo, Harpagon que
súbito, encontra seu ladrão e o agarra pelo braço. É então no seio de uma gruta profunda me
aparece a loucura do pensador taciturno, e palavras ininteligíveis ressoam em minhas
orelhas, enquanto eu escrevia estas doces palavras sobre o muro: “Eu penso, logo não
sou”
462
Estas palavras me trazem uma visão deliciosa. No meio de um imenso campo, uma
lupa brilhante recebia os raios dispersos do sole, por estes fogos, ela toma consciência dela
mesma como de um eu monstruoso, não no ponto onde ela os recebia, mas no ponto onde
ela os projetava e os unia em um único feixe. Neste fogo, centro de uma terrível ardência,
ela estava maravilhosamente ativa, ela clareava, queimava e devorava; o universo inteiro se
fazia chama no ponto onde ela o tocava; ela não o abandonava a não ser destruído.
Entretanto, eu reparei que este espelho era como um animal vivo consumido por seus
próprios fogos. A terra que ele abrassava era seu corpo inteiro reduzido a pó e, desta chama
que não cessava, ele tirava numa torrente de enxofre e ouro, a conseqüência que
incessantemente lhe aniquilava. Ele se pos então a falar, e sua voz parecia sair do fundo de
meu coração. Eu penso, disse ele, eu reunia tudo o que era luz sem calor, raios sem brilho, ,
produtos não refinados, eu os embaralho e conjugo e, numa primeira ausência de mim
mesmo, eu me descubro no seio da mais viva intensidade como uma unidade perfeita. Eu
penso, diz ele, eu sou sujeito e objeto de uma irradiação todo-poderosa; sol que emprega
toda sua energia tanto a se fazer noite quanto a se fazer dia. Eu penso: aí onde o pensamento
de junta a mim, eu
463
, eu posso me subtrair de ser, sem diminuição nem transformação, por
uma metamorfose que me conserva à mim mesmo fora de todo abrigo onde me abrigar. É a
propriedade de meu pensamento, não de me assegurar de minha existência, como todas as
coisas, como a pedra, mas de me assegurar de ser no próprio nada
464
e de me incitar a não
ser para me fazer então sentir minha admivel ausência. Eu penso, diz Thomas, e este
Thomas invisível, inexprimível, inexistente que eu me torno, faz que de agora em diante eu
não esteja nunca aí onde eu estava, e que não haja aí nada de misterioso. Minha existência
torna-se inteira aquela de um ausente que, a cada ato que eu cumprisse, se produzia o
mesmo ato aí não se cumprindo. Eu andava, contando meus passos, e minha vida era então a
de um homem inteiramente emparedado por tijolos, que não tinha pernas, que não tinha nem
mesmo a idéia do movimento. Sob o sol avançava o único homem que o sol não clareava, e
461
Em francês, néant.
462
Referência e desestabilização do sentido em relação a memorável frase de Descartes.
463
Em francês, moi.
464
néant
460
esta luz que se subtraía à ela mesma, este calor tórrido que não era calor, era todavia saído
de um verdadeiro sol. Eu olhava a minha frente: uma jovem estava sentada em um banco, eu
me aproximara, me sentara perto dela. Não havia entre nós a não ser um frágil intervalo.
Mesmo quando ela virava a cabeça, ela me percebia inteiro. Ela me via pelos meus olhos
que ela trocava com os seus, por meu rosto que há muito pouco era seu rosto, por minha
cabeça tomara lugar facilmente entre seus ombros. Agora, ela me esposava. Em um único
olhar ela se fundia em mim e, nesta intimidade, descobrira minha ausência. Eu a senti
oprimida, trêmula. Eu previa sua mão pronta a se aproximar de mim para me tocar, mas a
única mão que ela teria desejado pegar era inapreensível. Eu compreendi que ela procurava
apaixonadamente a causa de seu transtorno, e quando ela viu que não havia nada em mim de
anormal, o pavor lhe tomou. Eu era igual a ela. Minha estranheza tinha por causa tudo o que
fazia eu não lhe parecesse estranho. Ela percebia com horror em tudo o que o que ela tinha
de comum a fonte de tudo o eu tinha de extraordinário. Eu era seu trágico sósia. Se ela se
erguia, ela sabia, me vendo levantar, que era um movimento impossível, mas ela sabia
também que para ela era um movimento muito simples, e seu medo chegava no limite
porque não havia nenhuma diferença entre nós. Eu tinha minha mão em minha testa, fazia
calor, eu alisava meus cabelos. Ela me olhava com grande piedade. Ela tinha piedade deste
homem sem cabeça, sem braços, completamente ausente do verão e que ao preço de
esforços inimagináveis secava seu suor. Em seguida, ela ainda me olhava e a vertigem a
tomou. Porque, que havia de insensato em meu gesto? Era algo de absurdo que coisa nada
465
explicava, nada mostrava, cuja absurdidade se destruía, absurdo de ser absurdo, em tudo
igual a algo razoável. Eu oferecia a esta jovem a experiência de alguma coisa absurda, e era
uma prova
466
terrível. Eu era absurdo, não por causa do pé de cabra que me deixava andar
com um passo
467
de homem, mas por causa de minha anatomia regular e de minha
musculatura completa que me permitia um passo normal, um passo todavia absurdo e, cada
vez que ele era normal, cada vez mais absurdo. Por meu lado, eu a observava: eu lhe
carregava o único mistério, que ela não podia a não ser procurar eternamente. Tudo era
claro, tudo era simples em mim: não há abaixo no puro enigma. Eu lhe mostrava um rosto
privado de segredo, indecifrável; em meu coração ela lia como não tinha lido em nenhum
outro coração; ela sabia porque eu tinha nascido, porque eu estava ali, e quanto mais ela
reduzia em mim a parte desconhecida, mais seu desconforto e seu medo aumentavam. Ela
era forçada a me divulgar, ela me separava de minhas ultimas sombras, com medo de me ver
sem sombra. Ela perseguia perdidamente este mistério; ela me destruía insaciavelmente.
Para ela onde eu estava? Eu havia desaparecido e eu a sentia se recolher para se lançar em
465
Rien. Daqui em diante só se fará menção a néant.
466
Épreuve; prova, experiência. Tomamos o sentido dessa experiência dada pela palavra épreuve como prova
no sentido de uma experiência onde se tem uma certa intencção de se fazer cumprir. É assim que nos
referenciamos a essa palavra, a qual utilizamos para fazer valer uma experiência crítica proposital e que se
propôs trabalhar o próprio limite de um discurso crítico que se pretende de literatura comparada; o que para
nós trás nessa acepção, problemas tremendos. Como comparar experiências literárias que são em sua própria
constituição irredutíveis uma à outra? Talves produzindo uma outra experiência entre essas duas literaturas e
que intencionalmente produza um jogo e uma teatralidades próprias a uma prova-ção desses textos.
467
Derrida explorou brilhantemente esta intraduzibilidade da palavra pas em francês que significa tanto
“passo” (cadência do andar) como também é a partícula negativa em francês: ne ... pas. Blanchot cria jogos
semânticos intraduzíveis também em outros de seus livros como Celui qui ne m’accompagnait pas, Faux pas e
particularmente Le pas au-delà, texto que remete a toda a problemática lógico-fenomenológica que o autor
tenciona e leva ao limite a partir do discurso literário e do que chamamos sua retoricidade ou poeticidade
paradoxológica.
461
minha ausência como em seu espelho. Aí estava, a partir disso, sua forma exata, aí estava,
seu abismo pessoal. Ela se via e se desejava, ela se apagava e se rejeitava, ela duvidava
inefavelmente dela mesma, ela não era. Eu a vi sucumbir. Eu pus minha mão sobre seus
joelhos.
“ eu estou triste, a noite vem. Mas eu provo também o contrário da tristesa. Estou
nesse momento onde basta provar um pouco de melancolia para sentir a raiva e o gozo. Eu
me sinto terno, não somente para os homens mas para as paixões. Eu os amo, amando os
sentimentos pelos quais pode-se os amar. Eu os levo ao segundo grau o devotamento e a
vida: Para nos separar, não há mais que isto nos tria unido, a amizade e o amor. No fundo de
mim, no fim do dia, decantam estranhas emoções que me tomam por objeto. Eu me amo eu
mesmo com o espírito de hostilidade, eu me apaziguo com o pavor, eu gozo a vida com o
sentimento que dela me separa. Todas essas paixões pressionadas em mim, não produzem a
não ser o que eu sou e o universo inteiro esgota seu furor para me fazer vagamente sentir-
me, sentir algum ser que não se sente. Agora a calma desce com a noite. Eu não posso mais
nomear nenhum sentimento. O estado em que estou, se eu o nomeasse impassibilidade, eu
poderia também chamá-lo fogo. O que eu sinto, é a fonte do que é sentido, a origem que
acredita-se insensível, é o movimento indiscernível do gozo e da repulsão. E é verdade, eu
não sinto nada. Eu toco em regiões onde o que se prova não tem nenhuma relação com o que
é provado. Eu desço no bloco duro do mármore com a sensação de deslizar no mar. Eu me
afogo no bronze mudo. Em toda parte o rigor, o diamante, o impiedoso fogo, e entretanto a
sensação e aquela da espuma. Absoluta ausência de desejo. Aí, nenhum movimento, nenhum
fantasma de movimento, nada tampouco de imóvel. É a uma tal penúria que eu reconheço
todas as paixões as quais me retiraram por um prodígio insignificante. Falta de Anne, Falta
de meu amor por Anne na medida em que eu amava Anne. E falta, duplamente de mim,
estando a cada vez levado pelo desejo para além do desejo e mesmo destruindo esse Thomas
inexistente onde ele me parecia estar verdadeiramente. Falta desta falta, eu me recolho
infinitamente. Eu perco todo o contato com o horizonte ao qual fujo. Eu fujo minha fuga.
Onde está o termo? Desde já o vazio me parece o cume da plenitude: Agora, eu sou como
um animal apavorado em seu próprio salto. Eu caio com o horror de minha queda. Eu aspiro
vertiginosamente a banir-me de mim mesmo. È isso a noite? Eu retornei, outro, onde eu
estava? Novamente um momento supremo de calma. Silêncio, asilo de transparência para a
alma. Eu estou apavorado por esta calma. Eu provo da doçura que impede um sofrimento
que me consome. Se eu tivesse um corpo, eu levaria as mãos à garganta. Eu queria sofrer.
Eu queria me dispor uma simples morte numa agonia na qual eu me rasgaria. Que paz! Eu
sou massacrado de delícias. Não resta mais nada de mim que não se abra a este futuro vazio
como a um gozo atroz. Nenhuma noção, nenhuma imagem, nenhum sentimento me
sustentam. Eis que agora mesmo eu não sinto nada, provando somente cada sentimento
como uma grande ausência, é agora na ausência completa de sentimentos que eu
experimento o sentimento mais forte. Eu tiro meu medo do medo que eu não tenho. Medo,
pavor, a metamorfose ultrapassa todo pensamento. Eu luto contra um sentimento que me
revela que eu não posso o provar e é nesse momento que eu o provo com uma força que faz
um inexprimível tormento. E isso não é nada, pois eu poderia senti-lo outro que ele não é,
medo sentido como gozo. Mas o horror é que nele abre-se a consciência que nenhum
sentimento é possível, como de sobra nenhum pensamento e nenhuma consciência. E o pior
horror é que o apreendendo, longe de dissipá-lo como um fantasma em que se toca, eu o
aumento para além de toda medida. Eu o provo sem experimentá-lo e como não
experimentando nada, não sendo nada, e esta absurdidade é sua monstruosa substância. Algo
462
de totalmente absurdo me serve de razão. Eu me sinto morto – não; eu me sinto, vivo,
infinitamente mais morto que morto. Eu descubro meu ser num abismo vertiginoso onde ele
não está, ausência, ausência onde ele se aloja do mesmo modo que um deus. Eu não sou e eu
duro; um futuro inexorável se estende infinitamente por este ser suprimido. A esperança se
revira em medo contra o tempo que o arrasta. Todos os sentimentos jorram fora deles
mesmos e convergem, destruídos, abolidos, em direção a este sentimento que me petrifica,
me faz e me desfaz e me faz atrozmente sentir, numa total ausência de sentimento, minha
realidade sob a forma do nada
468
. Sentimento que é necessário nomear e que eu chamo
angustia
469
. Eis portanto a noite. A obscuridade não esconde coisa alguma. Meu primeiro
discernimento é que esta noite não é a ausência provisória da claridade. Longe de ser um
lugar possível de imagens, ela se compõe de tudo o que não se vê e não se escuta e, a
escutando, mesmo um homem saberia que, se ele não fosse um homem, ele não escutaria
nada. À verdadeira noite falta portanto o insuspeitado, o invisível, tudo aquilo que pode
tornar a noite habitável. Ela não se deixa nada de outro atribuir a não ser ela, ela é
impenetrável. Eu me encontro verdadeiramente no para-além, se para-além, é isso que não
admite para-além. Esta noite me carrega, com o sentimento que todas as coisas se
evanescem, o sentimento que toda coisa me é imediata. Ela é a relação suprema que se
basta; ela me conduz eternamente a si, e uma corrida obscura do idêntico ao idêntico me
informa o desejo de um admirável progresso. Nesta repetição absoluta do mesmo nasce o
verdadeiro movimento que não pode alcançar o repouso. Eu me sinto conduzido pela noite
em direção à noite. Um tipo de ser, faz junto com tudo o que é excluído pelo ser, se oferece
como fim aos meus atos. O que não se vê não se compreende, não é, forma próximo a mim o
nível de uma outra noite, entretanto a mesma, à qual eu aspiro indizivelmente, mesmo que já
confundido com ela. Em minha compreensão é um mundo – eu a chamo mundo, como,
morto, eu chamaria a terra, nada
470
. Eu a chamo mundo, porque não há outro mundo
468
néant
469
Deveríamos nos remeter e remarcar a importância que haveria em se fazer um estudo sobre a questão do
conceito de tonalidade afetiva expressa no problema da angustia para Heidegger, no que diz respeito a analítica
do ser-o-aí (Dasein) desde Os conceitos fundamentais da metafísica: Mundo, Finitude e Solidão, conjunto de
escritos do curso de 1929-1930, no qual o filosófo pensa o que se tornará um pouco depois a matéria de
reflexão de Ser e Tempo. De fato poderíamos dizer que Blanchot investiga, diríamos, literariamente, a tese da
tonalidade afetiva da angustia como acesso privilegiado ao sentido de Dasein, adentrando conjuntamente e a
seu modo, as pesquisas fenomenológicas de E. Husserl e desembocando em toda a conceitualidade expressa
em sua experiência do neutro que é operada também de forma ensaística, principalmente no livro L’entretien
infini de 1969, mas que em Thomas l’Obscur percebemos a potência originária de uma teatralidade ou de uma
performance estética que estende e distende tanto o pensamento fenomenológico alemão ou francês, no caso
específico de Sartre ou Merleau-Ponty, quanto diretamente à hermenêutica existencial heideggeriana.
Com efeito, para nós, gostaríamos de apontar a importância que existe no trabalho desse pensamento estético
ou poético de Blanchot e que estendemos á Clarice Lispector que potencialmente segundo entendemos
performa a fenomenologia e a analítica existêncial heideggeriana e aponta em nossa hipótese, a possibilidade
de uma investigação ou de um pensamento literário mais amplo que configuraria o que Blanchot chama de
“Espaço Literário”; o que esboça no nosso entender, a possibilidade de se pensar numa teatralidade própria a
essas estratégias literárias que investigam de forma estética e a partir de uma potência fabular ou ficcional, as
regiões ou o espaço de reflkexão próprio ao pensamento que reflete ou se desdobra sobre sua própria condição
dramática, - a saber, que a historicidade do pensamento opera por saltos, ausências e exclusões, - invadindo ou
destituindo fronteiras epistemológicas que passam a tornar o próprio do pensamento, paradoxalmente uma
atividade que extrapolaria a esfera de uma metodológica ou de uma lógica transcendental, para se constituir
como experiência imanente do pensar, em nosso caso, experiência ficcional e literária do pensamento como
nos informa a contemporaneidade do pensamento filosófico e literário reunidos em torno a Maurice Blanchot.
470
néant
463
possível para mim. Eu creio, como quando nos aproximamos de um objeto, que eu o torno
mais próximo, mas é ele que me compreende. Ele, invisível e fora do ser, me percebe e me
sustenta no ser. Ele mesmo, quimera injustificável se eu não estiver lá, eu o discirno, não na
visão que eu tenho dele, mas na visão e no conhecimento que ele tem de mim. Eu sou visto.
Eu me destino sob esse olhar a uma passividade que, em lugar de me reduzir, me torna
real
471
. Eu não procuro nem distingui-lo, nem a atingi-lo, nem a supô-lo. Perfeito negligente,
eu o guardo, por minha distração, o caráter do inacessível que lhe convêm
472
. Meus sentidos,
minha imaginação, meu espírito estão mortos do lado em que ele me olha. Eu o agarro como
a única necessidade, ele que não é nem mesmo uma hipótese; como minha única resistência,
eu que me aniquilo. Eu sou visto. Poroso, idêntico a noite que não se vê, eu sou visto. Tão
471
Todo esse trecho se remete a performação literária das teses fenomenológicas sobre a interpenetração e a
intencionalidade de uma reflexão que tome a consciência reflexionante e o objeto de reflexão numa mesma e
dinâmica constituição do sentido do acontecimento. Lembramos o título do livro de Didi-Hubermann: O que
vemos, o que nos olha, que aponta diretamente para essa problemática e que Blanchot explora desde a década
de 1940 a partir de seu desdobramento da fenomenologia husserliana.
Clarice Lispector também passa por essa problemática do sentido da experiência reflexionante e da
possibilidade de uma problematização da experiência fenomenológica por toda a sua obra. Por exemplo: Em
Perto do coração Selvagem, quando a escritora se lança na atividade literária ao escrever um romance que faz
uso inovador da linguagem, extremando as relações do tempo subjetivo das personagens, quando opera todo
um deslocamento do sentido do tempo a partir da leitura quase sonora e fortemente subjetiva do espaço, aí
mesmo onde o onomatopaico e o interjeitivo têm um papel absolutamente teatralógico nas cenas e no sentido
atemporal que desse movimento emerge. Essas imagens de algum modo filosóficas, também ocorrem em A
cidade sitiada, quando a protagonista observa os objetos de sua casa ou quando descreve de modo o horizonte
descampado da cidade onde mora, que se transforma fisicamente em relação ao escoamento do tempo que
funciona como pano de fundo ao relato. Em A maçã no escuro quando Martim adentra uma experiência
vertiginosa e se mistura num “descortinamento” (palavra chave semanticamente no relato) á épocas primitivas,
quando em uma cena vista a patir de um celeiro, observa o pasto ou o estábulo onde trabalha e mesmo em toda
a primeira parte deste livro, onde de forma muito parecida as experiências sensoriais e afetivas vertiginosas de
Thomas, Martim têm uma estranha experiência em relação às coisas a sua volta, como em sua relação com as
pedras e aos pássaros a sua volta, experimentando para além de um delírio, uma verdadeira experiência limite
de uma crise homeostásica de consciência, após ter supostamente cometido um ato que ele considerara fatal, o
assassinato de sua esposa. Em Água viva, intenso relato em primeira pessoa onde toda uma poética da angustia
faz com que a narradora descreva sua solidão com imagens vertiginosamente relacionadas aos objetos e ao
tempo que decorre nessa relação.
472
Aqui pode-se perceber toda uma performance a respeito do problema da intencionalidade da investigação
fenomenológica. A distração passa a ter um valor conceitual na medida em que se percebe uma potência
contingente fazendo parte das determinações da pesquisa fenomenológica. Um caráter passivo na posição
reflexionante não teria necessariamente a condição absolutamente nula numa positividade do conhecimento,
mas sim, entraria nessa reflexividade, como uma força de sinal invertido, tencionando uma posição de
observação múltipla e dinâmica do mundo, para além de uma dialética sintética do fenômeno. A distração
operaria uma potência do desvio de algum modo rearranjando possibilidades múltiplas de uma experiência que
operaria de modo epistemologicamente diferente do método científico. Em lugar de uma experiência
polarizada, fortemente binomial, dialética, tem-se nesse campo explorado pela experiência literária limite de
Blanchot, uma espécie de possibilidade de descrição de um espaço inventivo complexo, onde a experiência e a
complexidade do mundo fenomênico passa a ser englobada pela possibilidade de uma dinâmica singular do
próprio espaço de criação estética, capaz este de criar certas imagens mais propícias a figurar uma potência ou
uma economia das sensações que chamariamos pela força sinergética que aí pode ter lugar, de potencia
dramática ou de efeito de uma teatralidade maquínica da literatura.
Trataría-se basicamente de levar as “últimas” consenquências um certo estatuto imanente da experiência
reflexionante, procurando criar ou levar adiante esta poética do neutro blanchotiana teatralisada pela ficção ou
de se pensar literariamente numa economia signalética das forças artísticas com Deleuze, quando este filósofo
procura potencializar uma capacidade de discernimento das forças numa estética imanente dos jogos signicos,
plásticos, musicais ou performáticos.
464
imperceptível quanto ele, eu o sei que me vê. Ele é mesmo a ultima possibilidade que eu
tenho de ser visto quando eu não exista mais. Ele é este olhar que continua a me ver em
minha ausência. É o olho que meu desaparecimento, à medida que tornasse mais complexo,
exige cada vez mais para me perpetuar como objeto de visão. Na noite nós somos
inseparáveis. Nossa intimidade é esta noite mesma. Entre nós, toda distancia é suprimida,
mas para que nós não possamos nos reaproximar. Ele me é companheiro, mas amizade que
nos divide. Ele me é unido, união que nos distingui. Ele é eu mesmo, eu que não existo para
mim. Eu não tenho, neste instante, existência a não ser para ele que não existe para mim.
Meu ser não subsiste que sob um ponto de vista supremo que é justamente incompatível
com meu ponto de vista. A perspectiva na qual eu me evanesço em meus olhos, me restaura,
imagem completa para o olho irreal a qual eu proíbo toda imagem. Imagem completa em
relação a um mundo sem imagem que me figura na ausência de toda figura imaginável. Ser
de um não ser no qual eu sou a ínfima negação que ele suscita como sua profunda harmonia.
Na noite, eu me tornaria o universo? Eu sinto que em cada parte de mim, invisível e
inexistente, eu sou supremamente e inteiramente visível. Maravilhosamente ligado, eu
ofereço em uma imagem única a expressão do mundo. Sem cor, inscrito em nenhuma forma
pensável, não sendo tampouco o produto de um cérebro possante, eu sou a única forma
necessária. Sobre a retina do olho
473
absoluto, eu sou a pequena imagem invertida de todas
as coisas. Eu lhe dou, sob o meu formato, a visão pessoal não somente do mar, mas do eco
da colina onde ressoa ainda o grito do primeiro homem. Aí, tudo é distinto, todo é
confundido. Uma unidade perfeita, ao prisma que eu sou, restitui a dissipação infinita que
permite tudo ver sem ver nada. Eu renovo o ensaio grosseiro de Noé. Em fecho novamente
em minha ausência o princípio de totalidade que não é real e sensível a não ser para ser o
absurdo que transborda a totalidade. Para esse espectador absurdo que me compulsiona, me
ama e me atrai possantemente em sua absurdidade. Na medida em que compreendo em mim
este tudo ao qual eu ofereço, como a água a Narciso, o reflexo o qual ele se deseja, eu sou
excluído do todo, e o todo ele mesmo é excluído e mais ainda a prodigiosa falta, falta de
mim e do todo, falta também para mim, e para quem entretanto eu trabalho só nesta
absurdidade que ele aceita. Nós somos atingidos todos os três, número já monstruoso
quando um dos três é tudo, da mesma proscrição lógica. Nós somos unidos pela mesmo
fracasso mútuo onde nós nos atemos, com esta diferença que é em relação ao meu único
contemplador que eu sou o ser irracional, representando o todo fora de si, mas que é também
em relação à ele que eu não posso ser irracional, se ele representa ele mesmo a razão desta
existência fora do todo. Ora, nesta noite, eu me avanço, levando o todo, através daquilo que
excede infinitamente o todo. Eu progrido para além da totalidade que eu abraço, todavia,
estreitamente. Eu vou pelas margens do universo, caminhando audaciosamente em outro
lugar que eu possa estar e um pouco exterior aos meus passos. Esta leve extravagância;
desvio em direção ao que não pode ser, não é somente meu próprio movimento me
conduzindo a uma demência pessoal, mas o movimento da razão que eu arrasto comigo.
Comigo gravitam fora da lei as leis, fora do possível o possível. Oh noite, agora, nada não
me fará ser, nada não me separará de ti. Eu me adiro admiravelmente à simplicidade a qual
473
Seria interessante pensar numa possível relação desta imagem do olho com o livro do escritor e ensaísta
Georges Bataille, amigo de Blanchot, L’oeil pinel, livro que investiga numa linguagem vertiginosa uma
espécie de economia energética do homem e do mundo, a força solar como origem e fim para uma superação
da metafísica em proveito de uma poeticidade limite da existência funcionando como entre lugar agônico e de
experiência em relação a matéria e ao tempo no mundo.
465
me convidas. Eu me inclino sobre ti, igual a ti, te oferecendo um espelho para teu perfeito
nada
474
, para tuas sombras que não são nem luz nem ausência de luz, para este vazio que
contempla. A tudo aquilo que tu és e, para nossa linguagem, o que não és
475
, eu acrescento
uma consciência. Eu te faço experimentar como em uma relação tua suprema identidade, eu
te nomeio e te defino. Tu torna-se uma passividade deliciosa. Tu atinges uma possessão
inteira de ti mesma na abstenção. Tu dás ao infinito o sentimento glorioso de seus limites.
Oh noite, eu te faço saborear teu êxtase. Eu percebo em mim a segunda noite que te aporta a
consciência de tua aridez. Tu te desabrochas em novas restrições. Tu te contemplas por meu
intermédio eternamente, Eu estou contigo, como se tu fosses minha obra. Mina obra... Que
estranha luz cai sobre mim? O esforço por me suprimir de toda coisa criada teria chegado a
fazer de mim o supremo criador? Contra o ser, tencionando todas as forças, eu me
reencontro no coração da criação. Eis aí, tendo consciência do absoluto, como de um objeto
que faço no próprio tempo onde me esforço por não me fazer. Aquilo que jamais teve
princípio me admite em seu eterno começo, eu que sou a recusa obstinada de meu próprio
começo
476
.Eu sou a origem disso que é sem origem. Eu criei o que não pode ser criado. Por
uma ambigüidade toda poderosa, o incriado
477
é para ele e para mim a mesma palavra. Eu
lhe sou a imagem disso que lê seria, se ele não fosse. Como não é possível que ele seja, eu
sou por minha absurdidade sua soberana razão. Eu o obrigo ser. Oh noite, eu sou ele mesmo.
Eis que ele me atraiu na armadilha de sua criação. É ele agora que me obriga ser. Sou eu seu
eterno prisioneiro. Ele me cria apenas para si. Ele me faz, eu nada, semelhante ao nada. Ele
me entrega covardemente ao prazer.”
474
néant
475
N’es pas
476
commencement
477
L’incréé
466
XII
Thomas avançou pela campanha e vira que a primavera começava. Ao longe, os
alagados estendiam suas águas turbulentas, o céu era resplandecente, a vida jovem e livre.
Quando o sol se erguera sobre o horizonte, os gêneros, as raças e mesmo as espécies futuras,
representadas por indivíduos sem espécie, povoavam a solidão numa desordem plena de
esplendor. Libélulas sem élitros que não voariam em dez milhões de anos, tentavam seu
vôo; sapos cegos se arrastavam na lama procurando abrir os olhos, somente capazes de visão
para o futuro. Outros, atraindo se olhar na transparência do tempo, obrigavam aquele que os
olhava a tornar-se visionário por uma suprema profecia do olho. Cintilante luz, onde,
clareados, impregnados pelo sol, todos se agitavam para receber o reflexo de novas chamas.
A idéia de perecer pressionava a crisálida a tornar-se borboleta, a morte para a lagarta verde
consistia em receber as asas sombrias da mariposa noturna
478
, e havia nas efemérides
479
uma
consciência maravilhosa de desafio que dava a impressão embriagante que a vida duraria
para sempre. Poderia o mundo ser mais belo? Através dos campos se estendia o ideal da cor.
Através do céu vazio e transparente se estendia o ideal da luz. As árvores sem frutos, as
flores sem flores carregavam no fundo de suas hastes o frescor e a juventude. Em lugar da
rosa, havia sobre o roseiral, uma flor negra que não podia secar. A primavera envolvera
Thomas como uma noite cintilante e ele se sentira docemente chamado por esta natureza que
transbordava de alegria. Para ele, um pomar amadurecia no seio da terra, pássaros voavam
no vazio e um imenso mar se estendia a seus pés. Ele andava. Era de novo o estalo da luz?
Parecia-lhe que, por um fenômeno que esperava-se desde séculos, a terra agora o visse. As
primaveras deixavam-se olhar por seu olhar que não via. O cuco começara um
surpreendente canto para sua orelha surda. O universo o contemplava. A andorinha a quem
ele chamara a atenção, não era mais que umssaro universal que lançava um grito para o
mundo profanado. Uma pedra rolava, e escorregava através de uma infinidade de
metamorfoses cuja unidade era aquela do mundo em seu esplendor. Em meio a esses
frêmitos, a solidão explodia. Via-se sobre a profundidade do céu, se elevar um rosto
irradiante e ciumento o qual os olhos absorviam todas as outras figuras.Um som se erguera,
grave, harmonioso, que ressoava ao interior dos sinos como um som que ninguém poderia
escutar. Thomas avançava. A grande infelicidade que adviria, surgia ainda como um doce e
tranqüilo acontecimento. Nos vales, sobre as colinas, sua passagem se estendia como um
sonho sobre a terra brilhante. Era estranho passar em meio de uma primavera embalsamada
que recusava seu perfume, contemplar as flores que em outras cores brilhantes não podia ser
percebida. Pássaros pintalgados, escolhidos por serem o repertório de nuances, se elevavam,
oferecendo o vazio do vermelho e do negro. Pássaros ternos, designados por serem um
conservatório da musica sem notas, cantavam a ausência do canto. Via-se ainda algumas
efemérides voar com asas verdadeiras, porque elas iam morrer, e isso foi tudo. Thomas
tomou seu rumo e, súbito, o mundo cessara de escutar o grande grito que atravessava os
abismos. Uma cotovia, por ninguém percebida, lançara sons agudos para um sol que ela não
via e deixara o ar e o espaço sem encontrar no vazio o cume de sua subida. Uma rosa que
florescera em sua passagem, tocara Thomas com o brilho de sua mil corolas. Um rouxinol
478
Em francês, Sphinx, achérontia.
479
Ephémères, tipo de libélula de vida muita curta.
467
que o seguia de árvore em árvore, fez entender sua extraordinária voz muda, cantor mudo
para si e para todos os outros, cantando, entretanto, um canto admirável. Thomas avançava
em direção a cidade. Não havia mais nem som nem silêncio. O homem, submergido pelas
ondas que acumulavam a ausência de ondulação, falava a seu cavalo num dialogo a uma
voz. A cidade que se falava num dialogo a mil vozes, repousava em escombros de imagens
transparentes e iluminadas. Onde estava então a cidade? Thomas, no coração do
aglomerado, não encontrara ninguém. As casas enormes, com seus milhares de habitantes,
estavam desertas, privadas deste habitante primordial que é o arquiteto poderosamente
aprisionado nas pedras. Cidades imensas não edificadas. Os imóveis se empilhavam uns
sobre os outros. Edifícios e monumentos enredados se formavam nas encruzilhadas. Até o
horizonte, via-se elevar-se lentamente paragens inacessíveis de pedra, obstáculos que
terminavam na aparição cadavérica do sol. Esta sombria contemplação não pode durar.
Milhões de homens, nômades em suas casas, não habitando mais nenhum lugar, se
espalharam até os confins do mundo. Eles se lançavam; se afundavam no chão,
emparedados entre blocos cuidadosamente cimentados por Thomas, onde uma enorme
massa de coisas se quebrava sob uma nuvem de cinzas; eles avançavam, arrastando sob seus
passos, a imensidão da extensão.Misturados a esboços de criação, durante um ínfimo
instante, eles se aglomeraram às montanhas. Eles se elevaram como astros, devastando por
seu curso fortuito, o arranjo universal. Com suas mãos cegas, eles tocavam, para os destruir,
os mundos invisíveis. Sois que não brilhavam mais, desabrochavam em suas órbitas. O
grande dia os abraçava em vão. Thomas avançava sempre. Como um pastor, ele conduzia a
tropa de constelações, a maré dos homens-estrelas em direção à primeira noite. A marcha
era solene e nobre, mas em direção a que fim e sob que forma? Eles se acreditavam ainda
aprisionados numa alma a qual queriam ultrapassar os limites. A memória lhes parecia este
deserto de gelo que faria fundir um sol admirável, no qual retomassem, pela lembrança fria e
sombria, separada do coração que a teria amado, o mundo que tentariam reviver. Mesmo
que eles não tivessem mais corpo, eles gozavam ter todas as imagens representando um
corpo, e seu espírito nutria o cortejo sem fim de cadáveres imaginários. Mas pouco a pouco
o esquecimento vinha. A memória gigantesca onde eles se agitavam em assustadoras
intrigas, se dobrava sobre eles e os expulsava desta cidade na qual eles pareciam ainda
respirar fragilmente. Uma segunda vez, eles perderam seus corpos. Alguns que mergulharam
orgulhosamente o olhar no mar, outros que guardaram com obstinação seu nome, perderam
a memória da fala, enquanto repetiam a palavra vazia de Thomas. A lembrança se apagara e,
tornado a febre maldita que divertia em vão sua esperança, como prisioneiros não tendo para
se evadir a não ser que suas correntes, eles procuravam se elevar até a vida que eles não
podiam imaginar. Via-se saltarem desesperadamente fora de suas muralhas, flutuar,
escorregar traiçoeiramente, mas eis que eles acreditavam já triunfar, tentando compor com a
ausência de pensamento um pensamento mais forte que devoraria leis, teoremas, sabedoria,
o guardião do impossível os agarra, e eles se abismam no naufrágio. Queda prolongada,
pesada: chegaram eles, como sonhavam, nos confins da alma que eles acreditam percorrer?
Lentamente eles saíram deste sonho e encontraram uma solidão tão grande quanto os
monstros com os quais tínhamos os assustado quando eles eram homens; se aproximando
deles, os olharam com indiferença, e nada percebendo, se inclinando sobre a cripta,
permaneceram lá, numa inércia profunda, esperando misteriosamente que a língua a qual
cada profeta, no fundo de sua garganta, sentisse o nascimento, saísse do mar e lhes
empurrasse pela boca palavras impossíveis. Esta espera, vapor funesto, exalado gota a gota
do cume de uma montanha, parecia que não poderia ter fim. Mas, quando realmente do
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fundo das trevas se erguera um grito prolongado que era como o fim de um sonho; todos
reconheceram o oceano e eles perceberam um olhar cuja imensidão e doçura despertava
neles desejos que eles não poderiam suportar. Por um instante refeitos em homens, eles
viram no infinito uma imagem a qual tiveram prazer e, cedendo a uma ultima tentação, se
desnudaram voluptuosamente na água.
Thomas, também, olhara esta ondulação de imagens grosseiras, depois quando foi
sua vez, ali se precipitou, mas tristemente, desesperadamente, como se a vergonha tivesse
começado para ele
480
.
480
Deveríamos poder ou tentar fazer, no mínimo, um pequeno comentário dessa aproximação ao tema bíblico
do gênesis. Na verdade, pode-se perceber que há nessa passagem final, não apenas uma relação mais próxima
ao gênesis e em particular, à imagem bíblica do gênesis como relato do começo dos começos, mas, poder-se-ia
supor que existem imagens nessa alegoria, que se remeteriam ao tema da transmigração das almas e às suas
possíveis figurações, como também ao que pode-se fazer ressoar, pelo menos em relação à atmosfera onírica e
vaporosa que daí se descola, ou seja, essa impressionante imagem dos homens que nesse circuito cosmico,
metafísico e infinito dos tempos, malicioso e paradoxal, descrito em torno a Thomas, parece turbilhonar-se
num fluxo ascendente em direção a “aparição cadavérica do sol”.
Não poderiamos deixar de associar essa imagem ao menos com relação à atmosfera vórtica e opiácia que aí
tem lugar, prontamente às ilustrações e pinturas védicas que a cultura hinduísta nos apresenta e em seguida,
particularmente, a quadros simbolistas de do fim do séc. XIX, como por exemplo Fatalité, Les trois fiancées e
Les Chant des Temps de 1893, todos do pintor Jan Toorop (1858-1928). Esses quadros no mínimo se
correlacionam em seu onirismo thanatológico e sensual, à imagem do fluxo das almas que é descrito em meio
ao caos que sofre a cidade, e ao qual parece também nesta cena, servir de passagem a uma nova renovação
mais catastrófica, após a descrição da imagem da primavera, como momento do renascimento paradoxalmente
anterior aos processos que levariam a outras reentradas sucessivas em outros recomeços da existência cósmica.
Imagem fundamental e paradoxalmente sem possibilidade de fundamento que não seja a de uma referência a
um processo sem começo e sem fim; a imagem “conclusiva” final e catastrófica posicionada ao “final sem
fim” de Thomas l’Obscuro, é a imagem de um renascimento e de uma morte de todas as coisas se lançando
novamente e aparentemente num ciclo interminável à entrada num mar sem limites, descrito muito próximo à
imagem idílica de uma sensualidade desnudada. Ou seja, nos lançando a essa imagem do nascimento ou
renascimento, experimenta-se aproximação de uma imagem paradoxal arqui-originária, pois sem referência
topológica e temporal objetiva e a qual Sloterdjick se preocupa em investigar em Venir ao mundo, Venir al
lengaje.
Se o final do relato é a teatralisação de uma reentrada a um novo recomeço, issoo ocorre sem uma série de
espirais meticulosamente figuradas com a mesma energia de neutralização que atravessa todo o processo de
passagem pela existência que Thomas experimenta a partir do embate fantástico com o mundo e as afecções e
sentimentos de sua relação com Anne.
Entretanto, não se trata de um relato de formação, absolutamente. Trata-se de um processo onde é
experienciado a própria impossibilidade de constatação de qualquer processo, pois ao mesmo tempo em que os
ciclos se reincrementam num eterno retorno dessas forças sobre elas mesmas, um esquecimento vaporoso que
a tudo envolve, ontologisando essas cenas numa indizível e inexorável paidea cósmica se consume
eternamente em seus próprios recomeços.
Esse tema de um eterno recomeço que operaria uma espécie de transmigração das forças em seu próprio
centro, relocando-as de lugar, mas não conferindo nenhuma baliza lógica possível que possa localizar qualquer
referencia ética ou ontológica, é uma espécie de referência ao próprio tema do eterno retorno nietzscheano,
tema este desenvolvido numa dramática particular que desde uma crítica da própria filosofia e de suas
preocupações analíticas, como por exemplo os temas fenomenológicos e a leitura de uma sur-époché
husserliana, vai também em direção a uma crítica alegórica sobre a possibilidade do sentido da existência
como para-além do cosmogônico. Se um ciclo não oferece nenhuma baliza para ser topologizado numa mítica
originária, ele não pode ser percebido como tal e se torna uma potencia (in)operante em relação a uma
diferença ontológica fundante. A literatura se posiciona numa zona de potencia neutra onde tanto o mito
quanto o sentido metafísico filosófico são suspensos na imanência da paixão do neutro.
Esse o drama de Thomas que de forma paradoxal só percebe sua pertença a um ciclo como uma espécie de
pressentimento pudoroso de uma reentrada ou de um renascimento “quando foi a sua vez”. Situar o começo é
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um problema que poderíamos dizer ter relação com o que Peter Sloterdijk investiga em relação ao nascimento.
Um começo poderia ser sempre recomeçado e na verdade o é a cada vez. Talvez o acontecimento da morte
possa ser percebido nessa diferença sutil que se invagina no que poderíamos chamar de abertura à existência
fática, e a literatura nesse ponto pode, à força poética, lidar de forma singular com esse intervalo, de modo a
nos fazer como Thomas, retornar sempre de novo em cada passo, revivendo cada passo como uma espécie de
negação as avessas dos passos anteriores, e tornando esse processo cada vez mais densificado e importante,
sutilizando a infinidade das reentrâncias que se desenvolvem repetidamente em cada ínfimo espaço entre as
coisas do mundo, imaginadas e reais, misturadas a esse desejo de avançar, mesmo sem direção, ao infinito do
próprio desejo, mesmo que mergulhando numa sensação vazia, que, de qualquer modo, angustiosa ou não, tem
existência como essa força plural e sem sentido único, vasto e infinita entropia de arrasto em que o corpo é
levado e leva ao mesmo tempo sua própria condição de força entre infinitas forças, espuma de uma vontade
que talvez já não precise de nenhum porto seguro, mas se lance simplesmente ao infinito, como um naufrago
pode em um lapso indeterminado de tempo se abandonar ou não as infinitas forças oceânicas.
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