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Fabíola Rodrigues da Silva
O DRAMA ROMÂNTICO E A
CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO
EM MACÁRIO, DE ÁLVARES DE
AZEVEDO:
HETEROGENEIDADES
Universidade Federal de Uberlândia
Instituto de Letras e Lingüística
2005
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Fabíola Rodrigues da Silva
O DRAMA ROMÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO
DO SUJEITO EM MACÁRIO, DE ÁLVARES DE
AZEVEDO:HETEROGENEIDADES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação:
Mestrado em Lingüística, do Instituto de Letras e
Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia, como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre em
Lingüística.
Área de concentração: Estudos em Lingüística e
Lingüística Aplicada
Linha de pesquisa: Estudos sobre texto e discurso
Orientadora: Dra. Joana Luíza Muylaert de Araújo
Uberlândia – Minas Gerais
2005
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
mg/07/05
S586d
Silva, Fabíola Rodrigues da, 1976-
O drama romântico e a constituição do sujeito em Macário, de
Álvares Azevedo: heterogeneidades / Fabíola Rodrigues da Silva. -
Uberlândia, 2005.
117f.
Orientador: Joana Luíza Muylaert de Araújo.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Pro-
grama de Pós-Graduação em Lingüística.
Inclui bibliografia.
1.Análise do discurso - Teses. 2. Azevedo, Álvares de, 1831-1852 -
Macário - Crítica e interpretação - Teses. I. Araújo, Joana Luíza Muy -
laert de. II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Gra -
duação em Lingüística. III. Título.
CDU: 801(043.3)
Fabíola Rodrigues da Silva
O DRAMA ROMÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO EM
MACÁRIO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO: HETEROGENEIDADES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação
em Lingüística – Mestrado em Lingüística do Instituto de
Letras e Lingüística da Universidade Federal de
Uberlândia, no ano de 2005, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Lingüística.
Dissertação defendida e aprovada, em 26 de agosto de 2005, pela Banca Examinadora
constituída pelos professores:
_____________________________________________________________
Profa.Dra. Joana Luíza Muylaert de Araújo – Orientadora (UFU)
_____________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Travaglia (UFU)
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Kênia Maria de Almeida Pereira (UNITRI)
Uberlândia – Minas Gerais
Ao Mestre Supremo
AGRADECIMENTOS
A Deus, porque sinto Suas mãos entrelaçadas nas minhas a cada instante,
proporcionando-me paz, segurança e felicidade;
A meu pai, José Francisco Neto e à minha mãe, Terezinha Rodrigues da Silva, por
seu incentivo e auxílio diários na busca de meus ideais. Seus exemplos de humildade, fé e
generosidade norteiam minha vida;
A meu irmão, Fabiano Rodrigues da Silva, pela amizade e carinho constantes;
A José de Oliveira Júnior, meu namorado, pelo companheirismo, dedicação, ternura
e compreensão em todos os momentos;
À tia Divina, à Fátima e à D. Helena, pelas orações, pelo encorajamento e pelo
afeto permanentes;
À minha orientadora, Joana Luíza Muylaert de Araújo, que durante uma de suas
aulas no Curso de Especialização em Literatura Comparada mencionou Macário,
despertando meu interesse pela obra e arraigando em mim, desde então, a paixão pela
literatura. Agradeço pela confiança depositada nesse projeto e por compartilhar, com muita
simplicidade, seu incomensurável conhecimento comigo;
Ao professor Dr. Waldenor Barros Moraes Filho, pelo excelente trabalho
desenvolvido como Coordenador do Programa de Pós-graduação, Mestrado em
Lingüística;
Aos professores Dr. João Bôsco Cabral dos Santos, Dr. Luiz Carlos Travaglia, Dra.
Alice Cunha de Freitas e Dr. Ernesto Sérgio Bertoldo, por sua inestimável contribuição
durante as aulas ministradas;
Aos professores Travaglia e Ernesto, em especial, pelas significativas observações
feitas durante a atuação como membros do Exame de Qualificação e pela gentileza sempre
demonstrada;
À Eneida e à Solene, por sua atenciosa cooperação e pela eficiência no atendimento
à frente da Secretaria do Programa;
A todos os colegas, pelas produtivas discussões dentro e fora da sala de aula,
especialmente ao Nélio Martins Araújo, pela tão cordial amizade;
E aos que se foram durante essa caminhada: minhas avós Sebastiana e Edwirges,
Sr. José de Oliveira e meu tio Manoelico Alves de Araújo – suas palavras de estímulo
ficarão guardadas para sempre na memória.
De que é feito um texto? Fragmentos originais, montagens singulares, referências,
acidentes, reminiscências, empréstimos voluntários. De que é feita uma pessoa? Migalhas
de identificação, imagens incorporadas, traços de caráter assimilados, tudo (se é que se
pode dizer assim) formando uma ficção que se chama o eu.
Michel Schneider
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................................10
Capítulo 1: Questões teóricas fundamentais: dialogismo e heterogeneidade
discursiva...........................................................................................................................17
Capítulo 2: Romantismo: poética e filosofia.................................................................. 34
2.1- Álvares de Azevedo: uma literatura cindida no Romantismo......................................40
Capítulo 3: Macário: o problema dos gêneros discursivos............................................47
3.1- Os gêneros literários : das regras inflexíveis à liberdade.............................................47
3.2- Algumas formas de dramaticidade: tragédia, comédia e tragicomédia....................... 54
3.3- Macário: gênero marcado pelo hibridismo................................................................. 61
Capítulo 4: Discurso heterogêneo, sujeito heterogêneo: o outro atravessando o um.71
4.1- Formas marcadas e não-marcadas de heterogeneidade discursiva em Macário........ 71
Capítulo 5: Macário e Penseroso: o eu e o outro na construção dos personagens......82
5.1- Vozes nacionalistas e vozes universalistas................................................................. 90
5.2- Vozes crentes e vozes céticas......................................................................................96
5.3- Vozes castas e vozes sensuais....................................................................................101
Considerações finais.........................................................................................................110
Referências bibliográficas................................................................................................113
O DRAMA ROMÂNTICO E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO EM
MACÁRIO, DE ÁLVARES DE AZEVEDO: HETEROGENEIDADES
1
Fabíola Rodrigues da Silva
RESUMO: Em Macário, a produção discursiva de Álvares de Azevedo é resultado de um
embate entre elementos diversos que atuam na composição de seu drama e na relação
autor-personagens, marcada pela heterogeneidade. Ela se revela não apenas no hibridismo
dos gêneros discursivos, como exemplificam o prefácio, os diálogos próprios do drama e as
“Páginas de Penseroso”, mas também surge pelo confronto das vozes dos personagens
Macário e Penseroso, que se mostram racionais ou sentimentais, crentes ou céticas,
nacionais ou universais, esperançosas ou pessimistas. Tais vozes ora se distanciam, ora se
aproximam, constituindo-se desdobramentos de um sujeito esfacelado, que anseia pela
completude. Partindo da hipótese de que a fragmentação discursiva do sujeito-autor está
associada às dispersões de gênero em Macário, propomos a presente pesquisa, inserida na
linha de estudos sobre texto e discurso e desenvolvida a partir de uma metodologia
interpretativa, de caráter analítico-descritivo, estabelecendo como objetivos a análise da
interlocução das vozes em conflito nos diálogos constituintes da obra, bem como da sua
composição, por meio de um viés intertextual entre o drama romântico e os textos
assumidos como referência por Álvares de Azevedo. Abordar o tema “heterogeneidade”
significa percorrer um caminho teórico também heterogêneo, no qual articulamos noções
lingüísticas, literárias e psicanalíticas. Baseamo-nos principalmente nos pressupostos
teóricos de Bakhtin (dialogismo) e Authier-Revuz (heterogeneidade discursiva) e, no que
concerne à relação sujeito-autor e personagens, recorremos ao princípio da exotopia de
Bakhtin e ao conceito de função-autor de Foucault. Explicitando-se como espaço de
problematização dos gêneros consolidados, da relação sujeito-autor/personagens/texto,
Macário configura-se uma obra marcada pela instabilidade, pela ambigüidade e pela
dispersão. Deparando-nos com essas nuanças, esperamos contribuir para as reflexões a
respeito das inter-relações discursivas nos estudos lingüísticos.
PALAVRAS-CHAVE: intertextualidade, dialogismo, drama romântico, heterogeneidade,
Álvares de Azevedo.
1
Orientadora: Profa. Dra. Joana Luíza Muylaert de Araújo – UFU
THE ROMANTIC DRAMA AND THE SUBJECT CONSTITUTION IN
MACÁRIO, BY ÁLVARES DE AZEVEDO: HETEROGENEITIES
2
Fabíola Rodrigues da Silva
ABSTRACT: In Macário, the discursive production of Álvares de Azevedo is the result of
a clash between diverse elements that manages the composition of his drama and the
relationship among subject-author and characters, marked by heterogeneity. It reveals itself
not only in the hybridism of the discursive genders, as the preface , the dialogues from the
drama and the “Pages of Penseroso” illustrate, but also appears by the confrontation of the
voices of the characters Macário and Penseroso, which they appear to be rational or
sentimental, believers or skeptical, national or universal, hopeful or pessimistic. Such
voices sometimes are far-away and sometimes it seems near, establishing a shattered
subject that wishes for fullness. Beginning from the hypothesis that the subject-author
discursive fragmentation is associated to the discursive gender dispersion in Macário, we
suggest this present research, inserted in the studies concerning text and discourse and
developed by an interpretative methodology based on a descriptive-analytic form,
establishing as goals the analysis of the interlocution of the voices in conflict in the
dialogues component of the piece, as well as its composition, through an intertextual bias
between the romantic drama and the texts referred by Álvares de Azevedo. Approaching
the topic “heterogeneity” means to pass through a theoretical path that is also
heterogeneous, in which we articulate linguistic, literary and psychoanalytical knowledge.
Our main supports are the theories of Bakhtin (dialogism) and Authier-Revuz (discursive
heterogeneity) and concerning the relation subject-author and characters, we apply
Bakhtin’s exotopic principle and the concept of Foucault’s function-author. Expressing the
problematic consolidation of genders and of the relation subject-author/characters/text,
Macário shapes a work marked by instability, by ambiguity and by dispersion.
Encountering with these nuances, we hope to contribute for the reflections about discursive
inter-relations in the linguistic studies.
KEY WORDS: intertextuality, dialogism, romantic drama, heterogeneity, Álvares de
Azevedo.
2
Professor: Joana Luíza Muylaert de Araújo, Ph D – UFU
INTRODUÇÃO
As primeiras inquietações que originaram a pesquisa que ora apresentamos dizem
respeito ao estatuto da alteridade no discurso. Partindo do pressuposto de que “o outro é
sempre onipresente” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.21), vieram à tona questionamentos
como: de que maneira é possível identificar a palavra do outro incorporada a um discurso?
Como estabelecer uma fronteira entre o que se pretende “próprio” e o “alheio”?
Para responder tais perguntas, as noções de intertextualidade, heterogeneidade discursiva e
polifonia mostram-se indispensáveis. No momento em que se faz a leitura de um texto,
observam-se várias inter-relações textuais/discursivas que, por sua vez, expressam os
embates entre as diferentes formas de expressão lingüística, conforme se pode constatar
pelas palavras de Paulino; Walty; Cury (1995):
O código verbal na literatura tem uma extensão de formas e significações
tão grande que impede sobremaneira o esgotamento de um texto em si
mesmo. Em tal processo, a linguagem literária invade o domínio de outras
linguagens, ao mesmo tempo que se deixa penetrar por elas.” (PAULINO;
WALTY; CURY, 1995, p.20).
Mikhail Bakhtin foi o primeiro a estudar o dialogismo e a polifonia no contexto
literário, caracterizando o romance moderno como essencialmente “dialógico”, espaço em
que diversas vozes se entrecruzam. Cabe ressaltar as palavras do autor:
“A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É
precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo
da vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem
cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.) está impregnada de
relações dialógicas. (BAKHTIN, 1997c, p.183).
11
Verifica-se, assim, a existência de diálogos inerentes não só às obras literárias em
si, mas também considerando-se as mesmas em sua relação com outras linguagens. Nesse
sentido, pode-se observar que “entre as linguagens, quaisquer que elas sejam, são
possíveis relações dialógicas (particulares), ou seja, elas podem ser percebidas como
pontos de vista sobre o mundo.” (BAKHTIN, 1998, p.99).
O texto objeto de nossa análise (Macário, de Álvares de Azevedo) configura-se
como espaço de interlocução de diversas vozes em conflito; ele abarca sonho e realidade,
razão e sentimento, fé e descrença, amor ideal e amor carnal, otimismo e pessimismo,
nacionalismo e universalismo. Tais ambigüidades são perceptíveis através da convivência
de dois personagens opostos entre si (complementares, portanto) – Macário e Penseroso. O
primeiro não demonstra valorização ou fé na pátria, é pessimista, racional, entrega-se com
freqüência ao amor em sua vertente sexual; o segundo crê na vida e no futuro da nação,
suas atitudes primam pela subjetividade e encara o amor de maneira idealizada.
Segundo Candido (1975), projeta-se um “debate interior, pelo desdobramento do
poeta nos dois personagens de Macário e Penseroso – ambos ele próprio, cada um
representando um lado da ‘binomia’...” (CANDIDO, 1975, p.189). As vozes dos
personagens refletem, pois, posicionamentos antagônicos, permitindo, por sua vez, uma
análise da linguagem, dialógica por natureza, e da relação autor-personagens.
Para estudar a heterogeneidade da linguagem e do sujeito, recorre-se à teoria de
Authier-Revuz (2004). A autora diferencia a “heterogeneidade mostrada” e a
“heterogeneidade constitutiva”. A primeira explicita a existência do Outro no discurso, seja
através de formas “marcadas” (citações, discurso direto, discurso indireto, aspas, itálico,
comentário, glosa ou ajustamento), seja por meio de formas “não-marcadas” (discurso
indireto livre, ironia, alusões, estereótipo, imitação, reminiscência). Já a segunda refere-se
12
a um Outro que não é perceptível por meio de marcas lingüísticas específicas, mas que
constitui inevitavelmente a linguagem.
Authier-Revuz (2004) estuda ainda o dialogismo de Bakhtin, mostrando que o “eu”
define-se em função do “outro” e as noções de coletividade, pluralidade prevalecem sobre
as de unicidade. Para a autora, sua teoria da heterogeneidade discursiva articula-se com a
teoria do descentramento do sujeito, abordada pela psicanálise, razão pela qual ela mostra a
divisão do sujeito, efeito de linguagem, entre os níveis consciente e inconsciente.
Em Macário, o consciente é representado por Penseroso, que busca adequar-se aos
padrões vigentes, enquanto Macário é o inconsciente, que busca romper com os mesmos.
Esses personagens seriam, então, conseqüência de um eu fragmentado, cindido, à procura
de uma completude. Por esse motivo, se por um lado Penseroso exalta a pátria, demonstra
uma fé inabalável em Deus, otimismo em relação ao amor e à vida, Macário, por outro
lado, defende o universalismo, o pessimismo, o amor carnal.
A análise da relação autor-personagens será feita com base nos pressupostos
teóricos de Bakhtin no ensaio “O autor e o herói”. Nele, Bakhtin (1997 a ) apresenta o
princípio da exotopia, que consiste no afastamento do autor (em termos espaciais e em
relação a si próprio) para contemplar o seu herói e dar-lhe acabamento estético: “Ele deve
tornar-se outro relativamente a si mesmo, ver-se pelos olhos do outro.” (BAKHTIN, 1997
a , p.35). Também o conceito foucaultiano de “função-autor” será utilizado para explicar os
funcionamentos discursivos que caracterizam a relação sujeito-autor e personagens.
Outra questão digna de exame em Macário concerne ao hibridismo dos gêneros. De
acordo com Candido (1975), a obra é uma “mistura de teatro, narração dialogada e diário
íntimo”. (CANDIDO, 1975, p.189).
13
Para abordar o problema da tipologia discursiva dos gêneros, servirão como ponto
de partida as palavras de Álvares de Azevedo a respeito da (in)definição de seu texto diante
das convenções vigentes, no prefácio da obra (Puff):
“São duas palavras estas: mas estas duas palavras têm um fim: é
declarar que o meu tipo, a minha teoria, a minha utopia dramática, não é
esse drama que aí vai. Esse é apenas como tudo que até hoje tenho
esboçado, como um romance que escrevi numa noite de insônia, como um
poema que cismei numa semana de febre – uma aberração dos princípios
da ciência, uma exceção às minhas regras mais íntimas e sistemáticas. Esse
drama é apenas como uma inspiração confusa, rápida, que realizei à pressa
como um pintor febril e trêmulo.
Vago como uma aspiração espontânea, incerto com um sonho, como
isso o dou, tenham-no por isso.
Quanto ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo; não
importa. Não o fiz para o teatro; é um filho pálido dessas fantasias que
inspiram a Tempestade a Shakespeare, Beppo e o IX Canto de D. Juan a
Byron; que fazem escrever Annunziata e o Conto de Antônia a quem é
Hoffmann, ou Fantasio ao poeta de Namouna.” (AZEVEDO, 1999, pp.22-
23)
Estudando o drama romântico, gênero marcado pelo hibridismo desde o seu
surgimento, em meados do século XVIII, verifica-se que ele não se apresenta apenas como
um problema formal de tipologia de gêneros e textos, mas sobretudo, nos termos
bakhtinianos, como um problema simultaneamente estético
1
, ético e ideológico.
Em decorrência da perspectiva por nós escolhida, levantamos a hipótese de que no
drama Macário, de Álvares de Azevedo, o gênero encerra contradições de natureza
também estética e ideológica, orientando de modo específico as relações entre o sujeito-
autor, o leitor e o texto, este último construído sobre contradições típicas do ideário
romântico: a tensão entre o nacionalismo e o universalismo, o subjetivo e o objetivo, a
concepção romântica/idealizada de amor e o sensualismo, o otimismo e o pessimismo.
1
Ver BAKHTIN, Mikhail. O autor e o herói. In: Estética da criação verbal. ( Trad. Maria E. G. G. Pereira).
São Paulo: Martins Fontes, 1997, pp.25-220
14
Uma vez formulada a hipótese, perguntamos:
1) Em que medida o gênero híbrido em Macário (a composição do texto
dramático romântico, encerrando aspectos contraditórios como o
grotesco e o sublime e os diversos elementos tipológicos textuais,
incluindo-se o prefácio, os diálogos próprios do drama e as páginas em
forma de diário de Penseroso) opera deslocamentos na relação entre o
sujeito-autor, os personagens e o leitor?
2) Na composição do texto dramático, como se encerram as várias vozes
configurando impasses característicos do gênero discursivo em questão?
Como tentativa de responder tais questões, foram estabelecidos os seguintes
objetivos da pesquisa:
- destacar os impasses existentes em Macário, de Álvares de Azevedo,
refletidos especialmente no hibridismo dos gêneros discursivos e na
relação sujeito-autor e personagens, marcada pela heterogeneidade;
- analisar a constituição do sujeito em Macário através do exame das
diversas vozes que se entrelaçam na obra;
- verificar a oscilação do sujeito entre os níveis consciente e inconsciente,
representados pelos personagens Penseroso e Macário;
- analisar a composição do gênero discursivo em Macário, por meio de
um viés intertextual entre o drama romântico e os textos assumidos
como referência por Álvares de Azevedo, a partir dos quais ele tentou
afirmar seu texto específico.
Identificado o problema de pesquisa e detalhados os seus objetivos, recorremos à
metodologia que julgamos mais apropriada para sua realização. Assim, a pesquisa filia-se à
15
linha de estudos sobre texto e discurso, apresenta como corpus o drama Macário, de
Álvares de Azevedo, sendo desenvolvida a partir do método interpretativo, visando
analisar a interlocução das diversas vozes em conflito presentes nos diálogos que
constituem a obra. Configura-se, ainda, como pesquisa de caráter analítico-descritivo, uma
vez que buscamos reconhecer no texto azevediano vestígios da heterogeneidade discursiva
na escolha do gênero (drama romântico) e na relação sujeito-autor e personagens.
O caminho teórico mais adequado aos nossos objetivos constitui-se de um
entrelaçamento de noções oriundas da Lingüística, nas articulações com o pensamento de
Bakhtin (estudos sobre o texto e suas relações dialógicas) e Authier-Revuz (noção de
heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso), da Teoria Literária e da Psicanálise
(a teorização de Lacan acerca de um inconsciente-linguagem). A análise da relação
sujeito-autor e personagens baseia-se, ainda, nos pressupostos teóricos de Bakhtin
(princípio da exotopia) e de Foucault, a partir de suas reflexões sobre a noção de autoria.
Essa fundamentação teórica consta do primeiro capítulo, intitulado “Questões teóricas
fundamentais: dialogismo e heterogeneidade discursiva”.
O segundo capítulo, “Romantismo: poética e filosofia” apresenta algumas
considerações sobre o contexto histórico cujos referenciais estéticos e ideológicos
nortearam a obra de Álvares de Azevedo.
As discussões a respeito dos gêneros discursivos desde os primórdios até a época
romântica constituem o tema do terceiro capítulo, Macário e o problema dos gêneros
discursivos”.
No quarto capítulo, “Discurso heterogêneo, sujeito heterogêneo: o outro
atravessando o um”, exemplificamos algumas formas marcadas e não-marcadas de
heterogeneidade discursiva em Macário.
16
Finalmente, o quinto capítulo, “Macário e Penseroso: o eu e o outro na
construção dos personagens” constitui a proposta de análise dos impasses presentes no
corpus da pesquisa.
É válido ressaltar que julgamos mais pertinente terminar a dissertação com algumas
“considerações finais” em vez de apresentar uma conclusão, que sugeriria uma análise
definitiva e absoluta, um encerramento da questão levantada. Pretendemos, antes,
apresentar uma possibilidade de abordagem do tema proposto e apontar caminhos para
outros estudos que contribuam para a reflexão sobre a pluridiscursividade e a
intertextualidade, reafirmando a tendência dos estudos textuais e discursivos que priorizam
a heterogeneidade, a diferença em lugar de uma tipologia fundamentada em categorias
supostamente estáveis, pré-estabelecidas.
CAPÍTULO 1
QUESTÕES TEÓRICAS FUNDAMENTAIS: DIALOGISMO E
HETEROGENEIDADE DISCURSIVA
Escrever é perder o poder de dizer eu.
Michel Schneider
A noção de heterogeneidade constitutiva da linguagem e do sujeito tem sido foco
dos estudos lingüísticos em larga escala. Essa tendência já havia sido constatada por
Authier-Revuz (1990) no artigo “Heterogeneidades Enunciativas”, no qual a autora
afirma:
“A ‘complexidade enunciativa’ está na moda:
distanciamento, graus de comprometimento,
desnivelamentos ou deslocamentos enunciativos,
polifonia, desdobramentos ou divisão do sujeito
enunciador... tantas são as noções que – em quadros
teóricos diferentes – dão conta de formas lingüísticas
discursivas ou textuais alterando a imagem de uma
mensagem monódica. Numerosos trabalhos o
testemunham, nestes últimos anos, tratando do discurso
relatado ( direto, indireto, indireto livre ), aspas, itálicos,
citações, alusões, ironia, pastiche, estereótipo,
pressuposição, pré-construtos, enunciado dividido,
palavras ‘argumentativas’...”
(AUTHIER-REVUZ, 1990, p.25).
A alteridade presentifica-se, pois, no discurso aparentemente homogêneo de um
sujeito que também é cindido, conforme se pode perceber pelas palavras proferidas pelo
poeta francês Arthur Rimbaud, no século XIX: “Je est un autre” ( “Eu é um outro”). O
verbo “ser” conjugado na terceira pessoa do singular é a marca do aspecto heterogêneo,
que, por destoar do sujeito da enunciação, instaura o conflito, a dissonância, a
18
multiplicidade e a dispersão, que prevalecem sobre a imanência, o centro do dizer, o
absoluto e o acabado.
A presença do outro no um provoca a incerteza quanto à identidade, levando à
questão: “... qual é a parte de nós que nos é própria e não traço do outro em nós?” (
SCHNEIDER, 1990, p.17).
A inevitabilidade da orientação dialógica do discurso foi primeiramente verificada
por Mikhail Bakhtin, na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, de 1929. O autor faz
uma reflexão acerca da natureza ideológica do signo lingüístico e apresenta considerações
sobre os conceitos de língua, fala e enunciação, pautados pelo confronto entre duas
orientações do pensamento filosófico lingüístico, por ele denominadas “objetivismo
abstrato” e “subjetivismo idealista”.
De acordo com a primeira orientação, de cunho racionalista e mecanicista, a
linguagem reduz-se a um sistema abstrato de formas normativas, configurando-se um fato
objetivo externo à consciência individual e dela independente. O objetivismo abstrato, cujo
representante principal é Ferdinand de Saussure, rejeita a enunciação, o ato de fala, como
sendo individual, além de separar a língua de seu conteúdo ideológico, desconsiderando-a,
ainda, enquanto fenômeno histórico.
Para Bakhtin (1997b), a palavra não pode estar dissociada de seu conteúdo
ideológico. Nesse sentido, a abstração proposta por esse sistema não consegue abarcar a
realidade concreta da língua, que é evolutiva, distanciando-se de suas funções sociais e
sendo, portanto, inconciliável com uma abordagem histórica e viva da mesma.
Por outro lado, o subjetivismo idealista promove uma redução da linguagem à
expressão da consciência individual, por meio da enunciação monológica isolada. Ligada
ao Romantismo, essa orientação considera o psiquismo individual como fonte da língua.
19
No entanto, Bakhtin assevera que a enunciação é de natureza social. Parafraseando
Brandão (1998), sua proposta contempla a inserção dos fatores histórico (o sujeito é
marcado espacial e temporalmente), ideológico (o sujeito fala de um lugar e tempo
determinados) e social (a língua é interação) no estudo do objeto da linguagem.
Assim, ambas as orientações do pensamento filosófico-lingüístico mostram ser
insuficientes perante a verdadeira natureza da língua. Segundo Bakhtin (1997b), “a língua
vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema lingüístico
abstrato de formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes.” (BAKHTIN,
1997b, p.124).
A interação verbal, que se dá via enunciação (enunciações) é a realidade
fundamental da língua, cuja forma mais importante é o diálogo. No entanto, de acordo com
Bakhtin(1997b), “pode-se compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto é, não
apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda
comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.” (BAKHTIN, 1997b, p.123). Assim, se a
língua é constituída pela interação verbal, a noção de sujeito não pode ser individual,
monológica (como se percebe, por exemplo, na concepção idealista de Benveniste, que
encara o sujeito como uno, fonte e origem do sentido), mas coletiva. O enunciado, sendo
a unidade de comunicação verbal, orienta-se sempre para um outro e esse outro é
constitutivo do sujeito, já que em sua fala, outras vozes falam, não existindo, a rigor, a
separação benvenistiana entre um “eu” e um “tu” no processo da enunciação.Convém
ressaltar, ainda, que não existe passividade do interlocutor na constituição dos sentidos, na
medida em que ele é “cheio de palavras interiores”. (BAKHTIN, 1997b, p.147).
20
Decorre dessa concepção não monológica de língua um discurso que é duplamente
orientado, uma vez que é dirigido simultaneamente a um outro (destinatário) e a outros
(discursos historicamente constituídos).
O “outro” é uma categoria que ocupa lugar privilegiado na teoria bakhtiniana.
Dialogismo e polifonia foram primeiramente detectados no contexto literário no estudo do
romance do século XIX, notadamente na obra de Dostoiévski. Caracterizada como
essencialmente polifônica, espaço em que diversas vozes se entrecruzam e são
interdependentes, sem que qualquer uma delas seja preponderante, a literatura de
Dostoiévski configura o exemplo pleno do inacabamento das vozes na narrativa.
Pode-se perceber, nesse sentido, que “a própria orientação em relação ao discurso
do outro e à consciência do outro é essencialmente o tema fundamental de todas as obras
de Dostoiévski”. (BAKHTIN, 1997c, p.208).
Bakhtin (1998) destaca o dialogismo como realidade impregnada ao evento
discursivo. Para ele:
“A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo o
discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em
todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se
encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de participar, com
ele, de uma interação viva e tensa.” (BAKHTIN, 1998, p.88).
Bakhtin (1997c) afirma que a palavra nunca está despovoada das vozes dos outros,
assim como o próprio pensamento. Para o pensador russo, é possível encontrar em todo
enunciado “as palavras do outro, ocultas ou semi-ocultas, e com graus diferentes de
alteridade.” (BAKHTIN, 1997a, p.318). Dentro dessa perspectiva, o outro é constitutivo
do discurso, que se constitui como espaço de plurivalência e, por conseguinte, do próprio
sujeito, que também se mostra múltiplo. De acordo com Bakhtin (1997a):
21
“Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias),
estão repletos de palavras dos outros, caracterizadas, em graus variáveis,
pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus
variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros
introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que
assimilamos, reestruturamos, modificamos.” (BAKHTIN, 1997a, p.314).
Se nossa fala não é original, tampouco nossa escrita o é. No momento em que se
faz a leitura de um texto, observam-se várias inter-relações textuais/discursivas, presentes
na conhecida metáfora do palimpsesto:
“O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo
escreveu uma “primeira” vez, depois sua escritura foi
apagada por algum copista que recobriu a página com um
novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem
tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão
acabado que não deixe vestígios, a invenção, nunca tão
nova que não se apóie sobre o já-escrito.”
(SCHNEIDER,1990, p.71).
Essas “tonalidades dialógicas” (BAKHTIN, 1997a) são perceptíveis não apenas na
linguagem, impossibilitando a palavra original, pois todo o dito é um “já-dito”, mas
também impregnam a própria concepção de emoções humanas: “Em relação ao homem, a
emoção em geral – amor, ódio, compaixão, piedade – é, num grau variável,
dialógica.”(BAKHTIN, 1997a, p.340). Daí Barros (1994) afirmar que “...o princípio
dialógico permeia a concepção de Bakhtin de linguagem e, quem sabe, de vida.”
(BARROS, 1994, p.2).
Contraria-se, assim, a suposta unicidade do sujeito, sua concepção idealista de fonte,
origem do dizer, pois o eu não é entidade individual, mas social. O sujeito só se completa
na interação com o outro, que por sua vez é constitutivo do sujeito. “Eu” e “outro” não se
distinguem. O próprio e o alheio mesclam-se, entrecruzam-se, impossibilitando uma
separação em níveis estanques, conforme afirma Bakhtin (1998):
22
“ A palavra da língua é uma palavra semi-alheia. Ela só
se torna ‘própria’ quando o falante a povoa com sua
intenção, com seu acento, quando a domina através do
discurso, torna-a familiar com a sua orientação semântica
e expressiva. Até o momento em que foi apropriado, o
discurso não se encontra em uma língua neutra e
impessoal (pois não é do dicionário que ele é tomado pelo
falante!), ele está nos lábios de outrem, nos contextos de
outrem e a serviço das intenções de outrem: e é lá que é
preciso que ele seja isolado e feito próprio.” (BAKHTIN,
1998, p.100)
As considerações teóricas de Bakhtin são imprescindíveis para o estudo do texto do
corpus que então se propõe. Em Macário, de Álvares de Azevedo, estabelece-se um
confronto de vozes que ora se distanciam, ora se aproximam, mostrando-se racionais ou
sentimentais, crentes ou céticas, afetivas ou irônicas. Tais vozes são desdobramentos de um
eu que anseia pela completude, tal como exprime Schneider (1990): Escrever para não
ser os outros; escrever para fazê-los calar em si mesmo, dar um recuo a essa fraqueza, a
essa dispersão do ser, enfrentar essa invasão do pensamento quando falam os outros; na
floresta de vozes, distinguir a sua, tudo isso é um destino de escritor.” (SCHNEIDER,
1990, p.151).
Esse eu dilacerado, cindido, fragmentado foi objeto de estudo de Authier-Revuz
(2004) em sua teoria da heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso. Para
fundamentá-la, a autora associa a problemática bakhtiniana do dialogismo no discurso à
relação do sujeito com a linguagem, abordada na teoria psicanalítica.
Antes, contudo, Authier-Revuz (2004) apresenta a heterogeneidade mostrada no
discurso, ou seja, formas explícitas de heterogeneidade que se dividem em formas
marcadas e não-marcadas. As primeiras compreendem o discurso relatado indireto, no qual
o locutor dispõe das próprias palavras para referir-se ao outro como fonte do sentido (
locutor tradutor) , e o discurso direto, no qual o locutor cita as palavras do outro (locutor
23
porta-voz). Outro exemplo de forma marcada de heterogeneidade que, portanto, constitui
uma das maneiras de distinguir a fala do outro no discurso, é a conotação autonímica, que
consiste na identificação das palavras alheias por meio de aspas, itálico, comentário, glosa
ou ajustamento.
As últimas, por sua vez, aparecem como que diluídas na cadeia discursiva, visto
que não são assinaladas através de marcas unívocas , embora encontrem-se implícitas,
como é o caso do discurso indireto livre, das alusões, da ironia, do estereótipo, da imitação,
da reminiscência etc.
No que concerne à heterogeneidade constitutiva, Authier-Revuz (2004) recorre ao
princípio dialógico de Bakhtin e à psicanálise a fim de mostrar um sujeito constituído pelo
outro, sujeito que é efeito de linguagem, dividido, portanto, entre consciente e inconsciente
e, por esse motivo, não detentor do próprio dizer. Para a autora, a psicanálise tem como
pressuposto o fato de todo discurso ser polifônico.
Acerca da teoria do descentramento do sujeito falante, Brandão (1998) afirma:
“O sujeito é dividido, clivado, cindido. O sujeito não é um
ponto, uma entidade homogênea, mas o resultado de uma
estrutura complexa que não se reduz à dualidade
especular do sujeito com seu outro, mas se constitui
também pela interação com um terceiro elemento: o
inconsciente freudiano. Inconsciente que, concebido como
a linguagem do desejo (censurado), é o elemento de
subversão que provoca a cisão do eu.” (BRANDÃO,
1998, p.55).
A psicanálise
2
nasce quando Freud abandona a hipnose e lança mão do método da
associação livre para o estudo do inconsciente. Esse método também se aplica ao discurso
onírico, na tentativa de decifrar seu conteúdo latente, partindo da materialidade lingüística.
2
A alusão aos estudos psicanalíticos faz-se necessária, nesse momento, graças à presença de uma das
temáticas que se articulam com aquelas que compõem nosso estudo (cujo objetivo central é verificar a
heterogeneidade refletida no gênero discursivo e na relação autor-personagens), a saber: sujeito descentrado,
marcado pela fragmentação e alteridade.
24
A fala, por conseguinte, constitui a via de acesso ao material inconsciente, aspecto que
possibilitou a teorização de Lacan sobre a existência de um inconsciente-linguagem .
Lacan, encontrando correspondência entre os termos utilizados por Freud na Interpretação
dos Sonhos (deslocamento, condensação, transposição) e algumas categorias lingüísticas
(metonímia, metáfora, deslizamento do significante através do significado), conclui que “o
inconsciente está estruturado como uma linguagem” (LACAN, 1966 apud LEITE, 1994,
p.17).
De acordo com Vergote (1977 apud Lemaire, 1988), Lacan
“Vai exatamente do ponto em que Freud se situava: à
escuta daquilo que fala do inconsciente no discurso ‘por
livre associação’, discurso esse que, não querendo dispor
de si mesmo, deixa que sobrevenham os discursos
abolidos do ego, nem por isso menos efetivos. Daí sua
atenção para com as múltiplas notas de Freud sobre a
linguagem do inconsciente e sua interferência no discurso
consciente.” ( VERGOTE, 1977 apud LEMAIRE, 1988,
p.30-31).
Sendo o inconsciente aquilo que se furta ao conhecimento do eu, “definido como
um saber que não sabe de si” (LEITE, 1994, p.52), é responsável por uma ruptura na
concepção de sujeito uno, centro do universo e dotado de subjetividade própria – ruptura
que, por sua vez, estabelece a incerteza. O “penso, logo existo” dá lugar ao “penso onde
não existo, portanto existo onde não penso”. (LACAN, 1978, p.248).
Decorre da teoria lacaniana de um inconsciente-linguagem um conceito de sujeito
como “posição numa estrutura (um sistema de regras ou convenções, funcionando como
um código) que o determina e o marca como dividido.” (GUIRADO, 1995, p.71) – divisão
essa, cabe ressaltar, fruto da intervenção do significante. Daí o sujeito se configurar como
sendo aquele do desejo e da falta, pois está associado àquilo que um significante representa
25
para outro significante. Em outras palavras, “...a falta é o que há de comum entre o campo
do sujeito e o campo do Outro, de tal modo que o desejo do sujeito deve ser pensado
enquanto desejo do Outro.”(LEITE, 1994, p.42).
Sujeito efeito de linguagem, condicionado pelo outro. A recorrência ao outro é
inevitável na construção da subjetividade, que ocorre via exterioridade, dada a
impossibilidade de se encontrar respostas em si próprio.
O outro é presentificado, trazido à tona por um falante que, no fundo, exprime sua
intenção de dominância , concretizando o que Authier-Revuz (2004) caracterizou como
“dizer o outro para circunscrevê-lo e afirmar o Um.” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.68).
Em síntese, a presença do outro no discurso desloca o conceito de sujeito único, que
perde seu centro (mas mantém sua ilusão) e se divide, constituindo-se efeito de linguagem,
marcado pela falta e pelo desejo.
Macário é proveniente de uma reflexão do autor sobre os impasses da época, como
por exemplo, a exaltação da pátria (como reivindicação de uma literatura autenticamente
nacional) ou o seu reverso: sucumbir à tendência universal, que despertava fascínio nos
escritores brasileiros. Desse dilema depreendem-se sentimentos de fé ou descrença na
nação, defesa do amor idealizado, fruto do padrão romântico, ou busca do amor carnal
como negação da afetividade. Macário e Penseroso seriam, então, conseqüência do
esfacelamento de um eu que, no fundo, busca a completude. Por isso, o discurso
nacionalista/romântico/otimista interfere no discurso universal/anti-romântico/pessimista.
Enquanto o consciente, representado por Penseroso, procura adequar-se aos padrões, o
inconsciente (Macário) foge deles, confirmando, pois, aquilo que Lemaire (1988) afirma
acerca do pensamento lacaniano, para quem “ o discurso não se reduz a seu dizer
26
explícito. Carreia [sic] com ele, como o próprio pensamento ou o comportamento, o peso
do outro de nós mesmos. Aquele que ignoramos ou recusamos.” (LEMAIRE, 1988, p.81)
Tais fragmentações, ambigüidades, como já foi ressaltado, são típicas dos
personagens românticos, frutos de uma época de embates entre o eu e o universo, o
subjetivo e o objetivo.
Outra obra de autor romântico , que contém impasses dignos de menção, foi
analisada por Freud em ensaio de 1919, denominado O estranho. Trata-se de O homem da
areia, conto de E.T.A Hoffmann, em cuja análise Freud aborda o tema do “duplo”, que
também aponta para a divisão, a cisão, o esfacelamento do “eu”.
Na primeira parte do ensaio, o psicanalista afirma que os tratados de estética
ocuparam-se tão somente “com o que é belo, atraente e sublime”, abandonando “os
sentimentos opostos, de repulsa e aflição” (FREUD, 1996, p.276) como é o caso do tema
do “estranho”, que é , não obstante, objeto de seu estudo.
Antes de apresentar a análise do conto, Freud já ressalta a seguinte observação: “ o
estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há
muito familiar.” (FREUD, 1996, p.277). Logo em seguida, apresenta o termo alemão que
designa “estranho”, “não doméstico”, unheimlich como o oposto de heimlich, que significa
“doméstico”. Porém, com a intenção de comprovar que o estranho identifica-se com o
familiar, Freud examina verbetes de outras línguas para a definição de unheimlich (latim,
grego, inglês, espanhol...).Pesquisando também o termo heimlich em dicionários alemães,
ele descobre um significado que é idêntico ao seu oposto
3
, unheimlich, ou seja,
3
“ O que mais nos interessa nesse longo excerto é descobrir que entre os seus diferentes matizes de
significado a palavra ‘heimlich’ exibe um que é idêntico ao seu oposto, ‘unheimlich’. Assim, o que é
heimlich vem a ser unheimlich. (... ) Em geral, somos lembrados de que a palavra ‘heimlich’ não deixa de ser
ambígua, mas pertence a dois conjuntos de idéias que, sem serem contraditórias, ainda assim são muito
diferentes: por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora
da vista. ‘Unheimlich’ é habitualmente usado, conforme aprendemos, apenas como o contrário do primeiro
27
“familiar”/“doméstico” e “estranho”/ “oculto” ao mesmo tempo, levando-o a concluir que
“heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até
que finalmente coincide com o seu oposto, unheimlich.” (FREUD, 1996, p.283).
Já na segunda parte, Freud dedica-se à análise de O homem da areia, título
referente a um ser que joga areia nos olhos das crianças, fazendo-os saltar fora para levá-
los como alimento para os filhos na meia-lua. Essa história era contada ao personagem
central do conto, Nataniel, em sua infância. O menino associa essa figura a um homem
misterioso – o advogado Copélio - que visita sua casa à noite, e se fecha no escritório com
o seu pai trabalhando num braseiro incandescente. Em uma dessas noites, pensando ouvir
Copélio dizer “aqui os olhos! Aqui os olhos!”, o menino, escondido, grita de pavor e
acredita que, se não fosse pela intervenção de seu pai, Copélio teria lançado brasas nos
seus olhos. Depois de um ano, o pai do garoto morre numa explosão e Copélio desaparece.
Segue-se uma série de eventos que permitem a Freud reconhecer neles elementos que
provocam a estranheza. Anos depois, Nataniel encontra um vendedor de barômetros e
óculos (às vezes, denominados “olhos”), chamado Coppola, que identifica uma vez mais
com o temido “homem da areia”. Compra um binóculo e observa a filha imóvel de seu
vizinho pela janela (Olímpia), o professor Spalanzani.Apaixona-se por ela, mesmo tendo
uma noiva (Clara), sem saber que se trata de um autômato criado pelo professor e por
Coppola, que havia utilizado na sua fabricação olhos que teria roubado de Nataniel.
Estabelece-se, no conto, uma tensão entre a pessoa (Clara) e o autômato (Olímpia). Clara,
com sua racionalidade e sensatez, sugeria a Nataniel que suas preocupações com
significado de ‘heimlich’, e não do segundo. Sanders nada nos diz acerca de uma possível conexão genética
entre esses dois significados de ‘heimlich’.Por outro lado, percebemos que Schelling diz algo que dá um
novo esclarecimento ao conceito de unheimlich, para o qual certamente não estávamos preparados. Segundo
Schelling, unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz.” (FREUD, 1996,
p.282)
28
Copélio/Coppola eram fruto de sua imaginação. Ao ouvir as histórias fantásticas e poemas
feitos por Nataniel, a moça se entediava, levando o noivo a considerá-la como “maldito
autômato sem vida”. (HOFFMANN, 1993, p.132).Curiosamente, Olímpia – o verdadeiro
autômato – dispunha das “qualidades” que faltavam a Clara: era uma “ouvinte
encantadora”, ganhando ares de pessoa atenciosa, que aprova as histórias lidas por Nataniel
através de seu silêncio inabalável. Momentos de fantasia e realidade alternam-se no conto,
que termina com a morte de Nataniel que, aparentemente recuperado da demência e
reconciliado com Clara, sobe ao ponto mais alto de uma torre com a noiva e, enlouquecido
ao ver de cima o advogado Copélio, tenta matar Clara – salva, depois, pelo irmão – e em
seguida, atira-se de lá.
É importante observar a dúvida que se instaura no conto entre o delírio e a
realidade. A esse respeito, Freud afirma: “É verdade que o escritor cria uma espécie de
incerteza em nós, a princípio, não nos deixando saber, sem dúvida propositalmente, se nos
está conduzindo pelo mundo real ou por um mundo puramente fantástico, de sua própria
criação.” (FREUD, 1996, p.288)
Agrupando os elementos descritos acima, Freud faz associação entre o medo de
perder os olhos e o temor da castração. Além disso, constata a existência do fenômeno do
“duplo”: o pai de Nataniel e o advogado Copélio seriam dois opostos de uma imagem
paterna ( o pai “bom” e o pai “mau”). Mais tarde, esse duplo é representado por Spalanzani
e Coppola, “pais” da boneca automática. Além disso, Olímpia representa um duplo de
Nataniel, “que o confronta como pessoa” (FREUD, 1996, p.298) , embora seu silêncio
soasse para ele como aprovação de seus atos. É válido ressaltar as palavras de Freud:
Todos esses temas dizem respeito ao fenômeno do ‘duplo’, que aparece em todas as formas
e em todos os graus de desenvolvimento”. Assim,
29
“o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que fica em dúvida
sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu (self) por um
estranho.Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e intercâmbio do
eu (self).E, finalmente, há o retorno constante da mesma coisa – a repetição
dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos
crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que
sucedem.” (FREUD, 1996, p.293).
Com relação ao estranho, Freud verifica que é o retorno de um conteúdo reprimido
anteriormente que o constitui, como é o caso de complexos infantis ou de crenças remotas
que deixam resquícios em nós; daí a conclusão seguinte: “o estranho provém de algo
familiar que foi reprimido”. (FREUD, 1996, p.307).
A divisão do sujeito entre consciente e inconsciente pode ser verificada em
Macário, pelas personagens Macário e Penseroso. Para Cavalheiro (1999), trata-se de
“duas pessoas distintas de uma só verdadeira, que seria, nesse caso, o próprio autor se
debatendo num trágico conflito interior, num desesperado anseio de justificação ou de
definição.” (CAVALHEIRO, 1999, p.11).
Sendo a relação entre autor e personagens um dos nossos objetos de reflexão, é
importante destacar estudos sobre autoria e, nesse sentido, as considerações de Bakhtin em
seu ensaio “O autor e o herói” são fundamentais.
Ao abordar a relação do autor com o herói, Bakhtin(1997a)diferencia-a da relação
interpessoal, já que o autor “modifica todas as particularidades de um herói, seus traços
característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos...”
(BAKHTIN,1997 a, p.25).A relação do autor com o herói é global, não se refere a atos
isolados, como acontece na vida, em que é impossível apreender o “todo” de uma pessoa,
(e, segundo Bakhtin, inclusive o de nós mesmos) ficando nossa apreciação restrita a suas
particularidades tendo em vista que, nesse caso, “nossas reações são díspares, são
reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem...” (BAKHTIN, 1997a, p.25).
30
Outra distinção importante é feita entre “o autor-criador, componente da obra, e o
autor-homem, componente da vida.” (BAKHTIN, 1997a, p.31). Sendo o autor um
“componente da obra”, constitui com ela um todo que torna inviáveis estudos baseados na
biografia do “autor-homem” para compreensão da obra que ele escreveu enquanto “autor-
criador”.
No caso específico de nosso trabalho, a separação estabelecida por Bakhtin afigura-
se como essencial, uma vez que se observa uma tendência a avaliar o discurso literário de
Álvares de Azevedo tomando como referência estudos sobre a vida do poeta. Contrariando
essa ênfase na biografia, procurar-se-á desenvolver uma pesquisa em que Macário será
analisado enquanto obra que engloba a figura do autor-criador, analisando a
heterogeneidade presente na relação autor-personagens e no gênero dramático em um nível
estritamente discursivo, através da materialidade lingüística.
Cabe destacar a definição de “autor” apresentada por Bakhtin (1997a): “O autor é o
depositário da tensão exercida pela unidade de um todo acabado, o todo do herói e o todo
da obra, um todo transcendente a cada um de seus constituintes considerados
isoladamente.” (BAKHTIN, 1997a,p.32). Esse “todo”, que tem a função de assegurar o
acabamento ao herói, é fruto da consciência criadora do autor: “A consciência do autor é
consciência de uma consciência, ou seja, é uma consciência que engloba e acaba a
consciência do herói e do seu mundo.” (BAKHTIN, 1997a, p.32),
Depois de definir o autor, Bakhtin menciona um princípio básico da relação autor-
herói, ao qual ele denomina “exotopia”. Esse princípio consiste em um excedente de saber
e de visão por parte do autor, que contempla espacialmente de fora o seu herói. Assim:
“De acordo com uma relação simples, o autor deve situar-se fora de si
mesmo, viver a si mesmo num plano diferente daquele em que vivemos
efetivamente nossa vida; essa é a condição expressa para que ele possa
31
completar-se até formar um todo, graças aos valores que são
transcendentes à sua vida, vivida internamente, e que lhe asseguram o
acabamento. Ele deve tornar-se outro relativamente a si mesmo, ver-se
pelos olhos de outro.” (BAKHTIN, 1997a, p.35)
A categoria do “outro”, conforme se pôde perceber, é imprescindível na visão de
mundo bakhtiniana, aparecendo desde sua concepção de linguagem, na noção de
dialogismo, polifonia até o princípio da exotopia. Há sempre interação entre a identidade e
a alteridade. Nesse sentido, podem-se destacar as palavras de Tezza (1997):
“Pelo princípio da exotopia, eu só posso me imaginar, por
inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico,
que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha
palavra está inexoravelmente contaminada do olhar de
fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento. Em suma,
no universo bakhtiniano nenhuma voz, jamais, fala
sozinha. E não fala sozinha não porque estamos, vamos
dizer, mecanicamente influenciados pelos outros – eles lá,
nós aqui, instâncias isoladas e isoláveis – mas porque a
natureza da linguagem é inelutavelmente dupla.”
(TEZZA, 1997, p.221).
Outro filósofo que fez reflexões sobre a noção de autor foi Michel Foucault. Sua
comunicação, realizada em 1969, desenvolve-se no sentido de destituir a figura do autor
(enquanto sujeito empírico) da relevância que normalmente lhe é concedida; para tanto,
Foucault utiliza uma frase de Beckett : “Que importa quem fala, disse alguém, que importa
quem fala.” (FOUCAULT, 1992, p.34)
Ao afirmar que o tema de sua conferência é “a relação do texto com o autor, a
maneira como o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos em
aparência”(FOUCAULT, 1992, p.34), podem-se identificar nas palavras de Foucault
“traços” da exotopia de Bakhtin, de acordo com a qual o autor situa-se fora para dar
acabamento ao herói. Outro aspecto convergente nas idéias de ambos é a necessidade de
32
dissociação entre autoria e biografia, entre “autor-criador” e “autor-homem”; os termos
bakhtinianos recebem, no entanto, outra denominação por Foucault, respectivamente,
“função autor” e “nome do autor” (associado ao indivíduo). Para ele, “...a ligação do nome
próprio com o indivíduo nomeado e a ligação do nome do autor com o que nomeia, não
são isomórficas e não funcionam da mesma maneira.” (FOUCAULT, 1992, p.43).E ainda:
“seria tão falso procurar o autor no escritor real como no locutor fictício; a função autor
efetua-se na própria cisão – nessa divisão e nessa distância.” (FOUCAULT, 1992, p.55)
Foucault postula, pois, a existência de uma “função autor”, que caracteriza “...o
modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de
uma sociedade.” (FOUCAULT, 1992, p.46). Ele afirma, além disso, que “...o autor deve
apagar-se ou ser apagado em proveito das formas próprias ao discurso.” (FOUCAULT,
1992, p.80).
Foucault elege quatro traços característicos da função autor, a saber:
A função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que
encerra, determina, articula o universo dos discursos; não se exerce
uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as
épocas e em todas as formas de civilização; não se define pela atribuição
espontânea de um discurso ao seu produtor, mas através de uma série de
operações específicas e complexas; não reenvia pura e simplesmente para
um indivíduo real, podendo dar lugar a vários “eus” em simultâneo, a
várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem
ocupar.” (FOUCAULT,1992, p.56).
Pode-se afirmar, na caracterização foucaultiana de autoria, o destaque da
multiplicidade em detrimento da unidade, o heterogêneo sobrepondo-se ao homogêneo no
sentido de renunciar ao portador da voz única, detentora de um dizer próprio, uma vez que
a pluralidade de “eus” que se instaura nos textos é fruto de posições subjetivas distintas.
Dialogismo, heterogeneidade de vozes, desdobramentos do sujeito, concepções
multifacetadas de linguagem, texto e sujeito : eis o que se busca com esse trabalho, uma
33
vez que a obra literária em questão é, ela própria, espaço de problematização dos gêneros
consolidados, da função-autor e das relações entre os personagens, bem como entre “autor-
criador”, nos termos bakhtinianos, e a composição do seu texto.
CAPÍTULO 2
ROMANTISMO: POÉTICA E FILOSOFIA
Sinto, logo sou.
Schleiermacher
Para caracterizar o movimento romântico, é comum os estudiosos referirem-se à
famosa oposição “clássico x romântico”. Com efeito, é inevitável a referência a esse
movimento sem aludir ao contexto sócio-histórico e cultural responsável por
transformações na concepção de mundo vigente, pois o Romantismo é um momento de
redefinição de valores; evidencia-se uma insatisfação a respeito da proposta clássica do
racionalismo, da visão de mundo pautada pelo equilíbrio, pela harmonia, pelo impedimento
da manifestação do aspecto subjetivo na obra de arte, pela rígida obediência aos padrões
literários correspondentes a cada gênero.
Cronologicamente, o Romantismo situa-se entre as duas últimas décadas do século
XVIII e fins da primeira metade do século XIX. No entanto, o termo “romântico” surge
antes, em meados do século XVII, de acordo com Rosenfeld e Guinsburg (1978), para
qualificar pejorativamente, em plena época clássica, “um gênero de relato ficcional meio
disparatado, absurdo, cheio de lances heróicos e fantásticos, onde há muitas peripécias de
amor e aventura.” (ROSENFELD;GUINSBURG, 1978, p.264)
A crítica ao Século das Luzes aparece fortemente em Jean-Jacques Rousseau (1712-
1778), pensador que, graças à ênfase dada ao sentimento interior, por ele denominado de
“natureza”, influenciou decisivamente os pré-românticos do movimento alemão Sturm und
Drang (tempestade e ímpeto). Rousseau privilegiou a imagem do “bon sauvage”, pois
acreditava que a natureza humana primitiva fora corrompida pela cultura.
Conseqüentemente, o Romantismo busca no indígena esse ser primitivo a ser exaltado
35
como ideal.Também o nacionalismo é despertado com as idéias de Herder, que destacou as
especificidades dos indivíduos, aquilo que distingue uma nação de outra. Contrariando os
preceitos clássicos que estabeleciam um mesmo modelo para todas as nações, baseado, por
sua vez, nos padrões da Antigüidade greco-latina, Herder afirma que “num certo sentido,
toda perfeição humana é nacional, secular, e estritamente considerada, individual.”
(HERDER apud NUNES, 1978, p.59).
A valorização do aspecto individual constitui, assim, uma característica
fundamental da corrente romântica, rompendo com o Classicismo, em que a ênfase era
dada à obra em detrimento do autor. Agora, prevalecem o “ato de criação e o sujeito
criador” (ROSENFELD;GUINSBURG, 1978, p.268) que faz de sua obra uma via de
confissão, de expressão da sua subjetividade.
Segundo Nunes (1978), duas matrizes filosóficas condicionam a visão romântica e
estão inter-relacionadas. A primeira baseia-se na filosofia idealista de Fichte (princípio da
transcendência do Eu), enquanto a segunda é proveniente da filosofia de Schelling (idéia
de Natureza como individualidade orgânica). Nas palavras de Nunes:
“A vida interior, espiritual, livre e profunda, a que levam
a capacidade expansiva e o poder irradiante do Eu,
concretiza-se em tudo aquilo que o indivíduo tem de
singular e característico, e por tudo quanto nele, dos
sentimentos aos pensamentos, é capaz de, sob a tônica do
entusiasmo, manifestar espontaneamente, aflorando ao
exterior, pela riqueza superabundante de conteúdos que
possuem força própria, a súmula dos elementos pessoais e
intransferíveis que constituem o índice de sua
originalidade.” (NUNES, 1978, p.58)
Fichte sustenta que o Eu puro é o princípio que explica tudo o que existe e do qual
toda a realidade deriva. Bornheim (1978) explica que “ o grande feito de Fichte foi ter
36
colocado o Eu no centro de todas as suas preocupações filosóficas” (BORNHEIM, 1978,
p.87), sendo o Eu “um princípio supra-individual, um Eu puro, aquilo que o homem traz
em si de divino e absoluto”, apontando ainda o caminho para alcançá-lo, que estaria na
“intuição intelectual”. Para Fichte, “o pensar-se a si mesmo produz tudo” (BORNHEIM,
1978, p.86)
O idealismo no âmbito do espírito de Fichte será transferido para um idealismo na
natureza por Schelling. O discípulo de Fichte tentou conciliar a filosofia do Eu
transcendental com o problema da Natureza.Para ele, o mesmo espírito absoluto que habita
o sujeito habita a natureza, afirmando: “no fundo, eu e a natureza somos idênticos”
(SCHELLING apud ROSENFELD; GUINSBURG, 1978, p.285).
Bornheim (1978) declara que, de acordo com Schelling, a natureza é uma luta entre
forças opostas, os dualismos tendem a ser superados através de um novo indivíduo, e cada
indivíduo perpetua essa condição, pois é fonte de novos antagonismos e de novos
indivíduos, superando-se e constituindo um novo grau de evolução da natureza.
O culto do Eu modifica a concepção clássica de gênio como aquele que produzia
pela imitação e cujo talento era moldado pela razão. Na concepção romântica, o gênio
possui um dom inato, produz pela intuição em lugar da razão e é dotado de originalidade,
pois cria espontaneamente através da inspiração. Se “o caos constrói, compõe
(BORNHEIM, 1978, p.82), a obra criada não pode ser retocada.
Rosenfeld e Guinsburg (1978) lembram que o grande gênio do Romantismo é
Shakespeare, pois sua dramaturgia rejeita quaisquer modelos, caracterizando-se antes pela
irregularidade e originalidade. Friedrich Schlegel, em seus famosos “Fragmentos”,
considera que “a universalidade de Shakespeare é como que o ponto central da arte
romântica” (SCHLEGEL apud SILVA, 1976, p.472). Stendhal, outro importante teórico
37
do Romantismo que em 1825 escrevera “Racine e Shakespeare” (comparando o
dramaturgo clássico, obediente a uma série de paradigmas, com o romântico, que se liberta
deles) afirma: “Sou um romântico furioso, quer dizer, sou por Shakespeare contra Racine
e por Lord Byron contra Boileau” (STENDHAL apud SILVA, 1976, p.474).
Em seu “Curso de literatura dramática”, August Wilhelm Schlegel diferencia as
artes romântica e clássica usando como critério a exploração ou a exclusão das antinomias,
ressaltando que a arte clássica possui uma regularidade, uma simplicidade e clareza na
medida em que não admite a heterogeneidade, contrariamente à arte romântica,
desordenada, fragmentária e plena de mistura de elementos heterogêneos.
A concepção de herói também é distinta no Romantismo. Silva (1976), discorrendo
sobre o herói romântico, aponta como característica fundamental do mesmo “uma feição
de declarado titanismo” (p.479), o que equivale a uma certa rebeldia e desdém em relação
à realidade circundante. Também Lobo (1987) alude ao “titã romântico”. Nas palavras da
autora:
“O poeta, sentindo-se demiurgo do mundo através da autonomia criadora
da sua própria linguagem, inventa o titanismo. Victor Hugo vê o homem
como saído da terra, um verdadeiro titã ou semideus (A lenda dos séculos).
Byron vê no Childe Harold o redentor do mundo através da difusão da
bandeira republicana por toda a Europa; em Shaftesbury e Lessing, em
Lamartine e até mesmo em Sousândrade, Deus ou o poeta são identificados
a um Prometeu cristianizado. E o homem romântico passa a crer que
reinventou o mundo político pela descoberta de novos mitos no plano da
literatura. É a história do homem-títere, do titanismo do homem-Deus.”
(LOBO, 1987, p.11)
Daí a admiração por figuras como Prometeu - um semideus cuja morte faz de seu
destino vitorioso – e Satã, o anjo decaído, sombrio e desafiador, além dos poetas
38
considerados como sós, incompreendidos, desgraçados ou perseguidos de alguma forma
pela sociedade .
O “Paraíso Perdido” de Milton é a obra responsável por despertar nos românticos a
admiração pela figura satânica. Praz (1996) lembra que “foi Milton que conferiu à figura
do Satanás todo o fascínio do rebelde indômito que antes pertencia à figura do Prometeu
de Ésquilo e do Capaneo dantesco.” (PRAZ, 1996, p.73). O autor afirma ainda: “Com
Milton, o Maligno assume definitivamente um aspecto de beleza decaída, de esplendor
ofuscado pelo tédio e pela morte; ele é ‘majestoso embora em decadência’”. (PRAZ,
1996, p.73).
A partir de Milton, o satanismo se estende a autores como William Blake, Byron e
Goethe, simbolizando sempre o conflito e a ambigüidade da alma romântica. Nunes (1978)
assim discorre sobre Satã:
“Como potência espiritual externa de atuação ambígua, maléfica e
benéfica, de que o homem se aproxima, com quem pactua por vontade
própria, e contra quem se debate, Lúcifer, anjo caído e acólito de Deus,
instiga a sede do poder e do conhecimento, a fim de tornar a consciência,
tal como no Manfredo de Byron, presa da morte e da consciência de culpa.
Adversário e aliado, antagonista necessário que transfigura a árvore do
Bem e do Mal na árvore da vida, ao encorajar o homem a, infringindo as
interdições de Deus-Pai, defrontar-se com o seu destino e com a morte,
Satã, fonte do vigor do espírito e da imaginação para William Blake,
‘aquele que fala aos homens nos desejos do coração e nos sonhos da
alma’(Vigny), é o símbolo maior da sequiosidade ambivalente da alma
romântica, de sua introversão, de seu desdobramento interno, do conflito
entre as suas aspirações ideais e a sua impotência real.”(NUNES, 1978,
p.73)
A palavra torna-se insuficiente para exprimir o sentimento e o fruto dessa condição
de desgosto frente à incapacidade de atingir o absoluto é o pessimismo, que originou o
“mal do século”. Percebe-se uma insatisfação com o meio sócio-cultural, que origina na
39
literatura páginas de profundo desencanto e nostalgia. O desejo de evasão é um exemplo
típico do sentimento de inadaptação do romântico, seja ela conseguida pelo sonho, pela
orgia, ou até mesmo pela morte.
Os conflitos da alma romântica originam-se pela busca de uma unidade, apesar da
cisão inevitável que constitui o sujeito. Como bem afirma Nunes (1978), “obrigado a
perseguir o objeto diferido de seu desejo, assombrado pelo fantasma do ideal a se realizar,
o romântico se fixa à inquietude que o dilacera, e amando o contraste pelo contraste, vive,
em meio de antíteses, uma existência dúplice e desdobrada.” (NUNES, 1978, p.68)
Rosenfeld e Guinsburg (1978) destacam o caráter fragmentário da arte romântica
como conseqüência da impossibilidade de exprimir o infinito, a totalidade; o homem
romântico tem consciência de que não pode atingir o estado natural, primitivo que ele tanto
anseia; nesse sentido a sociedade torna-se responsável pela fragmentação do ser.
Paradoxalmente, o romântico almeja uma síntese através dos antagonismos. Na literatura,
ele representa esse esfacelamento sob a forma de “sósias, duplos, homens-espelhos,
homens-máscaras, personagens duplicadas em contrafações e alienadas em sua
humanidade.” (ROSENFELD; GUINSBURG, 1978, p.274).
O duplo é, pois, imagem recorrente dentro da arte romântica: o desdobramento do
eu como tentativa de, por meio da alteridade, atingir a identidade. Ou, nas palavras de
Mello(2000): “é na alteridade, revelada em diferentes situações, que o Eu descobre faces
inusitadas de si mesmo.” (MELLO, 2000, p.123).
Em última análise, uma vez evidenciadas as características do movimento
romântico, não se tem, contudo, a pretensão de delimitá-lo; trata-se de um movimento
múltiplo, rico em disparidades, transcendendo toda tentativa de esquematização sob o risco
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de excessivo reducionismo. Assim, qualquer fórmula mostra-se insuficiente já que, como
afirma Silva (1976):
“O romantismo não se apreende numa definição ou numa fórmula. A sua
natureza é intrinsecamente contraditória, aparece constituída por atitudes e
movimentos antitéticos, dificilmente se cristaliza num princípio ou numa
solução únicos e incontroversos. Os próprios românticos tiveram
consciência do seu proteísmo radical, do seu anseio de ser e de não ser, da
sua necessidade de assumir, num dado momento, uma posição, e de, no
momento seguinte, assumir a posição contrária. Para eles, a verdade é
dialética, pois que, tal como a beleza, resulta da síntese de elementos
heterogêneos e antinômicos, alimenta-se de polaridades e tensões
contínuas.” (SILVA, 1976, p.479)
2.1 Álvares de Azevedo: Uma literatura cindida no Romantismo
Manuel Antônio Álvares de Azevedo ocupa uma posição singular no Romantismo
brasileiro, graças a uma literatura sui generis. Dois motivos contribuem para tanto: o
tratamento conferido à questão nacionalista e a exploração de um recurso ao qual o autor
denominou “binomia”.
Nascido em São Paulo em 1831, transfere-se com a família para o Rio de Janeiro
em 1833, onde inicia seus estudos. A morte do irmão Inácio Manuel aos dois anos de idade
abala-o emocionalmente, a ponto de seus biógrafos atribuírem a esse fato a fragilidade de
sua saúde a partir de então. Matriculado em um colégio de Niterói em 1837, é considerado
intelectualmente apático. Em 1840, no Colégio Stoll, ele começa a dar indícios do aluno
brilhante que seria até sua morte. Os estudos prosseguem no Colégio Pedro II, onde é
declarado como um prodígio, e ele ingressa na Faculdade de Direito em São Paulo aos
41
dezessete anos de idade. Lá, Azevedo reside em uma república estudantil na Chácara dos
Ingleses, juntamente com os também poetas Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa.
É durante esse período que “Maneco” (como era tratado pelos íntimos) lê e escreve
abundantemente. Consta que, ao mesmo tempo em que atingia notas excelentes nos
exames jurídicos, lia Byron, Hugo, Musset e Shakespeare no idioma original, além de
produzir estudos literários e filosóficos variados e escrever sua obra em verso e em prosa.
Não chega, porém, a concluir o curso, pois ao ser aprovado para o quinto ano, passa as
férias em uma fazenda em Itaboraí e cai de um cavalo; a conseqüência da queda foi um
tumor na fossa ilíaca, sendo operado sem sucesso e falecendo a 25 de abril de 1852. Suas
últimas palavras teriam sido “Que fatalidade, meu pai!”.
Confirmando a concepção romântica de gênio, Azevedo escrevia com a sofreguidão
de quem previa morte próxima, como afirma Candido (1975): “ a febre de escrever atirou-
o atabalhoadamente sobre o papel, como se as palavras viessem por demais imperiosas;
grande número dos seus escritos manifestam o fluxo incontrolado que, para o
Romantismo, era o próprio sinal da inspiração.” (CANDIDO, 1975, p.187).
Com efeito, Álvares de Azevedo demonstrava freqüentemente pressentimentos
mórbidos, que expressava aos amigos e em cartas endereçadas à mãe e à irmã. Dois
colegas quintanistas do curso de Direito haviam falecido em anos sucessivos e a ele coube
pronunciar os discursos fúnebres. Azevedo teria escrito na parede do quarto os anos de
1850 e 1851, seguidos dos nomes dos colegas falecidos e reservando o ano de 1852 para
ser preenchido depois com o seu próprio.
O poeta fez parte da chamada “segunda geração romântica”. Tristeza, ceticismo,
ironia e obsessão pela morte constituem a temática abordada pelos ultra-românticos,
distinta da geração anterior, que exaltou principalmente a nação e o indígena, sendo
42
Azevedo sempre apontado como seu maior representante, embora a morte precoce o tenha
impedido de amadurecer a genialidade. Candido (1975) a ele se refere como
“personalidade literária mais rica da geração” (CANDIDO, 1975, p.178) e, em outro
momento, “figura de maior relevo do nosso ultra-romantismo”. (CANDIDO, 1975,
p.180).
As notas biográficas são importantes para compreender os motivos pelos quais se
considera Álvares de Azevedo como figura contraditória na literatura brasileira. Existe
uma preocupação em associar a produção literária azevediana à personalidade do poeta,
que seria constituída simultaneamente por diferentes facetas. Assim, o poeta sentimental,
dedicado à família e aos estudos conviveria com o poeta irônico, devasso e alienado. A
esse respeito, Ramos (1979) afirma que a discussão sobre a (in)coerência entre vida e obra
do poeta remonta ao século dezenove, quando o crítico Sílvio Romero escreve:
“Formaram-se logo dois partidos: uns afirmavam que o moço
escritor era um espírito meigo, delicado, virgem, puro e singelo,
não conhecendo as diabruras e irregularidades da vida senão
pelos livros dos poetas e romancistas românticos. (...) Outros,
julgando-se muito desabusados, tombam para o extremo oposto.
Pintam o autor da Noite na Taverna como um monstrengo moral,
um ser depravado, corrupto, ébrio, devasso, metido em
extravagâncias de toda a casta. (...) Tudo isso é falso, falsíssimo.
Nem anjo, nem demônio.” (ROMERO, 1949, apud RAMOS, 1979,
p.127).
Essa antinomia é mais acentuada através da leitura do Prefácio à segunda parte da
Lira dos Vinte Anos, em que Azevedo adverte o leitor da seguinte maneira:
“Cuidado, leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico.Vamos entrar num mundo
novo, terra fantástica, verdadeira ilha Baratária de D. Quixote, onde
Sancho é rei; e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o
43
Sganarello de D. João Tenório: - a pátria dos sonhos de Cervantes e
Shakespeare.
Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia.
Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos
de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.”
(AZEVEDO, s/d, p.38)
A título de comparação, citamos uma estrofe de um poema pertencente à primeira
parte da Lira, e outra de um poema da segunda parte:
Primeira parte: Soneto
Pálida, à luz da lâmpada sombria
Sobre o leito de flores reclinada
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia! (AZEVEDO, s/d,p.22)
Segunda parte: É ela! É ela! É ela! É ela!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado! (AZEVEDO, s/d, p.60)
Os trechos supra-citados confirmam que Azevedo vai do sublime ao grotesco, da
idealização à realidade, “do mais ingênuo lirismo ao mais desabusado erotismo. É
zombeteiro e irônico, alegre e triste, vibrante e meigo, sensual e pudico. Devemos-lhe a
introdução do humor na poesia brasileira”. (CAVALHEIRO, s/d, p.86)
Acerca da exigência em atrelar a biografia e a produção literária de Álvares de
Azevedo, dois fatores devem ser ressaltados: em primeiro lugar, sabe-se que na vida
provinciana da São Paulo da época em que vivia o poeta, o tempo ocioso era grande,
fazendo com que o mesmo dedicasse muitas horas à leitura e à escrita. Como bem afirma
Rocha (1971, p.14), sua vida intelectual foi breve, mas intensa, iniciando-se antes dos
dezoito anos e concluindo-se aos vinte anos e sete meses. Conseqüentemente, pouco tempo
44
restaria para que ele desfrutasse da vida boêmia, que apareceria em seus livros como
reflexo das leituras de Byron, Musset e outros. É importante lembrar que a vida monótona
daquela cidade foi tema de cartas à família, gerando o sentimento de “spleen”, abordado
em seus poemas e na ficção, consolidando assim a fantasia romântica do herói entediado
com a realidade circundante.
Em segundo lugar, a busca de veracidade ou não acerca de um possível
comportamento libertino de Álvares de Azevedo não pode estar associada ao valor que se
atribui à sua obra, cuja qualidade não pode ser medida pelas categorias reducionistas de
“anjo” ou “demônio”. A esse respeito, cabe citar as palavras de Candido: “ O fato de
Álvares de Azevedo ter sido bem comportado ou devasso nada tem a ver com o imperioso
jato interior que o propelia e que, brotado na zona escura da alma, se clareava depois por
uma lucidez intelectual raramente encontrada em nossa literatura.” (CANDIDO, 1975,
p.181)
Em Macário, a teoria da binomia aparece na construção dos personagens (Macário
e Penseroso). No entanto, ela também é evidenciada no âmbito formal da obra, pelo
confronto de gêneros distintos. Classificado geralmente como drama, Macário não é
composto apenas por diálogos próprios desse gênero discursivo, mas seu prefácio (“Puff”)
é um ensaio (prosa, portanto) dirigido ao leitor e contendo as idéias do autor sobre a arte
teatral. Além disso, as páginas de um diário de um personagem são transcritas em meio aos
diálogos, configurando-se, desse modo, um hibridismo de gêneros.
No primeiro episódio, o estudante Macário conhece Satã, que se torna seu
companheiro de viagem e com o qual discute sobre uma gama de assuntos como a
condição humana, a poesia, o amor, em um diálogo que vai aos poucos evidenciando as
principais características do personagem: o tédio, a rebeldia e o pessimismo.
45
Já no segundo episódio, surge Penseroso. O amigo de Macário, a outra face da
moeda, é sentimental, sonhador e otimista. Candido (1975) assim resume os perfis dos
personagens centrais do drama: “ Macário é o Álvares de Azevedo byroniano, ateu,
desregrado, irreverente, universal; Penseroso, o Álvares de Azevedo sentimental, crente,
estudioso e nacionalista.” (CANDIDO, 1975, p.190)
Durante o segundo episódio, Azevedo inova ao inserir em um drama uma discussão
acerca do nacionalismo literário, por meio dos posicionamentos de Macário (que o
combate) e de Penseroso (que o defende). Candido (1975) afirma que o autor fez uma
opção pela abordagem de problemas subjetivos em detrimento da tendência nacional que
se impunha à época, em “trechos capitais, exprimindo a ambivalência do nosso
Romantismo, transfigurador de uma realidade mal conhecida e atraído irresistivelmente
pelos modelos europeus, que acenavam com a magia dos países onde radica a nossa
cultura intelectual.” (CANDIDO, 1975, p.16).
A morte de Penseroso revela a vitória da postura universal, cética, racional e
pessimista. Macário, portanto, com sua descrença na nação, no amor, na poesia, no ser
humano, na vida – consegue reverter a situação de fé e otimismo de Penseroso, acarretando
o seu suicídio.Derrotado o personagem símbolo do ideal romântico, do sonho, da
subjetividade e da idealização, conseqüentemente está derrotado o nacionalismo, o excesso
de emoção característicos daquele período literário.
Em suma, Álvares de Azevedo não buscou o patriotismo exacerbado como via de
confronto com a literatura estrangeira, mas, declaradamente influenciado pela mesma, dela
tirou o proveito necessário para apresentar uma proposta estética diferenciada, tanto sob o
ponto de vista estrutural (as duas faces da moeda representadas pelas duas partes distintas
da Lira dos Vinte Anos, a mescla dos gêneros em Macário) quanto no que se refere à
46
dimensão temática de sua obra ( a binomia, o desdobramento do sujeito-autor nos
personagens Macário e Penseroso) .
CAPÍTULO 3
MACÁRIO: O PROBLEMA DOS GÊNEROS DISCURSIVOS
Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho gesso que
mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos...
Victor Hugo
3.1- Os gêneros literários: das regras inflexíveis à liberdade
De maneira muito simplificada, pode-se analisar a questão dos gêneros sob duas
perspectivas distintas: de acordo com a primeira, foram estabelecidas algumas regras e, de
acordo com a segunda, houve um desvio a tais regras.
Dentro da primeira perspectiva, tem relevância o nome de Aristóteles (384 a.C -322
a. C), cuja Poética é referência obrigatória para o estudo da temática dos gêneros, por ser
“a primeira reflexão profunda acerca da existência e da caracterização dos gêneros
literários...” (SILVA, 1976, p. 206). Suas idéias estabeleceram-se de maneira bastante
duradoura e encontraram defensores engajados ao longo da história.
No capítulo I da Poética, Aristóteles afirma que as espécies de poesia são
imitativas. Assim, epopéia, tragédia, comédia e ditirambo diferenciam-se umas das outras
por três aspectos: porque imitam por meios diversos (ritmo, canto e metro), por objetos
diversos (os homens e suas ações) e por modos diversos (narrativa, mista e dramática). Ele
ressalta que a tragédia e a comédia utilizam cada meio por sua vez. Já em relação aos
objetos, Aristóteles faz a seguinte distinção: “Pois a mesma diferença separa a tragédia e
a comédia: procura, esta, imitar os homens piores e aquela, melhores do que eles
ordinariamente são”. (ARISTÓTELES, 1973, p. 444)
48
No capítulo IV, Aristóteles trata da evolução da tragédia: desde o nascimento, “ de
um princípio improvisado” , passando pela elevação do número de atores de um a dois,
feita por Ésquilo, que ainda “ diminuiu a importância do coro e fez do diálogo
protagonista”, até Sófocles, que “introduziu três atores e a cenografia”.
No capítulo V, Aristóteles assim caracteriza a comédia: “A comédia é, como
dissemos, imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios,
mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo” (ARISTÓTELES, 1973, P. 447). Ele
observa que as transformações da comédia são desconhecidas e estabelece um limite de
tempo para a tragédia: “... a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um
período de sol, ou pouco excedê-lo.” (ARISTÓTELES, 1973, p. 447).
No capitulo V, Aristóteles define a tragédia:
“É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter
elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada
e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas
partes do drama, imitação que se efetua não por narrativa, mas
mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por
efeito a purificação dessas emoções”. (ARISTÓTELES, 1973, p.
447).
Por ornamentos, pode-se compreender o ritmo, a harmonia e o canto. O filósofo
grego determina ainda seis partes para a tragédia. São elas: o mito (composição dos atos), o
caráter (qualidade dos personagens), a elocução (enunciado dos pensamentos por palavras),
o pensamento (dizer dos personagens), o espetáculo e a melopéia (canto), sendo o elemento
mais importante a trama dos fatos. Para Aristóteles: “... a tragédia é a imitação de uma
ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam,
conforme o próprio caráter e pensamento ( porque é segundo estas diferenças de caráter e
pensamento que nós qualificamos as ações)” (ARISTÓTELES, 1973, p. 448).
49
Outro fator ressaltado pelo filósofo é a estrutura do mito. Nesse sentido,“ mitos bem
compostos” têm princípio, meio e fim. Pode-se observar, ainda, a exigência de partes
ordenadas para se alcançar o belo: “Porque o belo consiste na grandeza e na ordem”.
(ARISTÓTELES, 1973p. 449).
Na tragédia, Aristóteles destaca que a presença do “ reconhecimento” (passagem do
ignorar ao conhecer) e da “ peripécia” (mutação dos sucessos em contrário) contribuem
para suscitar o terror e a piedade. Quanto à extensão, essa forma dispõe de prólogo,
episódio, êxodo e coral.
É interessante observar que, para Aristóteles, o herói trágico por excelência
configura
“ o homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no
infortúnio, tal acontece não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e
esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como
Édipo e Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres.”(ARISTÓTELES,
1973, p.454)
Assim, segundo o filósofo, esse herói é um membro da nobreza, detentor de
poderes e glórias que, repentinamente, é atingido pela desgraça por uma falha inconsciente,
que o conduz ao destino trágico.
Soares (2002) afirma que o herói trágico “ vê-se sempre entre duas forças opostas:
o ethos, seu próprio caráter, e o dáimon (destino), e se movimenta em um mundo também
trágico, no qual se encontram em tensão a organização social e jurídica, caracterizadora
da época, e a tradição mítica e heróica.” (SOARES, 2002, p.61)
O pensador grego distingue, na tragédia, o “nó” – aquilo que vai do princípio até o
lugar onde se dá o passo para a boa ou má fortuna – e o “desenlace” – parte que vai do
início da mudança até o fim.
50
Além da Poética de Aristóteles, outros tratados de arte poética, embora não possam
ser com ela comparados em nível de importância, merecem, não obstante, ser mencionados
para que se tenha uma idéia da repercussão da teoria aristotélica.
A Epístola aos Pisões, de Horácio (65 a. C – 8 a. C.), por exemplo, também ficou
conhecida como ‘Arte Poética’ na qual o autor destaca algumas reflexões de cunho moral e
didático, advertindo que cada gênero literário tem um ‘domínio’ e um ‘tom’ que devem ser
respeitados: “ A um tema cômico repugna ser desenvolvido em versos trágicos” e “Guarde
cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta”. ( HORÁCIO,1985, p. 57 ) .Ele observa
ainda a necessidade da coerência: “ Quando se experimenta assunto nunca tentado em
cena, quando se ousa criar personagem nova, conserve-se ela até o fim tal como surgiu de
começo, fiel a si mesma”. (HORÁCIO, 1985, p. 59).
Como se percebe, a unidade de ação aristotélica e a unidade de tom horaciana não
permitem os hibridismos, regras essas que se impõem nitidamente quando Horácio afirma
que a liberdade de ousar é direito que sempre assistiu a pintores e poetas, “ não, porém, a
de reunir animais mansos com feras, emparelhar cobras com passarinhos, cordeiros com
tigres” (HORÁCIO, 1985, p. 55).
De acordo com Soares (2002), no renascimento há um retorno aos postulados da
Antigüidade greco-latina. “Conseqüentemente, a teoria dos gêneros passa a constituir-se
como normas e preceitos a serem seguidos rigidamente, para que mais perfeita fosse a
imitação e mais valorizada fosse a obra” (SOARES, 2002, p. 12).
Também Silva (1976) destaca:
“A estética do classicismo francês aceita substancialmente
a noção de gênero literário elaborada pelo aristotelismo e pelo
horacianismo da Renascença. O gênero é concebido como uma
51
espécie de essência eterna, fixa e imutável, governada por regras
específicas e igualmente imutáveis.” (SILVA 1976, p. 210).
Nesse contexto, “os gêneros híbridos, resultantes da miscigenação de gêneros
diferentes, como a tragicomédia, são rigidamente proscritos”. (SILVA, 1976, p. 210-211)
Outra “Arte Poética” famosa é a de Boileau (1636-1711). Para ele, a tragédia teria
como princípios agradar ao público e, assim como Aristóteles já afirmara, despertar o
terror e a compaixão, sem deixar de obedecer às regras de introdução do assunto e
indicação do lugar da cena. Deve haver, ainda, submissão às três unidades (lugar, tempo,
ação), à verossimilhança, à conveniência e à progressão dramática. A respeito da comédia,
ele declara a exigência da verdade na pintura dos caracteres, das fases da vida e dos
costumes, afirmando existir um tom (como Horácio) que lhe é próprio: “o cômico, inimigo
dos suspiros e das lágrimas, não admite dores trágicas em seus versos, mas seu emprego
não consiste em ir, numa praça pública, encantar o populacho com palavras sujas e
baixas”. (BOILEAU, 1979, p.53)
Começaram a surgir, no entanto, manifestações contra as idéias racionalistas e
clássicas e, ainda no século XVII, surge a denominada “querela dos antigos e modernos”:
os primeiros apregoavam como modelos ideais e imutáveis as obras greco-latinas,
inviabilizando o surgimento de novos gêneros; já os últimos, percebendo a evolução nos
costumes, crenças e organização social, acreditaram que as regras aristotélicas e horacianas
não eram intemporais, mas válidas enquanto ligadas a uma determinada época.
Até então, buscava-se o sublime, tema de reflexão por parte de Longino (ou
Dionísio, século I a.C.) que, em “Do sublime”, procura defini-lo: “...o sublime é o ponto
mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso e que, por nenhuma razão senão
essa, primaram e cercaram de eternidade a sua glória os maiores poetas e escritores.”
(LONGINO, 1995, p.71).
52
Contrariando a opinião segundo a qual a genialidade é inata e descarta qualquer
técnica, Longino diz que “a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas
emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente sem método” e que “compete
ao método estabelecer ânimo e conveniência”. (LONGINO, 1985, p.72). Segundo o autor,
gênios que se abandonam a seus ímpetos “se muitas vezes precisam de espora, muitas
outras, de freio.” (LONGINO, 1985, p.72).
Para Longino, existem cinco fontes do sublime, que pressupõem o dom da palavra;
as duas primeiras seriam inatas, enquanto as demais adquirem-se também pela prática. São
elas:
1ª: alçar-se a pensamentos sublimados;
2ª: a emoção veemente e inspirada;
3ª: determinada moldagem das figuras (de pensamento e de palavra);
4ª: nobreza da expressão (escolha dos vocábulos, linguagem figurada e elaborada);
5ª: composição com vistas à dignidade e elevação.
Além de apresentar essas fontes, Longino atribui a Platão outro caminho que leva
ao sublime, “ a imitação e inveja dos grandes prosadores e poetas do passado.”
(LONGINO, 1985, p.85):
“Logo, também nós, quando elaboramos algum
trecho que requeira estilo elevado e pensamento
grandioso, é bom que formulemos no íntimo a pergunta:
como diria isso Homero, se calhasse? Como Platão, ou
Demóstenes, o alçariam ao sublime? ou Tucídides, na
História? Graças à emulação é que acudirão à nossa
presença esses vultos e, como que brilhando, erguerão as
almas de algum modo às alturas imaginadas.”
(LONGINO, 1985, p.86).
No decorrer de seu texto, além de mostrar métodos através dos quais se obtém o
sublime, Longino ainda faz algumas considerações sobre aspectos que são prejudiciais à
53
obtenção desse efeito, como podemos notar nos seguintes trechos: “nada empobrece tanto
os passos sublimes como um ritmo de discurso partido e agitado” (LONGINO, 185, p.
110) ou “Enfraquece igualmente o sublime o excessivo retalhamento das frases; reduzida
a dimensões curtas demais, a grandeza mutila-se” (LONGINO, 1985, p. 110) e “Também
o vocabulário trivial é terrível deformador do sublime”. (LONGINO, 1985, p.110).
Victor Hugo, ao colocar o grotesco ao lado do sublime, inicia uma polêmica em
tempos românticos. No prefácio de Cromwell (1827), ele apresenta sua “teoria das três
idades”, que consiste em relacionar as três idades do gênero humano( infância, idade adulta
e velhice) às três idades do mundo ( tempos primitivos, tempos antigos, tempos modernos)
que, por sua vez, estão relacionadas a três fases da poesia: “Assim (...) a poesia tem três
idades, das quais cada uma corresponde a uma época da sociedade: a ode, a epopéia, o
drama”. (HUGO, 1988, p. 37).
O drama, portanto, seria uma nova forma teatral que caracterizaria os tempos
modernos: “... o drama, que funde sob um mesmo alento o grotesco com o sublime, o
terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter próprio da terceira época de
poesia da literatura atual” (HUGO, 1988, p. 36-37)
Ele seria, então, resultado de uma fusão de elementos díspares, pois o “ feio existe
ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal
com o bem, a sombra com luz” (HUGO, 1988, p.25). Sendo assim: “...é da fecunda união
do tipo grotesco com o tipo sublime que nasce o gênio moderno, tão complexo, tão variado
nas suas formas, tão inesgotável nas suas criações, e nisto bem oposto à uniforme
simplicidade do gênero antigo...” (HUGO,1988, p.26-27)
Suas idéias contrariam as regras clássicas da separação de gêneros, pois “a tesoura
das unidades”, para Hugo, cortou as asas dos maiores poetas, inibindo-lhes a inspiração;
54
advoga, portanto, a liberdade: “Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas (...) Não
regras nem modelos”. (HUGO, 1988, p. 57)
As idéias de Victor Hugo encontraram eco em outros românticos, como em Alfred
de Vigny: “Nada de unidades, nada de distinções entre os gêneros, nada de estilo nobre”.
(apud ROSENFELD, 1985, p. 70).
Percebe-se, pois, momentos distintos quanto ao tratamento do tema “gêneros
literários”: Aristóteles estabeleceu regras que enfatizaram a pureza de cada gênero , regras
estas respeitadas e seguidas até que, no período romântico, surge uma resistência à
obediência dessas regras e uma defesa da mistura dos gêneros, em um movimento que
culmina com o surgimento e a valorização do drama moderno, também conhecido como
“tragicomédia”.
3.2- Algumas formas de dramaticidade: tragédia, comédia e
tragicomédia
D’Onofrio (2001), Silva (1976) e Soares (2002) recorrem a Aristóteles para
definição dos termos “tragédia” e “comédia”.
Esses autores descrevem, pois, o surgimento da tragédia e atribuem-no aos rituais
dionisíacos. Etimologicamente, tragos significa “bode”,e oidé, “canto”; daí, “ o canto do
bode” já que esse animal, acusado de comer as folhas das videiras, era sacrificado nas
festividades de homenagem a Dionísio (ou Baco).
D’Onofrio (2001) e Rosenfeld (1985) mostram a evolução da tragédia, desde o
canto do ditirambo (apelido de Baco) formado por um coro de doze “coreutas”, até a
coordenação de um solista numa espécie de responsório. Além disso, Tepsis, o primeiro
55
dramaturgo, teria acrescentado um protagonista para dialogar com o coro e,
posteriormente, Ésquilo teria acrescentado o segundo elemento individual (para D’Onofrio,
deuteragonista; para Rosenfeld, antagonista) e Sófocles um terceiro, o tritagonista.
Quando conceitua a tragédia, Soares (2002) alude à célebre definição aristotélica:
“No capítulo VI de sua Poética, Aristóteles conceitua a
tragédia como a mímesis de uma ação de caráter elevado
(importante e completa), num estilo agradável, executada por
atores que representam os homens de mais forte psique, tendo por
finalidade suscitar terror e piedade e obter a catarse (libertação)
dessas emoções.” (SOARES 2002, p. 60-61).
D’Onofrio (2001) não apenas cita, como também analisa a definição aristotélica
para o termo “tragédia”.Soares (2002) conclui afirmando que “ainda hoje temos o sentido
do trágico toda vez que vemos destruída a razão de uma existência, toda vez que o homem
se vê impelido a uma fatalidade” (SOARES, 2002, p. 61). D’Onofrio, por sua vez, afirma:
“a nosso ver, a essência do trágico reside numa tensão provocada por duas figuras de
estilo: a peripécia e a ironia” (D’ONOFRIO, 2001, p. 152). A primeira seria uma
inversão, passagem repentina de um estado para outro”, enquanto a segunda seria
provocada pela frustração do herói trágico que vê seu plano de vida aniquilado pelos
desígnios insondáveis do fado”. O autor ainda afirma que “enquanto a peripécia é uma
inversão ao nível da estrutura das ações, a ironia é uma inversão ao nível do conteúdo
ideológico” (D’ONOFRIO, 2001, p. 153).
Para caracterizar o trágico, Staiger (1975) fala em “um fracasso irrecorrível, um
desespero mortífero que não visualiza salvação”. (STAIGER, 1975,p.148). Ele enfatiza
ainda: “Quando se destrói a razão de uma existência humana, quando uma causa final e
única cessa de existir, nasce o trágico. Dito de outro modo, há no trágico a explosão do
mundo de um homem, de um povo, ou de uma classe.” ( STAIGER, 1975, p.147)
56
Para Staiger (1975, a “crise trágica (...) nasce da contradição insolúvel entre livre
arbítrio e destino” (STAIGER, 1975, p.148), lembrando ainda que há diferença entre
desgraça e tragédia: “Nem toda desgraça é trágica, mas apenas aquela que rouba ao
homem seu pouso, sua meta final, de modo que ele possa cambalear e ficar fora de si.
Nisso baseia-se a conhecida afirmação de que o acaso não é trágico; o acontecimento
trágico requer uma certa necessariedade” (STAIGER, 1975, p. 148).
Quanto à comédia, D’Onofrio (2001) e Soares (2002) indicam a existência de uma
indefinição quanto à etimologia do termo. Para Soares (2002), ele poderia ser associado a
Komoidía, derivado de Kómos (festejo popular) e oidé (canto) , ou a Kómas (aldeia), “pois
os atores cômicos andavam de uma aldeia para a outra, por não serem prestigiados na
cidade” (SOARES, 2002, p. 62)
D’Onofrio acredita que “comédia” deriva de Kómos (procissão festiva) e oidé
(canto), por se tratar de “um canto religioso com que os camponeses gregos festejavam a
chegada da primavera e, com ela, o retorno do vigor sexual” (D’ONOFRIO, 2001, p. 157)
D’Onofrio observa ainda que Kómos era o nome dado ao deus da alegria para os
gregos, e que a comédia teria se originado a partir de dois elementos dessas festas
religiosas:
“...de um lado, o espírito satírico dos cantos dionisíacos; de
outro, os movimentos histriônicos dos participantes das procissões,
que propiciavam evoluções coreográficas próximas de encenações
dramáticas. Com efeito, nos festivais ithiphállicos, sátiros, momos,
homens gordos, gigantes, enfim todos os devotos mascarados
simulavam disputas e brigas, segundo uma seqüência de ações
chamada Kómos” (D’ONOFRIO, 2001, p. 158)
D’Onofrio (2001) e Soares (2001) citam a definição aristotélica de comédia que
consiste, conforme se observou, em relacionar essa forma à “mimese inferior”. Sendo
57
assim, “as personagens da comédia imitam ações iguais ou inferiores às ações praticadas
pelos homens comuns” (D’ONOFRIO 2001, p. 162)
Trata-se de “vícios que, não causando sofrimento, caem no ridículo e produzem o
riso”. (SOARES, 2001, p.62)
É válido destacar o princípio do “happy end” inerente à comédia. D’Onofrio (2001)
refere-se a essa característica já aludida por Aristóteles na Poética (“ a comédia é a
passagem da infelicidade para a felicidade”- ARISTÓTELES apud D’ONOFRIO 2001, p.
162) e afirma que “ na comédia , o núcleo problemático do enredo se resolve com a
punição e a conversão dos culpados, triunfando os valores ideológicos do amor, da pureza
dos sentimentos, da virtude” (D’ONOFRIO, 2001, p. 162).
Apesar de o cômico ter por função extravasar a tensão por meio do riso, a comédia
apresenta ainda um fim moralizante, que é ressaltado por D’Onofrio (2001) e Soares
(2002):
“Embora não pareça, a arte cômica dificilmente tem por escopo a
mera diversão. No barroco italiano, a comédia recebeu um lema
que ainda hoje tem seu valor: castigat ridendo mores (“corrige os
costumes mediante o ridículo”).Apontar as falhas estruturais e
circunstanciais da sociedade ridicularizando as inconseqüências e
incongruências, as contradições e os absurdos com que o homem é
obrigado a conviver é uma forma de estimular a correção das
deficiências individuais e sociais” (D’ONOFRIO, 2001, p. 163)
“ Alguns teóricos acentuam, na comédia, o sentido do insólito, do imprevisível ou
da surpresa, bem como o aspecto da sátira de situações sociais ou individuais com um
efeito de correção de costumes” (SOARES, 2002,p. 62)
Conforme se pôde perceber, para Staiger (1975) nem toda desgraça é trágica. Já
D’Onofrio (2001) mostra que nem todo riso é cômico, recorrendo a Hegel para estabelecer
a diferença:
58
“...todo o contraste entre o essencial e a representação
exterior, entre o fim e os meios, pode ser ridículo; existe um riso
de escárnio, de desprezo, de desespero, etc. Diferentemente, o que
caracteriza o cômico é o bom humor que permite ao homem
elevar-se acima da própria contradição, em vez de sofrer e sentir-
se infeliz e desgraçado irremediavelmente.
O riso cômico ocorre ao se pôr em evidência a diferença
entre a realidade e a idealização da vida...”(D’ONOFRIO, 2001,
p.164)
Staiger (1975) descreve o cômico como algo que “extravasa as bordas do mundo
e provoca o riso. Para melhor caracterizá-lo, ele cita pensadores como Kant, Freud e
Schopenhauer. Para o primeiro, “o riso é a paixão decorrente da transformação súbita de
uma expectativa densa em nada”.(KANT,1924, apud STAIGER, 1975, p. 155), enquanto
que o último afirma que o que provoca o riso é a “percepção da incongruência entre o que
se pensa e o que se vê” (SCHOPENHAUER, 1919, apud STAIGER, 1975, p. 155)
Staiger (1975), por sua vez, afirma que o que causa o riso é “qualquer tipo de
projeto que se mostre inadequado, que crie uma tensão exagerada.” (STAIGER, 1975, p.
156). Esta tensão, no entanto, acaba sendo desfeita pelo autor cômico:
“Ele finge que quer ir muito longe, para no momento em
que nós fazemos os preparativos, economizá-los e ir, então, provar
algo, cuja evidência dispensa quaisquer esforços. ‘Com que fim?
Para que isso?’, este é o ritmo em que se move nossa razão. O
problema, o pathos, resolvem-se sempre sucessivamente por si
mesmos. Com isso naturalmente põem perigo a unidade da obra
dramática. O esforço em direção ao objetivo é interrompido.”
(STAIGER, 1975, p. 158)
Portanto, “quanto mais um autor tende ao cômico, tanto mais é tentado a criar
tensão dramática, mas apenas para desencadear o riso, e dispersar-se uma infinidade de
minúcias ridículas”. (STAIGER, 1975, p. 159)
59
Silva (1976), discorrendo sobre os gêneros literários, faz alusão a Staiger (1975),
afirmando ser ele um autor que acredita na confluência de vários gêneros numa mesma
obra e na predominância de um deles. Segundo Silva, Staiger menciona elementos
relativos à forma e ao conteúdo em sua análise:
“Por esta razão, Emil Staiger prefere as designações de
estilo lírico, estilo épico e estilo dramático, em vez de lírica, épica
e drama, porque a forma adjetiva evita as errôneas implicações
adstritas às formas substantivas (idéias de separação estanque, de
pureza total, etc).
Por conseguinte, os elementos genéricos que fundamentam
o gênero literário assim entendido tanto pertencem ao domínio da
forma interna – visão específica do mundo, tom, finalidade, etc -,
como ao domínio da forma externa – caracteres estruturais e
estilísticos, por exemplo.” (SILVA, 1976, p. 225)
Elementos formais e de conteúdo também podem ser percebidos nas reflexões de
Aristóteles. Silva (1976) observa que:
“Aristóteles fundamenta a sua divisão dos gêneros literários
quer em elementos relativos ao conteúdo – e assim estabelece a
diferenciação entre poesia séria e poesia faceta, isto é entre
tragédia e comédia, quer em elementos relativos à forma – e assim
distingue o processo narrativo, usado no poema épico, e o
processo dramático, usado na tragédia, por exemplo.” (SILVA,
1976, p. 207)
Tal conexão “forma –conteúdo” também é notada por Soares (2002):
“...em Aristóteles, a diferenciação formal dos gêneros está
inteiramente ligada à preocupação conteudística. Por exemplo, o
hexâmetro dactílico, sendo o verso mais afastado da fala comum,
melhor se coaduna à grandeza dos caracteres e das ações heróicas
e á solenidade da épica e, por isso, a caracteriza.” (SOARES,
2002, pp. 10-11)
60
A tragicomédia é uma forma de dramaticidade que, como o próprio nome indica,
consiste em uma mistura de elementos trágicos e cômicos, contrariando o princípio
clássico da pureza dos gêneros.
D’Onofrio (2001) afirma que o termo “tragicomédia” foi criado por Plauto no
prólogo da obra Anfitrião, para justificar a convivência de personagem nobres e vulgares.
O teórico observa ainda que poetas como Eurípedes já praticavam a tragicomédia (por
meio de um final feliz em tragédias sobre o ciclo mítico troiano), assim como o fizeram
também Shakespeare e Corneille. É durante o Romantismo, no entanto, que se inicia uma
defesa vigorosa do hibridismo dos gêneros e, conseqüentemente, do fim das regras
clássicas pré-estabelecidas para a arte poética.
Na obra O Pré-Romantismo Alemão, Herder (1964 apud ROSENFELD,1985,p.66)
afirma que se cada povo possui sua singularidade, afirmada pela etnia, espaço geográfico e
história, não se pode impor regras eternas e universais, já que a obra de arte é fruto dessas
condições histórico-sociais. Dessa forma, ele analisa a obra de Shakespeare, em um ensaio,
como sendo singular, decorrente de condições diferentes daquelas existentes na época do
teatro grego, para o qual a regra das três unidades era indiscutivelmente válida e aceita.
Discorrendo sobre o ensaio de Herder, Rosenfeld (1985) ressalta: “ademais, defrontando-
se com um caráter nacional complexo e variegadas camadas sociais, Shakespeare não
poderia adotar a simplicidade grega”. (ROSENFELD, 1985, p. 66).
Rosenfeld (1985) observa ainda que a exigência dessa “cor local” também é notada
em Victor Hugo. Seu Prefácio a Cromwell, “de relevância duradoura” e “ até hoje atual”,
segundo as palavras de Rosenfeld, é citado ainda por D’Onofrio, Silva e Soares ao se
referirem à tragicomédia ou drama moderno. Tal referência é feita porque se trata de uma
interessante teoria que “apresenta o drama romântico como resultado da fusão entre o
61
grotesco e o sublime, o terrível e a bufonaria, a tragédia e a comédia”. (SOARES, 2002,
p.63). A esse respeito, D’Onofrio (2001) afirma:
“A concepção do drama moderno nega a oposição
sistemática entre o cômico e o trágico, porque o teatro deve
apresentar toda a complexidade da vida real. A combinação dos
elementos contrários não resulta do aniquilamento ou da
justaposição , mas de uma ação neutralizante que exercem uns
sobre outros. Os conflitos de interesses, paixões e caracteres,
exacerbados no estilo trágico e ridicularizados no modo cômico,
no drama moderno encontram seu ponto de equilíbrio,
manifestando que a realidade existencial é um misto de sorrisos e
lágrimas” (D’ONOFRIO, 2001, p. 165)
Em última análise, tragédia e comédia revelam aspectos formais e conteudísticos,
sendo a tragicomédia um resultado da mistura de elementos trágicos e cômicos .Com
efeito, trata-se de uma nova forma teatral que encerra em si uma “harmonia dos opostos”,
nas palavras de Rosenfeld (1985) e uma “síntese dos contrários”, segundo Silva (1976).
3.3- Macário : gênero marcado pelo hibridismo
No prefácio de sua obra Macário, intitulado “Puff”, Álvares de Azevedo afirma:
“Criei para mim algumas idéias teóricas sobre o drama.” (AZEVEDO, 1999, p.17).
Azevedo segue os passos de outro grande escritor romântico, que também se posicionara
em relação à arte dramática no prefácio de uma de suas obras: Victor Hugo (como vimos
no item 3.1) defendera uma miscelânea do trágico e do cômico como representação das
contradições humanas no prefácio de Cromwell .
62
Provavelmente influenciado por Hugo (1988), Azevedo (1999) manifesta suas
opiniões sobre o drama, afirmando que para ele, o teatro ideal deveria englobar as paixões
do teatro inglês, a imaginação do espanhol e a simplicidade do teatro grego.
Para criar esse protótipo, o autor afirma que alguns dos dramas de Goethe e
Schiller seriam seus objetos de estudo, mas deixa evidenciada uma maior admiração por
Shakespeare (também exaltado por Hugo), alvo de freqüentes alusões como quando critica
os tradutores de Otelo, que não traduziram a obra diretamente do inglês ( “Quando não se
tem alma adejante para emparelhar com o gênio vagabundo do autor de Hamleto, haja ao
menos modéstia bastante para não querer emendá-lo ) (AZEVEDO, 1999, p.18) ou, ao
final do ensaio, quando considera Macário “um filho pálido dessas fantasias que se
apoderam do crânio e inspiram a Tempestade a Shakespeare...” (AZEVEDO, 1999, p.23)
A respeito das idéias de Azevedo (1999) em “Puff”, Prado observa:
“O que o poeta está postulando nesse momento, no campo da
idealidade onde todas as audácias do pensamento são admitidas, é
nada menos que um pós- romantismo que seria igualmente um pós-
classicismo, na medida em que combinaria as qualidades de certo
modo divergentes das duas escolas: o fervor romântico ( “as
paixões ardentes”) e o senso de medida clássico ( “a
simplicidade”).” (PRADO, 1996, p.127)
Contudo, Azevedo (1999) revela não ter feito em Macário o teatro por ele aspirado:
“Esse é apenas como tudo que até hoje tenho esboçado, como um
romance que escrevi numa noite de insônia, como um poema que
cismei numa semana de febre_ uma aberração dos princípios da
ciência, uma exceção às minhas regras mais íntimas e sistemáticas.
Esse drama é apenas uma inspiração confusa, rápida, que realizei
à pressa como um pintor febril e trêmulo”.(AZEVEDO, 1999,
p.22)
63
O autor confere ainda, ao seu texto, uma classificação inexata ao afirmar: “Quanto
ao nome, chamem-no drama, comédia, dialogismo; não importa. Não o fiz para o
teatro...” (AZEVEDO, 1999, p.22). A partir dessa imprecisão, procurar-se-á analisar a
composição do gênero discursivo em Macário.
Convém, aqui, distinguir os sentidos em que o termo “drama” costuma ser
empregado. Soares (2002) identifica três acepções diferentes para o mesmo: “ 1º) para
designar o gênero dramático em geral; 2º) como sinônimo de peça teatral; 3º) como uma
forma específica, que resulta do hibridismo da tragédia com a comédia.” (SOARES, 2002,
p.63).
É importante ressaltar que, nesse trabalho, o termo “drama” é empregado conforme
as duas primeiras acepções apontadas por Soares (2002) e, no que se refere à terceira
acepção, optou-se pelo emprego do termo “tragicomédia”.
Com a finalidade de identificar em Macário um conjunto de marcas e propriedades
que permitam considerá-lo como “drama”, é válido destacar algumas características
atribuídas à “obra dramática pura”, apontadas por Rosenfeld (1985).
Em primeiro lugar, observa-se a ausência do autor (narrador ou Eu lírico),
acarretando um desenrolar autônomo dos acontecimentos sem sua interferência. Outro
traço estilístico do drama puro é a necessidade de um começo que não seja arbitrário, e
sim, determinado pelas exigências internas da ação apresentada. “E a peça termina quando
esta ação nitidamente definida chega ao fim”. (ROSENFELD, 1985, p.30-31)
Observa-se a exigência de um “rigoroso encadeamento causal e o
desconhecimento do futuro, impossibilitando o retorno ao passado por meio de retrocesso
cênico. Na obra dramática, o “tempo é linear e sucessivo como o tempo empírico da
realidade”, a ação acontece agora. (ROSENFELD, 1985, p.31)
64
Ainda no prefácio de sua obra, Azevedo (1999) oferece indícios de distanciamento
do “drama puro”, indícios esses que serão posteriormente confirmados em Macário graças
às inovações por ele implementadas.
Ao apregoar que a prosa seria a forma mais adequada para exprimir as paixões,
Azevedo(1999) revela a mesma ousadia de pensamento que Hugo(1988) apresentou no
prefácio de Cromwell. Essa visão diferente de teatro depreende-se da influência
shakespeariana:
“Se eu imaginasse o Otelo, seria com todo o seu esgar, seu
desvario selvagem, com aquela forma irregular que revela a
paixão do sangue. É que as nódoas de sangue quando caem no
chão não têm forma geométrica. As agonias da paixão, do
desespero e do ciúme ardente quando coam num sangue tropical
não se derretem em alexandrinos, não se modulam nas falas banais
dessa poesia de convenção que se chama – conveniências
dramáticas” (AZEVEDO, 1999, p.21-22).
A partir desse trecho, pode-se observar que o autor declara preferência pela “forma
irregular”, demonstrando que não acata as “conveniências dramáticas”, qualificando-as
como repletas de “falas banais”.
Em uma época em que as cenas fortes eram abolidas do teatro já que, conforme
Horácio (1985), algumas delas não se justificariam devendo, antes , furtar-se as mesmas
aos olhos,( “Não vá Medéia trucidar os filhos à vista do público...”) (HORÁCIO, 1985,p.
60), Azevedo(1999) afirma:
“Se eu escrevesse, se minha pena se desvairasse na paixão, eu a
deixaria correr assim: Iago enganaria o Mouro, trairia Cássio,
perderia Desdêmona e desfrutaria a bolsa de Rodrigo. Cássio seria
apunhalado na cena. Otelo sufocaria sua Veneziana com o
65
travesseiro, escondê-la-ia com o cortinado quando entrasse
Emília...”(AZEVEDO,1999, p.21)
Ora, sabe-se que o drama shakespeariano, seu grande alvo de admiração, tem cunho
aberto, antiaristotélico, conforme ressaltou Rosenfeld (1985) , na medida em que se
distancia do tipo de Dramática pura. A esse respeito, cabe salientar as palavras de
Rosenfeld:
“O caráter aberto do drama shakespeariano acentua-se pela
importância que a natureza desempenha na sua obra, assim como
os elementos que transcendem o domínio puramente humano- p.
ex. o espectro de Hamlet ou as feiticeiras de Macbeth, para não
falar das peças em que o elemento mágico-maravilhoso faz parte
do contexto total.” (ROSENFELD, 1985, p.72)
Também em Macário o elemento maravilhoso desponta já no título dado ao
prefácio. “Puff”[ sopro, baforada em inglês], conforme observa Prado (1996), é uma
personagem virtual de Shakespeare, que aparece na peça Rei Henrique IV, e uma
personagem real do próprio Azevedo, que aparece em “Boêmios” (parte I da Lira dos vinte
anos), na figura de um bêbado e devasso.
Contudo, é no primeiro episódio que ocorre de maneira mais perceptível a inserção
da fantasia. Nele, o protagonista chega a uma estalagem de estrada depois de andar seis
léguas, pedindo cama, comida e vinho. É nesse ambiente que se estabelece o contato entre
ele e um desconhecido , caracterizado apenas por “um vulto com um ponche vermelho e
preto...” (AZEVEDO, 1999, p.28) que já havia cruzado o seu caminho ao cair daquela
noite. Um diálogo entre ambos delineia o perfil do protagonista, o estudante Macário, de
vinte anos de idade, com forte tendência ao ceticismo ( “Duvido sempre.Descreio às vezes.
Parece-me que este mundo é um logro”) (AZEVEDO, 1999, p.43) e dotado de humor
negro, como quando se refere à sua origem: “se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome do
66
meu pai e o de minha mãe. Era decerto alguma libertina. Meu pai, pelo que penso, era
padre ou fidalgo.” (AZEVEDO, 1999, p.47)
No meio da conversa, o desconhecido realiza todas as vontades manifestadas por
Macário, como a de beber um vinho e fumar um cachimbo, que é tirado do bolso “já
pronto para ser aceso” (PRADO, 1996, p.132). Só ao final da primeira cena o
desconhecido revela ser o diabo. Ambos seguem viagem montados no burro de Satã, mas
como lembra Prado (1996), a viagem é “liberada das contingências do espaço e do
tempo.” (PRADO,1996,p.132). Isso ocorre porque Satã leva Macário a meia hora de
pesadelo, que inclui morte, blasfêmia, agonia e devassidão - que fazem com que o segundo
renegue o primeiro. Depois disso, o estudante desperta e é como se o encontro entre
ambos não passasse de um sonho. As personagens encontram-se “entre o vivido e o
sonhado, o acontecido e o onírico.Só a última réplica rompe esta hesitação entre o natural
e o sobrenatural, que Todorov considera a característica da literatura fantástica”
(PRADO, 1999, p.51) . A estalajadeira conclui, graças às marcas de queimado no chão:
“Um pé de cabra... um trilho queimado... Foi o pé do diabo! O diabo andou por aqui!”
(AZEVEDO, 1999, p.76)
O primeiro episódio de Macário é considerado por Prado(1996) como “uma peça
completa, com princípio, meio e fim”. (PRADO, 1996,p.134).
O primeiro episódio é baseado no diálogo entre Macário e Satã- mas não há a
contraposição de vontades, mencionada por Rosenfeld (1985) como exigência da ação
dramática:
“É com efeito o diálogo que constitui a Dramática como
literatura e como teatro declamado (...) Para que através do
diálogo se produza uma ação é impositivo que ele contraponha
67
vontades, ou seja, manifestações de atitudes contrárias.”
(ROSENFELD, 1985, p.34) .
O conflito inexiste, pois, entre Macário e Satã, que antes dialogam sobre temas
como poesia, mulheres e amor. Com efeito, ambos fazem inclusive um pacto:
O Desconhecido: _ Aperta a minha mão. Até sempre: na vida e na morte!
Macário: _ Até sempre, na vida e na morte!” (AZEVEDO, 1999,p.46)
É no segundo episódio que se revela de maneira mais nítida a oposição às regras
aristotélicas: “ composição desarticulada, em dez cenas desconexas, duas das quais sem
indicação de lugar”. (CANDIDO, 1982, p.V). Prado (1996) observa que “ a preocupação
com o espaço e o tempo, já diminuta, desaparece de vez, juntamente com o delineamento
do enredo”. (PRADO, 1996,p.136).
A unidade de lugar é desrespeitada, pois o episódio passa a ser retratado na Itália e
surge, com a nova paisagem, novo personagem, Penseroso, “desdobramento e opositor de
Macário” (PRADO, 1999, p.51), sendo que o último não demonstra valorização de sua
pátria, não crê em nada, é pessimista, racional e devasso, enquanto que o primeiro crê no
futuro da nação, na vida, suas atitudes primam pela subjetividade e encara o amor de
maneira idealizada. A esse respeito, Prado (1999) observa:
“Em torno desse eixo literário, com o diálogo descambado
freqüentemente para a simples conversa, ainda que desvairada,
vem à tona a inquietude da adolescência, cindida entre a
sensualidade carnal ( a meretriz) e o sentimento amoroso lavado
de suas escórias ( a virgem), dividida entre a prece e a blasfêmia, o
hedonismo materialista (o charuto, o cognac, a orgia) e a
transcendência espiritualista.” (PRADO, 1999,p.51)
Percebe-se, no segundo episódio, a presença de fatores que apresentam-se como
externos à arte dramática. Um livro dado a Penseroso por Macário torna-se o tema de um
68
debate entre os personagens, sendo que o último defende as idéias céticas e imorais do
autor, enquanto o primeiro as condena, contrapondo-as à esperança, ao otimismo e ao
sentimento de patriotismo que esse autor deveria ter por ser filho de uma nação que
caminha rumo ao progresso. Trata-se de “uma discussão sobre literatura, de grande
interesse crítico, mas agravando o cunho pouco teatral desta parte, que tem o seu
momento mais importante num debate teórico mais ou menos desligado do jogo
dramático.”(CANDIDO, 1982, p.VII).
Outro fator antidramático é a inserção das “Páginas de Penseroso”, que consistem
em uma carta de despedida que justifica o seu suicídio. Prado (1996), afirmando que
Penseroso recebe tratamento especial nesse episódio, nota tal inadequação:
“Um dos quadros decorre em seus aposentos e páginas do seu
diário são transcritas, tal como estão no papel, escapando por esse
lado ao teatro, que só admite a palavra oral.” (PRADO, 1996,
p.136-137)
Segundo Horácio (1985), na obra dramática a personagem deve permanecer fiel a si
mesma do início ao fim. Não é o que ocorre com Penseroso, que possuía uma fé inabalável
em Deus , na vida e no amor e, depois do contato com as idéias descrentes de Macário,
resolve suicidar-se depois de uma desilusão amorosa. Esta incoerência também é percebida
por Prado (1996) afirmando que ao se encontrarem pela primeira vez, é Macário que
manifesta desejo de morrer:
“Mas no fim é Penseroso quem se envenena, num desfecho que
mais abre do que fecha a nossa perplexidade. Afinal, ele é o crente,
em religião, e o otimista, quanto à literatura (...) no entanto, é ele
que se suicida. Alega, é certo, uma razão poderosa para isso: a sua
noiva, a Italiana, não o ama. Mas, curiosamente, não é o que ela
afirma, de modo categórico: ‘Por quem se espera no altar? É por
69
mim? Não, Penseroso, é pela vontade do teu pai... Não te dei
minha alma, assim como te darei meu corpo?’” (PRADO, 1996,
p.140)
.
A morte de Penseroso parece representar a derrota de sua fé ante o ceticismo e,
nesse sentido, confirma o que Soares (2002) havia dito a respeito do trágico: “ ... temos o
sentido do trágico toda vez que vemos destruída a razão de uma existência, toda vez que o
homem se vê impelido a uma fatalidade .” (SOARES, 2002, p.61).
Hegel (1958 apud D’ONOFRIO 2001, p.153) ressalta, a esse respeito:
“numa disputa trágica ambas as partes opostas têm igualmente
razão, pois se propõem fins legítimos entre si; mas, ao tentar
realizar tais fins, uma parte acaba violando o direito da outra
parte, pois as forças são antagônicas, contradizendo-se
reciprocamente.” (HEGEL,1958,apud D’ONOFRIO, 2001, p.153).
Depois da morte de Penseroso, Satã retorna à cena para conclusão da peça. Ele e
Macário seguem de braços dados por uma rua, o primeiro conduzindo o último a uma
orgia. Não entram no ambiente, apenas espiam pela janela. A frase final é de Macário,
interrompendo um discurso de Satã sobre os efeitos de embriaguez sobre o ser humano:
“Cala-te. Ouçamos .” (AZEVEDO, 1999,p.127). Essa frase revela, portanto, que o drama
não acaba, contrariando uma das características postuladas por Rosenfeld (1985) para o
drama puro, segundo a qual a peça termina quando a ação dramática chega ao fim.
Em última análise, a obra de Azevedo não obedece aos preceitos de pureza de
gêneros, misturando elementos cômicos e trágicos, promovendo mudanças que burlam as
regras das unidades aristotélicas através de ausência de indicação temporal, mudanças de
cena, ausência de um desfecho e inserção de elementos externos à arte dramática. Todos
estes fatores ainda podem ser ressaltados pelas questões dialéticas abordadas pelo autor,
70
que são tipicamente românticas. Afinal, Hugo (1988) já alertara que “o feio existe ao lado
do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem,
a sombra com a luz.” (HUGO, 1988, p.25). Trata- se do que Candido (1982) chamou de
“embate das desarmonias, superando o equilíbrio do chamado ‘decoro’ e as normas que
regiam e procuravam tornar estanques os gêneros literários”. (CANDIDO, 1982, p.II).
Com base em tais observações, comprova-se que Macário é uma tragicomédia,
graças ao referido hibridismo dos gêneros, fruto de uma maior liberdade artística,
representando a própria realidade, que é feita de pólos opostos entre os quais o homem
oscila, o trágico e o cômico, como bem afirma Candido (1982) acerca da obra azevediana:
“o temário repousa numa psicologia tempestuosa, enquanto a organização formal mistura
(para usar conceitos dele) o ‘horrível ao sublime’ e ‘ao belo doce e meigo’”. (CANDIDO,
1982, p.II)
CAPÍTULO 4
DISCURSO HETEROGÊNEO, SUJEITO HETEROGÊNEO: O
OUTRO ATRAVESSANDO O UM
O discurso como que vive na
fronteira do seu próprio contexto e
daquele de outrem
Mikhail Bakhtin
4.1- Formas marcadas e não-marcadas de heterogeneidade discursiva em
Macário
“Qualquer texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção e
transformação dum outro texto.” (KRISTEVA, 1974 apud JENNY, 1979, p.13) – eis a
célebre definição de intertextualidade, criada por Julia Kristeva e citada por Laurent Jenny
para se referir à retomada do discurso do outro dentro de um discurso que se pretende
“próprio”.
O termo “mosaico”sugere a variedade de vozes sociais, históricas e culturais que se
fundem para compor o texto; já os termos “absorção” e “transformação” designam a nova
perspectiva ideológica que se origina do procedimento intertextual, pois quando um autor
se apropria de outros discursos, ele o faz rearticulando-os de acordo com os propósitos
daquela circunstância específica. Nesse sentido, Jenny (1979) afirma: “ a intertextualidade
designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de
transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que
detém o comando do sentido.” (JENNY, 1979, p.14)
72
Conforme já dissemos no primeiro capítulo, no estudo sobre a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva, Authier-Revuz (2004) descreve fundamentos
importantes para a compreensão do estatuto do outro no discurso.
A heterogeneidade mostrada delimita a presença do outro na materialidade
lingüística, seja através de formas marcadas ou não-marcadas. As primeiras compreendem
o discurso direto, no qual o locutor é “porta-voz” das palavras do outro, o discurso indireto,
em que o locutor é “tradutor”, pois utiliza as próprias palavras para abordar o discurso do
outro e a conotação autonímica, na qual o locutor inscreve as palavras alheias na seqüência
discursiva evidenciando-as por meio de aspas, itálico, entonação ou comentário. Já as
últimas referem-se às alusões, aos estereótipos, às referências, à ironia, ao discurso indireto
livre em que a presença do outro não se explicita por marcas lingüísticas na cadeia
discursiva, mas apenas se sugere.
Quanto à heterogeneidade constitutiva, a autora busca sua fundamentação teórica
no conceito bakhtiniano de dialogismo e na psicanálise lacaniana, a fim de identificar “um
outro que atravessa constitutivamente o um” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.25), já que toda
palavra é pluriacentuada, impregnada de outros dizeres. Conseqüentemente, se a fala não é
homogênea, o sujeito tampouco é pleno, mas encontra-se dividido entre consciente e
inconsciente, portanto, descentrado. Authier-Revuz recorre, então, a Bakhtin e a Lacan
para comprovar que a heterogeneidade é condição constitutiva da linguagem.
Sabe-se que o sujeito-autor, enquanto um sujeito social, é detentor de uma memória
sócio-cultural, fruto de seu contato com todo um repertório artístico e cultural que deixa
transparecer em sua obra de maneiras diversas. Álvares de Azevedo, no poema “Idéias
Íntimas” escreve:
“Junto do leito meus poetas dormem
_ O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron
73
Na mesa confundidos. Junto deles
Meu velho candeeiro se espreguiça...” (AZEVEDO, s/d, p.47)
Esse é apenas um exemplo dentre os vários existentes na obra azevediana, na qual o
poeta se refere aos escritores que mais o influenciaram (especialmente Shakespeare, Byron
e Musset).
Em Macário, há exemplos diversos da circunscrição do outro no discurso, como se
pode perceber pelos fragmentos seguintes.
1)Formas marcadas
a) Uso da língua estrangeira
1- MACÁRIO: Quando não há o amor, há o vinho; quando não há o vinho,
há o fumo; e quando não há amor, nem vinho, nem fumo, há o “spleen”.
O “spleen” encarnado na sua forma mais lúgubre naquela velha
taverneira repassada de aguardente que tresanda! (AZEVEDO, 1999,
p.26)
2- MACÁRIO: Sou daqueles de quem fala o corsário de Byron “whose soul
would sicken over the heaving wave.” (AZEVEDO, 1999, p.38)
3- MACÁRIO: Fiat voluntas tua.
SATÃ: Amen! (AZEVEDO, 1999,p.56)
4-SATÃ: É que somos como Adão e Eva, os ex ossibus, caro ex carne.
(AZEVEDO, 1999,p.87)
5-MACÁRIO: Palavra de honra que é deliciosa a água morna de bordo de
vossos navios! Que têm um aroma saudável as máquinas de vossos
engenhos a vapor! Que embalam num far-niente balsâmico os vossos
cálculos de comércio! Não sabeis da vida.(AZEVEDO, 1999, p.101)
Nesses fragmentos, o recurso de que Azevedo dispõe é a conotação autonímica.
Authier-Revuz (2004), discorrendo sobre as formas explícitas de heterogeneidade,
alude às “glosas que nomeiam o outro-estrangeiro e/ou freqüentemente o traduzem ou o
explicitam com as palavras ‘normais’ do discurso.” (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.14). No
entanto, o uso que Azevedo faz da língua estrangeira nos trechos supra-citados é distinto,
uma vez que ele não traduz nem explicita as expressões empregadas em inglês, latim e
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italiano, respectivamente. Apesar disso, o fato de utilizar termos estrangeiros em meio à
língua materna é indício claro da presença do outro no discurso, configurando o único
exemplo de forma marcada de heterogeneidade discursiva na obra.
No fragmento 1, “spleen” é o termo inglês que designa o “tédio”, provocado, por
sua vez, pela ausência de amor, vinho e fumo. O termo é empregado na língua de Byron,
poeta que melhor expressou a situação de “spleen” em seus escritos.
No fragmento 2, Azevedo cita um trecho de “O Corsário”, poema datado de 1814,
da autoria de Lord Byron, acerca do tema do “mar”. A tradução literal é “cuja alma
desfaleceria sobre a onda suspensa”.
Nos fragmentos 3 e 4, Azevedo emprega o latim. No primeiro caso, fica evidente a
ironia do personagem ao dirigir a Satã palavras que são dirigidas a Deus (“Faça-se a tua
vontade”). Já no segundo caso, Satã compara as criaturas a Adão e Eva através da
afirmação “osso do osso, carne da carne”.
No fragmento 5, o idioma utilizado é o italiano; a expressão “fazer nada” foi
substantivada para exprimir a crítica à apologia do industrialismo e do progresso, feita por
Penseroso.
2)Formas não-marcadas
b) Referência a personagens célebres da literatura
Os trechos revelam a profusão de leituras dos clássicos como Shakespeare, Dante,
Goethe e Cervantes.
1- O DESCONHECIDO: E enjoais a bordo?
MACÁRIO: É a única semelhança que tenho com D. Juan (AZEVEDO, 1999,
p.38)
75
2- MACÁRIO: O amor? Quem te disse que era amor? É uma fome impura que se
sacia. O corpo faminto é como o conde Ugolino em sua torre – morderia até
num cadáver. (AZEVEDO, 1999, p.44)
3- MACÁRIO: O diabo! Uma boa fortuna! Há dez anos que eu ando para
encontrar esse patife! Desta vez agarrei-o pela cauda! A maior desgraça deste
mundo é ser Fausto sem Mefistófeles... Olá, Satã! (AZEVEDO, 1999, p.47)
4- SATÃ: Tá! Tá! Tá!... Que ladainha... parece que já estás enamorado, meu Dom
Quixote, antes de ver as Dulcinéias! (AZEVEDO, 1999, p.52)
5- SATÃ: É nisso que pensavas? És uma criança. Decerto que querias ver-me nu e
ébrio como Calibã, envolto no tradicional cheiro de enxofre! (AZEVEDO,
1999, p.57)
6- SATÃ: Eis o que é profundamente verdade! Perguntais ao libertino que venceu o
orgulho de cem virgens, e que passou outras tantas no leito de cem devassas,
perguntai a D. Juan, a Hamleto ou ao Fausto o que é a mulher, e... nenhum o
saberá dizer. E isso que te digo não é romantismo. Amanhã numa taverna
poderás achar Romeu com a criada da estalagem, verás D. Juan com Julietas,
Hamleto ou Fausto sob a casaca de um dândi. É que esses tipos são velhos e
eternos como o sol. (AZEVEDO, 1999, p.60)
7- MACÁRIO: E contudo essa misérrima com quem deitei-me uma noite, que
pretendia ter o segredo da virgindade eterna de Marion Delorme, que me falava
de amanhã com tanta certeza, que mercadejava sua noite de amanhã como
vendera segunda vez a de seu hoje, e que de certo morreu pensando nos meios
de excitar mais deleite, na receita da virgindade eterna que ela sabia como a
antiga Marion Delorme, essa mulher... (AZEVEDO, 1999, p.63)
8- SATÃ: A mulher é um elemento. A santa mais santa, a virgem mais pura, há
instantes em que se daria a Quasímodo; e Messalina era capaz de enjeitar
Romeu ou Don Juan. Mas enfim... (AZEVEDO, 1999, p.92)
9- MACÁRIO: Adeus, Penseroso. Ai daquele a quem um verme roeu a flor da vida
como a Werther! A descrença é a filha enjeitada do desespero. Fausto é
Werther que envelheceu, e o suicídio da alma é o cadáver de um coração. O
desfolhar das ilusões anuncia o inverno da vida. (AZEVEDO, 1999, p.111)
Os trechos supra-citados são metalingüísticos, ou seja, falam por si, tornando
desnecessárias eventuais explicações. Na ordem citada, Azevedo refere-se a personagens
de:
1- Byron (D. Juan)
2- Dante ( A Divina Comédia)
3- Goethe (Fausto)
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4- Cervantes (Dom Quixote)
5- Shakespeare ( A Tempestade)
6- Byron (D. Juan); Shakespeare ( Hamlet, Romeu e Julieta); Goethe (Fausto)
7- Victor Hugo (Marion Delorme)
8- Victor Hugo (O corcunda de Notre Dame); Shakespeare (Romeu e Julieta);
Byron (D. Juan)
9- Goethe (Fausto e Os sofrimentos do jovem Werther)
As vozes de Byron, Dante, Goethe, Cervantes, Shakespeare e Victor Hugo são,
aqui, incorporadas à voz do sujeito-autor; os personagens que aqueles criaram
aparecem nas vozes dos personagens azevedianos evidenciando a alternância de
posições subjetivas, como a do sedutor (D. Juan), a do alucinado (D. Quixote), a do
apaixonado(Romeu e Werther) etc. Vislumbra-se um sujeito que inter-relaciona o
discurso alheio a seus próprios referenciais.
c) Referências a escritores, músicos, pintores.
Nesses trechos, surgem exemplos do contato do sujeito-autor com nomes
importantes da música, pintura, literatura e filosofia. Não se trata de um aglomerado de
informações, pois tudo está inter-relacionado aos propósitos do sujeito-autor, como
demonstram os fragmentos seguintes, também metalingüísticos:
1- SATÃ: Da morte nasce muitas vezes a vida. Dizem que se a rabeca de
Paganini dava sons tão humanos, tão melodiosos, é que ele fizera passar a
alma de sua mãe, de sua velha mãe moribunda, pelas cordas e pela caverna
de seu instrumento. (AZEVEDO, 1999, p.64)
2- MACÁRIO: Morrer numa noite de amor! Rafael no seio de sua Fornarina!
Nos lábios perfumados da Italiana, adormecer sonolento... dormir e não
acordar! (AZEVEDO, 1999, p.85)
3- SATÃ: O que há de mais sério e risível que o amor? As falas de Romeu ao
luar, os suspiros de Armida, os sonetos de Petrarca tomados ao sério dão
desejos de gargalhar... (AZEVEDO, 1999, p.90)
77
4- PENSEROSO: Por que antes não cantou a sua América como
Chateaubriand e o poeta de Virgínia, a Itália como a Mignon de Goethe, o
Oriente como Byron, o amor dos anjos como Thomas More, o amor das
virgens como Lamartine? (AZEVEDO, 1999, p.100)
5- MACÁRIO: A poesia morre: deixá-la que cante seu adeus de moribunda.
Não escutes essa turba embrutecida no plagiar e na cópia. Não sabem o que
dizem esses homens que para apaixonar-se pelo canto esperam que o
hosana da glória tenha saudado o cantor. São estéreis em si como a
parasita. Músicos – nunca serão Beethoven nem Mozart. Escritores – todas
as suas garatujas não valerão um terceto de Dante. Pintores – nunca farão
viver na tela uma carnação de Rubens ou erguer-se no fresco um fantasma
de Miguel Ângelo. É a miséria das misérias! (AZEVEDO, 1999, p.102)
6- MACÁRIO: Se as fibras da harpa desafinam, se a mão ríspida as estala, se
a harpa destoa, é que ele não pensou nos versos quando pensava na poesia,
é que ele cria e crê que a estância é uma roupa como outra – apenas, como
o diz George Sand – a arte é um manto para as belezas nuas: é que ele
preferira deixar uma estátua despida, a pespontar de ouro uma túnica de
veludo para embuçar um manequim. É que ele pensa que a música do verso
é o acompanhamento da harmonia das idéias, e ama cem vezes mais o
Dante com sua versificação dura, os rasgos de Shakespeare com seus versos
ásperos, do que os alexandrinos feitos a compasso de Sainte-Beuve ou
Turquety. (AZEVEDO, 1999, p.104)
7- PENSEROSO: Tudo isso nada prova. É uma poesia, concordo; mas é uma
poesia terrível. É um hino de morte sem esperança do céu, como o dos
fantasmas de João Paulo Richter. É o ateísmo como na Rainha Mab de
Shelley. Tenho pena daqueles que se embriagam com o vinho do cepticismo.
(AZEVEDO, 1999, p.104)
8- PENSEROSO: A descrença é uma doença terrível; destrói com seu bafo
corrosivo o aço mais puro: é ele quem faz de Rembrant um avarento, de
Bocage um libertino! (AZEVEDO, 1999, p.108)
9- PENSEROSO: Aquele que jogou sua vida como um perdulário, que eivou-se
numa dor secreta, que sentiu cuspirem-lhe nas faces sublimes... esses que
riam como Demócrito, duvidem como Pirron, ou durmam indiferentes nos
seu escárnio como Diógenes – o cínico, no seu tonel. (AZEVEDO, 1999,
p.108)
10- PÁGINAS DE PENSEROSO: Sou rico, moço, morrerei pouco mais velho
que o desgraçado Chatterton. (AZEVEDO, 1999, p.114)
Nessa multiplicidade de referências, as vozes dos escritores, músicos e pintores
interagem com as vozes dos personagens e nelas se incorporam, de acordo com
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cada contexto específico, para que o sujeito-autor possa expressar sua visão de
mundo – que é, por esse motivo, inevitavelmente permeada pela alteridade.
d) Alusões
1- MACÁRIO: Esta cidade deveria ter o teu nome.
SATÃ: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge.
Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila ,e pobre
como uma aldeia. (AZEVEDO, 1999, p.50)
2- SATÃ: É uma propensão singular a do homem pelas ruínas. Devia ser um frade
bem sombrio, ébrio de sua crença profunda, o Jesuíta que aí lançou nas montanhas
a semente dessa cidade. (AZEVEDO, 1999,p.56)
3- MACÁRIO: É uma cousa singular esta vida. Sabes que às vezes eu quereria ser
uma daquelas estrelas para ver de camarote essa Comédia que se chama o
Universo? Essa Comédia onde tudo que há de mais estúpido é o homem que se crê
um espertalhão? (AZEVEDO, 1999, p.58)
4- PENSEROSO: Li o livro que me deste, Macário... li-o avidamente. Parece que
no coração humano há um instinto que o leva à dor, como o corvo ao
cadáver.Aquele poema é frio como um cadáver. É um copo de veneno. (AZEVEDO,
1999, p.56)
No fragmento 1, o “nome de um santo” é uma alusão a São Paulo, cidade da qual os
personagens provavelmente falam.
No fragmento 2, o “Jesuíta” é uma alusão ao Padre José de Anchieta, o fundador de
São Paulo.
No fragmento 3, “Comédia” ,escrita com maiúscula, parece ser uma alusão à
“Divina Comédia” de Dante que, curiosamente, foi chamada simplesmente “Comédia” por
seu autor, sendo o adjetivo “Divina” um acréscimo tardio, que talvez se deva a Bocaccio.
No fragmento 4, o livro objeto de discussão dos personagens tem as mesmas
características de “A noite na taverna”, do próprio Azevedo. Configura-se, pois, como
exemplo de intratextualidade.
79
e) Referências à mitologia
1- SATÃ: Sangue de Baco! Sou o diabo em pessoa! Nem mais nem menos: porque
tenha luvas de pelica, e ande de calças à inglesa, e tenha os olhos tão azuis como
uma alemã! (AZEVEDO, 1999, p.57)
2- MACÁRIO: Olha o rosto pálido daquele que viu, como a Níobe, morrerem uma
por uma, feridas pela mão fatal que escreveu a sina do homem, suas esperanças
nutridas da alma e do coração... e dize-me se no riso amargo daquele descrido, se
na ironia que lhe cresta os beiços não há poesia como na cabeça convulsa do
Laocoonte. (AZEVEDO, 1999, p.69)
3- PENSEROSO: Não sentiu ele que aquela sua nação infante que se embala nos
hinos da indústria européia como Júpiter nas cavernas do Ida ao alarido dos
Coribantes – tem um futuro imenso? (AZEVEDO, 1999, p.100)
4- PÁGINAS DE PENSEROSO: Fi-la bela, dessa beleza divina que Deus me ressumbrou
na alma de poeta. Talvez é assim – mas assim mesmo eu morro por ela!... amo-a como o
pintor a sua Madona, como o escultor a sua Vênus, como Deus a sua criatura.
(AZEVEDO, 1999, p.114)
5- SATÃ: Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é
como ópio, é o Letes do esquecimento... (AZEVEDO, 1999, p.127)
As referências mitológicas
4
, em ordem de aparição, são as seguintes:
1- Baco: deus do vinho, da alegria, da orgia
2- Níobe: rainha frígia que, tendo os quatorze filhos (sete de cada sexo) mortos por
vingança de Apolo e Diana (cuja mãe havia sido insultada por Níobe, orgulhosa de
sua fecundidade), foi transformada em rochedo que derrama lágrimas perpétuas.
3- Laocoonte: herói troiano, sacerdote de Apolo que foi castigado pelas divindades
protetoras dos gregos por aconselhar os troianos a não recolherem o Cavalo de
madeira, sendo morto com seus filhos por duas serpentes marinhas.
4- Júpiter: deus supremo, regente dos deuses do Olimpo
4
As informações sobre mitologia foram extraídas do Sistema de pesquisa mitológica em hipertexto,
disponível em: <http://mithos.cys.com.br> , versão 3.01 10 Fev 99, Copyright 1993-2003 – Ufosoft
Informática Ltda. Acesso em: 11 jul. 2005.
80
5- Coribantes: Sacerdotes de Cibele (mãe de Júpiter) que contribuíram para a salvação
de Júpiter das ameaças paternas e para sua educação; executavam danças ao som da
flauta e dos címbalos.
6- Vênus: deusa da beleza, dos amores, da energia reprodutora, da volúpia e da vida
universal.
7- Letes: um dos cinco rios do inferno (o do esquecimento).
f) Referências bíblicas
1- SATÃ: E contudo este burro descende em linha reta do burro que fez a sua
entrada em Jerusalém o filho do velho carpinteiro José. Vês pois que é fidalgo
como um cavalo árabe. (AZEVEDO, 1999, p.48,49)
2- SATÃ: A lua parou no céu. Tudo dorme. É a hora dos mistérios. Deus dorme no
seio da criação como Lot no regaço incestuoso de sua filha. Só vela Satã.
(AZEVEDO, 1999, p.66)
3- SATÃ: É um filho que o pai enjeitou. É um anjo que desliza na terra. Amanhã
talvez o encontres. A pérola talvez se enfie num colar de bagas impuras, talvez o
diamante se engaste em cobre. Aposto como daqui a um momento será uma mulher,
daqui a um dia Santa Madalena! (AZEVEDO, 1999, p.70)
4-MACÁRIO: Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara em
afogar homens na água do dilúvio nem mandar crucificar, macilenta e
ensangüentada a imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso como
no tempo da chuva de fogo de Sodoma. (AZEVEDO, 1999, p.101)
5-MACÁRIO: Talvez seja a treva de meu corpo que me escureça minha alma.
Talvez um anjo mau soprasse no meu espírito as cinzas sufocadoras da dúvida. Não
sei. Se existe Deus, ele me perdoará se a minha alma era fraca, se na minha noite
lutei embalde com o anjo como Jacó, e sucumbi. (AZEVEDO, 1999, p.106)
6-PENSEROSO: Se o poeta da perdição dos anjos nos conta o crime da criatura
divina, liba-nos da despedida do Éden o beijo de amor que fez dos filhos da terra
uma criatura, uma alma cheia de futuro. Se na primeira página da história da
passagem do homem sobre a terra há o cadáver de Abel, e o ferrete de Caim o
anátema, - naquelas tradições ressoa o beijo de mãe de Eva pálida sobre os lábios
de seu filho. (AZEVEDO, 1999, p.108, 109)
Percebe-se que o sujeito-autor mescla, em sua obra, referências mitológicas e
bíblicas, indícios de uma visão de mundo heterogênea. Assim, elementos que a princípio
81
seriam considerados inconciliáveis como “Cristo” e “Júpiter”, ou “Vênus” e “Santa
Madalena”, coexistem em Macário, obra constituída por contrastes e ambigüidades. É
interessante observar, por exemplo, que a maioria das citações bíblicas são empregadas por
Satã, como forma de tornar o sagrado profano.
Acerca da obra azevediana em questão, é possível afirmar, com Topia (1979), que ela:
“aparece então como uma configuração aberta, percorrida e
balizada por redes de referências, reminiscências, conotações, ecos,
citações, pseudo-citações, paralelos, reativações. A leitura linear é
substituída por uma leitura em travessias e correlações, em que a
página escrita não é mais do que o ponto de intersecção de extratos
provindos de múltiplos horizontes. “ (TOPIA, 1979, p.171)
Assim funciona, de acordo com o referido autor, o estatuto do citacional nos
textos literários, cujo exemplo fica evidenciado com as páginas de Macário, em que
o autor articula os dados culturais e históricos na linguagem literária para refletir
sobre a arte, Deus, a vida, enfim, como recurso para exprimir sua visão de mundo.
CAPÍTULO 5
MACÁRIO E PENSEROSO: O EU E O OUTRO NA
CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS
O homem é um eterno fragmento.
Schelling.
Álvares de Azevedo, poeta pertencente à segunda geração romântica (como
observamos no item 2.1 do segundo capítulo), ainda hoje constitui uma figura contraditória
na literatura brasileira, por apresentar simultaneamente diferentes facetas.
Alvo de opiniões ambíguas, para alguns teóricos ele teria sido uma pessoa
sentimental, angelical e melancólica, enquanto para outros, debochado, sarcástico e boêmio
seriam os adjetivos mais adequados para caracterizá-lo.
Até mesmo nos dois principais temas presentes em sua literatura, amor e morte, há
enfoques díspares: esta gera ora temor, ora fascínio, aquele é idealizado se dedicado à
donzela pura e carnal se consumado com a fêmea sensual.
Vida e obra deste autor apresentam-se tão atreladas que, sendo ao mesmo tempo
“anjo e demônio do Romantismo” (ROCHA, 1971), aborda nos próprios livros os conflitos
que lhe são imputados. É o caso do prefácio à “Lira dos vinte anos”, em que Álvares de
Azevedo afirma:“Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban. A razão é simples. É
que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de
um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de
duas faces.” ( AZEVEDO, s/d, p.38).
A delicadeza de Ariel contrasta com o grotesco, simbolizado pela figura de Caliban
– personagens de Shakespeare citadas para mostrar ao leitor que, do sentimentalismo da
primeira parte da “Lira dos vinte anos”, passa para a sátira na segunda parte.
83
“Tudo quanto produziu gira basicamente em torno de duas obsessões, o
amor e a morte. Aquele se divide entre duas imagens de mulher: a virgem
pura,inacessível, e a fêmea decaída, foco de luxúria – ambas veneradas e
idealizadas com sofreguidão. Já o sentimento da morte alterna entre o medo
de morrer e o irresistível fascínio das atmosferas em decomposição. Vale
dizer, tudo em Álvares de Azevedo é cisão interior, oposição de contrários,
antinomia substancial. E isso não é privilégio do jovem poeta. A
imaginação romântica, vivamente assimilada por ele, é toda impregnada de
antinomias, decorrentes, em última instância, do embate entre o mundo
clássico, escorado em verdades universais, e a poderosa eclosão do espírito
moderno, romântico, que afirma o primado dos valores pessoais.”
(MOISÉS, 2001, p.5)
Os conflitos vivenciados por Álvares de Azevedo são conseqüência de um espírito
de auto-afirmação nacionalista que se instaurava na literatura, buscando contrapor a
emoção à razão, o individual ao universal, o original ao clássico, conforme já ressaltara
Candido(1987): “ Justamente pelo fato de manter relações com a realidade social, a
literatura incorpora as suas contradições à estrutura e ao significado das obras.”
(CANDIDO, 1987,p.167). Macário pode ser considerado um resultado dessas
contradições, na medida em que abarca sonho e realidade, razão e sentimento, fé e
ceticismo, amor ideal e amor carnal, otimismo e pessimismo, valorização do nacional e do
universal – impasses que surgem via confronto entre os personagens da obra que, por sua
vez, refletem a relação entre autor e personagens. Nesse momento, para analisarmos a
atuação do eu e do outro na construção dos personagens, faz-se necessário retomar a
distinção entre o autor, sujeito biográfico e o autor da obra. Bakhtin (1997a ) afirma que o
autor-criador é “ componente da obra, e o autor-homem, componente da vida.”
(BAKHTIN, 1997a, p.31). Também Candido (1975) alude a essa diferença: “...estou me
referindo ao poeta que, em suas obras, fala na primeira pessoa; não ao homem Álvares de
Azevedo,necessariamente.” (CANDIDO, 1975, p.184).
84
Sendo Macário um drama tipicamente romântico, cabe ressaltar o fato de ser
perpassado pela interação verbal que, para Bakhtin( 1997 b ), é o fenômeno constituinte da
“verdadeira substância da língua”. Recuperamos, aqui, a crítica bakhtiniana feita em
Marxismo e Filosofia da Linguagem (como podemos perceber no primeiro capítulo) às
duas orientações do pensamento filosófico lingüístico, o “objetivismo abstrato” e o
subjetivismo individualista”, uma vez que elas se mostram insuficientes para abordar a
natureza da língua, seja por desconsiderar o ato de fala com a justificativa de ser o mesmo
“individual”, enfatizando a linguagem como sistema abstrato de formas, desconsiderando a
ideologia, seja por seu reverso, a redução da linguagem à enunciação monológica isolada.
Daí depreende-se que, para o filósofo da linguagem:
“A verdadeira substância da língua não é constituída
por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela
enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno
social da interação verbal, realizada através da
enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua.”
(BAKHTIN, 1997 b , p.123).
Nesse sentido, o diálogo pressupõe interação verbal:
“O diálogo,no sentido estrito do termo, não constitui,é
claro, senão uma das formas, é verdade que das mais
importantes, da interação verbal. Mas pode-se
compreender a palavra ‘diálogo’ num sentido amplo, isto
é, não apenas como a comunicação em voz alta, de
pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação
verbal, de qualquer tipo que seja.” (BAKHTIN, 1997 b,
p.123).
85
No caso de Macário, trata-se de uma tentativa de gênero dramático, sendo o diálogo
o responsável pela apresentação das idéias dos personagens, sem mediação de um
narrador – eis um dos fatores que permitem o embate entre o eu e o outro. No entanto, as
vozes que se depreendem desse dialogismo procedem da divisão do autor, conforme já
notaram Candido(1975) e Cavalheiro( 1999). De acordo com Candido, existe em Macário
um “caráter de projeção do debate interior, pelo desdobramento do poeta nos dois
personagens de Macário e Penseroso – ambos ele próprio, cada um representando um
lado da ‘binomia’que, segundo vimos, condiciona a sua vida e a sua obra, exprimindo o
dilaceramento da adolescência.” (CANDIDO, 1975,p.189).
Para Cavalheiro(1999), Macário e Penseroso são “duas pessoas distintas de uma só
verdadeira, que seria, nesse caso, o próprio autor se debatendo num trágico conflito
interior, num desesperado anseio de justificação ou definição.” (CAVALHEIRO, 1999,
p.11).
Abordamos essa cisão através de marcas textuais, na contracorrente de abordagens
psicologizantes que enfatizam a biografia em detrimento da obra, tendência já observada
por Bakhtin (1997 a ) em seu ensaio “O autor e o herói”:
“Não procuramos negar totalmente o valor das eventuais confrontações,
que podem ser eficazes, entre as respectivas biografias do autor e do herói,
entre suas visões do mundo – em se tratando de história da literatura ou de
estética - , denunciamos simplesmente o procedimento puramente factual,
desprovido de qualquer princípio, tal como é praticado atualmente,
baseado na confusão total entre o autor-criador, componente da obra, e o
autor-homem, componente da vida, com total ignorância do princípio
criador existente na relação do autor com o herói. Daí resulta, de um lado,
a ignorância e a distorção da pessoa ética, biográfica, do autor, e do outro
lado, uma incompreensão geral do todo constituído pela obra e o autor.”
(BAKHTIN, 1997 a , p.21).
86
É, com efeito, no texto azevediano que se pretende analisar as diversas vozes
entrelaçadas na obra, concordando com o pressuposto de Bakhtin (1997 a ) segundo o qual
“O autor nada tem que dizer sobre o processo de seu ato criador, ele está por inteiro no
produto criado, e só pode nos remeter à sua obra; e é, de fato, apenas nela que vamos
procurá-lo”.(BAKHTIN, 1997 a , p.27).
É válido ressaltar que, apesar de Candido (1975) e Cavalheiro (1999) já terem
apontado a questão da divisão do sujeito-autor nos personagens centrais (Macário e
Penseroso), eles não articularam essa dimensão conteudística da obra à sua dimensão
estrutural, que é objetivo do presente estudo. Assim, ao analisarmos Macário, verificamos
que a fragmentação discursiva do sujeito-autor está associada às dispersões de gênero na
obra.
Depois de expostas as idéias sobre teatro no prefácio (“Puff”), tem início o
primeiro episódio, com a chegada de Macário a uma estalagem (“Olá, mulher da venda!
Ponham-me na sala uma garrafa de vinho. Façam a cama, e mandem-me ceia; palavra de
honra que estou com fome!” AZEVEDO, 1999, p.25). Nessa estalagem ocorre seu
encontro com um desconhecido; o diálogo que ambos estabelecem evidencia
características do protagonista, através da concepção que ele tem de si próprio e da maneira
como “o desconhecido” o concebe. Macário afirma ser um estudante (“Vadio ou estudioso,
talentoso ou estúpido, pouco importa.” AZEVEDO, 1999, p.36) que, tendo vinte anos de
idade, julga possuir uma vivência maior ( Vinte anos. Mas meu peito tem batido nesses
vinte anos tantas vezes como o de um outro homem em quarenta.” AZEVEDO, 1999,
p.40). Apesar de tão jovem, já apresenta tendência ao ceticismo (“Duvido sempre.
Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é um logro.” AZEVEDO, 1999, p.43).
Desconhece sua origem, pois, ao se apresentar ao companheiro, diz apenas o primeiro
87
nome (“Se não fosse enjeitado, dir-te-ia o nome do meu pai e o de minha mãe. Era decerto
alguma libertina.Meu pai, pelo que penso, era padre ou fidalgo.” AZEVEDO, 1999, p.58).
Elege três alvos de admiração: “ O fumo, o vinho e as mulheres!” (AZEVEDO, 1999,
p.58).Por meio do recém-companheiro de viagem, outras características de Macário são
evidenciadas: sua tristeza (“Sois triste, moço...Palavra, que eu desejaria ver uma poesia
vossa.” AZEVEDO, 1999, p.37) e alguns sinais de devassidão (“Admira-me uma cousa.
Tens vinte anos: deverias ser puro como um anjo, e és devasso como um cônego.”
AZEVEDO, 1999, p.45). Assim, o personagem constitui-se não apenas por meio da própria
fala, mas também através da fala do outro a seu respeito.Durante o diálogo entre Macário e
o desconhecido, este, ao tirar do bolso uma garrafa de vinho de Madeira e, noutra ocasião,
um cachimbo para oferecer ao estudante, passa a ser considerado pelo mesmo como “um
perfeito companheiro de viagem” (AZEVEDO, 1999, p.35) que, além disso, também se
interessa pelas suas idéias sobre assuntos como poesia, mulheres e amor.Aqui, parece
existir consenso entre as vozes.O mistério que envolve o desconhecido chega ao fim
juntamente com a primeira cena: Eu sou o diabo. Boa noite, Macário” (AZEVEDO,
1999, p.47), personagem que foi ao encontro do protagonista assim como aconteceu em
Fausto, de Goethe, cujos personagens são mencionados em fala do próprio Macário depois
da revelação.(“A maior desgraça deste mundo é ser Fausto sem Mefistófeles...”
AZEVEDO, 1999, p.47) .Feitas as apresentações, os personagens seguem viagem
montados no burro de Satã; Macário vai na garupa. A cidade para a qual se dirigem é
considerada por Satã “sombria como uma eça de enterro.” (AZEVEDO, 1999, p.49).
“Devassa”, “insípida” e “pobre” são alguns dos adjetivos por ele empregados para
descrevê-la, sem deixar de aludir às calçadas“intransitáveis” e às mulheres “repulsivas”. É
88
inevitável a comparação feita entre a cidade descrita na obra com a visão de São Paulo que
se depreende das cartas de Álvares de Azevedo à mãe e à irmã. Cavalheiro(1999) nota essa
correspondência:
“Nas cartas para a mãe, (...) não é outro o tom com que o poeta se refere à
Paulicéia. Há frases idênticas, facilmente confrontáveis. As mesmas
referências aos dentes das paulistas, que Álvares julga horríveis, os mesmos
remoques às ruas, intransitáveis ou esburacadas, ou à cidade em conjunto,
insípida e feia.” (CAVALHEIRO, 1999, p.11)
. Nesse sentido, o fato de a cidade possuir o nome “de um santo” (AZEVEDO,1999,
p.50) e a existência de “um cemitério à esquerda e umas ruínas à direita” (AZEVEDO,
1999, p.56) da casa, na entrada da cidade, tal qual acontecia com a residência de Álvares
de Azevedo na Chácara dos Ingleses, localizada à Rua da Glória, em São Paulo, são
aspectos que corroboram a transferência do dado biográfico para a ficção.O segundo
episódio passa a ser retratado na Itália e se inicia com o desejo expresso por Macário de
morrer por amor (“Amanhã não pode ser tão belo como hoje. E acordar do sonho, ver
desfeita uma ilusão! Nunca!...” AZEVEDO, 1999, p.77).O mesmo amor que tira de
Macário a vontade de viver desperta os sonhos de um outro personagem, Penseroso. Tal
contraste pode ser percebido através do seguinte diálogo:
“ – Boa noite, Macário. Onde vais tão sombrio?
_Vou morrer.
_Eu sonhava em amor!
_E eu vou morrer!” (AZEVEDO, 1999, p.81).
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Trata-se, aqui, do primeiro contato entre os personagens centrais instaurando, desde
o início, uma tensão entre as vozes que caracteriza todo o segundo episódio.O excerto
seguinte constitui a continuação do diálogo acima transcrito; nele, é possível verificar
instantes de circunscrição de Macário e Penseroso em dois perfis distintos:
PENSEROSO: Tu brincas. Vi um sorriso nos teus lábios.
MACÁRIO: É um sorriso triste, não? Eu to juro pela alma de minha mãe,
vou morrer.
PENSEROSO: Morrer! Tão moço! E não tens pena dos que chorarão por
ti? Daquelas pobres almas que regarão de lágrimas ardentes teu rosto
macilento, teu cadáver insensível?
MACÁRIO: Não; não tenho mãe. Minha mãe não me embalará
endoudecida entre seus joelhos, pensando aquentar com sua febre de louca
o filho que dorme. Ninguém chorará. Não tenho mãe.
PENSEROSO: Pobre moço! Não amas!
MACÁRIO: Amo... amo sim. Passei toda esta noite junto ao seio de uma
donzela, pura e virgem como os anjos. (AZEVEDO, 1999, p.82).
As vozes dos personagens aqui destacadas representam dois
posicionamentos opostos: a ânsia pela morte de Macário não encontre respaldo em
Penseroso, o personagem dotado de fé, esperança e otimismo. Num esforço para
compreender o desejo do amigo, Penseroso conclui que ele “não ama” já que, conforme
veremos, ele equaciona “vida = amor”.Daí o fato de, em um primeiro instante, Penseroso
não compreender em Macário o desejo de morte proveniente do amor, expressando toda
sua indignação nestas palavras: “Amar e não querer viver!” (AZEVEDO, 1999, p.83).
Cabe ressaltar, porém, que as concepções de amor que ambos têm são distintas, como se
pretende analisar no momento oportuno.
Quando os personagens encontram-se novamente, a situação que acabamos de
transcrever é revertida graças a uma desilusão amorosa, que leva Penseroso a manifestar o
90
mesmo desejo do amigo: “E contudo eu amei-a! Eu amei tanto...”(AZEVEDO, 1999,
p.95). “Pensei no suicídio..”(AZEVEDO,1999, p.95).
Sabe-se que o autor enquanto sujeito, vivenciando aspectos inerentes a um tempo e
local determinados, transpõe esse excedente para a obra. Alguns enunciados presentes em
Macário remetem à concepção de mundo vigente à época do Romantismo; eis o que se
pretende mostrar no item a seguir.
5.1 – Vozes nacionalistas e vozes universalistas
Sabe-se que o advento da era romântica trouxe consigo uma preocupação em se
reivindicar uma expressão autenticamente nacional. Os padrões literários pré-existentes
passaram a ser recusados pelos nacionalistas que, na ânsia pela busca de uma
independência em relação ao estrangeiro, elegeram a descrição do nativismo e da cor local
como fatores indispensáveis para se estabelecer um limite de “brasilidade” na literatura. Os
modelos europeus, contudo, não deixaram de exercer encanto sobre os escritores nacionais,
acarretando um embate entre o nacional e o universal, o indivíduo e a coletividade, a
emoção e a razão:
“Em literatura e nas artes em geral, esse mesmo espírito, traduzido em
desvairado anseio de liberdade criadora, leva ao repúdio do clássico e à
procura de novas formas e novos temas, do original e do exótico. À razão
contrapõe-se a imaginação e o sentimento; ao equilíbrio, a fantasia e o
capricho; ao universal, o individual, o regional, o nacional; ao
aristocrático, o popular; à civilização, a natureza.” (NEGRÃO, 1977, p.6).
91
Álvares de Azevedo foi fortemente influenciado por autores estrangeiros,
especialmente Byron, Shelley, Shakespeare, Musset e George Sand – que conferiram à sua
obra um cunho universalista, gerando acusações de falta de nacionalismo devido aos raros
poemas dedicados à sua pátria, como é o caso de “A cantiga do sertanejo”, “Pedro Ivo” e
Minha Terra:
“Os livros que o pai lhe mandava levavam-lhe o romance de Byron, de
Shelley, de Musset , de George Sand, a vida não vivida, a presença das
vidas trágicas. O poeta intoxica-se, mas vence a intoxicação identificando-
se com eles e por eles, com a sua época. Universaliza-se. Entusiasma-se e
traduz Byron, faz imitações de Shakespeare, escreve ensaios sobre George
Sand e Musset.” (NEGRÃO, 1977, p.15).
Macário é uma obra que se resume a dois episódios: “Numa estalagem de estrada”
e “Na Itália”. Como a referida estalagem localiza-se no Brasil e o segundo episódio
transcorre integralmente em país estrangeiro, verifica-se que a própria estrutura do livro já
sugere uma divisão entre o nacional e o internacional.E a escolha da Itália, nesse sentido, é
evidência da admiração de Álvares de Azevedo por Byron, aspecto já ressaltado por
Candido (1975): “Por isso, ao lado do nacionalismo, há no romantismo a miragem da
Europa: o Norte brumoso, a Espanha, sobretudo a Itália, vestíbulo do Oriente
byroniano...” (CANDIDO, 1975, p.16).
No segundo episódio, Macário dá a Penseroso um livro, que servirá como pretexto
para o sujeito-autor promover uma interessante discussão através desses personagens: o
primeiro concorda com a visão pessimista e imoral que se depreende na leitura do livro em
questão, enquanto o último a condena, argumentando com uma defesa apaixonada da vida,
a exaltação da poesia, da natureza e do progresso iminente da nação americana.
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Destacamos algumas vozes que deixam clara a delimitação da postura crente,
nacionalista , otimista de Penseroso em contraste com a postura cética, universalista e
pessimista de Macário:
(1) PENSEROSO: Li o livro que me deste, Macário... li-o avidamente. Parece que
no coração humano há um instinto que o leva à dor, como o corvo ao cadáver.
Aquele poema é frio como um cadáver. É um copo de veneno. Se aquele livro
não é um jogo de imaginação, se o cepticismo ali não é máscara de comédia, a
alma daquele homem é daquelas, mortas em vida, onde a mão do vagabundo
podia semear sem susto as flores inodoras da morte. (AZEVEDO, 1999, p.96)
(2) MACÁRIO: E o cepticismo não tem a sua poesia?... O que é a poesia,
Penseroso? Não é porventura essa comoção íntima de nossa alma com tudo que
nos move as fibras mais íntimas, com tudo que é belo e doloroso?... A poesia
será só a luz da manhã cintilando na areia, no orvalho, nas águas, nas flores,
levantando-se virgem sobre um leito de nuvens de amor e de esperança?(...)As
dores do espírito confrangem tanto um semblante como as da carne. (...) Não
maldigas a voz rouca do corvo: _ ele canta na impureza um poema
desconhecido, poema de sangue e dores peregrinante como o do bengalim é de
amor e ventura! Fora loucura pedir vibrações a uma harpa sem cordas, beijos à
donzela que morreu, fogo a uma lâmpada que se apaga. Não peças esperanças
ao homem que descrê e desespera. (AZEVEDO, 1999, pp 96, 97, 98).
(3) PENSEROSO: Macário! É ele tão velho, teve tantos cadáveres que apertar nos
braços nas horas de despedida, que o seu sangue se gelasse, e seus nervos que
não dormem precisassem do cepticismo, como Paganini do ópio para
adormecer? (...) É um livro imoral; por que esse moço entregou-se delirante a
essa obra noturna de envenenamento? (...)
Esperanças! E esse descrido não palpita de entusiasmo no rodar do carro do
século, nos alaridos do progresso, nos hosanas do industrialismo laurífero?
Não sente ele que tudo se move, que o século se emancipa e a cruzada do futuro
se recruta?...
Esperanças! E esse Americano não sente que ele é o filho de uma nação nova,
não a sente o maldito cheia de sangue, de mocidade e verdor? Não se lembra
que seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, suas
cataratas, que tudo lá é grande e sublime? (...)
Esperanças! Não tê-las quando todos as têm: quando todos os peitos se
expandem como as velas de uma nau, ao vento do futuro! ( AZEVEDO, 1999,
pp.98-100)
93
(4) MACÁRIO: Muito bem, Penseroso. Agora cala-te: falas como esses oradores
de lugares-comuns que não sabem o que dizem. A vida está na garrafa de
conhaque, na fumaça de um charuto de Havana, nos seios voluptuosos da
morena. Tirai isso da vida – o que resta?(...)
Falas em esperanças. Que eternas esperanças que nada parem! O mundo está de
esperanças desde a primeira semana da criação... e o que tem havido de novo?
Se Deus soubesse do que havia de acontecer, não se cansara em afogar homens
na água do dilúvio nem mandar crucificar, macilenta e ensangüentada a
imagem de seu Cristo divino. O mundo hoje é tão devasso como no tempo da
chuva de fogo de Sodoma. Falais na indústria, no progresso? As máquinas são
muito úteis, concordo. Fazem-se mais palácios hoje, vendem-se mais pinturas e
mármores, mas a arte degenerou em ofício e o gênio suicidou-se. (...)
A poesia morre: deixá-la que cante seu adeus de moribunda. Não escutes essa
turba embrutecida no plagiar e na cópia. (...)
Falam nos gemidos da noite no sertão, nas tradições das raças perdidas na
floresta, nas torrentes das serranias, como se lá tivessem dormido a menos uma
noite, como se acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamleto no
cemitério a cada caveira do deserto o seu passado.
Mentidos! Tudo isso lhes veio à mente lendo as páginas de algum viajante que
esqueceu-se talvez de contar que nos mangues e nas águas do Amazonas e do
Orenoco há mais mosquitos e sezões do que inspiração; que na floresta há
insetos repulsivos, reptis imundos; que a pele furta-cor do tigre não tem o
perfume das flores... que tudo isto é sublime nos livros, mas é soberanamente
desagradável na realidade!
( AZEVEDO, 1999, pp.101-103)
(5) PENSEROSO: Tudo isso nada prova. É uma poesia, concordo; mas é uma
poesia terrível. É um hino de morte sem esperança do céu, como o dos
fantasmas de João Paulo Richter. É o mundo sem a luz, como no canto da
Treva. É o ateísmo como na Rainha Mab de Shelley. Tenho pena daqueles que
se embriagam com o vinho do cepticismo. (AZEVEDO, 1999, p.104)
(6) PENSEROSO: Vê: o mundo é belo. A natureza estende nas noites estreladas o
seu véu mágico sobre a terra, e os encantos da criação falam ao homem de
poesia e de Deus. As noites, o sol, o luar, as flores, as nuvens da manhã, o
sorriso da infância, até mesmo a agonia consolada e esperançosa do
moribundo ungido que se volta para Deus... tudo isso será mentira?
(AZEVEDO, 1999, p.107)
No fragmento 1, Penseroso exprime sua reprovação ao livro que lera, comparando-
o a um “copo de veneno”, escrito por alguém cuja alma é “morta em vida”.
No fragmento 2, Macário revida a crítica afirmando que o ceticismo pode ser
poético. Para convencer o companheiro, mostra-lhe que a dor porventura sofrida, as
esperanças desvanecidas também produzem poesia.
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No fragmento 3 é que melhor se percebe a defesa do nacionalismo pelas palavras de
Penseroso. Ele contesta os argumentos de Macário por não conseguir compreender por que
motivo um jovem entrega-se ao ceticismo e à imoralidade. Prossegue, então, contrapondo a
descrença do escritor às esperanças que deveria ter por pertencer a uma nação jovem,
mencionando desde a natureza americana até os progressos advindos do industrialismo,
conciliando, pois, nativismo e patriotismo, elementos que, de acordo com Candido(1975),
compõem o nacionalismo:
“(o nacionalismo) engloba o nativismo em sentido estrito e já então
tradicional em nossa cultura, (ligado a pura celebração ou aos sentimentos
de afeto pelo país), mais o patriotismo, ou seja, o sentimento de apreço pela
jovem nação (...). No nativismo, predominando o sentimento da natureza;
no patriotismo, o da polis.” (CANDIDO, 1975,p.14).
No fragmento 4, Macário recorre a indícios que mostram a inutilidade da esperança.
Ao progresso cantado por Penseroso, Macário contrapõe a degeneração da arte. Quanto aos
escritores que enaltecem a natureza (como por exemplo, os indianistas) declara que sua
ficção não condiz com a realidade que lhes serve de modelo.
A opinião de Macário, aqui, é de um realismo surpreendente para o momento
literário, pautado pelo sentimento em detrimento da razão. Fica evidenciado o
posicionamento do sujeito-autor acerca da temática nacionalista: ao criticar a descrição da
natureza desconsiderando os aspectos desagradáveis (mosquitos, sezões...) em nome do
sentimento de exaltação da pátria, ele está, na verdade, criticando o emprego da cor local,
da seleção vocabular típica do país para se atingir o fim desejado, ou seja, uma literatura
nacionalista. Candido (1975) aponta o motivo principal para que tal crítica se efetivasse:
95
“ O fato é que Álvares de Azevedo era escritor de tendência universal, menos interessado
no particularismo literário(...) Via a literatura mais sob o ponto de vista do valor e do
significado geral que do sentimento local...” (CANDIDO, 1975, p.342).
Nos fragmentos 5 e 6, Penseroso persiste com seu posicionamento de censura ao
ceticismo, já que representa o ideal romântico, a defesa da fé no futuro da nação, do
otimismo, da emoção.Seu discurso é uma apologia do viver na tentativa última de mostrar
a Macário a beleza do mundo.
Vislumbra-se, no discurso de Macário, o discurso do sujeito-autor sobre o impasse
nacionalismo x universalismo. Declarando sua opção pelo aspecto universal (no fragmento
4), o sujeito-autor confirma aquilo que Bakhtin (1997 a ) já afirmara acerca do discurso do
autor e do herói: “O discurso do herói sobre si mesmo é impregnado do discurso do autor
sobre o herói; o interesse (ético-cognitivo) que o acontecimento apresenta para a vida do
herói é englobado pelo interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor.”
(BAKHTIN, 1997 a , p.34).
As vozes que atravessam o discurso dos personagens principais constituem dois
pontos de vista diferenciados que, considerados isoladamente, são inacabados. O autor,
enquanto “depositário vivo da unidade de tensão criadora que fundamenta o acabamento”
(BAKHTIN, 1997 a , p.34) organiza as vozes de modo que, consideradas em si mesmas,
são necessariamente incompletas. É em co-existência que elas se complementam e
perfazem uma unidade, já que o todo é heterogêneo por natureza. Isso significa, nesse caso
específico, que a descrição do fator local dissociado do universal é inútil, pois, sendo o
primeiro parte intrínseca do segundo e não excludentes entre si, somente a interação do
nacional e do universal confere à literatura sua grandeza.
96
5.2 – Vozes crentes e vozes céticas
Já na primeira cena do drama, toma-se conhecimento da propensão do personagem
Macário ao ceticismo; ela é perceptível graças a uma gradação que se inicia com o termo
“descrido” (dirigido a ele por Satã), continua com o emprego em primeira pessoa dos
verbos “duvidar” e “descrer”, até chegar ao “cepticismo” propriamente dito no segundo
episódio, quando discute com Penseroso.
Em seu diálogo com Satã, Macário afirma: “As mulheres são como as espadas, às
vezes a bainha é de ouro e esmalte, e a folha é ferrugenta.” (AZEVEDO, 1999, p.39),
notando a impossibilidade da coincidência entre aparência física e essência. Satã exprime
seu espanto diante dessa declaração: “Falas como um descrido, como um saciado!”
(AZEVEDO, 1999, p.39)
Ainda na mesma cena, Macário revela a Satã sua postura de descrença: “Duvido
sempre. Descreio às vezes. Parece-me que este mundo é um logro. O amor, a glória, a
virgindade, tudo é uma ilusão.” (AZEVEDO, 1999, p.43).
Tais trechos servem para demonstrar uma tendência que atinge um clímax no
segundo episódio – momento em que esse duvidar constante é manifestado mais
enfaticamente na discussão acerca do livro dado por Macário a Penseroso. Como já
mostrado no item 5.1, os personagens entram em conflito porque o último reprova a falta
de esperanças do primeiro, que mostra estar de acordo, pois, com as idéias do autor. Dessa
forma, Macário afirma que o ceticismo tem sua poesia, que a arte degenerou e que é inútil
ter fé. Observemos os fragmentos seguintes:
(7) PENSEROSO: Não crer! E tão moço! Tenho pena de ti.(AZEVEDO, 1999,
p.105)
97
(8) MACÁRIO: Crer? E no que? No Deus desses sacerdotes devassos? Desses
homens que saem do lupanar quentes dos seios da concubina, com sua sotaina
preta ainda alvejante do cótão do leito dela para ir ajoelhar-se nos degraus do
templo! Crer no Deus em que eles mesmos não crêem, que esses ébrios
profanam até do alto da tribuna sagrada? (AZEVEDO, 1999, p.105)
(9) PENSEROSO: Não falemos nisto. Mas o teu coração não te diz que se nutre de
fé e de esperanças? (AZEVEDO, 1999, p.105)
(10) MACÁRIO: A filosofia é vã. É uma cripta escura onde se esbarra na treva.
As idéias do homem o fascinam, mas não o esclarecem. Na cerração do
espírito ele estala o crânio na loucura ou abisma-se no fatalismo ou no nada.
(AZEVEDO, 1999, pp.105, 106)
(11) PENSEROSO: Não; não é o filosofismo que revela Deus. A razão do
homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito, que ela se
apagará.(AZEVEDO, 1999, p.106)
(12) MACÁRIO: Só restam dois caminhos àquele que não crê nas utopias do
filósofo. O dogmatismo ou o cepticismo. (AZEVEDO, 1999, p.106)
(13) PENSEROSO: Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino. (AZEVEDO,
1999, p.106).
Nos fragmentos 7, 9 e 11, Penseroso manifesta sua posição de personagem crente,
que não compreende por que motivo um jovem como Macário entrega-se ao ceticismo,
tentando dissuadi-lo deste posicionamento.
No fragmento 8, Macário revela sua indignação a respeito dos religiosos cuja
postura lasciva não condiz com sua condição sacerdotal.
Nos fragmentos 10 e 11, Macário afirma a inutilidade da filosofia e confirma seu
ceticismo.
998
Já no fragmento 13, Penseroso, o típico representante do ideal romântico, deixa-se
dominar completamente pela emoção ao afirmar que “sente”, não “raciocina”.
Há momentos em que as duas posturas, representadas por Macário e Penseroso e
evidenciadas como ambíguas, parecem fundir-se em um só personagem, como é possível
perceber nos fragmentos a seguir:
(14) MACÁRIO: Não é que eu não voltasse meus sonhos para o céu. A cisterna
também abre seus lábios para Deus, e pede-lhe uma água pura – e o mais das
vezes só tem lodo.(...) (AZEVEDO, 1999, p.45)
(15) MACÁRIO: Amanhã pensarás comigo. Eu também fui assim. O tronco seco
sem seiva e sem verdor foi um dia o arvoredo cheio de flores e de sussurro.
(AZEVEDO, 1999, p. 105)
(16) MACÁRIO: Às vezes creio, espero: ajoelho-me banhado de pranto, e oro;
outras vezes não creio, e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo.
(AZEVEDO, 1999, p.106)
(17) PENSEROSO: Mas nós, mas tu e eu que somos moços, que sentimos o
futuro nas aspirações ardentes do peito, que temos a fé na cabeça e a poesia
nos lábios, a nós o amor e a esperança: a nós o lago prateado da existência.
Embalemo-nos nas suas águas azuis, sonhemos, cantemos e creiamos!
(AZEVEDO, 1999, p.108)
(18) PENSEROSO: Não escreverei mais: não. Calarei o meu segredo e morrerei
com ele (...) a ilusão morreu... Oh! Não morrerei com ela? Ontem falei com
Davi sobre o suicídio. (...) Eis aí o veneno. Ó minha terra! Ó minha mãe! Mais
nunca te verei! (...) Creio que chorei. Tenho a face molhada. A dor me
enfraqueceria? Não! Não! Não há remédio. Morrerei. (AZEVEDO, 1999,
pp.112,113)
(19) ( “Páginas de Penseroso”): Se há um homem que cresce no futuro, fui eu.
Tive confiança no orgulho de meu coração e no gênio que sentia na minha
cabeça. (AZEVEDO, 1999, p.113)
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(20) ( “Páginas de Penseroso”): Esse mundo, a natureza, as montanhas, o eflúvio
luminoso das noites de luar, tudo isso me acordava vibrações, me revelava no
peito cordas que nunca escutei senão nos poetas divinos, que nunca senti no
peito cavernoso e vazio dos outros homens. (AZEVEDO, 1999, p. 114).
O fragmento 14 pertence ao primeiro episódio, quando Macário e Satã (então o
“desconhecido”) dialogam. Diante da acusação de “devasso” feita por Satã, Macário
responde que existem momentos de crença em sua vida, de vontade de se regenerar,
pedindo “água pura”.
No fragmento 15, já no segundo episódio (conversando com Penseroso), Macário
emprega o verbo “pensar” na segunda pessoa do singular do futuro do presente, seguido do
pronome “comigo”, para persuadir Penseroso a ser como ele: cético e pessimista. Além
disso, pode-se perceber o uso do advérbio “também” e do verbo “ser”na primeira pessoa do
pretérito perfeito, denotando que Macário já fora um Penseroso, pois era cheio de
esperanças como o companheiro.
No fragmento 16, há uma seqüência de verbos empregados em primeira pessoa por
Macário, associados à fé: “creio”, “espero”, “ajoelho-me”, “oro”, todos antecipados pela
locução adverbial “às vezes” – tais indícios casuais de crença são contrapostos pelo
emprego da expressão “outras vezes”, seguida da forma negativa do verbo “crer”,
exprimindo a relutância do personagem diante da fé e do ceticismo.
No fragmento 17, Penseroso utiliza o pronome pessoal “nós”, seguido de “tu e eu”
como forma enfática referindo-se a ele e a Macário, prosseguindo com o emprego de
verbos na primeira pessoa do plural (“somos”, “sentimos”, “temos”). Tais verbos
configuram uma tentativa de inclusão dos sentimentos e do modo de ser de Macário nos de
Penseroso, o que é reforçado pelo uso do imperativo (“embalemo-nos”, “sonhemos”,
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“cantemos” e “creiamos”). Fica bastante nítida a idealização do viver pelo personagem
nesse trecho, em que a existência é comparada a um “lago prateado”.
No fragmento 18, percebe-se a presença dos sentimentos típicos de Macário nos
escritos de Penseroso, que emprega repetidas vezes o verbo “morrer” na primeira pessoa
do singular do futuro do presente. Aqui, o personagem decide tirar a própria vida, depois
de uma desilusão amorosa. Há, contudo, instantes de indecisão, perceptíveis através de
dois questionamentos feitos: “Não morrerei com ela?” e “A dor me enfraqueceria?”,
conflitos esses que são, posteriormente, resolvidos: “Não há remédio. Morrerei”.
No fragmento 19, extraído das “Páginas de Penseroso”, percebe-se um contraste na
mesma oração entre os tempos verbais de “crescer” e “ser”; o primeiro está empregado no
presente do indicativo e o segundo, no pretérito perfeito. Isso pode indicar um desejo
involuntário de continuar com a postura de fé ,no entanto agora impossível, o que fica
demonstrado pelo emprego dos demais verbos no pretérito perfeito (“tive”) e no imperfeito
(“ sentia”).
No fragmento 20, os elementos responsáveis pela emoção de Penseroso são agora
acompanhados por verbos no pretérito imperfeito (“acordava”, “revelava”) e perfeito (
“escutei”, “senti”) exprimindo, portanto, sentimentos que já se findaram.
Percebe-se, nas “Páginas de Penseroso”, que a fé do personagem permanece
inabalável em alguns momentos em que, mesmo decidido a morrer, sonha: “viveríamos tão
bem! Era tão fácil minha ventura! Por esses rios imensos da minha terra há tantas
margens viçosas e desertas, cheias de flores e de berços de verdura, de retiros amenos (...)
Seríamos sós... sós... e essa solidão nós a povoaríamos com o mundo angélico do nosso
amor!” (AZEVEDO, 1999, p.116).
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No entanto, o emprego de verbos no futuro do pretérito mostra o desaparecimento desse
último vestígio de esperança e a consciência de estar apenas sonhando: “Sou um doudo,
meu Deus! Por que mergulhar mais o meu coração nessa lagoa venenosa das ilusões!
Quero ter ânimo para morrer (...) Para que sonhar mais o que é impossível?”
(AZEVEDO, 1999, p.117).
Momentos como esse, em que Penseroso parece determinado a deixar de sonhar e
morrer, alternam-se com declarações tais como a seguinte: “É ainda um sonho o que vou
escrever. Eu sonhei esta noite... e sonhei com ela...” (AZEVEDO, 1999, p.117), indicando
que a insegurança do personagem só pode ter sido fruto do contato com as idéias
pessimistas de Macário. Porém, ainda que denote indecisão, a fé é derrotada pelo ceticismo
e Penseroso acaba cometendo o suicídio.
5.3 – Vozes castas e vozes sensuais
É na primeira cena do primeiro episódio de Macário que se revelam as principais
características do protagonista: “moço”, “estudante”, “triste”, “descrido” e “devasso” são
alguns dos termos que o descrevem e contribuem para a definição de seu caráter. A esses
fatores, pode-se acrescentar ainda o gosto por vinho, fumo e mulheres e uma postura
declaradamente anti-romântica, conforme se observa nos fragmentos a seguir:
(21) MACÁRIO: Duas palavras só: amo o fumo e odeio o Direito Romano. Amo
as mulheres e odeio o romantismo. (AZEVEDO, 1999, p.36)
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(22) MACÁRIO: Gosto mais de uma garrafa de vinho que de um poema; mais
de um beijo que do soneto mais harmonioso. Quanto ao canto dos passarinhos,
ao luar sonolento , às noites límpidas, acho isso sumamente insípido. Os
passarinhos sabem só uma cantiga. O luar é sempre o mesmo. Esse mundo é
monótono a fazer morrer de sono.” (AZEVEDO, 1999, p.36)
Nos fragmentos acima transcritos, Macário expressa uma concepção de mundo
impregnada pelo tédio, o “spleen” típico do herói byroniano, cético, irônico e entediado
pela realidade circundante.
Na mesma cena, Macário estabelece uma distinção entre duas categorias de amor.
Quando Satã lhe pergunta: “E amaste muito?” (AZEVEDO, 1999, p.40), ele responde:
“Sim e não. Sempre e nunca” (AZEVEDO, 1999, p.40) e esclarece sua resposta paradoxal
da seguinte maneira:
(23) MACÁRIO: Se chamas o amor a troca de duas temperaturas, o aperto de
dois sexos, a convulsão de dois peitos que arquejam, o beijo de duas bocas que
tremem, de duas vidas que se fundem... tenho amado muito e sempre!... Se
chamas o amor o sentimento casto e puro que faz cismar o pensativo, que faz
chorar o amante na relva onde passou a beleza, que adivinha o perfume dela
na brisa, que pergunta às aves, à manhã, à noite, às harmonias da música, que
melodia é mais doce que sua voz; e ao seu coração, que formosura mais divina
que a dela... eu nunca amei.(AZEVEDO, 1999, pp.40,41)
No fragmento 23, há antagonismos oriundos de um só sentimento: voluptuosidade e
pureza, satisfação do desejo carnal e idealização da amada. Macário denota conhecer
apenas o primeiro elemento dos pares ambíguos, ou seja, o amor em sua manifestação
sexual, desprovido de um “sentimento casto e puro que faz cismar o
pensativo”(AZEVEDO, 1999, p.40). Ao falar sobre esse sentimento, Macário está se
referindo ao sentimento de Penseroso, o personagem romântico por excelência, cuja
postura prima pela emoção. Ele surge no segundo episódio, sentado num rochedo à beira
de um rio, justamente “cismando”:
1043
(24) PENSEROSO: É tão doce sonhar, para quem ama!... No que estará ela
pensando agora? Cisma, e lembra-se de mim? Dorme e sonha comigo? Ou
encostada na sua janela ao luar sente uma saudade por mim! (AZEVEDO,
1999, p.81)
Penseroso demonstra, no fragmento 24, ter o sentimento “casto e puro” referido por
Macário. Justamente quando sonha por “amor”, Penseroso encontra Macário decidido a
morrer e lamenta essa resolução (“Pobre moço! Não amas”. AZEVEDO, 1999, p.82),
fazendo supor a existência de um vínculo entre a idéia de amor e a de vida. Mas Macário
responde: “Amo... amo sim! Passei toda esta noite junto ao seio de uma donzela pura e
virgem como os anjos.”.(AZEVEDO, 1999, p.83). Contudo, não é este o mesmo amor a
que Penseroso se refere; trata-se de um amor meramente carnal, como demonstram as
palavras de Macário: “Ébrio sim! Ébrio de amor... de prazer. Aquela criança inocente
embebedou-me de gozo. Que noite!” (AZEVEDO, 1999, p.83).
O diálogo sobre amor prossegue, persistindo a oposição ideal x carnal, como se
percebe nos fragmentos a seguir:
(25) PENSEROSO: Amar de joelhos, ousando a medo nos sonhos roçar de leve
num beijo os cílios, ou suas tranças de veludo! Ousando a medo suspirar seu
nome! Esperando a noite muda para contá-lo à lua vagabunda! (AZEVEDO,
1999, p.85)
(26) MACÁRIO: Morrer numa noite de amor! Rafael no seio de sua Fornarina!
Nos lábios perfumados da Italiana, adormecer sonolento... dormir e não
acordar! (AZEVEDO,1999, p.85)
No fragmento 25, o sentimento casto, quase platônico de Penseroso representa o
inverso da sensualidade explícita que se destaca nas falas de Macário (fragmento 26).
104
Enquanto o primeiro enquadra-se no padrão romântico, que exige a idealização do ser
amado, o enfoque subjetivo da realidade, o último escapa desse perfil.
O desejo de morrer causado pelo amor é um aspecto comum aos dois personagens,
manifestado primeiro por Macário e em seguida, por Penseroso, que sofrera uma desilusão
amorosa. Macário, no entanto, não se deixa dominar pelo desejo que uma vez manifestara;
antes, tenta consolar o amigo, levando-o a uma orgia:
(27) MACÁRIO: Não chores. Vem antes comigo. Geórgio dá hoje uma ceia:
uma orgia esplêndida como um romance. Teremos os vinhos da Espanha, as
pálidas voluptuosas da Itália, e as americanas morenas, cujos beijos têm o
perfume vertiginoso das magnólias e o ardor do sangue meridional. Não há
melhor túmulo para a dor do que uma taça cheia de vinho ou uns olhos negros
cheios de languidez. (AZEVEDO, 1999, p.95)
O que Macário propõe, no fragmento acima, é a substituição de um tipo de amor
por outro, a satisfação sexual como compensação para a frustração causada pelo
sentimento idealizado. Penseroso, a despeito da desilusão sofrida, ainda defende sua
concepção de amor, como no fragmento seguinte:
(28) PENSEROSO: As esperanças espontâneas, as crenças que um olhar de
virgem nos infiltra, as vibrações unânimes das fibras sensíveis serão uma
irrisão? (AZEVEDO, 1999,p.107)
Há indícios de mistura dos dois posicionamentos distintos em alguns momentos.
Assim, podemos perceber um Macário com traços de romantismo, conforme comprovam
os fragmentos a seguir:
1065
(29) MACÁRIO: Escuta. Eu também amei. Eu também talvez possa amar ainda.
Às vezes quando a mente se me embebe na melancolia, quando me passam
n’alma sonhos de homem que não dorme, e que chamam poesia, eu sinto ainda
reabrir-se o meu peito a amores de mulher.(...) Mas o que me agita as fibras é
a voluptuosidade – é o ademane de uma beleza lânguida, a sede insaciável do
gozo. São sonhos! Sonhos, Penseroso! É loucura abrir tanto os véus do
coração a essas brisas enlevadas que vêm tão sussurrantes de enleio, tão
repassadas de aromas e beijos! É loucura talvez (...) Põe a mão no meu
coração. Tuas falas mo fizeram bater. Havia uma voz dentro dele que eu
pensava morta, mas que estava só emudecida. Escuta- a . Há uma mulher em
que eu pensei noites e noites: que encheu minhas noites de insônia, meu sono
de ilusões fervorosas, meus dias de delírio. Eu amei essa mulher. Eu a segui
passo a passo na minha vida. Deitei-me na calçada da rua defronte de sua
janela, para ouvir a sua voz, para entrevê-la a furto branca e vaporosa, para
respirar o ar que ela bebia, para sentir o perfume de seus cabelos e ouvir o
canto de seus lábios. Eu amei muito essa mulher. E por vê-la uma hora ao pé
de mim, seminua, embora fosse adormecida, só por vê-la, e por beijá-la de
leve, eu daria minha vida inteira ao nada. E essa mulher, essa mulher...
(AZEVEDO, 1999, pp.109-111)
(30) MACÁRIO: Adeus, Penseroso. Eu pensei que tu me acordavas a vida no
peito. Mas a fibra em que tocaste e onde foste despertar uma harmonia é uma
fibra maldita, cheia de veneno e de morte. Adeus, Penseroso. (AZEVEDO,
1999, p.111)
No fragmento 29, Macário emprega o verbo “escutar” no imperativo (dirigido a
Penseroso), o pronome pessoal “eu”, o advérbio “também e o verbo “amar” no pretérito
perfeito para indicar que ele já sentira como Penseroso. No entanto, apesar de a ação de
amar já haver se findado, ele prossegue empregando o advérbio “talvez”, o verbo “poder”
no modo subjuntivo e o verbo “amar”, seguido do advérbio “ainda”, abrindo, portanto, uma
possibilidade de se entregar ao amor. Aqui, percebe-se um Macário que pode vir a ser um
Penseroso.
A conjunção adversativa “mas” marca um recuo por parte de Macário nessa
possibilidade de amar, que se justifica usando os termos “voluptuosidade”, “sonhos”,
sendo “loucura abrir tanto os véus do coração”, o que indica a permanência dele no âmbito
da racionalidade, do ceticismo e do objetivismo. Logo em seguida, um Macário relutante
1076
emprega o advérbio “talvez” referindo-se à loucura, deixando a possibilidade expressa de
amar como não sendo loucura.
Em outro momento, Macário emprega o termo “coração”, antecedido do pronome
possessivo “meu”(pedindo a Penseroso para tocá-lo e senti-lo pulsando), afirmando que as
falas de Penseroso acordaram “uma voz” que ele julgava “morta, mas que estava só
emudecida.” Por um instante, chega a cogitar uma entrega ao amor idealizado e descreve
seus sentimentos em relação a uma mulher que teria amado. Aqui, Macário utiliza
expressões de idealização da amada, desejando ouvir a sua voz, “entrevê-la a furto branca
e vaporosa” como em um sonho, respirar o mesmo ar, sentir o aroma dos cabelos ,
chegando a oferecer a própria vida por um único beijo dela. As reticências ao final do
trecho geram uma expectativa de uma provável aceitação do sentimento romântico, mas no
fragmento 30, essa probabilidade é abandonada, marcando o retorno de Macário a suas
convicções céticas e pessimistas.
As cenas seguintes comprovam a afirmação de Macário, que relaciona amor
idealizado à morte, pois Penseroso comete suicídio. Este, porém, não estabelece a mesma
relação; ao contrário, para ele, amor equivale à vida, como podemos comprovar mo
fragmento seguinte:
(31) PENSEROSO: E por que viver se o coração é morto?(...) Viver era sentir,
era amar, era crer que a ventura não é um sonho, e que eu tinha um leito de
flores onde descansar da vida, onde eu pudesse crer que a glória, o futuro não
valem um beijo de mulher! (AZEVEDO, 1999, p.115).
Penseroso decide tirar a própria vida não por amar, mas por julgar não ser alvo
desse mesmo amor , como mostra o fragmento 32:
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(32) PENSEROSO: E seria contudo tão bela a vida se ela me amasse!
(AZEVEDO, 1999, p.115)
(33) PENSEROSO: Por que mergulhar mais o meu coração nessa lagoa
venenosa das ilusões! Quero ter ânimo para morrer. (AZEVEDO, 1999,
p.116)
(34) PENSEROSO: Esse amor foi uma desgraça. Foi uma sina terrível.
(AZEVEDO, 1999, p.123).
Nota-se, então, que enquanto expressava toda sua emoção em relação à amada,
Penseroso tinha fé, acreditava na existência do amor ideal. Macário, por sua vez, sustenta o
ceticismo, pois só encontra o amor carnal. Morrendo, todavia, Penseroso acaba por
comprovar a tese de Macário segundo a qual o amor ideal é uma ilusão, como afirma no
fragmento 33.
No fragmento 34, as palavras ditas por Penseroso exprimem a tragédia de que fora
vítima. Conclui-se que o amor que sentira tornou-se o responsável por sua morte,
significando, pois, a vitória da descrença e, conseqüentemente, da outra concepção de
amor, o sexual, ligado à vida. Com efeito, na última cena, Satã leva Macário a uma orgia –
mais uma evidência do triunfo do amor carnal, enfocado como via de celebração da vida.
Pretendeu-se, nesse capítulo, analisar a relação eu-outro na construção dos
personagens azevedianos. É importante, nesse momento, retomar a idéia do desdobramento
do sujeito-autor nos personagens Macário e Penseroso. Pode-se, aqui, estabelecer um
paralelo com a imagem da criação do mundo por Deus, aludida por Mello (2000): “No
âmbito religioso, a noção do duplo está na concepção divina, já que Deus, consciência
absoluta, cria o universo para nele se refletir. A cosmogênese já implica a idéia de
desdobramento.” (MELLO, 2000, p.112).
Então, assim como Deus desdobra-se no universo, o sujeito-autor, também através
do ato de criar, desdobra-se em seus personagens, que se tornam seus reflexos.
108
O eu dual, segundo Mello (2000), é tema recorrente na literatura. Originou-se na
filosofia platônica ( O Banquete), com o mito do homem andrógino, composto pelos
gêneros masculino e feminino ao mesmo tempo. Tendo ameaçado os deuses, o homem
perdeu essa condição original de perfeição e foi cindido, condenado a buscar sua metade
incessantemente. Dessa busca teria surgido o amor, que une as metades e é o responsável
pelo resgate da antiga perfeição. A autora refere-se ainda à abordagem do tema do duplo
no Romantismo. Cabe ressaltar suas palavras:
A imagem do desdobramento, como a revelação do lado desconhecido do
homem, é muito explorada pelos românticos, que a representam através de
um companheiro do herói que encarna sua outra face, que pode ser a mais
autêntica, a mais espontânea ou até a mais vergonhosa. É no Romantismo
alemão que esse tema do ser cindido em dois, do encontro do Outro –
estrangeiro íntimo que habita o homem – ganha ressonâncias trágicas e
fatais: ele torna-se o adversário, o inimigo que nos desvia do caminho certo
e que é preciso combater.”(MELLO, 2000, p.117)
As palavras da autora parecem aplicar-se aos companheiros Macário e Penseroso,
sendo um a extensão do outro. Penseroso morre, comprovando a necessidade de excluir
uma das metades, a saber, a mais ingênua, otimista e sentimental.
De acordo com nossa análise, no entanto, não se pode afirmar que a morte de
Penseroso implica na vitória de Macário, pois na obra constatamos não somente instantes
de delimitação de posicionamentos em dois perfis distintos, como vários teóricos já
notaram (Macário é o cosmopolita, o cético, o desregrado, enquanto Penseroso é o
nacionalista, o crente, o comedido), mas também podemos perceber vestígios do
pensamento de Macário manifestando-se em Penseroso e vice-versa, numa espécie de
dissolução da dicotomia eu/outro – aspecto que não foi contemplado por autores como
109
Candido (1975) e Cavalheiro (1999), por exemplo, que se limitaram a apresentar as
contradições dos personagens, como se fossem dois pólos opostos entre si.
Macário, às vezes tão decidido, aparece relutante em algumas ocasiões, denotando
indecisão entre fé e ceticismo e demonstrando sentimentos idealizados de amor. Penseroso,
por sua vez, representante de uma esperança aparentemente infindável, também hesita e se
mostra pessimista, chegando ao ponto de tirar a própria vida.
Podemos associar esses instantes de fusão dos perfis à existência plena do sujeito-autor,
agora não mais fragmentado. No intervalo entre Macário e Penseroso, identidade e
alteridade aparecem, portanto, unificadas e as metades, antes incompletas, como as dos
mitos antigos, enfim se complementam.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao sugerir os termos “drama”, “comédia” e “dialogismo” para designar a obra
Macário, Álvares de Azevedo revela uma ambivalência que acaba por se constituir como
uma das marcas fundamentais do seu texto. Ela é percebida em vários momentos: a
presença de elementos sobrenaturais misturando-se à realidade, a miscelânea de traços
cômicos e trágicos, a inserção de assuntos que contrariam as convenções dramáticas, como
uma discussão sobre literatura, desencadeada por um fator externo (um livro presenteado a
Penseroso por Macário), bem como as “Páginas de Penseroso”, destinadas à justificação de
seu suicídio. As unidades de tempo e espaço não são respeitadas e a ação não chega ao fim
– aspectos esses que comprovam que a obra não segue os ditames da antiga dramaturgia.
Diante dessa “riqueza polimorfa” (SILVA, 1976, p.486), objetivamos analisar de
que maneira a heterogeneidade no âmbito do gênero discursivo em questão teria
desdobramentos sobre a relação sujeito-autor e personagens.
A hipótese segundo a qual o hibridismo em Macário presente nas dispersões de
gênero reflete-se sobre a relação sujeito-autor e personagens foi verificada na análise.
Depois de examinarmos, em um primeiro momento, as características formais do drama e,
em seguida, seu nível conteudístico, a partir das vozes de Macário e Penseroso enquanto
divisões da voz do sujeito-autor, constatamos que a mistura não se deu apenas no nível
estrutural (trágico/cômico; drama/narrativa), mas também no que concerne ao conteúdo,
através das vozes mescladas dos personagens centrais.
Nossa fundamentação teórica consistiu, principalmente, dos estudos das noções de
dialogismo bakhtiniano e de heterogeneidade discursiva, de Authier-Revuz. A relação
sujeito-autor e personagens foi abordada baseando-se nos postulados de Bakhtin (o
princípio da exotopia ) e Foucault ( a função autor).
111
Constatamos, durante a análise, a circulação de vozes díspares que representavam
circunscrições dos personagens em posicionamentos opostos entre si.
Nessa batalha lingüística, nenhum dos posicionamentos revelou-se vitorioso,
negando assim a existência de um sujeito uno, fonte do dizer. Parece que, ao inacabamento
da obra, Azevedo associou o inacabamento das vozes. Incompletas em si mesmas, elas
foram organizadas de maneira a não haver uma sobreposição de qualquer uma delas e,
dessa forma, não concluir as discussões levantadas. Tudo é impasse.
Inacabamento da obra, inacabamento das vozes. À maneira de Azevedo, também
essa dissertação é necessariamente inacabada. Evitamos concluir, oferecendo respostas
definitivas às indagações feitas; procuramos apenas propor algumas considerações. Nossa
proposta consiste, então, em afirmar que o sujeito-autor, tendo sua voz desdobrada nas
vozes dos dois personagens, é o elemento que procura promover a harmonização entre os
pares antitéticos, embora não atinja seu objetivo. Esse aspecto pôde ser observado na
coexistência dos pensamentos díspares em um só personagem: nas entrelinhas dos dizeres
de Penseroso, encontramos Macário, assim como nas entrelinhas dos dizeres de Macário,
deparamo-nos com Penseroso.
Macário e Penseroso não representam, portanto, dois pólos opostos e estanques: em
alguns momentos, percebemos um fluir de um a outro pólo, numa tentativa de buscar o
equilíbrio, a harmonia (que, contudo, não se estabelece no homem romântico.)
Ciente de sua fragmentação, o sujeito-autor procura, paradoxalmente, a plenitude –
e é nos raros momentos de interseção dos posicionamentos que ele a atinge. Podemos
representar essa situação da seguinte maneira:
112
Observamos que o sujeito-autor está nos limiares dos seus personagens,
abrangendo, ao mesmo tempo, uma parte de cada perfil. É o elo entre as duas faces da
medalha, aludidas por Álvares de Azevedo no prefácio à segunda parte da Lira dos Vinte
Anos. Antes em condição de desdobrado, cindido, pela interseção ele agora se unifica,
torna-se novamente centro. Nesse centro, o eu e o outro complementam-se, na tentativa de
superação de ser “ímpar”, na busca ininterrupta de ser “par”.
Refletir sobre a questão do eu e sua ânsia pelo outro é espelhar a própria condição
humana, também fragmentária; é flagrá-la em suas aspirações, seus medos e contradições,
à procura da paz, do equilíbrio, do autoconhecimento proporcionado via alteridade.
MACÁRIO PENSEROSO
SUJEITO-
AUTOR
113
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