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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LITERATURA BRASILEIRA & TEORIAS DA LITERATURA
O DOCE & O AMARGO DO SECOS & MOLHADOS:
poesia, estética e política na música popular brasileira
VINÍCIUS RANGEL BERTHO DA SILVA
Orientadora: Professora Doutora Matildes Demetrio dos Santos
NITERÓI
MARÇO / 2007
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VINÍCIUS RANGEL BERTHO DA SILVA
O DOCE & O AMARGO DO SECOS & MOLHADOS:
poesia, estética e política na música popular brasileira
DISSERTAÇÃO ENTREGUE À
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
(CENTRO DE ESTUDOS GERAIS /
INSTITUTO DE LETRAS / COORDENAÇÃO
DE PÓS-GRADUAÇÃO) COMO REQUISITO
FINAL PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE
MESTRE EM LETRAS (ÁREA DE
CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS DE
LITERATURA / SUBÁREA: LITERATURA
BRASILEIRA & TEORIAS DA LITERATURA /
LINHA DE PESQUISA: LITERATURA E
OUTRAS ARTES).
Orientadora: Professora Doutora Matildes Demetrio dos Santos
NITERÓI
MARÇO / 2007
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VINÍCIUS RANGEL BERTHO DA SILVA
O DOCE & O AMARGO DO SECOS & MOLHADOS:
poesia, estética e política na música popular brasileira
Defendida em 29/03/2007
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________________________
Professora Doutora Matildes Demetrio dos Santos (Orientadora)
Universidade Federal Fluminense - UFF
______________________________________________________________________
Professora Doutora Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
______________________________________________________________________
Professor Doutor Pascoal Farinaccio
Universidade Federal Fluminense - UFF
______________________________________________________________________
Professora Doutora Eliane Vasconcellos Leitão (Suplente)
Fundação Casa de Rui Barbosa - FCRB
______________________________________________________________________
Professor Doutor Fernando Oliveira Mendes (Suplente)
Universidade Estadual Paulista UNESP
“Ao lado do doce, outra vez, o amargo”.
CAETANO VELOSO (2003 II: 22)
À Norma, por iluminar o passado e o presente;
Ao Nilton, por iluminar o presente e o futuro;
E à Rosana, por iluminar as três esferas do tempo.
Em todos estes anos de pesquisa, é impossível não considerar o apoio das
pessoas aqui citadas para a realização deste trabalho. Foram intensos anos de labuta,
árduos com o eterno gosto do doce e a eterna frustração do amargo, desde o final da
Graduação em Letras na Universidade Estácio de Sá (UNESA) até a conclusão dos
estudos de Pós-Graduação em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários /
Subárea de concentração: Literatura Brasileira & Teorias da Literatura) na Universidade
Federal Fluminense (UFF). Por isso, meus mais que sinceros agradecimentos:
À Matildes Demetrio dos Santos, minha estimada Orientadora, acima de tudo:
sua figura de paz, sua ética profissional exemplar, seu entusiasmo permanente em
acreditar na viabilidade desta pesquisa, a mais do que infinita paciência em me auxiliar
com a reflexão e, principalmente, com a redação deste trabalho, sempre indicando
leituras muito pertinentes durante a pesquisa, emprestando seu material, além de sempre
demonstrar incentivo nos momentos mais penosos desta trajetória. A ti agradeço não só
pela importância da enorme lição aprendida, como também pela sua seriedade
profissional e a fundamental transparência;
Ao casal Emília e Leonildo Serra por, acima de quaisquer obstáculos, terem me
acolhido, de forma incondicional, com todo o carinho e de braços abertos na monstruosa
cidade de São Paulo em uma das fases mais delicadas da minha caminhada enquanto ser
humano, sem deixar de oferecer total apoio em muitos momentos;
À Rosana Barbosa, por, primeiramente, ter idealizado uma comunidade virtual
dedicada a Ney Matogrosso no Orkut que me trouxe novos amigos e muita informação
para a feitura deste trabalho e, principalmente, pelo privilégio único da amizade, dos
momentos inesquecíveis juntos, o carinho e toda a ajuda nesta caminhada;
À Márcia Hack, pelos materiais, pelos presentes e, acima de tudo, pelo
entusiasmo;
À Heloísa Mota e Marcelo Barbosa pelas conversas, pela convivência e pela
enorme consideração mútua de ambas as partes;
À jornalista Cléo Tassitani e Annete Conraddi, irmã de Gerson Conrad, por
terem sido fundamentais em uma das etapas mais importantes desta pesquisa;
À Norma Lima, por ter sido a primeiríssima pessoa a acreditar na possibilidade
deste trabalho existir e por sugerir algumas idéias para ele no início desta caminhada. E,
acima e apesar de tudo, pela importantíssima convivência lado a lado;
À Renata Emily Fonseca Rodrigues, amiga mais do que amiga, irmã mais do que
irmã, eterno porto seguro e eterna garantia de uma amizade que transcende, como
escreveu Drummond, “o tédio, o nojo e o ódio”;
À Karina e Erika Rhomberg Costa, Antonio Fábio Pontes de Araújo (Fabinho),
Ana Paula Ozi, Fabiana Portela, Thaís e Cida Bovo, Fabíola Rocha Bueno, Gabriela e
Luiz Carlos Medelo, Lilian Severino, Camila Santos e outros amigos paulistanos (ou
não) mais que queridos pelo apoio, pelas risadas e, lógico, pelos momentos inenarráveis
juntos;
À Andressa Magalhães, amiga de muitos anos um tanto distante fisicamente,
mas sempre dentro do meu coração;
A Leandro Vallim e Dino Voss, pelo apoio inconteste e pela oportunidade
indescritível de escutar o som de “Homem de Neanderthal” ecoando pelos quatro cantos
da casa;
À Laudicéa Paulo, Solange Cerqueira, Cristine Alves, companheiras de trabalho
e solidão, e a outros colegas que também trilharam ou ficaram pelo meio deste caminho
acadêmico repleto de rosas e incontáveis espinhos;
Aos Profissionais da Pós-Graduação em Letras da UFF (Corpo docente e
Secretaria da Pós-Graduação) pelo aprendizado, pelo atendimento, pela boa vontade e,
principalmente, pelo rigor necessário para as pesquisas;
Aos Meus alunos de ontem, hoje e sempre, por terem me ofertado a
oportunidade da convivência em todas as instituições onde atuo e já atuei;
Aos professores Maurício Martins do Carmo, Ângela Maria Fabiana Mendes e
Francisco José Neiva Lacerda, por terem composto a Banca Examinadora da
primeiríssima versão deste trabalho no final da Graduação pela Universidade Estácio de
Sá e por ter oferecido contribuições fundamentais para a continuidade das pesquisas;
Aos professores Carmen Lúcia Negreiros de Figueiredo (UERJ) e Pascoal
Farinaccio (UFF), por terem composto a Banca de Qualificação do projeto deste
trabalho, pelas valiosas sugestões e, acima de tudo, por terem lido o volumoso produto
final destes anos de pesquisa;
Aos professores suplentes da banca examinadora de meu exame final de
Mestrado, Eliane Vasconcellos Leitão (FCRB) e Fernando Oliveira Mendes (UNESP),
por aceitarem o convite para serem suplentes e pela imensa boa vontade;
À Minha Família, especialmente meus pais Orlando Bertho da Silva &
Elizabeth Rangel Bertho da Silva, minha tia-avó Maria da Graça Rangel Brandão e
minha avó Magaly Fernandes Rangel por tudo que fizeram por mim;
Ao meu avô, Adhemar Carlos Rangel Filho e minha tia-avó, Marlene Rangel
Pinheiro (in memoriam), por terem tido papel fundamental na minha formação cultural,
ética e crítica;
Ao Gerson Conrad, por também ter se disposto a falar sobre sua experiência
enquanto integrante do Secos & Molhados, e por ter composto ao lado de João Ricardo
e Ney Matogrosso, uma das páginas mais cintilantes de nossas artes. Aos três eu dedico
o meu mais profundo e sincero agradecimento;
À Luhli, artista estimada, talentosa, íntegra e digna de nossa total admiração,
pelo carinho e por ter concedido um depoimento importantíssimo para a conclusão deste
trabalho;
E last, but never least, ao Nilton M. Serra, por ter trazido o “Pó de
Pirlimpimpim” e por jamais se esquecer de iluminar “a dança, a roda, a festa”!!!
RESUMO
Este trabalho possui o objetivo primordial de analisar o impacto artístico
provocado pela obra do grupo musical Secos & Molhados, cuja formação original
(Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso) existiu entre 1971 e 1974. Para que
se estabeleça uma estratégia de análise, duas medidas são necessárias:
- Argumentar que a letra de música pode adquirir um valor estético tão
significativo quanto a poesia da “série literária”, restrita ao universo da página do livro;
- Construir um olhar paradigmático acerca dos acontecimentos políticos,
culturais e estéticos dos anos 50, 60 e 70 a Bossa Nova e o seu desprezo pela tradição
musical brasileira, o surgimento da canção de protesto em um ambiente cultural
intensamente marcado por debates acerca da ideologia de nossas artes perante o
recrudescimento do regime militar, da música popular influenciada pela emergente
indústria televisiva, da “Era dos Festivais” e as conseqüentes contradições ideológicas
advindas destas três vertentes musicais; o acirramento das discussões sobre o
“nacionalismo musical” e o surgimento decorrente do Tropicalismo; o estado de choque
cultural provocado pelo acirramento da ditadura militar a partir de 1968 e a resistência
ideológica por parte de vários artistas da canção em meio à repressão moral e política e
ao “nacionalismo” exacerbado pelo ufanismo patrocinado pelas autoridades.
Outro recurso utilizado para as análises deste trabalho é o levantamento de fatos
historiográficos do grupo Secos & Molhados de forma que explicitemos o impacto
musical e visual de suas canções e de performances ao vivo. Por outro lado, é
importante investigar como se tornou possível o aparecimento deste fenômeno musical
em termos de “cultura de massa” e “sociedade do espetáculo”: a música popular
televisionada, o aparato industrial o crescimento das gravadoras e a reificação da
indústria do disco no Brasil a partir da década de 60. Com isso, o intuito desta
investigação não reside apenas na análise das canções, mas na discussão da
performance anárquica, provocativa e altamente construtiva do conjunto, ao aglutinar
diferentes tendências musicais e estéticas (poemas de autores consagrados, teatro
Kabuki), derrubando as fronteiras que separavam a contracultura da MPB tradicional,
conquistando ao mesmo tempo o público consumidor de Rock ‘n’ Roll e uma camada
mais intelectualizada da sociedade brasileira.
Palavras-chave: Secos & Molhados; Poesia; Letra; Música Popular Brasileira.
ABSTRACT
This work has the prime objective to analyze the artistic impact provoked by
the musical group Secos & Molhados, which original line-up (Gerson Conrad, João
Ricardo and Ney Matogrosso) existed between 1971 and 1974. To establish an analysis
strategy, it is necessary to take two steps:
1st - To prove that the song lyrics can acquire an aesthetic value as
significative as the poetry which belongs to the literary series, restricted to the books
page universe;
2nd - To construct a paradigmatic view above the politic, cultural and
aesthetic events of the 50s, 60s and 70s - the Bossa Nova and its disregard by the
Brazilian music tradition, the appearance of the Brazilian protest song in a cultural
environment taken by debates concerning the ideology of our arts in the presence of the
rising of the military regimen, the popular music influenced by the emerging TV
industry, the Era of the Festivals and the consequent traditions succeeded from these
three musical versants; the hardening of the discussions concerning the musical
nationalism and the arisen appearance of Tropicalism; the cultural shock status
provoked by the hardening of the military dictatorship since 1968 and the ideological
resistance of many of our popular music artists in the middle of the moral and politic
repression and the exacerbated nationalism sponsored by the Brazilian officials.
Another kind of resources used for the work’s analysis is the survey of Secos
& Molhados’ historiography facts so as to explicit the musical and visual impact of its
songs and live performances. On the other hand, it is important to investigate how the
appearance of this musical phenomenon became possible in terms of mass culture
and society of spectacle: the broadcasted popular music, the industrial pomp the
growth of the music companies and the consolidation of the record industry in the 60s.
To sum up, the intention of this investigation doesn't abide only in the analysis of the
group songs, but in the discussion of the band’s anarchic, provocative and highly
constructive performance, as it agglutinates different musical and aesthetic tendencies
(consecrated authors poems, Kabuki theatre), destroying the frontiers which separate
underground from traditional Brazilian Popular Music, conquering at the same time the
RocknRoll consumers and a more intellectualized layer of the Brazilian society.
Key-words: Secos & Molhados; Poetry; Lyrics; Brazilian Popular Music.
SUMÁRIO
PRÓLOGO ......................................................................................................................... 1
1. ENTRE O SOM & O PAPEL ............................................................................................ 8
1.1 CANTO + PALAVRA = POESIA ......................................................................... 9
1.2 A ASCENSÃO DA ESCRITA E O EXÍLIO DO SOM ................................................. 11
1.3 APÓS O DIVÓRCIO, A RECONCILIAÇÃO ........................................................... 15
1.4 POLÊMICAS INTELECTUAIS ........................................................................... 20
1.5 ALGUMAS QUESTÕES METODOLÓGICAS ......................................................... 29
2. DESAFINOS, PROTESTOS & DISSONÂNCIAS: UM BREVE PERCURSO DA MODERNIDADE
MUSICAL BRASILEIRA .................................................................................................... 38
2.1 DESAFINOS POÉTICO-MUSICAIS .................................................................... 39
2.2 AGRESTES PROTESTOS .................................................................................. 43
2.3 DISSONÂNCIAS IDEOLÓGICO-MUSICAIS ......................................................... 71
3. A BANDEIRA DESFOLHADA: A MARGINÁLIA TROPICALISTA & O DESFOLHAR DA
BANDEIRA ....................................................................................................................... 89
3.1 O ANO DO DESFOLHAR ................................................................................. 90
3.2 DO PÃO PARA AS MASSAS AO SAUDOSISMO FORÇADO ................................... 118
4. DEUSES & O DIABO NA TERRA DA FALTA DE AR: A DITADURA MILITAR & O
DESCOLORIR DA BANDEIRA ......................................................................................... 170
4.1 A FIGURA DIABÓLICA, DEFINITIVAMENTE, EM CENA! .................................... 171
4.2 AS TRAPAÇAS DOS DEUSES .......................................................................... 184
5. HISTÓRIA DE UM SONHO IRREPETÍVEL (OU UM ESBOÇO BIOGRÁFICO SOBRE O SECOS
& MOLHADOS) ............................................................................................................ 235
5.1 – ANTES DO VÔO... ....................................................................................... 236
5.2 A AVE PASSEIA... ........................................................................................ 249
5.3 APÓS O DELÍRIO... ..................................................................................... 308
6. TRATADOS ROMPIDOS, RITOS TRAÍDOS (OU UMA LEITURA DAS CANÇÕES DO SECOS
& MOLHADOS) ............................................................................................................. 333
6.1 PRESSUPOSTOS PARA A COMPREENSÃO DE UMA POÉTICA DO GRITO ............ 334
6.2 AMARGAS PRIMAVERAS ............................................................................... 363
6.3 DOCES PRECES .......................................................................................... 384
EPÍLOGO ...................................................................................................................... 403
ANEXOS ........................................................................................................................ 408
ANEXO I “SECOS & MOLHADOS (LUIZ CARLOS MACIEL) ............................ 409
ANEXO II “ENCARTE DO LP SECOS & MOLHADOS AO VIVO NO MARACANÃZINHO -
1980” (GERSON CONRAD) ................................................................................. 410
ANEXO III “A MAGIA DO SECOS & MOLHADOS (VINÍCIUS RANGEL BERTHO DA
SILVA) ............................................................................................................... 414
ANEXO IV DISCOGRAFIA SECOS & MOLHADOS / FICHA TÉCNICA, CRÉDITOS E
LETRAS
SECOS & MOLHADOS (1973) .............................................................. 419
SECOS & MOLHADOS (1974) .............................................................. 423
SECOS & MOLHADOS AO VIVO NO MARACANÃZINHO (1980) ................ 426
SÉRIE DOIS MOMENTOS (1999) ........................................................... 427
SECOS & MOLHADOS (2008) .............................................................. 429
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 432
A. FONTES DE REFERÊNCIA CIENTÍFICA ................................................ 433
B. TEXTOS DE PERIÓDICOS
JORNAIS .......................................................................................... 444
REVISTAS ........................................................................................ 446
SITES DA INTERNET ........................................................................ 448
C. DISCOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................ 451
1
P
P
R
R
Ó
Ó
L
L
O
O
G
G
O
O
2
Rompi tratados,
traí os ritos.
Quebrei a lança,
lancei no espaço:
um grito, um desabafo.
E o que me importa
é não estar vencido.
João Ricardo & Paulinho Mendonça
1
As pesquisas que originaram o texto aqui presente tiveram início em meados do ano
de 2003, quando eu estava no último ano da Graduação. Na ocasião, estava às voltas com
um dilema que há muito me assolava o assunto a ser trabalhado em uma Monografia de
final de curso (trabalho que logicamente exigiria uma dedicação ímpar) e que me daria o
título de Licenciado em Letras (Português / Inglês). A dúvida há muito tempo era sinônimo
de total angústia, visto que um outro projeto monográfico sobre o teatro brasileiro
contemporâneo teve que ser obrigatoriamente e contra a vontade do jovem pesquisador
aqui a escrever engavetado, obrigando-me a procurar por um outro professor a orientar
meu então futuro trabalho.
Na etapa final de meus estudos, tive a oportunidade de me matricular em uma
disciplina eletiva chamada Literatura Popular. Ao me descobrir inscrito, comecei a me
refletir a respeito de questões as quais poderiam ser discutidas no decorrer de um semestre.
Ler e analisar a produção literária fora do cânone foi justamente o fato que me deixou mais
animado em fazer o curso. Dentre todas as obrigações de um discente ao concluir um curso
de Graduação, havia a necessidade de apresentar uma avaliação final e, naquela
oportunidade, fui levado a apresentar dois trabalhos sobre os textos debatidos durante as
aulas. O primeiro foi uma análise sobre a obra poética de Patativa do Assaré. O segundo
seria um estudo analítico acerca de um texto literário de livre escolha.
1
IN: Secos & Molhados, Secos & Molhados (1973).
3
Minha paixão pela canção popular se deu desde minhas primeiríssimas memórias.
Cenas de minha infância estão irremediavelmente ligadas a versos e sons; havia vitrolas em
qualquer lugar onde estivesse (seja na residência de meus pais, tios ou primos, seja na casa
de meus avós), o que fez com que a música sempre estivesse presente em minha vida,
mantendo o arco da memória teso, vivo. Ao iniciar meus estudos em Letras com 19 anos de
idade (2000), descobri de vez a força poética da “MPB” através dos trabalhos de Caetano
Veloso e Chico Buarque de Hollanda, além da relevância acadêmica presente nos estudos
sobre o assunto. Encontrei, a partir de então, uma maneira de aliar o cientificismo
necessário em qualquer trabalho acadêmico e a paixão necessária para que um estudo seja
bem-sucedido. As obras mais notáveis de nomes como Elis Regina, Maria Bethânia, Raul
Seixas e Rita Lee sempre estiveram mais do que presentes em meu inconsciente desde, pelo
menos, meus 11 anos, mas foi a marcante presença de Ney Matogrosso à frente ou não do
Secos & Molhados, grupo que o revelou para o grande público que me deixava, ao
mesmo tempo, encantado e intrigado.
Em julho de 2000, tive a oportunidade de adquirir um CD lançado pela gravadora
Continental que inaugurava a Série Dois Momentos, na qual dois álbuns foram lançados em
formato digital, remasterizados e veiculados ao grande público. Tratava-se de dois LPs do
grupo Secos & Molhados, que receberam um tratamento respeitoso e finalmente saíram em
CD o primeiro álbum, o das “cabeças cortadas”, já tinha tido edições de qualidade
inferior em compact disc enquanto o seu sucessor nunca tinha sido lançado neste formato.
O repertório soava encantador e intrigante para mim não somente por causa das
interpretações de Ney Matogrosso, mas principalmente pela qualidade poética daquelas
composições. Por isso, decidi que estudar a trajetória artística deste grupo seria a conclusão
ideal para o curso de Literatura Popular, como também de meu projeto monográfico final.
No dia 17 de dezembro de 2003 (exatamente 31 anos após a estréia do Secos &
Molhados nos palcos), foi defendida a monografia O Doce & O Amargo do Secos &
Molhados na Universidade Estácio de Sá (UNESA), Campus Rebouças. Ao final da defesa,
os professores Maurício Martins do Carmo (que aceitou orientar a primeira versão deste
trabalho), Ângela Maria Fabiana Mendes e Francisco José Neiva Lacerda escreveram na ata
do trabalho que as pesquisas mereciam prosseguimento em meus estudos de Pós-
Graduação.
4
Em abril de 2004, iniciei o Mestrado em Letras (Área de Concentração: Estudos
Literários / Subárea: Literatura Brasileira e Teorias da Literatura) na Universidade Federal
Fluminense (UFF), depois de ter enfrentado uma concorridíssima seleção. Acreditei que o
projeto tinha relevância acadêmica pelo seu ineditismo e, principalmente, pelas inevitáveis
polêmicas em torno do tema proposto, apesar de vozes dissonantes afirmarem que o tema
jamais conseguiria um professor orientador. Para minha surpresa e felicidade, Matildes
Demetrio dos Santos decidiu orientar esta pesquisa e me incentivou a abordar o tema que
envolvia literatura, política e cultura brasileiras.
Entretanto, não seria tarefa das mais simples explorar a complexidade e o impacto
do Secos & Molhados, um grupo considerado bastante moderno à época de seu surgimento.
Por isso, esta análise teve início com uma investigação das relações entre a palavra poética
escrita e a palavra cantada a partir de um enfoque histórico. Como a escrita e o som, que no
início dos tempos viviam lado a lado, deixaram de se relacionar? O que explica a
aproximação destas em meio a uma cena Pop no decorrer do século XX, deixando as
noções de erudito e popular para trás? Quais foram as contribuições dos primeiros analistas
da música popular produzida no Brasil para os estudos literários? Em suma, como explicar
a tradição da canção popular enquanto palavra poética cantada no Brasil? A primeira etapa
deste trabalho, Entre o som e o papel, tenta responder algumas destas dúvidas.
Já no capítulo seguinte, Desafinos, Protestos & Dissonâncias: um breve percurso
da modernidade musical brasileira, a intenção é de traçar um perfil da música popular
produzida no Brasil a partir de 1958, quando surgiram os músicos que, tempos depois,
fizeram da Bossa Nova uma das expressões musicais (e poéticas) mais conhecidas no
cenário internacional. João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes (além da
marcante presença feminina de Nara Leão) foram os nomes principais deste momento ao
renovar o cenário poético-musical brasileiro e os grandes responsáveis pela modernização
da canção brasileira. A Era do Rádio, aos poucos, ficava para trás, enquanto o governo JK
era sucedido pela gestão de Jânio Quadros e João Goulart. O país ficava mais inquieto
mediante certas transformações no cenário político-econômico e social e os artistas da
canção se mostravam atentos à necessidade de instaurar as chamadas “Reformas de Base”.
No início da década de 60, o CPC, organizado pela União Nacional dos Estudantes
(UNE), trouxe uma geração de músicos insatisfeitos com o panorama político-social do
5
Brasil e dispostos a mudar, através de seus versos engajados, aquela situação. O otimismo
propagado por Juscelino Kubitschek e as imagens líricas da primeira fase da Bossa Nova
deram lugar à canção de protesto, preocupada em denunciar as falhas e contradições da
nação brasileira, além de valorizar obras que estivessem ligadas a um projeto de
nacionalidade samba de morro, música nordestina, teatro popular, etc. Reler o país era
uma necessidade primária daquele grupo, porém o Golpe de 1964 provocou uma ruptura
com estes ideais utópicos. A partir de então, ainda era possível veicular protestos, desde
que as grandes massas não fossem mobilizadas para tal.
A TV brasileira, após a tomada do poder estatal pelos militares, se tornou cada vez
mais forte e descobriu na música popular produzida no Brasil um modo de atrair as mais
variadas faixas de público. Em pouco tempo, nomes como Elis Regina, Roberto Carlos,
Chico Buarque, Geraldo Vandré e outros se tornaram, graças às suas aparições na telinha,
extremamente conhecidos pelos brasileiros em meio a embates ideológicos intensos que
discutiam se o Rock internacional dos Beatles poderia ser absorvido por músicos do
programa Jovem Guarda sem trair a noção de nacionalidade.
Como será possível notar no decorrer deste trabalho, o ano de 1967 foi decisivo na
construção de uma música brasileira aberta a determinadas inovações estéticas presentes no
cenário internacional. Todavia, era preciso a formação de uma terceira via de combate para
que as discussões acerca do nacional na canção popular encontrassem relevância
necessária. O Tropicalismo não apenas trouxe uma vitalidade acerca destas questões, como
também afirmou uma nova geração de artistas na cena musical do Brasil, além de brindar o
público uma poética inovadora para aquele momento histórico. A Bandeira Desfolhada: a
marginália tropicalista e o desfolhar da bandeira é o capítulo que aborda as questões
principais propostas pelo movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
O Ato Institucional n.º5 foi o início de uma série de arbitragens comandadas pelo
Governo Federal. Ao ser promulgado, em 13 de dezembro de 1968, o Brasil atravessou
uma das etapas mais sombrias de sua História: vários artistas foram exilados, diversos
militantes de esquerda foram presos, torturados e mortos, os meios de comunicação
passaram a funcionar sob censura prévia e a cultura do período ficou asfixiada pela
repressão imposta pelos militares. O artista, que adotasse uma postura crítica perante os
acontecimentos daquela época, era sinônimo de marginal ao olhar vigilante dos órgãos
6
censores. Ao efetuar uma resposta às investidas do Estado, a chamada “linguagem da
fresta” ou seja, uma linguagem que se utiliza de metáforas, alegorias e outros recursos de
fuga do veto autoritário revelou-se como a única arma de resistência destes
“marginalizados”. É este o foco de Deuses & O Diabo na Terra da Falta de Ar: a ditadura
militar e o descolorir da bandeira.
As quatro primeiras partes deste texto compõem uma reconstituição detalhada do
contexto no qual o Secos & Molhados surgiu diante dos olhos do grande público, em
meados do ano de 1973. No entanto, ainda havia a necessidade de contar a trajetória do
grupo desde os primeiros de sua formação, no início da década de 70 até a conturbada
separação da formação clássica do conjunto em agosto de 1974, momento no qual Gerson
Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso desfrutavam de extensa popularidade de forma
que nossas análises não resvalassem em determinadas imprecisões. Para a construção da
História de Um Sonho Irrepetível, recebemos dois honrosos depoimentos: o de Gerson
Conrad em 02/10/2005 e o de Heloísa Orosco Borges da Fonseca, a Luhli em 26/01/2006
contribuições fundamentais para estas pesquisas. As reflexões que resultaram no volume
que aqui se apresenta também foram norteadas pela análise de diversos documentos de
época, da biografia de Ney Matogrosso (“Ney Matogrosso: um cara meio estranho”, de
Denise Pires Vaz) e de outros textos específicos sobre o assunto.
Por fim, o capítulo Tratados rompidos, Ritos traídos é uma tentativa de análise dos
dois primeiros LPs do grupo. Nesta etapa, a proposta inicial é a de desconstruir
determinados mitos em torno do Secos & Molhados e de reler as canções a partir dos
enfoques de liberdade (o que entenderíamos como o doce que dá nome ao trabalho
presente) e opressão (o que estaria compreendido, por sua vez, como o amargo). Na medida
em que a Poética do grito é largamente exemplificada, é possível notar que Gerson Conrad,
João Ricardo e Ney Matogrosso se integraram (conscientemente ou não) ao projeto de
resistência compartilhado pelos nomes mais notáveis da “MPB” e foram responsáveis por
um dos momentos mais importantes da Cultura Brasileira contemporânea, não apenas pela
qualidade musical e poética de seu trabalho, mas principalmente por terem se revelado
como um dos maiores exemplos de resistência no decorrer da década de 70. Apesar da curta
duração, a magia surgida em 1973 não deixou de acontecer; ela ainda tem a capacidade de
7
encantar novas gerações e compor o retrato de uma época da História do Brasil manchada
pelas tintas negras da repressão.
8
1
E
E
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Vô fazê, vô fazê
Música pra enriquecer (o quê)
Os corações e o planeta
Basta um papel e uma caneta
Pedro Luís
2
1.1 - CANTO + PALAVRA = POESIA
No alvo recer do século XXI, ainda é notável uma diferença de opinião entre a
palavra poética, que figura nas páginas de um livro, e aquela destinada à música popular.
Mesmo com os versos contidos na produção musical de um Chico Buarque de Hollanda,
por exemplo, esta produção parece ter um valor artístico menor quando comparado com a
produção de um poeta famoso por suas realizações literárias e livros publicados.
No entanto, o caráter primordial da arte poética enquanto linguagem é o de
disponibilizar para o meio social toda e qualquer espécie de informação. Ao nos
remetermos à Antiguidade, observamos que é a oralidade que mantém este processo
comunicativo em funcionamento, assegurando, assim, a perpetuação das tradições e da
cultura. Na Antiga Grécia, por exemplo, a poesia era apresentada nas ruas e tinha
acompanhamento musical os instrumentos que geralmente eram utilizados nestas
performances eram a flauta e a lira, daí o surgimento do termo poesia lírica (cf. Cara,
1998). A unidade da polis grega foi expressa pela poesia épica de Homero, que se mostrou
como o grande fundador das bases da cultura grega (e conseqüentemente de toda a cultura
ocidental) através dos ensinamentos que os versos propiciavam aos segmentos populares. A
produção poética daquele tempo estava ligada aos fatos comuns do cotidiano, tais como
cânticos dedicados à morte de alguém, cantigas de ninar, cantares de amor e outras
manifestações que retratassem euforia e/ou pesar (cf. Aragão IN Samuel, 2000: 73).
2
Os versos são de “Fazê o quê”, canção gravada por Ney Matogrosso em Olhos de farol (1999) e em
Vagabundo Ao vivo (2006 - com Pedro Luís & A Parede).
10
Deve-se ressaltar que o canto épico, apesar de refletir os anseios de toda uma
comunidade, sempre privilegiava a figura de um herói. Por isso, surgiu a necessidade de
uma expressão poética individual e, com isso, nasceu a poesia lírica, que tinha o intuito de
atender aos anseios do homem comum e não da polis como um todo. Fossem os versos
épicos ou líricos, canto e palavra andavam juntos, desprovidos de quaisquer
hierarquizações e compunham uma manifestação artística híbrida. De acordo com Salete de
Almeida Cara, “as palavras não tinham posição secundária em relação à música, mas
permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto” (Cara, 1998: 15).
Séculos depois, entre o XI e o XIII, na Europa, a região francesa de Provença
registrou uma independência da linguagem poética em relação às regras da métrica e da
gramática. A poesia lírica provençal nos trouxe a figura do trovador e a idealização
amorosa, visto que a moral cristã buscava organizar as relações sentimentais daquele
tempo, cerceando o direito de exteriorizar os tons arrebatados e eróticos de sua paixão.
Naquele continente, nomes como Dante Alighieri, Petrarca e William Shakespeare
mantiveram o legado provençal vivo na memória popular através do soneto cujo campo
semântico está intimamente intrincado com a música e etimologicamente significa
“pequeno som” (cf. Lucchesi, 2000 e Matos, 2002a). A partir desta perspectiva, a essência
do trovador é a de uma “pessoa ligada à festa, ao prazer e à alegria, e também aos
problemas, lutas e fatos que têm a ver com a coesão social das platéias a que se dirigem”
(Bueno, 1984: 62) e tinha a função de cantar os anseios e suspiros da sociedade de sua
época.
Os manuscritos presentes nos cancioneiros portugueses demonstravam que as
cantigas de amigo, de amor, de escárnio e maldizer eram altamente influenciadas pela
poesia provençal, sendo acompanhadas musicalmente, às vezes até com a presença de
coreografia; ou seja, na lírica trovadoresca, canto, performance e palavra estavam
intimamente associados, embora incomodassem as instituições cristãs da época, quando
insistiam nas temáticas realistas, de forte conteúdo erótico. Com a transformação dos
cantares épicos em narrativas cavalheirescas, a Igreja criou no século XIV o “pecado das
orelhas”. Isto significava que era proibido ter o prazer curioso da fruição estética ou
interpretar o que os religiosos definiam como “cantares vãos”. Na Península Ibérica do
século XV, por sua vez, com a proliferação dos tribunais do Santo Ofício, a Igreja
11
perseguia os que tinham o prazer de cantar ou ouvir versos amorosos, de sabor lúdico e
profano, alegando que “a música profana exercia sobre os espíritos uma sedução que
entregava suas vítimas ao impuro prazer dos sentidos. Tudo explicado pela certeza de que o
próprio demônio tocava viola (...)” (Tinhorão IN Matos et alli, 2001: 201-202).
Dessa forma, por razões políticas e morais, o canto foi, aos poucos, afastado do
verso: sai a figura do trovador para a entrada do poeta letrado em cena. Como sabemos, o
conhecimento neste período pertencia ao alto clero, ou seja, uma camada bastante
privilegiada da sociedade naquela época. A plebe, por ser vista como ignorante, jamais
poderia ter acesso aos bens culturais, já que o saber era restrito à alta hierarquia da Igreja
Católica. No espaço de tempo compreendido entre as Idades Média e Moderna, canto e
palavra raramente caminhariam juntas. A imprecisão deste momento é retratada pelos
versos de Affonso Romano de Sant’Anna:
Difícil é demarcar
o limite, o dia, o instante
em que o homem
de seu canto se destaca.
O limite, o dia, o instante
em que o homem se desfaz
da imponderável música-novelo-e-ovo
e configura-se no gesso,
e do que era um homem-canto
emerge um homem-texto (Sant’Anna, 1975: 159).
1.2 - A ascensão da Escrita e o exílio do Som
Na medida em que há um desenvolvimento da escrita literária, as manifestações
populares passaram a soar como ingênuas, superficiais e folclóricas. Paul Zumthor (apud
Matos, 2002a: 140) aponta a noção de Literatura como algo historicamente definido,
referindo-se às civilizações européias, a partir do século XVII, por isso quaisquer
manifestações que estivessem fora deste contexto não se enquadravam como “literárias”.
Posteriormente, o popular até despertaria o interesse intelectual, mas só apareceria no
território livresco como mero coadjuvante (cf. Matos, 1992: 307/308). Consumado o
12
divórcio, percebe-se traços altamente distintos entre a natureza da palavra escrita e a da
palavra cantada:
Se o canto é o eu fluindo,
a palavra é o eu pensado.
Na palavra eu sempre guio,
mas no canto eu sou guiado.
O canto é o que atinjo
(ocultamente) sem me oferecer,
é quando, de repente,
eu me descubro
sem querer
A palavra, ao contrário,
é o ato claro,
o talho e o atalho
no objeto,
embora seja como o corpo
um ser concreto
e como o mito
um ser incerto (Sant’Anna, 1975: 158).
A aparição da imprensa, no século XV, foi determinante para a cisão entre o canto e
a palavra. A tipografia se empenhou na formação de um público leitor, ávido por obter
conhecimento através de livros publicados em línguas vernaculares
3
. Ao contrário do que
se podia imaginar, poesia e música, apesar de distantes, jamais deixariam de estar
conectadas. A contribuição intelectual do poeta e crítico Octavio Paz é fundamental para
compreendermos esta problemática com um pouco mais de abrangência. Para ele, o ritmo é
algo primordial, espontâneo e permanente de toda e qualquer forma de linguagem. Por isso,
não podemos trabalhar com a hipótese de que, com o exílio do som da matéria poética
escrita, a musicalidade deixasse de existir, afinal “as palavras retornam à poesia
espontaneamente” (Paz, 1990: 12). Sobre isto, também afirmou Mikel Dufrenne em O
3
Antes do surgimento da revolucionária invenção de Gutemberg, os livros eram apenas publicados em latim e
tinham como alvo uma minoria letrada os membros do alto clero, dentre estes (cf. Espírito Santo, 2004).
13
poético: “em sua origem, é verossímil que a poesia se tenha confundido com o canto sem
que a palavra fosse outra coisa senão um ponto de apoio para a voz (...). Ao conquistar sua
autonomia e seu prestígio, o verbo poético não renuncia imediatamente ao canto”
(Dufrenne apud Espírito Santo, 2004). É importante deixar claro que ainda haveria trocas
de referências entre Alta e Baixa Culturas até a primeira metade do século XVI (cf.
Ginzburg, 2002: 20).
Quando a poesia vislumbrou, finalmente, o universo do livro, muitos pensadores
passaram a acreditar que a fruição deste objeto estético só se viabilizaria caso ela estivesse
materializada no papel. O escritor como indivíduo ligado à sociedade e a poesia próxima do
meio social paulatinamente deixaram de existir com o tempo:
Na Antiguidade, na Idade Média e no primeiro Renascimento, as concepções de
poesia e cultura cobrem um vasto território, onde são imprecisas as fronteiras entre
discursos do povo e da elite, universos público e privado. A interação entre visões
de mundo e formas de expressão eruditas e iletradas ainda pode ser percebida em
obras como as de Rabelais e de Bruegel, algumas décadas antes de Montaigne. Mas
já na segunda metade do século XVI, o vigoroso apetite humanista, disposto a
sorver conhecimento e prazer da dinâmica da vida coletiva e individual, dá lugar ao
ceticismo solitário que monologa nos Ensaios: então o mundo se deixa contemplar
à distância por um sujeito recluso em sua alta biblioteca (Matos, 1992: 318).
Alguns poetas começaram a criar seus versos em uma linguagem regida pela
métrica rígida, distinta do material popular, com o intuito de atingir a elite ilustrada. Uma
das conseqüências deste processo é o afastamento da arte de escrever do gosto popular, fato
que, no Brasil, acarreta conseqüências desastrosas:
Com efeito, o escritor se habilita a produzir para públicos simpáticos, mas restritos,
e a contar com a aprovação dos grupos dirigentes, igualmente reduzidos. Ora, esta
circunstância, ligada à esmagadora maioria de iletrados que ainda hoje caracteriza o
país, nunca lhe permitiu diálogo efetivo com a massa, ou com um público de
leitores suficientemente vasto para substituir o apoio e o estímulo de pequenas
elites. Ao mesmo tempo a pobreza cultural destas nunca permitiu a formação de
uma literatura complexa, de uma qualidade rara, salvo as devidas exceções. Elite
literária, no Brasil, significou até bem pouco tempo, não refinamento de gosto, mas
capacidade de interessar-se pelas letras (Candido, 2000: 77).
14
Na medida em que as formas clássicas se sobrepunham às baladas e rondós de
acordo com o gosto do poder, a literatura, de certa maneira, se afastou dos fatos cotidianos
e do gosto popular. Em outras palavras, as regras do sistema literário passaram a ser
regidas, com isso, pelas classes dominantes e não permitiam a circulação de manifestações
das camadas populares, relegadas à marginalidade:
O espírito da língua e da cultura não tardará a recolher-se às academias, que
tratarão de zelar por ele. A arte da palavra se afirmará como fatura, saber e poder;
como nobre artifício, luxo da civilização, ofício e disciplina do poeta ilustrado que,
“antes de escrever, deve aprender a pensar”. O cânon acadêmico, fundando-se na
emulação e praticando um discurso de palco e salão, desconsidera e/ou rejeita as
inflexões e temáticas incultas e rústicas, a não ser quando travestidas de uma
pretensa antiguidade rural. A procura de tonalidades poéticas “naturais” avança
sobre os trilhos da convenção e do decoro ilustrados, evoluindo num círculo seleto
de receptores e deixando de fora e para trás a indisciplina dos caminhos povoados
de velhas canções. Tais caminhos tornam-se invisíveis nos territórios da criação
literária cartografados e sinalizados por artes poéticas como a de Boileu. Tudo
passa a residir na nitidez das páginas escritas, nas palavras polidas e repolidas à luz
da razão, que lhes confere “seu lustro e seu preço” (Matos, 1992: 319).
Este fato é aludido também por Antonio Candido em seu ensaio O escritor e o
público: “De qualquer modo, um público se configura pela existência e natureza dos meios
de comunicação, pela formação de uma opinião literária e a diferenciação de setores mais
restritos que tendem à liderança do gosto as elites” (2000: 70). A partir da observação do
ensaísta, conclui-se que são os detentores do saber erudito que interferem e determinam os
rumos da cultura oficial no decorrer de muitos anos. Ou então são responsáveis pela
constituição de uma
prestigiosa linhagem cujos linhagem se chamarão sucessivamente clercs,
humanistas, filósofos etc. Ao lado dos criadores literários, eles formarão o mundo
dos “homens de letras”. Fechando-se o âmbito da poesia e da cultura acolhidas em
bibliotecas e constituídas em literatura, abre-se à sua margem o território inconsútil
onde murmura e ressoa a voz remota, furtiva e fugidia da “poesia popular” (Matos,
1992: 318).
15
Dessa forma, no Brasil, a palavra escrita sempre gozou da preferência das elites
culturais, geralmente, voltadas para as influências estrangeiras e indiferentes às
manifestações populares (cf. Bueno, 1984: 61).
1.3 - Após divórcio, a reconciliação...
A partir do século XX, especialmente, com a chegada do rádio e a expansão da
indústria fonográfica, do cinema e, posteriormente, a televisão e a Internet, a oralidade
presente nas manifestações populares, já privilegiadas pelo Modernismo de 1922, adquire
status importante, com compositores como Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, Ary
Barroso, interpretados por Carmen Miranda, Francisco Alves, Mário Reis, Sinhô, Aracy de
Almeida, Marília Batista, Aurora Miranda, Almirante, entre outros.
O fato é que a capacidade da canção de interagir com mais diferentes mídias permite
a ela um significativo espaço de circulação. De acordo com José Miguel Wisnik (apud
Vanna, 2003: 28), a música Pop se transforma numa plataforma de convívio do erudito e do
popular, se alimentando de “processos elaborados” típicos das vanguardas mais barulhentas
e de “processos elementares” característicos da cultura de massas. Exemplos desta premissa
são os de Jim Morrison ex-vocalista do legendário grupo de Rock The Doors, que além de
ter sido bastante influenciado pelos trabalhos de Arthur Rimbaud, Jack Kerouac e Allen
Ginsberg, também era poeta com livros publicados inclusive , Patti Smith roqueira
norte-americana, poetisa com livros publicados, crítica de Rock, além de engajada, e
Maria Bethânia que inaugurou no início da década de 70 uma parceria de sucesso com o
diretor de teatro Fauzi Arap, sempre aliando em seus principais espetáculos canções
populares com textos literários de Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Castro Alves, Mário
de Andrade, João Guimarães Rosa, por exemplo. Dentre os principais de seus trabalhos ao
vivo, destacam-se Rosa dos Ventos Show Encantado (1971), A Cena muda (1974),
Pássaro da Manhã (1977), Imitação da Vida (1997) e Brasileirinho (2003). Outros artistas
que lançaram mão de processos similares, com grande sucesso, foram Caetano Veloso e
Arnaldo Antunes, para não citar outros.
Em tempos de “indústria cultural” e de “reprodutibilidade técnica”, apenas para citar
as terminologias de Adorno / Horkheimer e Walter Benjamin, a linguagem da canção foi a
16
mais apropriada para a expressão de um novo tempo por retratar pura e simples as relações
sociais, históricas e de poder. Sobre este fenômeno, Luiz Tatit observou que a música
surgida na era dos mass media
era breve, com trechos recorrentes de fácil memorização, estimulava a dança
espontânea, caracterizava quadros passionais, transmitia recados, comentava o
cotidiano e ainda podia ser produzida em grande número, por todos que se
apresentassem como compositores, já que não dependia especialmente de
escolaridade (2006: 54).
A reflexão de Tatit se centra, basicamente, no famoso texto de Walter Benjamin, “A
obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. A relação do ser humano com a
arte foi reconfigurada no século XX na medida em que os meios reprodutivos, por exemplo,
ofertaram ao compositor popular, um público em grande escala. Com a perda da aura,
efetua-se uma relação de enorme proximidade entre a obra e o indivíduo que a consome, ou
seja, a produção artística deixa de ser um artigo cultuado por todos para ser apropriada, a
seu modo, por cada um. Ao contrário do que ocorre, por exemplo, com as artes plásticas, a
canção popular não necessita de um culto individualizado, e sim ser apreciada por um
número ilimitado de pessoas através das ondas do rádio, televisão, cinema e Internet,
levando cultura e diversão.
Ao contrário do que Guy Debord caracterizou como “sociedade do espetáculo”, é
possível encontrar poesia de qualidade em meio ao vasto material que chega todos os dias
ao mercado de consumo, embora não se possa negar que:
Um poema cantado da música popular, gravado por uma voz famosa e que faça
sucesso, vai atingir em pouco tempo milhões de pessoas, vai ser entendido e
cantado, coisa que nem o poema mais belo de língua portuguesa, impresso em
livro, poderia sonhar em toda sua carreira de palavra escrita (Bueno, 1984: 63).
De fato, foi através da produção musical brasileira que muitos adquiriram a
oportunidade de conhecer uma variante poética não comum ao universo do livro, na medida
em que a poesia ganha novos meios de divulgação e atinge um público maior, o lugar social
de onde fala o poeta é modificado para melhor:
17
E o poeta, agora na função de letrista da música popular, pode conseguir duas
coisas importantes: ser ouvido por milhões de pessoas, coisa impensável com o
livro, e pode sobreviver do seu trabalho como poeta, sem precisar recorrer a
empregos paralelos (a clássica figura do Brasil republicano: a do poeta funcionário-
público, seja como funcionário mesmo, seja como diplomata, seja como professor,
seja como pessoa ligada aos órgãos oficiais de financiamento da cultura) (Bueno,
1984: 64).
Com isso, especialistas dos mais variados campos do conhecimento passaram a
demonstrar interesse pela estética da música popular no esforço de compreendê-la e
dimensioná-la no meio social. Estudiosos da arte poética, por exemplo, ao levarem em
conta que há no poema uma determinada vocação para o canto, constataram a presença da
literariedade na letra de música. Tal interesse aparece nos estudos de Sílvio Romero sobre
o folclore, de Mário de Andrade e Câmara Cascudo e, mais recentemente, de Augusto de
Campos, com seu livro Balanço da Bossa, que reúne ensaios de sua autoria, além de
trabalhos de Júlio Medaglia, Gilberto Mendes e Brasil Rocha Brito, entrevistas com
Caetano Veloso e Gilberto Gil, uma miniantologia de Lupicínio Rodrigues e um excelente
panorama da música popular brasileira moderna (Bossa Nova, Canção de Protesto, --,
Tropicália). Publicada em 1968, a obra discute estes movimentos sem a construção de
hierarquias elitistas entre “nacional” e “estrangeiro”, equalizando erudito e popular com o
Pop, além de identificar notórias “obras e propostas de linguagem poético-musical, quanto
suas determinações e implicações culturais amplas” (Matos, 2003: 83). A ensaísta Santuza
Cambraia Naves comenta o pioneirismo de Augusto e seus parceiros:
Em Balanço da bossa, pela primeira vez deu-se um tratamento equânimes para as
músicas popular e a erudita, convencionalmente separadas nas colunas críticas dos
jornais pelos antigos critérios de “elevado” e “baixo”. Tais classificações, legadas
pela velha tradição clássico-romântica, foram embaralhadas por Augusto de
Campos e outros autores do livro, e o valor que passou a fundamentar suas críticas
pautou-se pelo critério básico da inovação. De acordo com esse critério, as músicas
eruditas ou populares eram apreciadas se resultavam de um processo criativo
experimental que provocava uma atitude de estranhamento no público, ao invés de
oferecer o já familiar a uma recepção passiva. Também é importante lembrar que
Augusto de Campos assume, neste livro, uma postura afirmativa com relação aos
18
meios de comunicação de massa, o que não traz em si nenhuma novidade, pois esta
postura é coerente com as propostas da poesia concreta, esboçadas em vários
manifestos da década de 50 (Naves, 2003: 254).
A partir da década de 70, Dissertações de Mestrado e Teses de Doutoramento sobre
música popular vieram a público, comprovando um fenômeno detectado por Silviano
Santiago em A democratização no Brasil (1979-1981) Cultura versus Arte: muitos
críticos, ao invés de recorrer única e exclusivamente à Crítica Literária, começaram a lançar
mão da Crítica Cultural para enriquecer suas análises. O intelectual, ao se ver imerso em
linguagens originalmente alheias a ele (TV, rádio e outros meios de difusão da Arte e
Cultura Pop), descobriu novos horizontes de interpretação e alia a leitura literária aos mais
diferentes fenômenos culturais. O ensaísta ainda observou que as Faculdades de Letras
(essencialmente formadoras de literatos por excelência) modificaram o seu foco de
discussão: deixaram de se dedicar ao estudo exclusivo de uma cultura ligada à minoria
letrada para investigar os meandros de uma manifestação cultural ligada às maiorias (cf.
Santiago, 2004: 142). Assim, a possibilidade de discutir temáticas ligadas ao mundo Pop é
fruto de um descentramento de uma vida cultural institucionalizada, aceita por pensadores
de prestígio e pelas universidades, por exemplo (cf. Santiago, 2000: 157), isto é, tal
mudança “resulta das constantes investidas demolidoras contra o modelo eurocêntrico e o
conseqüente enfraquecimento ou decrepitude do cânone literário ocidental” (Cunha, 2002:
95-96).
De acordo com Júlio Diniz, “no jogo das interpretações, observamos o
deslocamento de um olhar educado nas belles lettres, leitora da uma minoria letrada
esculpida no papel, para o corpo tatuado das imagens, textos, sons de uma maioria tradutora
de múltiplas identidades sociais” (Diniz, 2004: 177). A crítica cultural no Brasil encontra,
segundo Silviano Santiago, na canção popular um manancial intenso de discussões acerca
da realidade brasileira:
Em lugar de separar e isolar vivências e experiências, em lugar de introjetar o
rebaixamento cultural que lhe é imposto para se afirmar pelo ressentimento dos
excluídos, a música popular passa a ser o espaço “nobre”, onde se articulam, são
avaliadas e interpretadas as contradições socioeconômicas e culturais do país,
dando-nos portanto o seu mais fiel retrato (Santiago, 2004: 144).
19
Vários estudos foram pioneiros desta incursão analítica, como Balanço da Bossa
(Augusto de Campos, 1968), Música popular e moderna poesia brasileira (Affonso
Romano de Sant’Anna, 1976), Música popular: de olho na fresta (Gilberto Vasconcellos,
1977), Anos 70: Música popular (Ana Maria Bahiana, José Miguel Wisnik e Margarida
Autran, 1979), Tropicália: Alegoria, Alegria (Celso Favaretto, 1979), Nada será como
antes: MPB nos anos 70 (Ana Maria Bahiana, 1980), Acertei no milhar: samba e
malandragem no tempo de Getúlio (Cláudia Neiva de Matos, 1982), Eu não sou cachorro
não: música popular cafona e ditadura militar (Paulo César de Araújo, 2003), dentre
muitos outros.
Outros dedicaram sua produção intelectual ao assunto como José Ramos Tinhorão,
Adélia Bezerra de Meneses, Charles Perrone, Luiz Tatit, Pedro Alexandre Sanches, além do
próprio Silviano Santiago. Ao tomarmos consciência a respeito do assombroso número
desta produção acadêmica, comprovamos a existência de um “reaparelhamento do
intelectual diante de novas realidades, objetos de análise deslocados de seu espaço de
representação e práticas culturais encenadas por atores sociais plurais” (Diniz, 2004: 178),
o que foi fruto de um
movimento de desreferencialização do lugar do intelectual-especialista preparado
na melhor tradição humanística para exercer o papel de guardião do sublime como
essência da arte, lança para os plurais e pluralizáveis espaços da cultura a
necessidade de novas lentes com diferentes graus, menos convergentes e mais
divergentes, com certeza, radicalmente multifocais como forma de apreensão de
novos objetos. Em cheque, o crítico literário formado nas faculdades de Letras
diante da possibilidade de se travestir em crítico cultural, a talvez urgência de
esticar chãos para abrigar os tapetes que se foram (Diniz, 2004: 177-178).
Logicamente, é necessário ter a compreensão de que a palavra escrita destina-se a
ser silenciosamente lida (ou, no máximo, declamada), enquanto a palavra cantada tem,
como único objetivo, ser o discurso verbal de uma canção. Por outro lado, há dois
caminhos inversos dentre as finalidades acima levantadas. O primeiro caso é de poemas de
Manuel Bandeira, Castro Alves, Cecília Meireles, Gregório de Matos, Olavo Bilac e Carlos
Drummond de Andrade, para não citar outros, musicados pelos nomes mais expressivos da
20
MPB. Para equalizar os versos de um poema às notas de uma partitura musical são
precisos, pelo menos, de dois procedimentos fundamentais: 1.º) Descobrir a musicalidade
presente nos versos de um poema; 2.º) Ouvir e conhecer bem a dicção de uma canção
popular
4
.
O segundo caminho se dá na contracorrente da relação entre palavra escrita e
palavra cantada. Letras que se popularizaram no ouvido de muitos brasileiros “perdem” a
sua melodia e são publicadas em edições luxuosas, tendo a experiência de “viver
artificialmente a condição de escrita” (Ferraz IN Veloso, 2003: 16) exemplos como os de
Caetano Veloso (Letra só, 2003), Chico Buarque de Hollanda (Tantas palavras, 2006),
Gilberto Gil (Todas as Letras, 2003) e Rita Lee (Rita Lírica, 1996)
5
comprovam esta
assertiva. Apartada do som, a letra da canção é realocada em uma superfície alheia a ela (a
página do livro). Passa a funcionar como um poema, mas não para ser necessariamente
lido, mas sim para ser cantado, de acordo com a advertência de Eucanaã Ferraz, antologista
de um volume com parte da produção de Caetano:
Poema para a voz, não para a folha. E, poema público, que pode ser fruído
coletivamente, que toca no rádio, na TV, que pode ser dançado. São diferentes
mecanismos de criação, suportes de veiculação, relações com o mercado, modos de
recepção e, por fim, outras são as expectativas do criador (Ferraz IN Veloso, 2003:
15).
1.4 - Polêmicas intelectuais
Apesar de muitos terem adotado abordagens que discutiam o fenômeno da música
popular entre nós, outras vozes se revelaram opostas em relação a tais análises. O
argumento principal para esta lamentável débâcle era o de que apenas os livros de poesia
4
Um exemplo peculiar para explicar a importância do segundo procedimento é o do filósofo, poeta e letrista
Antonio Cícero. Seus primeiros versos foram musicados pela irmã, a cantora e compositora Marina Lima, e
convertidos em canções de relativo sucesso. A artista, em entrevista concedida na década de 90, revelou a
dificuldade de seu irmão em escrever letras de música, o que se devia ao fato de ele não ter um contato íntimo
com a produção musical de caráter popular. Aos poucos, Marina e Cícero se aprimoraram tecnicamente e
firmaram uma das parcerias mais sólidas de toda a história da MPB (que se iniciou com Simples como fogo,
álbum lançado por ela em 1979). Tal relação se dá de forma oposta entre Cícero e Adriana Calcanhotto: a
cantora e compositora revelou que as parcerias musicais entre os dois consistem em uma melodia que recebe
uma letra e não em uma letra que recebe uma melodia, invertendo todos os princípios existentes no
casamento entre a música e a palavra (cf. Siqueira Júnior, 1995: 101/228).
5
Para maiores informações sobre tais obras, vide item dedicado às Referências Bibliográficas.
21
detinham o saber, não concedendo o devido crédito à letra da canção que, para estes,
estaria dotada de um valor estético inferior em relação ao poema; ou seja, a letra de música
não passaria de um texto de má qualidade, marginalizado do espaço concedido à Literatura.
A intenção destes intelectuais mais aguerridos é a de demarcar o espaço que caberia ao
literário, desprezando a cultura consumida pelas grandes massas e ignorando que uma
criação poética de Waly Salomão é tão valida quanto uma letra assinada por Adriana
Calcanhotto (cf. Góes, 1996: 161).
Jean Tortel propõe o termo paraliteratura como uma espécie de solução para não se
convencionar determinadas produtos de massa (manifestações do paraliterário) como
“literatura de qualidade menor” ou “má literatura”. O discurso paraliterário, essencialmente
medíocre, é esteticamente inferior aos clássicos por pura e simplesmente imitar o discurso
literário. Para Tortel, o discurso verbal presente na música popular, os romances de massa,
as novelas, as receitas culinárias, entre outros, são exemplos de paraliteratura. É certo que
as propostas deste teórico são menos aconselháveis para estes estudos, pois contém uma
atitude preconceituosa no tocante aos bens culturais surgidos na era da indústria cultural
(cf. Silva IN Samuel, 2000), além de ser incapaz de compreender a complexidade da
canção popular de qualidade musical.
Outro exemplo a ser citado é do crítico de arte Wilson Coutinho (apud Diniz: 2004),
em artigo publicado pelo Jornal do Brasil na década de 80, apontou a existência de uma
falta de tradição cultural no Brasil, acusava professores dos Ensinos Fundamental e Médio
de serem preguiçosos por trabalharem com letras de canções populares em sala de aula ao
invés de apresentarem poemas consagrados ou autores cuja obra “retratasse a realidade”
como Machado de Assis.
Coutinho, como é possível depreender, contrapunha Machado com os cancioneiros
da MPB, ignorando as diferenças dos bens culturais em questão. Tal postura, de saída,
revelava um preconceito ao renegar a manifestação cultural de um outro, sobrepujando um
valor já reconhecido por todos. A escola precisa atentar para a diversidade artística da
nação a que se insere. Tanto a palavra escrita de um Machado de Assis ou de um Lima
Barreto quanto a palavra veiculada ao canto popular são igualmente responsáveis pelas
tradições de um povo.
22
Outro exemplo é do poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes, em artigo escrito para
a Folha de S.Paulo na década de 80. Neste texto, o autor confessou ter sentido um profundo
estranhamento ao se deparar com discos de música popular na casa de amigos intelectuais e
não com Long Plays de música clássica em suas estantes. Paes compreendia a MPB como
um produto ligado a modismos, algo similar a uma espécie de confraria ou partido político
(cf. Paes, 2000: 125). Para ele, o fato dos artistas da canção serem criadores de “inclinações
semi-eruditas” (2000: 126) que se apresentam em estádios ao invés de teatros e/ou casas de
espetáculo, fazem da canção brasileira um produto comercial desprovido de qualquer status
de arte
6
. Sobre essa questão, Júlio Diniz mantém uma reflexão coerente, respeitando e
valorizando as várias dicções musicais e poéticas:
A hierarquização na ordem classificatória dos textos, separando-os entre superiores
e inferiores, altos e baixos, indica apenas uma discriminação crítica fundada no seu
poder de controle, na sua força de arbitrar gêneros, formas e modelos. A
incapacidade de operacionalizar recortes que leiam determinada obra a partir de
seus elementos fundadores, no contexto de sua criação e na esfera de sua recepção,
provocam um estéril julgamento que, encastelado em seus limites, ainda crê que
todos os produtos veiculados pela cultura de massa assinaram um novo contrato
fáustico.
A poesia de Drummond e a de Cabral pertencem à série literária erudita como os
poetas de cordel representam a série literária popular, e Gil e Blanc alinham-se na
série musical. Nada impede que possam transitar em diferentes espaços, como o
fizeram Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda e Arnaldo Antunes. O
valor de suas produções está intimamente ligado ao universo a partir do qual eles
articulam e inscrevem o seu discurso (Diniz, 2004: 184-185).
6
No ensaio citado no decorrer deste trabalho, o professor Júlio Diniz (PUC-RJ) rebate incisivamente José
Paulo Paes em relação ao fato de artistas da MPB se apresentarem em estádios. O ensaísta não só rechaça o
argumento de Paes, por ser truculento e essencialmente elitista, como também relembra um memorável
concerto realizado pelos tenores Luciano Pavarotti, Placido Domingo, Jose Carreras, o renomado maestro
Zubin Mehta, o Los Angeles Music Center Opera Chorus e a Los Angeles Philarmonic Orchestra no Dodgers
Stadium (um dos maiores estádios norte-americanos) no encerramento da Copa do Mundo de Futebol, em
1994. Naquela ocasião, clássicos radiofônicos e obras da música erudita consagrada como “Rigoletto”
(Verdi), “Turandot” (Puccini) e “My way” (Paul Anka) estiveram lado a lado da “Aquarela do Brasil” (Ary
Barroso), levando uma arte geralmente consumida por pequenas elites ao grande público em um tremendo
megaespetáculo, no qual “erudito” e “popular” contracenavam juntos e sem a menor hierarquia na cena Pop
(cf. Diniz, 2004: 183). Após o tetracampeonato da Seleção Brasileira, é possível que José Paulo Paes tenha
sido obrigado a refazer determinadas concepções analíticas...
23
Vale registrar que José Paulo Paes também externou sua ironia acerca da qualidade
da música popular em uma reunião de ensaios intitulada Gregos & Baianos (1985),
reunindo “Gregos”, a mais alta expressão da cultura erudita, com “Baianos”, como Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia, artistas reconhecidos pelo valor de seu
trabalho e também pelo sucesso junto ao público, o que talvez o autor desconheça é que a
sofisticação pode ser popular:
a música popular (...) deixou de ser vista como um campo de pura diluição de
informação estética para consumo indiscriminado. Ao tomar para si recursos
formais elaborados no seio da “música artística” e da literatura, a canção popular,
nas mãos de seus cultores mais exigentes, tornou-se (...) um dos lugares
privilegiados para a atualização do projeto artístico moderno no âmbito da cultura
brasileira (Naves, 2002: 231).
No entanto, é o ensaio “A poesia no purgatório”, o mais revelador da profundidade
dos argumentos falaciosos de José Paulo Paes. O texto se inicia com uma crítica feroz à
série de antologias Literatura Comentada (Abril Cultural), de intuito didático, que
apresenta e discute a produção poética e/ou ficcional dos principais nomes da produção
literária brasileira. A implicância reside nas antologias dedicadas a Caetano Veloso (seleção
de Paulo Franchetti e Alcyr Pécora UNICAMP), Gilberto Gil (seleção de Fred Góes
UFRJ) e Chico Buarque de Hollanda (seleção de Adélia Bezerra de Meneses USP). De
acordo com a visão do ensaísta, trata-se de uma inutilidade a inclusão de letras de
compositores de música popular em coleções que deveriam ter como objeto de estudo
apenas os poetas que se dedica(ra)m à Literatura:
Vista de semelhante ângulo, a inclusão, no rol dos poetas livrescos, de festejados
compositores, se se me permite o epíteto algo anacrônico, demonstra-se menos uma
exaltação do que um anticlímax. Eles não carecem do receituário pedagógico para
conquistar ouvintes ou leitores; de há muito os conquistaram por si sós, e bem mais
numerosos, sem qualquer intermediação professoral (Paes, 1985: 268).
Outro aspecto que tornaria a análise poética da canção inviável, segundo a postura
destes críticos, é a de que a letra, separada de sua musicalidade, torna-se fatalmente frágil,
por isso, indigna de uma análise literária. Nesse caso o mesmo argumento negaria leitura
24
para os textos de teatro ou de cinema. Por acaso, “a metáfora de um poema não haveria de
existir no verso de uma música” (Lucchesi, 2000: 168)? É necessário ler os textos em suas
diferentes formas de composição.
Como é possível entender a partir da leitura de seu ensaio, Paes elegeu alguns alvos
mais específicos: critica indiretamente o pioneirismo de Augusto de Campos e sua obra
Balanço da Bossa ao validar literariamente a produção do jovem Caetano Veloso. A
dissolução da canção popular em tempos mais recentes teria causado, de acordo com o
autor, uma inversão: os recursos audiovisuais remeteram-nos a um retrocesso no que tange
à relação do homem com a cultura letrada. Mais especificamente, o indivíduo se relaciona
com a poesia nos dias de hoje, de forma irracional, evidenciando com a poesia uma espécie
de analfabetismo
que assinalaria não só um retorno à aliança entre música e poesia como, sobretudo,
de hábitos de desfrute ou consumo da criação poética bastante semelhantes, no
essencial, aos dos tempos pré-gutemberguianos, o ouvido que ouve voltando a
substituir o olho que lê (Paes, 1985: 267).
A crítica se dirige ao que Affonso Romano de Sant’Anna chamou de o retorno da
“tradição do poeta como cantor da sociedade quando não havia a divisão entre ‘literatura de
massa’ e ‘literatura literária’” (Sant’Anna, 2004: 88). Esta retomada seria um verdadeiro
retrocesso no que diz respeito à fruição do objeto poético: em tempos de cultura de massas,
a poesia literária estaria relegada ao ostracismo enquanto a MPB teria conquistado um sem-
número de consumidores, isto é, o público da “Literatura tradicional”, por assim dizer,
estaria migrando em direção a discos de Caetano, Gil ou Chico ao invés de lerem o trabalho
de Camões, Baudelaire ou Pessoa. O questionamento da utilidade “acadêmica” da canção
popular para a sociedade brasileira nos remete a uma dúvida:
Por que temos de negar Caetano, Chico, Gil (e outros), em nome de Olavo Bilac?
Parece que ainda nos falta uma pesquisa mais verticalizada, no tocante aos males
culturais que o esteticismo parnasiano, aliado à vertente positivista nacionalista
matriz, por sinal, dos regimes ditatoriais na América Latina provocou no
desenvolvimento expressional de nossa cultura tropical (Lucchesi, 1998: 110).
25
A justificativa apontada por José Paulo Paes para esta “inversão” seria o fato da
canção popular estar mais próxima da “fala cotidiana” o corpus que serviria de álibi para
sedimentar a argumentação de “A poesia no purgatório” seria a produção literária de
Vinícius de Moraes enquanto respeitado poeta erudito e letrista de renome da música
popular brasileira. De acordo com a concepção do ensaísta, é errôneo se interessar pela
poesia tradicional com o mesmo entusiasmo dedicado à letra da canção, justamente por ser
mais “mundana” em relação ao poema. Segundo Luiz Tatit, a canção está ligada
intimamente à fala e aos costumes do homem comum desde tempos imemoriais, para
desaprovo de Paes:
Não nos preocupemos com a canção. Ela tem a idade das culturas humanas e
certamente sobreviverá a todos nós. Impregnada nas línguas modernas, do ocidente
e do oriente, a canção é mais antiga que o latim, o grego e o sânscrito. Onde houve
língua e vida comunitária, houve canção. Enquanto houver seres falantes, haverá
cancionistas convertendo suas falas em canto (Tatit, 2006: 54).
Ao fazer uso do autor de “O operário em construção” como exemplo de suas
análises, José Paulo Paes repete a recorrência de muitos clichês utilizados por críticos
inconformados como o fato do poeta ter deixado de escrever poesia para os grandes salões,
e sim para as canções que o consagraram mundialmente, anos depois. Na mocidade,
Vinícius de Moraes freqüentou os espaços dedicados ao diletantismo da dita “alta cultura”,
estudou Direito, fez Pós-Graduação em Literatura Inglesa na Oxford University, escreveu
poemas metafísicos ininteligíveis para a linguagem comum. Por outro lado, o poeta veio de
uma família que sempre incentivou a indistinção entre cultura da elite e cultura popular: seu
pai era músico, poeta pós-parnasiano e amigo de Olavo Bilac, enquanto seu tio Aníbal Cruz
era músico e até chegou a ter uma de suas canções gravadas por Carmen Miranda (“Diz que
tem”, de 1940)! Foi um escritor reconhecido pela crítica, mas não tão conhecido pelo
público até começar a deixar sua carreira diplomática de lado e se embrenhar pela música
popular.
Ao formar com Antônio Carlos Jobim e João Gilberto a santíssima trindade que deu
origem à Bossa Nova, o soturno erudito de O Caminho para a Distância (1933) e Forma e
Exegese (1935) saiu de cena e, aos poucos, deu margem ao bem-humorado poetinha (um
26
apelido afetivo e não depreciativo) dos sonetos de amor e criador das letras de música.
Manteve sua aura lírica e o seu talento para versos intactos, por isso, tal transição não o fez
menos incapaz.
Porém, enganam-se os que crêem na ausência de críticas no decorrer desta guinada:
“a Bossa Nova e Vinícius de Moraes (...) foram muito criticados. De um lado por uma ala
da ‘literatura séria’ que achava aquilo um rebaixamento lamentável do seu talento poético,
e de outro lado pela turma da pureza musical, das raízes intocáveis” (Moraes, 2003: 113). O
depoimento da cineasta Susana Moraes, filha primogênita do poeta, nos oferece uma
reflexão bem interessante acerca do pioneirismo de Vinícius afinal, ele foi o
primeiríssimo poeta da série literária a se dedicar a letras de música. Tal ousadia, num
primeiro momento, lhe custou bem caro, visto que críticos literários de perfil mais arcaico o
acusavam de “seresteiro” ou “menestrel” popularizador de lirismos (cf. César, 2003: 435),
externando o preconceito ao invés da argúcia tão característica de um crítico de qualidade.
Acima de tudo, a presença do poetinha na formação da Bossa Nova foi fundamental para
que a crítica especializada, até então não consciente do valor literário presente em uma letra
de música, prestasse atenção no discurso veiculado pela canção (cf. Lacerda, 2002: 33).
Tendo em vista estas observações, o letrista e o poeta Vinícius de Moraes devem ser lidos
de formas diferentes pelo fato de pertencerem a campos estéticos diferenciados (cf. Diniz,
2003: 108).
O ensaio assinado por José Paulo Paes revela uma atitude típica de muitos de seus
colegas eruditos: a de reclamar a excelência do trabalho intelectual e a de interpretar o Pop
como um combate direto aos pensadores ligados a qualquer espécie de tradição, tal qual
discutimos anteriormente. Segundo Francisco Bosco (2006: 18-19), os artistas da canção
não possuem tamanha ambição por reconhecimento, e alguns até rejeitam os rótulos de
“escritor” e/ou “intelectual”
7
. Entretanto, há resistência de certos setores da intelectualidade
brasileira, condenando quaisquer aspirações intelectuais que possam ter os artistas da cena
midiática, como pensava o crítico literário José Guilherme Merquior:
7
Neste caso específico, Bosco se refere a Caetano Veloso, autor de uma obra musical e também crítica, (como
pode se perceber, por exemplo, em O mundo não é chato, editado pela Companhia das Letras em 2005). Em
outras palavras, o artista literalmente recusa os panteões da intelectualidade e prefere apenas viver “uma vida
frívola de compositor de música popular” (Veloso, 2006: 14).
27
Não são os ensaístas como eu que estão querendo invadir a área do espetáculo. São
os Caetanos da vida que tentam há vários anos usurpar a área do pensamento. A
meu ver, com as mais desastrosas conseqüências, já que se tratam de pseudo-
intelectuais de miolo mole, cujo principal defeito é serem deslumbrados dos mitos
da contracultura, isto é, o elemento de sub-romantismo mais sovado e furado da
ideologia contemporânea (apud Bosco, 2006: 18).
A implicância de José Guilherme Merquior se dirige a uma produção intelectual e
poética veiculada ao contexto midiático, de expressão não ligada ao meio acadêmico e ao
mundo livresco. O procedimento de exclusão destes pensadores, contudo ignora
sumariamente a produção de Caetano Veloso, um indivíduo de sensibilidade, sentido
estético apurado, valores éticos bem arraigados, além de ser um dos críticos mais
expressivos da Cultura Brasileira na contemporaneidade. Por outro lado, outro fator que faz
da resistência de alguns ainda mais inútil é o “equívoco [em] pensar que há um trânsito de
consumo da canção para o pensamento crítico ou literário e exigir um tal movimento é uma
reivindicação deslocada: o adolescente que gosta de Legião Urbana não necessariamente
procurará ler Camões” (Bosco, 2006: 18), mas irá tomar conhecimento de uma produção
poética de séculos atrás, o que não deixa de ser um significativo avanço, pois referimo-nos
a uma camada da sociedade não muito íntima da leitura.
Com o surgimento do Pop enquanto acontecimento cultural, a Literatura deixou de
ter o prestígio mercadológico e social obtidos anteriormente, refugiando-se na Universidade
(cf. Bosco, 2006: 60). É por estas e outras razões que a música popular, ao buscar
elementos estéticos das mais variadas procedências culturais, adquiriu tamanha adesão de
muitos membros da sociedade brasileira: os cantores e compositores aproximam o homem
comum de temas ligados ao cotidiano através do material poético presente no objeto
canção e se inscrevem, conseqüentemente, entre os problematizadores mais freqüentes do
ambiente cultural contemporâneo por transitarem entre “grupos unidos pela festa, por
condição social, movimentos estéticos, modos de produção, forças locais e/ou globais
identitárias” (Gardel, 2006: 79). Foi Caetano Veloso quem nos forneceu mais detalhes
sobre tal fato:
O caso do Brasil, com mú sica popular, é especial; é muito forte o mercado de
música popular, é muito grande o interesse pelo que se faz... inclusive o status
28
intelectual e político da criação de música popular no Brasil. É aberrante esta
importância: todo mundo intui uma força cultural, política, intelectual e filosófica
na música popular brasileira. E isso existe porque a música popular é muito forte,
vem muito de dentro, expressa e atua muito sobre o país. Talvez não do modo
como em geral se pensa, mas acho que não poderia haver tudo isso se não houvesse
de fato uma “força estranha” na música popular do Brasil (apud Santiago, 2004:
152).
Por isso, conclui-se que existe também no Brasil
uma tradição que gira em torno da palavra falada e da palavra cantada, fértil,
regionalmente diversificada, consumida por um número muitíssimo maior que o
dos consumidores de livro, e também produzida por um grupo de pessoas bem
maior que o dos praticantes da poesia escrita, desembocando grande parte dessa
produção na música popular brasileira (Bueno, 1984: 61)
A crítica sofrida por Vinícius de Moraes e Caetano Veloso também atinge o Chico
Buarque ficcionista, que, muitas vezes, é criticado por ser também um escritor de
romances. Tal forma de pensamento esquece que
a relação música e literatura, letra e poema, deve ser percebida criticamente em
seus espaços específicos de atuação. Estorvo e À Flor da Pele são textos de um
mesmo autor, Chico Buarque de Hollanda, mas cada um deles pertence a universos
heterogêneos e indica diferentes caminhos de leitura. Ambos são densos,
elaborados com precisão e técnica, oriundos de uma mesma visão de cultura. Mas a
linguagem das duas obras é distinta, seus elementos formadores mostram-se
articulados com o objeto concebido, os referenciais de sua elaboração são outros,
sua circulação pelo público não é articulada de igual maneira, o horizonte de
expectativa de seus possíveis leitores não é coincidente, enfim, são textos que
possuem um só criador mas que representam e iluminam aspectos diferenciados do
espaço cultural. Não há um Chico mais nobre (o que se transformou em ficcionista)
superior ao Chico menos nobre (o que faz shows no Canecão). Ambos, de igual
maneira, aparecem vinculados pela mídia cultural (Diniz, 2004: 184).
Para desaprovo de José Paulo Paes, como de outros guardiões incansáveis desta
débâcle, a música popular produzida no Brasil já possui o seu lugar cativo na construção da
29
identidade cultural brasileira. Está além de quaisquer convenções mercadológicas ou
corporativistas, busca uma espécie de identificação com o “ouvido musical” de muitos de
nós, trazendo, de reboque, uma manifestação poética com indefectível teor crítico (cf.
Lucchesi, 1998: 110).
1.5 - Algumas questões metodológicas
Desvarios e ressentimentos à parte, o único mérito do ensaio assinado por José
Paulo Paes é de que, ao analisar a letra de qualquer canção, o crítico deve levar em
consideração os fatores musicais. Ler o discurso de “Geléia geral” (Gilberto Gil Torquato
Neto) da mesma forma com a qual se analisa o “Poema de sete faces” (Carlos Drummond
de Andrade) é um equivoco brutal, visto que “a letra de música deve ser pensada na
totalidade da estrutura de sentido a que pertence a canção e é assim, de resto, que ela
costuma se apresentar publicamente” (Bosco, 2004: 103).
Segundo Francisco Bosco, desprezar os elementos sonoros presentes no discurso
veiculado pela canção equivale a uma violência sem tamanho por parte do analista:
Ao negligenciar essa diferença fundamental entre a dupla articulação da letra
(linguagem verbal e linguagem musical) e a composição exclusivamente verbal do
poema, toda a possibilidade de comparação entre letra e poema está comprometida,
bem como, forçosamente, a própria avaliação de uma letra de música. Essa
negligência se manifesta no gesto, injustificável, de extrema violência que mutila a
letra de música ao subtraí-la de uma totalidade a que pertence e planificá-la para
tornar possível uma comparação com a poesia (para prejuízo da letra, pois, [...],
essa comparação resulta de determinados interesses no jogo de forças da cultura).
A letra de música é um objeto heterotélico, isto é, não tem finalidade em si própria,
antes seu jogo de sentido se dá na sobredeterminação recíproca entre ela, letra, e a
canção de que faz parte: se, como queria Valéry, a tarefa do poeta é “motivar o
signo”, assim também a tarefa do cancionista é motivar a relação entre letra e
música, propiciando, seja através da relação melodia/texto, seja pela entoação da
melodia/texto, uma espécie de isomorfia estrutural entre seus níveis internos. Logo,
a violência dessa mutilação isolar letra e música é quase tão absurda quanto
perguntar se um poema é concreto, sem sua parte visual, é poesia (Bosco, 2006:
57).
30
Em outras palavras, apesar de terem sido originadas na mesma gênese (a da
linguagem verbal), há diferenças estéticas bem marcantes entre a letra de música e o poema
impresso, daí a necessidade de uma abordagem multidisciplinar. Augusto de Campos deixa
bem claro as diferenças entre estas duas modalidades poéticas:
estou pensando
no mistério das letras de música
tão frágeis quando escritas
tão fortes quando cantadas
por exemplo “nenhuma dor” (é preciso reouvir)
parece banal escrita
mas é visceral cantada
a palavra cantada
não é a palavra falada
nem a palavra escrita
a altura a intensidade a duração a posição
da palavra no espaço musical
a voz e o mood mudam tudo
a palavra-canto
é outra coisa (Campos, 1993: 309)
Augusto nos propõe uma questão de suma importância: ao contrapor a palavra da
escrita à do canto, notam-se não apenas contrastes, como também há a necessidade de
diferentes estratégias analíticas, afinal o cancionista, conforme propõe uma famosa canção
de Caetano Veloso na voz de sua irmã, “ao fim de cada ato” limpa “num pano de prato / as
mãos sujas do sangue das canções” (Veloso, 2003: 75). Por isso, jamais devemos nos
esquecer da força de um intérprete da MPB como Elis Regina, Gal Costa ou Maria
Bethânia ao estarmos diante deste objeto de pesquisa. A voz que canta é fundamental para
qualquer esboço analítico, pois ela traz, via entoação, uma visualidade: configura-se a
performance, que, no contexto da música popular, adquire a tarefa essencial de se
responsabilizar pela comunicação poética. O cantar do artista que interpreta se transmuta
em uma rede de significações, conduz os versos para milhares de pessoas e divide com o
autor a instância criativa de uma canção vide Bethânia entoando “Olhos nos olhos”, de
Chico Buarque de Hollanda.
31
A voz que canta possui também o poder de acompanhar a intimidade e o dia-a-dia
do ouvinte, esteja ele longe do dial do rádio ou caminhando pela rua, daí a possibilidade de
dimensionar a importância do gesto de cantar por si só na construção poética da canção. “O
primeiro jornal”, de Sueli Costa e Abel Silva, gravada por Elis Regina em 1980,
exemplifica, com perfeição, as afirmações proferidas acima:
Quero cantar pra você
Segunda-feira de manhã
Pelo seu rádio de pilha tão docemente
E te ajudar a encarar esse dia mais facilmente
Quero juntar minha voz matinal
Aos restos dos sons noturnos
E aos cheiros domingueiros que ainda bóiam
Na casa e em você
Para que junto com o café e o pão se dê
O milagre de ouvir latir o coração
Ou quem sabe algum projeto, uma lembrança
Uma saudade à toa
Venha nascendo com o dia numa boa
E estar com você na primeira brasa do cigarro
No primeiro jorro da torneira
Nos primeiros aprontos de um guerreiro de manhã
Para que saias com alguma alegria bem normal
Que dure pelo menos até você comprar e ler
O primeiro jornal
8
.
Para “lermos” uma canção popular a partir de sua total complexidade, devemos
lançar de recursos que estão além da crítica literária: o compósito voz-corpo enquanto
intuito performático, a relação material entre o fonema e o signo lingüístico e a matéria
estrutural da canção, “carga semântica da musicalização, organização do discurso poético,
implicações sócio-culturais, constituição e renovação de gêneros, valores e procedimentos
estéticos, aspectos do processo de recepção” (Matos, 2002a: 142). Por isso, apesar de fácil
8
IN: Elis Regina, Saudades do Brasil (1980).
32
de ser fruída pelo grande público, é errôneo afirmar que a análise de uma composição seria
tarefa das mais simples:
Sua abordagem pelo pensamento acadêmico é um caminho cheio de percalços e
armadilhas que é preciso reconhecer e evitar: o viés do exotismo, as reduções de
feição determinista, as manipulações corruptoras de cunho político-ideológico, o
comodismo dos quadros ideológicos e tipológicos constituídos (Matos, 1992: 332).
Por isso, analisar a letra como um mero poema, desprezando os elementos musicais,
é um procedimento crítico a ser plenamente descartado neste trabalho, pois equivale a
reduzir a complexidade do discurso presente na canção popular ou a “assistir a um filme
legendado, desprezando-lhe as imagens a favor das legendas” (Lucchesi & Dieguez, 1993:
23). Um aspecto importantíssimo que deve ser levado em conta na análise de uma canção é
que muitos compositores articulam o discurso verbal aos ritmos da partitura. Contudo, os
analistas de Letras jamais devem se intimidar perante tais exigências metodológicas:
Quanto ao “silenciamento” do texto na página escrita, é certo que coloca problemas
suplementares ao trabalho analítico-interpretativo de base literária. Mas isso não
impede o especialista de explorar, neste objeto complexo, os domínios que lhe são
acessíveis. Afinal, as canções populares não são o único caso de textos poéticos
participando de manifestações multimídia. Os manuais de história literária clássica
estão cheios deles. Muitos poemas antigos e medievais, originalmente entoados ao
som de acompanhamento musical, são acolhidos pela consideração da crítica
literária, que não se acanha de debruçar-se sobre eles no silêncio do escritório. O
fato que textos dramáticos destinam-se fundamentalmente à encenação não os
subtrai ao exame dos especialistas em literatura. Então o que justifica a idéia que o
poema folclórico ou popular, despido de som e imagem, se transforma
forçosamente em “letra morta” (Matos, 1992: 333-334)?
Logicamente, é preciso evidenciar o entre-lugar do autor destas linhas: apesar de ser
inteiramente leigo nos meandros da teoria musical, há a intenção de compreender as
relações entre a canção e o poético, sem perder de vista as implicações de ordem política e
historiográfica. Este trabalho acadêmico, em primeiro lugar, é assinado por um amante
confesso de música popular, cônscio de suas limitações práticas, todavia disposto a se
33
utilizar dos recursos da Teoria da Literatura para compreender alguns encadeamentos deste
fascinante diálogo.
Ultimamente, nota-se um arrefecimento das hierarquizações entre a poesia da
canção e os poemas da série literária. Um projeto que evidencia este acontecimento é a
antologia poética Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canções para o tédio”,
organizada pelo poeta e professor de Literatura Brasileira da UFRJ Eucanaã Ferraz. Neste
volume, poemas e letras de música são reunidas por critérios temáticos e desafiam os
princípios da “penalística de uma crítica literária” (Ferraz, 2005: 8): Caetano Veloso,
Carlos Drummond de Andrade, Aldir Blanc, Oswald de Andrade, Chico Buarque, Mário
Quintana, Adriana Calcanhotto, Ana Cristina César e outros. O critério do antologista
revela, indubitavelmente, um avanço por parte dos críticos em relação à música popular:
Aqui, desde o início, a palavra poemas nomeia igualmente os versos escritos para o
livro e aqueles feitos para a canção. Recuando de uma institucionalização
imobilizadora, os versos, independentemente de seus suportes e de suas
especificidades estruturais, podem ser pensados como peças do intertexto da
cultura e viver, no espaço do livro-antologia, a vizinhança harmoniosa que
experimentam em outras esferas. Suspensos os falsos conflitos e aceitas as
diferenças essenciais, a conciliação faz brilhar um campo vasto, um horizonte de
linguagens cuja potência magnífica nos promete a aventura e o conhecimento
(Ferraz, 2005: 8).
A partir deste gesto de socialização entre a poesia livresca e a poesia da canção,
abranda-se a débâcle e, conseqüentemente, dessacraliza-se o fazer poético, combate-se a
ignorância de vários sem, necessariamente, acolher em determinadas análises acadêmicas o
estudo de bens culturais produzidos única e somente para o consumo irrestrito, além da
possibilidade de “elaborar perspectivas e instrumentos de compreensão e a avaliação crítica
adequados à especificidade dessa forma contemporânea de expressão” (Matos, 2002b: 111),
a canção popular. Novas abordagens visando a compreensão do fenômeno poético surgem
no espaço da crítica literária e da crítica cultural e jamais desprezam o “rigor intelectual que
necessariamente interage com a sensibilidade na produção de qualquer discurso movido por
verdadeiro interesse crítico” (Matos, 2002b: 111).
34
De fato, caso desejemos compreender o Brasil a partir do século XX, é através da
produção musical brasileira e do ouvido musical presente em cada um de nós. Apesar da
música estar imersa na banalização imposta pela indústria do entretenimento, é de lá a
origem de muitas plataformas de discussão: a apreensão de determinadas contradições da
sociedade são sempre percebidas pela percepção dos cancionistas, que está plenamente
irmanada às “Coisas do mundo” tão bem aludidas pelo sambista e compositor Paulinho da
Viola (cf. Konder, 2003).
Os versos de “Roda” (1964), de Gilberto Gil e João Augusto, aliam a diversão e a
crítica social ao discurso politizado e confirmam a premissa do artista da canção enquanto
fiel leitor da sensibilidade popular:
Meu povo, preste atenção
Na roda que eu te fiz
Quero mostrar a quem vem
Aquilo que o povo diz
Posso falar, pois eu sei
Eu tiro os outros por mim
Quando almoço, não janto
E quando canto é assim
Agora vou divertir
Agora vou começar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
Quem tem dinheiro no mundo
Quanto mais tem, quer ganhar
E a gente que não tem nada
Fica pior do que está
Seu moço, tenha vergonha
Acabe a descaração
Deixe o dinheiro do pobre
E roube outro ladrão
35
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Se morre o rico e o pobre
Enterre o rico e eu
Quero ver quem que separa
O pó do rico do meu
Se lá embaixo há igualdade
Aqui em cima há de haver
Quem quer ser mais do que é
Um dia há de sofrer
Agora vou divertir
Agora vou prosseguir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai sair
Não é obrigado a escutar
Quem não quiser me ouvir
Seu moço, tenha cuidado
Com sua exploração
Se não lhe dou de presente
A sua cova no chão
Quero ver quem vai dizer
Quero ver quem vai mentir
Quero ver quem vai negar
Aquilo que eu disse aqui
Agora vou divertir
Agora vou terminar
Quero ver quem vai sair
Quero ver quem vai ficar
Não é obrigado a me ouvir
Quem não quiser escutar
36
Agora vou terminar
Agora vou discorrer
Quem sabe tudo e diz logo
Fica sem nada a dizer
Quero ver quem vai voltar
Quero ver quem vai fugir
Quero ver quem vai ficar
Quero ver quem vai trair
Por isso eu fecho essa roda
A roda que eu te fiz
A roda que é do povo
Onde se diz o que diz (Gil, 2003: 57-58).
A música brasileira nos ofertou vários casos de reflexões inteligentes acerca de
fenômenos dos mais diversos. De certa forma, é também no terreno da canção onde a língua
portuguesa em terra brasilis é “polida pelo pensamento” (Candido, 2002: 72). Por isso, não
é inútil acrescentar que a consolidação de um pensamento literário no Brasil viabilizado a
partir de grandes nomes da Literatura Brasileira como Mário e Oswald de Andrade, Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector,
entre outros não se restringiu ao espaço literário, como também se fez no âmbito da
música popular graças a Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda, Gilberto Gil e
Caetano Veloso. É deste último autor os versos que melhor norteiam a discussão:
Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão (Veloso, 2003: 291).
Ao se apropriar de uma afirmação proferida pelo filósofo alemão Martin Heidegger
(cf. Veloso, 2001), Caetano arquiteta uma ironia de duplo viés: debocha da tradição
bacharelesca que assola a intelectualidade brasileira até os dias atuais, sempre desejante de
imitar os padrões europeus e, por conseguinte, demonstra que uma boa canção apenas
necessita de uma idéia interessante (ou do bom uso de “um papel e uma caneta”, como
sugere a epígrafe deste capítulo), afinal é nos palcos de onde pode ressoar debates de (alto)
37
nível intelectual. Já cantaram Paulinho da Viola e Nara Leão décadas atrás que “as coisas
estão no mundo / só que eu preciso aprender”
9
. Por isso, cabe a nós, portadores de ouvidos
musicais, extrairmos a poesia dissoluta no ar e fazermos dela nosso aprendizado
permanente. Se levarmos em consideração a vitalidade de nossos artistas da canção, é certo
que a lição será prazerosamente aprendida...
9
IN: Nara Leão, Coisas do Mundo (1969).
38
2
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Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
daqueles que velam pela alegria do mundo
Caetano Veloso
10
2.1 - Desafinos poético-musicais
A década de 50 foi de natureza singular na história da música popular produzida no
Brasil. Vivenciava-se o ápice da chamada “Era do Rádio”: através das ondas radiofônicas,
os cantores daquela geração tinham significativa popularidade graças aos potentes
esquemas mercadológicos montados por rádios e fã-clubes. Com isso, as massas se
deixaram seduzir por nomes como Nelson Gonçalves, Dolores Duran, Cauby Peixoto e
Ângela Maria. A canção popular daquela época era popularesca, o que afastava o público
mais exigente e apurado, enquanto as chamadas “macacas de auditório” cumpriam o seu
papel na adoração de seus ídolos. Tratava-se de uma variante musical marcada pelo kitsch,
com influências de ritmos estrangeiros como o bolero e o tango. Era o auge da temática
melodramática em nossa música, que colocava o samba (um eterno símbolo de nossa
nacionalidade) em segundo plano temática e ideologicamente. A irreverência e o tom ácido
de crítica social característicos das décadas anteriores davam lugar aos arroubos dramáticos
tanto apreciados pelos admiradores e entusiastas da Rádio Nacional.
Entretanto, uma nova geração de artistas surgiu com o afã de não apenas sofisticar a
música brasileira, mas principalmente de aproximar as manifestações artísticas da realidade
daquela geração, como também do momento histórico vivenciado pelo Brasil até então.
Vale ressaltar que, nos anos JK, um surto modernizante na vida brasileira foi provocado:
havia um amplo incentivo por parte do governo para que a população adquirisse bens de
consumo duráveis (os primeiros aparelhos de TV surgiram nesta década), Brasília era
erguida a olhos vistos e se transformava na materialização da utopia do governo Juscelino,
celebrava-se a glória dos esportes com o tênis, o boxe e o futebol. Em outras palavras, na
10
IN: Caetano Veloso, Velô (1984).
40
medida em que a sociedade brasileira se modernizava, criava-se um clima de euforia
irrefreável que tomou conta de todo o Brasil. 1958 seria um ano marcante para o panorama
musical brasileiro: o disco de Elizeth Cardoso, Canção do amor demais não consagrava
apenas o talento desta diva da canção, mas revelava ao grande público a tríade
representativa daquela geração: João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes.
Surgia a Bossa Nova, considerada por muitos como o marco zero da modernidade musical
brasileira (cf. Galvão, 1976: 93).
Nelson Motta, escritor, jornalista e produtor musical, afirmava que os cantores de
rádio “falavam dos encontros e desencontros amorosos infinitamente distantes de nossas
vidas de praia e cinema, de livros e quadrinhos, de início da televisão e ânsia de
modernização” (Motta, 2000: 9). Os cantores de Bossa Nova, em contrapartida, buscavam
uma espécie de canto ausente de resquícios melodramáticos, algo que se assemelhasse com
a fala cotidiana, “sem demonstrações de afetado virtuosismo, sem malabarismos”. A “‘voz
cheia’, o ‘dó de peito’, a ‘lágrima na voz’ [e] o ‘canto soluçado’” eram rejeitados
sumariamente (Brito IN Campos, 1993: 35). Júlio Medaglia, em famoso ensaio publicado
na década de 60, explicaria ainda que
o aspecto que de início chamou a atenção do ouvinte foi o caráter coloquial da
narrativa musical. Uma interpretação despojada e sem a menor afetação ou
peripécia “solística” era parte essencial da revolução proposta pelo disco. Em
outros termos, era a negação do “cantor”, do “solista” e do “estrelismo” vocal e de
todas as variantes interpretativas opero-tango-bolerísticas que sufocavam a música
brasileira de então (IN Campos, 1993: 75).
Outros nomes que protagonizaram este momento marcado pela atitude experimental
foram Nara Leão, Carlos Lyra, Sylvia Telles, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, entre
outros. Burguesa, a Bossa Nova não se consolidou única e somente como uma nova
vertente musical, mas como uma espécie de movimento. Com a presença do talento poético
de Vinícius de Moraes e das já experientes e sofisticadíssimas vozes de Elizeth Cardoso e
Maysa (completamente opostas às damas do rádio como Ângela Maria ou Dalva de
Oliveira), esta manifestação deixou de ser algo essencialmente restrito aos moradores da
Zona Sul carioca para ganhar o mundo todo. Tratava-se de uma produção musical leve,
com melodias sutis, enquanto os discursos veiculados “falavam de situações e pessoas
41
parecidas com a vida que se levava nos apartamentos, nas praias e nas ruas de
Copacabana”. No plano poético, ao contrário das letras sentimentais e de versos
rebuscados, a linguagem era altamente coloquial, simples e com uma irreverência um tanto
semelhante às marchinhas carnavalescas (cf. Sant’Anna, 2004:42/43).
Affonso Romano de Sant’Anna (2004: 44) observa que o surgimento da Bossa
Nova provocou uma mudança de enfoque lingüístico: o dramático foi deslocado para uma
outra cena, enquanto o lírico obteve destaque na cena musical. Anteriormente, havia a
delimitação de personagens e a dimensão espaço-tempo, a partir de 1958, surge uma
tendência à indeterminação do sujeito lírico e dos objetos aos quais este se dirige. Com a
popularidade desta nova geração de artistas, a temática amorosa recebeu uma ótica mais
otimista, lírica, desprezando o sofrimento amoroso tão cultivado pela palavra cantada dos
artistas do rádio, preferindo Vinícius de Moraes a Antônio Maria.
No entanto, o emblema principal da Bossa Nova residia na figura de João Gilberto:
seu cantar baixinho, sussurrado, tecnicamente apurado contrastava radicalmente com as
grandes vozes da Rádio Nacional e foi alvo constante da crítica musical da época, que
tachava o baiano de “desafinado” e “antimusical” (cf. Albin, 2004: 218). Uma canção, em
especial, atuou como resposta aos comentários ferinos dos críticos, afirmando a voz do
principal nome daquela geração (e conseqüentemente de todos os seus contemporâneos)
dentro do cenário musical do final da década de 50, tornando-se, por fim, o grande
manifesto do movimento. Trata-se de “Desafinado”, composta por Tom Jobim e Newton
Mendonça:
Se você disser que eu desafino, amor
Saiba que isto em mim provoca imensa dor
Só privilegiados têm ouvido igual ao seu
Eu possuo apenas o que Deus me deu
Se você insiste em classificar
Meu comportamento de antimusical
Eu, mesmo mentindo, devo argumentar
Que isto é Bossa Nova
Que isto é muito natural
42
O que você não sabe, nem sequer pressente
É que os desafinados também têm um coração
Fotografei você na minha Rolleyflex
Revelou-se a sua enorme ingratidão
Só não poderá falar assim do meu amor
Ele é o maior que você pode encontrar, viu
Você, com a sua música
Esqueceu o principal
Que no peito dos desafinados
No fundo do peito bate calado
No peito dos desafinados
Também bate um coração (apud Campos, 1993: 41).
Ao contrário das tendências do que se ouviam naquela época, o eu-lírico de
“Desafinado”, um cantor supostamente fora do tom, está exercendo o seu ato de falar, não
de cantar: sua expressão caracteriza-se como “uma mentira-verdadeira ou uma verdade-
mentirosa” (Sant’Anna, 2004: 44) com o fito de ironizar aqueles que debochavam de seu
canto distinto. Observa Sant’Anna que o sujeito poético, através do fingimento, se faz
criticar para revidar o gesto daqueles que o agrediam previamente, mantendo, como
decorrência automática, “o controle da afinação a ponto de poder desafinar
intencionalmente” (Sant’Anna, 2004: 44). O diferencial da arte de João Gilberto (o mote
inspirador dos versos) era a batida de seu violão, que incorporou as batidas dos
instrumentos de percussão, ou seja, o instrumento-símbolo de toda uma geração fazia sua
aparição nos discos do cantor “reproduzindo apenas os tamborins da escola de samba”
(Duarte & Naves et alli, 2003: 20)
11
. O crítico musical Tárik de Souza compreende João
Gilberto e Tom Jobim como figuras paradigmáticas da modernidade musical brasileira pelo
fato de (ao lado da presença do lirismo de Vinícius de Moraes) terem efetuado uma ruptura
com a música brasileira tradicional no mesmo passo em que prosseguiam com “a linha
evolutiva da MPB através de citações, tributos e influências de antepassados” (IN Duarte &
11
A respeito da arte minimalista de João, Tom Jobim escreveu que “quando João Gilberto se acompanha, o
violão é ele, quando a orquestra o acompanha, a orquestra também é ele” (apud Duarte & Naves et alli, 2003:
52).
43
Naves et alli, 2003: 51).. Ainda observa o crítico que, ao retomar a tradição musical
brasileira, João apresentava
um vocal intimista e interiorizado, vizinho da fala coloquial que o aproxima mais
de Mário Reis, mesmo que isso não signifique uma filiação direta ao discípulo do
primeiro rei do samba. A costura indissolúvel de canto e violão que ele imprime, no
entanto, o distancia de todos os modelos anteriores para cunhar um resultado
absolutamente revolucionário (IN Duarte & Naves et alli, 2003: 51).
2.2 - Agrestes protestos
Apesar de uma certa notoriedade da Bossa Nova, seu estilo intimista e despojado
(representado pela presença do banquinho e do violão) era impróprio para ser assimilado
pelas grandes massas (daí compreender que o declínio dos cantores do rádio não se deu de
uma hora para outra), visto que estávamos diante de uma arte extremamente moderna e
sofisticada. Compreende-se que é a partir desta etapa da vida cultural brasileira que a
canção popular sofre um processo de intelectualização (cf. Napolitano, 2002: 63): isto é, a
produção bossa-novista se revelou como uma espécie de pensamento musical que estava de
acordo com a construção do Brasil moderno.
Todavia, com o final da década de 50, desfez-se a atmosfera solar paradisíaca de
Copacabana e Ipanema com seus barquinhos, moças de corpo dourado, cantinhos,
banquinhos, violões, flores e amores. A década seguinte já se iniciava desiludida com o
governo Jânio Quadros e a posterior desconfiança, de boa parte da nação, em relação à
administração de João Goulart. O clima de otimismo da era JK saíra de cena para dar lugar
a uma nova ordem musical que se caracterizava “ora por um clima cáustico e árido de sol a
pino nordestino, ora por sensibilidades quentes e úmidas de sabor fortemente africano”
(Naves, 2001: 26). Em outras palavras, o início dos anos 60 fez com que alguns segmentos
da sociedade brasileira re/pensassem nossa realidade: no fim do governo de Juscelino
Kubitschek, a dívida externa brasileira atingia quase 4 bilhões de dólares, a inflação já
ultrapassava o nível de 30% ao ano, o êxodo rural e os movimentos camponeses cresciam
vertiginosamente (com destaque para o movimento das Ligas Camponesas) e as
organizações operárias e estudantis também começavam a tomar corpo (cf. Fausto, 2000).
As injustiças sociais se tornavam cada vez mais gritantes, afetando as manifestações
44
artísticas, transformando-as, muitas vezes, em plataformas político-culturais de debate e
discussão de várias questões referentes ao momento histórico em questão. De acordo com
Santuza Cambraia Naves:
No caso brasileiro, tratava-se de superar o subdesenvolvimento através de uma
postura positiva com relação à indústria e a mídia que permitisse aos artistas
intervir nestas esferas em prol de uma transformação da sociedade. Cabia ao artista,
portanto, participar do novo mundo que então se descortinava, e não ficar preso às
idealizações provenientes de nossa tradição acadêmica e humanista, que alçava a
cultura a um estatuto elevado e só acessível aos postuladores de verdades essenciais
e imutáveis (Naves, 2001: 30).
Como decorrência do processo de engajamento por parte de determinados setores da
sociedade brasileira, a União Nacional dos Estudantes (UNE) criou, no ano de 1961, os
Centros Populares de Cultura (mais conhecidos como CPCs). O objetivo desta criação era
conscientizar as camadas sociais menos abastadas (operários e camponeses essencialmente)
acerca do quadro político e social da nação brasileira através de peças teatrais, livros de
poesia (a série Violão de Rua), canções de caráter engajado, dentre outras manifestações. A
proliferação das discussões e debates no plano cultural se revelou, num primeiro momento,
como algo bastante enriquecedor para nossos artistas e criadores: de acordo com o
pensamento de Roberto Schwarz e Heloísa Buarque de Hollanda, por exemplo, o Brasil
“estava irreconhecivelmente inteligente” (Schwarz, 1978: 69 / Hollanda & Gonçalves,
1982: 8).
Temas como o imperialismo norte-americano, a dívida externa, a reforma agrária e
outras problemáticas que refletissem o autoritarismo das instituições em geral eram
amplamente abordados também pela imprensa brasileira no início da década de 60. A
ascensão do movimento operário na cena urbana e das ligas camponesas na vida rural
repercutia pelos quatro cantos do país, ampliando o debate político e, conseqüentemente,
influenciando a cultura do período. A música popular daquela época contribuiu
maciçamente para a ampliação destes debates, passando a valorizar temas mais engajados
com o intuito de interpretar a sensibilidade popular, refletir o Brasil em versos e ritmos,
fazendo-o um espelho de nossas belezas e contradições.
45
A geração dos CPCs, oriunda dos bancos acadêmicos, buscava a integração entre
arte e política: os artistas tinham a obrigação de serem “revolucionários”, veiculando um
discurso de cunho político, denunciando as mazelas do Brasil. Houve uma crescente
influência das ideologias de esquerda no meio artístico, provocando uma mudança de
postura de muitos artistas do período por exemplo, vários componentes da Bossa Nova
que, até então se mantinham à margem de tais discussões, se empenharam, desde então,
numa expressão revolucionária do ponto de vista estético e ideológico. O primeiro passo
consistiu em resgatar talentos relegados ao ostracismo como Cartola, Zé Kéti, Nelson
Cavaquinho, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro de forma que as raízes da música
popular deixassem de sofrer o desprezo daqueles que valorizavam apenas a chamada
“música de apartamento”. As releituras destes sambas e ritmos nordestinos assumiam um
caráter libertário, exaltando o Brasil e incitando discussões polêmicas: acreditava-se no
poder de transformação do discurso engajado e, através da fruição das canções, seria
possível denunciar os problemas sociais da nação, e combater a elitização de boa parte da
produção bossa-novista, que demonstrava o não-lugar para favelados, retirantes ou
quaisquer personagens de destaque nas canções engajadas.
Enquanto Carlos Lyra e Vinícius de Moraes davam início a uma parceria repleta de
lirismo e engajamento (um exemplo curioso do que os dois compuseram foi o “Hino da
UNE” no início da década de 60), outros artistas, obviamente, se mostraram em posição
contrária aos que protagonizaram os debates culturais naquele período e pensavam que
constituíam a matriz da Bossa Nova. Em outras palavras, entre versos de amor, visões do
belíssimo mar de Copacabana e Ipanema e “lobos bobos, esta ala de músicos acreditavam
piamente no ‘fundamento jobino-gilbertiano’” (Motta, 2000: 38), evidenciando uma
postura bastante equivocada se levarmos em conta a qualidade da produção engajada dos
artistas da canção. Roberto Menescal, no auge de tais discussões, afirmava que não possuía
a menor consciência política. Ronaldo Bôscoli, por sua vez, já era infinitamente mais ferino
e truculento. De acordo com Nelson Motta, o compositor
era implacável com a esquerda musical, a antibossa nova, reagia à ameaça dos
novos compositores que estavam fazendo uma música oposta à dele. Detestava a
valorização de sambistas de morro e artistas nordestinos. Beatles, nem pensar. Os
46
musicais políticos do Teatro de Arena e os filmes do Cinema Novo mereciam dele
saraivadas de piadas (Motta, 2000: 134).
Em meio às agitações que permeavam a vida cultural brasileira no início da década
de 60, tornou-se inviável o espaço para as temáticas recorrentes da Bossa Nova; exigindo a
necessidade de criação de um novo discurso musical. O lirismo ficou em segundo plano
(apesar das inovações trazidas por João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes). As
reflexões de José Miguel Wisnik confirmam as incompatibilidades internas que marcaram a
perda do interesse público por esta tendência da produção bossa-novista:
A Bossa Nova não sustentou muito tempo intactos o intimismo urbano e a
contemplação otimista do País moderno que a caracterizaram, pois as linhas
cruzaram daquele momento cultural, em que um projeto populista de aliança de
classes em bases nacionais contracenava fortemente com o desenvolvimento,
levaram a que ela se desdobrasse numa música de tipo regional, rural, baseada na
toada e na moda-de-viola, quando não no frevo, no samba e na marcha-rancho
(Wisnik, 2004: 208).
Além do mais, o ambiente sócio-cultural brasileiro seria extremamente abalado em
um primeiro momento com a radicalização do processo político a partir de 31 de março de
1964. A instauração do golpe militar e do novo regime, fez com que determinados setores
da classe média se aliassem às Forças Armadas com o intuito de impedir a ascensão do
pensamento de esquerda e garantir a supremacia do capital, nesse sentido, foram
promovidas intervenções das mais variadas como o combate aos sindicatos trabalhistas, a
destruição da sede da UNE e da Universidade de Brasília, a perseguição aos setores mais
progressistas dos centros universitários e aos Centros Populares de Cultura (cf. Schwarz,
1978: 61-62). Por outro lado, a intervenção dos militares no campo econômico possibilitou
a ampliação das siderúrgicas e de outras instituições de renome como a Petrobrás, a Vale do
Rio Doce e a Eletrobrás, embora já estivessem em vias de expansão desde o governo de
João Goulart. A respeito desse assunto, o sociólogo Francisco de Oliveira (IN Reis et alli,
2004: 120) observou que
ironicamente, a ditadura militar completava a obra de Vargas e Kubitschek,
particularmente no que diz respeito às chamadas ‘indústrias de base’, e deixando
47
reservado para o setor privado todo o rico desenvolvimento dos bens duráveis de
consumo e, claro, o setor de bens não-duráveis. Uma transferência via preços
administrados potencializou a acumulação privada, e, unido a uma conjuntura
internacional favorável, de alta liquidez, o regime enveredou pela senda do
endividamento externo, como forma de ampliar a poupança disponível para
investimentos. As empresas estatais, revigoradas, ampliadas, e as novas,
funcionaram como uma base de lançamento de títulos e empréstimos no Exterior,
que eram introjetados para a acumulação interna.
Ao contrário da ditadura instaurada por Getúlio Vargas nos anos 30 e 40 que era
marcadamente populista por possuir uma intenção “didático-pedagógica” (cf. Silva, 1993:
53), o regime militar era essencialmente anti-populista, pondo em prática um processo de
“exclusão da política”, deixando a sociedade brasileira às margens do processo político (cf.
Oliveira IN Reis et alli: 119). Estudantes foram afastados das ruas para que as chamadas
Marchas da Família com Deus pela Liberdade tomassem o espaço público, espalhando o
conservadorismo e a arrogância, endossando o discurso dos militares recém-empossados
(cf. Hollanda & Gonçalves, 1982: 12). A troca de poderes oficiais, como podemos
compreender, causaram uma guinada bastante incisiva no campo cultural:
Repentinamente o “Brasil inteligente” aparecia tomado por um turbilhão de
preciosidades do pensamento doméstico: o zelo cívico-religioso a ver por todos os
cantos a ameaça de padres comunistas e professores ateus: a vigilância moral
contra o indecoroso comportamento “moderno” que, certamente incentivado por
comunistas corrompia a família; o ufanismo patriótico, lambuzado de céu anil e
matas verdejantes enfim, todo o repertório ideológico que a classe média, a
caráter, prazerosamente é capaz de ostentar (Hollanda & Gonçalves, 1982: 13).
A mudança ocorrida no panorama sócio-político-cultural provocou uma aguda crise
de ordem ideológica por parte de artistas e pensadores: a perplexidade por parte dos
esquerdistas românticos fora significativa, pois muitas de suas crenças se anularam
automaticamente com o recrudescimento do golpe. Mesmo assim, os artistas revoltados
procuravam reestruturar suas bases reflexivas em meio ao ambiente repressor (cf. Ridenti,
2000: 121). Caetano Veloso apontou em suas memórias que o governo instalado no Brasil a
partir de 1964 só pode ser compreendido como não ditatorial se traçado um paralelo com o
48
endurecimento do regime quatro anos mais tarde, visto que sempre havia “meios de gritar
‘abaixo a ditadura’ e, bem antes de começarem a crescer os movimentos estudantis que
levaram multidões à rua, a produção cultural, sobretudo o teatro, tomava a si a
responsabilidade de veicular o protesto” (Veloso, 1997: 81-82).
Por isso, se por um lado o regime militar estrangulou o pensamento e a expressão
artística nacionais, por outro, impulsionou muitos artistas, estimulando-os a utilizar seu
talento e a sua arte como reação à rigidez ditatorial. Roberto Schwarz atesta que a maioria
dos integrantes das classes intelectual e artística era de esquerda e não tiveram suas idéias
e/ou produções completamente abafadas com a instauração do governo Castello Branco (cf.
Schwarz, 1978: 62). Ao contrário, a ideologia daqueles que se mostravam opostos ao
regime podia
ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estréias teatrais,
incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na
movimentação estudantil ou nas proclamações de clero avançado. Em suma, nos
santuários da cultura burguesa a esquerda da[va] o tom. Esta anomalia (...), quando
a ditadura decretou penas pesadíssimas para a propaganda do socialismo é o traço
mais visível do panorama cultural brasileiro entre 64 e 69. Assinala, além da luta,
um compromisso (Schwarz, 1978: 62).
O pensamento de Carlos Frederico, em plena consonância com o de Schwarz,
também descreve o caldeirão político-cultural que fervilhava durante a década de 60:
A efervescência artística do pré-64, expressa no Cinema Novo, na Bossa Nova, nos
Centros Populares de Cultura, desdobrou-se, após o golpe, num amplo movimento
de resistência cultural contra os novos governantes, a censura e o chamado
“terrorismo cultural”. A contestação inicial do regime foi feita basicamente pela
intelligentsia radicalizada, num momento dramático em que a classe operária
encontrava-se desmobilizada e sofrendo uma repressão que os donos do poder não
ousavam estender para as classes médias intelectualizadas. É este o contexto de
onde surgirá um aguerrido movimento estudantil que, a partir de 1966, ocupou as
ruas das principais cidades do país, desafiando a ditadura (Frederico apud Moraes
IN Reis et alli, 2004: 299-300).
49
Entretanto, é necessário desdobrar uma outra face do problema. Na medida em que
o governo Castello Branco possibilitou o florescimento das artes e idéias de esquerda
durante o regime recém-instaurado (desde que estas ideologias não atingissem as camadas
populares e constituíssem uma massa que fizesse frente ao regime) e concedeu amplo apoio
às redes de televisão através de concessões de canais. Esse caráter flexível dos militares foi,
conforme observou Flora Süssekind em seu livro Literatura e vida literária, peça
fundamental para que eles se mantivessem no Estado Brasileiro por mais de vinte anos (cf.
Süssekind, 2004: 21/22).
As massas populares deixaram de encontrar o seu outro na esquerda para vislumbrar
na televisão o seu interlocutor principal; com isso, na medida em que as emissoras
televisivas garantem o seu desenvolvimento e a conquista de um público cativo, os
governantes conquistavam de vez “a certeza de um controle social efetivo em cada casa que
possuísse o seu aparelho transmissor. E o desenvolvimento de uma outra estética,
rapidamente assimilada pelo gosto popular: a do espetáculo” (Süssekind, 2004: 23).
Certamente, as conseqüências deste fato foram imediatamente perceptíveis, na medida em
que a esquerda pós-64 caminhou para um inevitável vazio a ser percebido apenas no final
da década de 60:
Aos intelectuais ligados à produção ideológica, à cultura de protesto, restava uma
espécie de “diálogo de comadres”. Ou falavam com os que já simpatizavam com
seu ideário, ou com a própria camada dirigente. Quando se imaginavam em diálogo
com a massa operária ou camponesa, seus interlocutores costumavam ser bem
outros. Daí, a maior parte da arte de protesto de fins dos anos 60 e início da década
de 70 encaminhar-se para um vazio ideológico. (Süssekind, 2004: 23-24).
A crença da esquerda no poder de conscientização através das artes se manteve
praticamente inabalada com o endurecimento do regime democrático. Porém, na medida
em que a idéia de democracia ficava cada vez mais restrita aos dicionários, nossos músicos
sentiam cada vez mais a necessidade de reafirmar as propostas estéticas nacionalistas
veiculadas pelo CPC temas como paz, liberdade, solidariedade e resistência eram os
alicerces de uma variante musical que obteve muito sucesso naquele período: a canção de
protesto. Esta música possuía uma função didática; através da fruição do objeto estético, os
50
receptores teriam condição de apreender a gravidade dos problemas da vida brasileira e,
obrigatoriamente, refletir e se voltar contra o sistema vigente.
A linguagem artística, para estes criadores, deveria ser simples e direta e não
deveria fugir dos preceitos marxistas nem expor conflitos de teor subjetivo, senão a obra
correria o risco de ser considerada como alienada, desviando os receptores “da tomada de
consciência dos seus interesses sociais, dificultando sua participação revolucionária”
(Carmo, 2001: 64). A canção de protesto da década de 60, conseqüentemente, retomava
uma tendência estético-discursiva dos CPCs que beirava a contradição. O poeta e crítico
Ferreira Gullar, um dos líderes daquele movimento, reconheceu, em recente depoimento, a
má qualidade estética das manifestações promovidas por seu grupo:
O grande erro do CPC foi dizer que a qualidade literária era secundária, que a
função do escritor é fazer de sua literatura instrumento de conscientização política e
atingir as massas, porque se você for sofisticado, se fizer uma literatura, um teatro,
uma poesia sofisticada, você não vai atingir as massas. [...] Nós nem fizemos boa
literatura durante o CPC, nem bom teatro, nem atingimos as massas. Então, nós
sacrificamos os valores estéticos em nome de uma tarefa política que não se
realizou porque era uma coisa inviável (apud Ridenti, 2000: 111).
Como é possível perceber, evidentemente, a conseqüência principal de tamanho
radicalismo, tanto por parte do grupo do cpcista, quanto daqueles que compunham e
cantavam música de protesto, foi um subseqüente empobrecimento estético do discurso
artístico, visto que “uma vez que todos os elementos não imediatamente políticos deveriam
ser eliminados da existência humana. A atividade cultural se resumia na arte política vista
como um dos instrumentos para a desalienação e, a médio prazo, para a conquista do
poder” (Carmo, 2001: 64).
Estes intelectuais, bastante preocupados em organizar o meio cultural brasileiro e
findar por constituir uma espécie do que Renato Ortiz chamou de “concepção leninista de
vanguarda” (Ortiz, 2005: 69), desprezaram o que as camadas populares poderiam oferecer
de melhor: sua cultura. Ao se pretenderem como exclusivos pensadores da sociedade e
eliminarem a posteriori a estética das manifestações artísticas dos Centros Populares de
Cultura, “o povo é o personagem principal (...), mas na realidade se encontra ausente. Não
há vida interior dos personagens, dilui-se a dimensão do indivíduo, e com isso a própria
51
existência”, conseqüentemente “preterida diante do argumento político colocado a priori
como necessidade interna do texto” (Ortiz, 2005: 73).
A falha destes pensadores e artistas foi justamente uma conseqüência direta do
maniqueísmo dos militares, conforme o pensamento de Flora Süssekind:
Tiro certeiro o da estratégia autoritária nos primeiros anos de governo militar.
Certeiro e silencioso: deixava-se a intelectualidade bradar denúncias e protestos,
mas os seus possíveis espectadores já tinham sido roubados pela televisão. Os
protestos eram tolerados, desde que diante do espelho. Enquanto isso, uma
população convertida em platéia consome o espetáculo em que se transformam os
governos militares pós-64 é construída via televisão, via produção artística e
ensaística de esquerda se via transformada assim numa espécie de Cassandra. Podia
falar sim, mas ninguém a ouvia. A não ser outras cassandras idênticas (Süssekind,
2004: 24).
Augusto de Campos (1993) observou, em Balanço da Bossa, que a canção de
protesto produzida no Brasil antecedeu a protest song norte-americana: antes da Bossa
Nova, Juca Chaves já satirizava o presidente JK, por exemplo
12
. Em relação este tipo de
música (que não passava de um mero “slogan ideológico”), a problemática tinha alcançado
significativa gravidade:
No âmbito da música, o compositor deveria fazer-se estritamente esclarecido dos
sentimentos populares, induzindo o povo a perceber as causas de suas muitas
dificuldades. Os artistas do CPC preferiam o samba de rua, pois este, com linhas
melódicas pouco elaboradas e letras simples e diretas sobre a dura realidade vivida
pelo povo brasileiro, constituía-se, segundo tal concepção, num veículo ideal de
orientação ideológica (Carmo, 2001: 64-65).
Um nome que ocupou com destaque a cena cultural deste momento foi o de Nara
Leão. Ao reunir, em seu apartamento em Copacabana, vários músicos de Bossa Nova, por
noites afora, a cantora foi eleita musa de sua geração, inspirando as canções mais líricas da
dupla Roberto Menescal - Ronaldo Bôscoli. Entretanto, Nara estava mais de acordo com a
12
Afirmamos apenas como um caso paradigmático por não tomarmos o samba dos anos 30 e 40 como casos
exemplares de contestação em música popular. A análise detalhada deste exemplo nos custaria uma análise
mais profunda e um maior levantamento de dados que fogem ao nosso objeto de pesquisa.
52
vertente engajada do movimento que a projetou nacionalmente. Seu primeiro álbum, de
1964, já evidenciava o seu senso crítico ao resgatar a tradição do samba de morro (até então
desprezada por boa parte dos músicos de Bossa Nova) e trazer para o grande público
algumas das melhores canções de protesto até então. Obras como “Diz que fui por aí” (Zé
Kéti), “O sol nascerá (A sorrir)” (Cartola) e “O morro (Feio não é bonito)” (Carlos Lyra -
Gianfrancesco Guarnieri) são exemplos não apenas da postura ousada da artista, como
também provas do engajamento que permeava a canção popular em meados da década de
60.
Em vários momentos de sua carreira, Nara investiu contra a ditadura militar. Em
maio de 1966, uma de suas declarações contra o regime quase a levou para detrás das
grades, provocando muita polêmica através da imprensa. Por outro lado, a visão aguçada da
cantora foi fundamental no processo de reavaliação da Bossa Nova e na necessidade de
retratar os dramas do Brasil ao invés de exaltar a beleza da Zona Sul do Rio de Janeiro. As
palavras da própria artista, transcritas a seguir, comprovam a sua posição contra um estilo
que já considerava desatualizado:
Chega de Bossa Nova. Chega disso, que não tem sentido. Chega de cantar para dois
ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que tem
muito mais a dizer, que é a expressão do povo, e não uma coisa feita de um
grupinho para um grupinho. (...) Não tenho nada, nada mesmo com um gênero
musical que, sinto, não é meu nem é verdadeiro. Se estou me desligando da Bossa
Nova? Há algum tempo fiz isso, mas ninguém quis acreditar. Espero que agora
compreendam que nada mais tenho a ver com ela. A Bossa Nova me dá sono, não
me empolga. Pode ser que, no passado, eu tenha sido uma tola, aceitando aquela
coisa quadrada, que ainda tentam me impingir. Tenho um convite de Sérgio
Mendes para, por iniciativa do Itamarati, fazer uma excursão aos Estados Unidos.
Mas como posso aceitar? Vão me obrigar a cantar Garota de Ipanema e, pior, em
inglês. Essa gente quer me forçar a fazer aquilo que não quero. Bolas, por que
cantar sempre a mesma coisa? (apud Cabral, 2001: 80).
De fato, Nara Leão desejava não estar limitada a um determinado gênero musical, e
sim cantar um repertório condizente com o momento histórico. Em seu segundo disco,
Opinião de Nara, demonstrou que a música produzida em nosso país não era apenas
entretenimento, e sim algo que podia auxiliar os mais diversos setores da sociedade
53
brasileira “a compreender[em] melhor o mundo em que vivem a se identificarem num nível
mais alto de compreensão”, sem deixar de ter a esperança possível de que “talvez possamos
tornar mais vivos na alma do povo idéias e sentimentos que o[s] ajudem a encontrar na dura
vida o seu melhor caminho” (Cabral, 2001: 85). A canção que norteia a concepção deste
trabalho é “Opinião”, de Zé Kéti:
Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não
(...)
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu
13
A leitura de Nara para este samba de Zé Kéti é um dos exemplos mais patentes da
canção de protesto que se produzia nos anos 60. Por outro lado, cabe ressaltar que no caso
de “Opinião”, houve um processo de releitura coletiva do significado real da criação de Zé
Kéti (cf. Araújo, 2003: 238), que, inicialmente, fora composta para protestar contra o
Programa de Remoção nas favelas cariocas organizado pelo governo Carlos Lacerda no
início daquela década. A medida governamental obrigou os habitantes de 12 favelas do Rio
de Janeiro a se mudarem para locais distantes da área metropolitana como Bangu, Vigário
Geral, Senador Camará e Cidade de Deus, localizado em Jacarepaguá. De acordo com
Paulo César de Araújo:
A forma autoritária e truculenta como era feita a remoção (algumas favelas, como a
do Pasmado, chegaram a ser incendiadas para forçar a saída dos moradores), assim
como a dificuldade de transporte entre os novos locais e o Centro da cidade,
acabaram gerando a resistência dos habitantes dos morros. E é isto que o
compositor Zé Kéti retrata na letra de seu famoso samba (Araújo, 2003: 38).
13
IN: Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti, Opinião (1965).
54
Quando Nara gravou “Opinião” com batidas de tambores
14
ao fundo uma clara
alusão à ditadura militar , o sentido original do samba fora completamente modificado.
Por outro lado, a cantora tinha o projeto estético de “ultrapassar o horizonte temático da
Bossa Nova e fazer a música entrar na discussão dos problemas sociais e políticos que o
novo teatro brasileiro abordavam com freqüência e paixão” (Veloso, 1997: 77). A execução
desta canção simbolizava uma espécie de catarse coletiva por parte da esquerda
universitária, desejosa em combater os generais que tinham tomado conta do poder oficial:
E ninguém reparava justamente porque o samba “Opinião” tem um refrão
impactante, aberto, que enfatiza a resistência e que servia naquele momento para
insuflar a luta contra o regime dos generais. Mas é possível dizer que até hoje a
maioria das pessoas também não conhece as outras duas estrofes da letra deste
samba. (...) esta releitura ou apropriação que o público de classe média intelectual
fez do samba de Zé Kéti (...) [veiculou] uma mensagem de protesto e resistência
(Araújo, 2003: 238).
A gravação desse samba motivou Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Paulo
Pontes e Armando Costa a conceber um espetáculo que consistia em textos literários e
musicais dramatizados com a intenção de abordar temáticas de caráter político. Em
dezembro de 1964, Opinião estreou no Rio de Janeiro, encantando generosas parcelas de
crítica e público. Vale observar que boa parte das platéias consistia de estudantes que se
organizavam paulatinamente em um grande movimento generalizado “de vanguarda
política no país” (Schwarz, 1978: 81). No mesmo espaço cênico, estavam reunidas as
figuras de Nara Leão, representante da Zona Sul do Rio de Janeiro, Zé Kéti, figura
representativa do samba de morro e João do Vale, personificando o Nordeste castigado pelo
descaso das autoridades constituídas. O evento combinava com perfeição “o charme dos
shows de bolso de Bossa Nova em casa noturna com a excitação do teatro de participação
política”, resultando na “aproximação entre a música moderna brasileira e a arte engajada”
(Veloso, 1997: 72). Em seu ensaio, Roberto Schwarz apontou em um de seus ensaios que, a
partir de Opinião, o palco teve o seu lugar social radicalmente alterado:
14
As batidas de tambores presentes na releitura de Nara para “Opinião” foi idéia de Glauber Rocha, um dos
principais alicerces do Cinema Novo e um dos maiores agitadores culturais daquele período (cf. Cabral, 2001:
85) fato que confirma a deturpação do sentido original da criação de Zé Kéti.
55
Em lugar de oferecer aos estudantes a profundidade insondável de um texto belo ou
de um grande ator, o teatro oferecia-lhes uma coleção de argumentos e
comportamentos bem pensados, para imitação, crítica ou rejeição. A distância entre
o especialista e o leigo diminuíra muito (Schwarz, 1978: 81).
De acordo com Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Augusto Gonçalves,
Opinião era uma retomada de vários preceitos estéticos cpcistas interrompidos com o golpe
militar:
Ainda com um certo sabor CPC, temos aqui alguns pontos-chave do raciocínio
cultural engajado que dá o tom nesse momento: a idéia de que a arte é “tanto mais
expressiva” quanto mais tenha uma “opinião”, ou seja, quanto mais se faça
instrumento para a divulgação de conteúdos políticos; a idealização, um tanto
problemática, de uma aliança do artista com o “povo”, concebido como a fonte
“autêntica” da cultura; e um certo nacionalismo, explícito na referência de
indisfarçável sotaque populista às “tradições de unidade e integração nacionais”
(Hollanda & Gonçalves, 1982: 22-23).
A união do teatro com a música popular, segundo Marcelo Ridenti, “expressava a
utopia libertária da aliança entre os artistas e o povo num projeto revolucionário” (IN
Duarte & Naves et alli, 2003: 116-117). Enfim, os artistas engajados conseguiam elaborar
uma resposta ao clima de autoritarismo que tinha tomado conta da nação, ao mesmo tempo
em que rompiam com o tradicional Teatro de Revista, com suas ingênuas esquetes. Esta
nova vertente se caracterizava justamente por entremear “textos escolhidos na literatura
brasileira e mundial ou escritos especialmente para a ocasião, que veio a desenvolver-se
como uma das formas mais influentes na subseqüente história da música popular brasileira”
(Veloso, 1997: 72). Em outras palavras, a produção protagonizada por Nara Leão, João do
Vale e Zé Kéti
revelou-se um espetáculo extremamente oportuno. Reunindo um público jovem, o
show parecia interpretar o sentimento de toda uma geração de intelectuais, artistas e
estudantes naqueles dias em que a realidade do poder militar afigurava-se como um
fantasma no imaginário da revolução brasileira. Para espantá-lo, surgia um novo
imperativo: fa lar, cantar, manifestar. Tratava-se de expressar, contra o
56
autoritarismo que subia ao poder, a determinação à denúncia e ao enfrentamento.
“Mais que nunca, é preciso cantar”, sugeria a voz de Nara Leão entoando a Marcha
da Quarta-feira de Cinzas, nesse momento investida de todo um universo de
alusões à esperança e à resistência (Hollanda & Gonçalves, 1982: 23).
O tom de contestação de Opinião tinha o intuito de defender questões que já eram
defendidas pelo CPC como as diferenças econômicas existentes, a reforma agrária e outros,
garantindo a empatia imediata por parte do grande público, conforme nos informa Ferreira
Gullar (apud Ridenti, 2000: 126): “o povo, a intelectualidade toda e o pessoal de classe
média se identificou, viram que aquilo era a expressão contrária à ditadura e o teatro era
lotado com meses de antecedência”. O poeta maranhense ainda informou em depoimento
concedido a Marcelo Ridenti que quando os militares tomaram consciência da mensagem
principal veiculada por Opinião já era tarde demais, pois era impossível censurar ou deter
um sucesso maciço de crítica e público (cf. Ridenti, 2000: 126).
Em outras palavras, “encenava-se um pouco da ilusão que restara do projeto
político-cultural pré-64 e que a realidade não parecia disposta a permitir: a aliança do povo
com o intelectual, o sonho da revolução nacional e popular” (Hollanda & Gonçalves, 1982:
23). De acordo com Roberto Schwarz, a música, neste espetáculo, foi um recurso dramático
com o intuito de expressar uma espécie de protesto:
Neste enredo, a música resultava principalmente como resumo, autêntico, de uma
experiência social, como a opinião que todo cidadão tem o direito de formar e
cantar, mesmo que a ditadura não queira. Identificavam-se assim para efeito
ideológico a música popular que é com o futebol a manifestação chegada ao
coração brasileiro e a democracia, o povo e a autenticidade, contra o regime dos
militares. O sucesso foi retumbante (Schwarz, 1978: 80).
Schwarz ainda identifica a existência de um determinado mal-estar de ordem
estética e política entre palco e platéia no decorrer dos primeiros espetáculos produzidos
pelo grupo remanescente do CPC Opinião e Liberdade, Liberdade encenava-se, de
certa maneira, a frustração da esquerda em não poder participar do processo político
brasileiro, daí a incessante vontade de querer sempre conduzir o público à catarse
15
:
15
O efeito catártico de Opinião é muito bem descrito por Izaías Almada, assistente de direção de Augusto
57
O lavrador, a reforma agrária, a favela, os ventos da revolução cubana, a idéia da
revolução no Brasil alimentavam a sympathia entre cantores e espectadores. O tom
exortativo e mobilizante que envolvia a todos parecia promover antes a resposta
emocionada e esperançosa do que a reflexão e o distanciamento crítico. Uma
limitação, não há dúvida, mas que viria a se revelar, por outro lado, extremamente
eficaz enquanto tática de aglutinação e mesmo de conformação da “linguagem”
política que passaria a ser desenvolvida nesta segunda metade da década (Hollanda
& Gonçalves, 1982: 23).
Embora esses espetáculos não oferecessem respostas políticas para o dilema
brasileiro (cf. Schwarz, 1978: 81), a juventude universitária, extremamente ansiosa por
mudanças no panorama nacional, se espelhava em tais manifestações, constituindo o
público da vanguarda da década de 60 que
era muito mais estudantil que o costumeiro, talvez por causa da música, e portanto
mais politizado e mais inteligente. Daí em diante, graças também ao contato
organizado com os grêmios escolares, esta passou a ser a composição normal da
platéia do teatro de vanguarda. Em conseqüência aumentou o fundo comum de
cultura entre palco e espectadores, o que permitia alusividade e agilidade,
principalmente em política, antes desconhecidas. Se em meio à suja tirada de um
vilão repontavam as frases do último discurso presidencial, o teatro vinha abaixo de
prazer (Schwarz, 1978: 81).
Opinião fez de Nara Leão uma grande musa da canção de protesto, surpreendendo
os ouvintes mais ferrenhos de Bossa Nova com o seu magnetismo. Porém, tal triunfo não
perdurou por muito tempo: no final de janeiro de 1965, a resistência física da cantora não
suportou as pressões do trabalho excessivo, forçando a sua retirada do espetáculo. A
cantora teve de ser substituída às pressas por uma jovem estreante de 18 anos, baiana,
completamente desconhecida pelo grande público e que atendia pelo nome de Maria
Bethânia. Logicamente, a substituição causou altas celeumas por parte do público, da
crítica e até da equipe de produção do espetáculo: os dotes físicos nada convencionais da
Boal: “Opinião é um marco do teatro no Rio de Janeiro e no Brasil. O sucesso foi grande: era a primeira
manifestação mais pública, mais midiática (...) contra o golpe de 64. Um ano depois dele, tinha um show num
teatro bem localizado no Rio de Janeiro, que superlotava diariamente. As pessoas iam fazer uma catarse ali,
contra a repressão violenta que se iniciava no Brasil” (apud Ridenti, 2000: 125).
58
irmã de Caetano Veloso alta, magérrima, nariz aquilino, cabelos crespos sempre presos,
semelhantes aos de uma retirante nordestina (cf. Naves, 2001: 38-39) não agradavam,
mas sua performance no palco enfeitiçou a todos, especialmente quando interpretou
“Carcará”, de João do Vale e José Cândido. Esta canção já tinha uma boa receptividade
quando interpretada por Nara, mas a voz rascante e a dramaticidade de Bethânia (que
beirava o expressionismo) enfatizaram ainda mais o caráter politizado do número,
evidenciando as injustiças presentes no Nordeste brasileiro, o que transformou a estreante
em um grande expoente da música de protesto. A partir daí, a estrela garantiu a admiração
das platéias, além de ter revelado um extraordinário domínio em cena. A figura do pássaro
predador era uma alegoria dos ideais revolucionários em tempos de ditadura. O carcará,
através de sua força inesgotável, violenta e resistente, representava a superação da penúria
vivenciada em pleno agreste nordestino:
Carcará
Pega, mata e come
Carcará
Num vai morrer de fome
Carcará
Mais coragem do que homem
Carca
Pega mata e come
Carcará
Lá no sertão
É um bicho que avoa que nem avião
É um pássaro malvado
Tem o bico volteado que nem gavião
Carcará
Quando vê roça queimada
Sai voando, cantando,
Carcará
Vai fazer sua caçada
Carcará come inté cobra queimada
59
Mas quando chega o tempo da invernada
No sertão não tem mais roça queimada
Carcará mesmo assim num passa fome
Os burrego que nasce na baixada
Carcará é malvado, é valentão
É a águia de lá do meu sertão
Os burrego novinho num pode andá
Ele puxa no bico inté matá
Carcará
Pega, mata e come!
16
A canção de João do Vale apresentava algo distinto em relação às outras canções de
protesto que se compunham naquela época, tal qual podemos compreender a partir da
observação de Caetano Veloso:
A recriação da cena de rapina era magistralmente lograda pela composição, e a
altivez do grande pássaro ainda vinha elevada à categoria do mito pela linha “sai
voando e cantando carcaráááááá”, quando, na canção, se canta o canto da ave, que
lhe dá nome. (...) em meio a tantas outras canções em que se condenava o
latifúndio e a exploração, a idéia da rapina parecia adequar-se à caracterização do
explorador; no entanto, louvava-se a saúde da ave rapace e mesmo sugeria-se que
do seu ato se extraísse uma lição (Veloso, 1997: 73).
No final da execução de “Carcará”, Maria Bethânia amplificava ainda mais o tom de
protesto ao recitar dados sobre a migração do Brasil “Em 1950, mais de dois milhões de
nordestinos viviam fora de seus Estados natais; 10% da população do Ceará emigrou; 13%
do Piauí; 15% da Bahia; 17% de Alagoas” (Calado, 1997: 64) denunciando o atraso do
país e a necessidade do instinto de sobrevivência de cada um, arrancando aplausos
entusiasmados da platéia, visto que “confirmava o caráter de protesto social da canção, ou
pelo menos transformava em ameaça de revolução sangrenta a retomada do refrão (...)
‘pega, mata e come’” (Veloso, 1997: 73).
16
IN: Maria Bethânia, Maria Bethânia (1965).
60
O tom didático-engajado de Opinião incentivava o debate político, criando “um
culto de platéias politizadas” (Veloso, 1997: 74), incitando o público a reagir em relação ao
autoritarismo das instituições. Por isso, assumia-se um tom épico, messiânico e utópico,
visto que a denúncia se prendia a um “projeto informativo e participante” e tinha o intuito
de derrubar “os mitos tradicionais da canção brasileira”. No início da era dos militares, era
preciso, mais do que nunca, revelar ao país “o sertão, o morro, a favela, o estilo de vida dos
homens que neles vivem e morrem (...) em sua realidade feia” (Galvão, 1976: 95).
Em ensaio bastante conhecido, Walnice Nogueira Galvão afirma que a canção de
protesto, por possuir este didatismo, assumiu uma “proposta imobilista e espontaneísta”
(Galvão, 1976: 96), atingindo um público mais sofisticado, composto por universitários e
letrados em geral. Ou seja, podíamos notar a existência de um setor da sociedade brasileira
que exigia obsessivamente
que as canções ventilem problemas sociais, políticos e econômicos. Entende-se
também que esse público do privilégio se assuste ante uma proposta ao nível da
denúncia e aceite ansioso uma nova mitologia que não o comprometa a agir.
Entende-se melhor ainda que a canção “informativa” e “participante” seja tão
escapista e consoladora quanto aquela que fala em moça-flor-sol-barquinho-amor-
dor. Só que se trata de evasão e consolação para pessoas intelectualmente
sofisticadas. O gesto de uma proposta encobre um afago ao privilégio (Galvão,
1976: 95).
Naquela etapa da vida cultural brasileira, a televisão tinha um papel fundamental na
sociedade: o de projetar os bens culturais para as massas, como os festivais de música
popular e o trabalho teledramático de Oduvaldo Vianna Filho, Dias Gomes, entre outros
nomes. Na esteira deste crescimento, estava em plena ascensão o mercado de discos no
compasso em que mais aparelhos de TV apareciam nas casas de todo o Brasil, ampliando o
público dos programas televisivos a escalas exponenciais. Por isso, é fundamental explicitar
que a história da música popular brasileira, a partir de meados da década de 60, está
definitivamente ligada à ascensão da indústria televisiva (cf. Medeiros, 1984: 36), como
veremos a seguir.
Em entrevista concedida ao poeta e teórico Augusto de Campos, Caetano Veloso
observou a possibilidade, no decorrer daquele período, do artista da canção conciliar as
61
propostas de comunicação com as grandes massas (via mass media) sem deixar de acenar
para as inovações que surgiam no campo musical:
O rádio, a TV, o disco, criaram, sem dúvida, uma nova música: impondo-se como
novos meios técnicos para a produção de música, nascidos por e para um processo
novo de comunicação, exigiram / possibilitaram novas expressões. Esse novo
processo de comunicação é presa de um esquema maior (as leis estéticas que
comandam a produção musical em rádio, disco e TV nascem de necessidades
comerciais, respeitos oficiais - estatais, compromissos morais etc. etc.) que
representa, muitas vezes, um entrave à inovação (inovar, no sentido de ampliar o
campo do conhecimento através de uma forma de arte). Livre do patrocinador, do
censor, do compromisso com a mediocridade das massas, o “pesquisador puro” é
que irá dar saltos ousados; não sem risco, entretanto, de cair no vazio. Ou seja: de
um lado, a Música, violentada por um processo novo de comunicação, faz-se nova
e forte, mas escrava: de outro, a Música, resguardada. Assim, se poderia pensar que
o rádio, a TV, o disco como meios de comunicação, teriam transformado a própria
forma das artes por eles divulgadas, mas que esses meios, com toda a força que eles
tinham, trariam em si mesmos o freio às inovações. Creio, porem que a
possibilidade do meio novo exigir a forma nova não está esgotada. Que o processo
não parou. Que o conflito permanece vivo porque os novos meios de comunicação
continuam a funcionar como freio e como novo (IN Campos, 1993: 199-200).
Os meses de março e abril de 1965 consolidaram o surgimento do novo não apenas
na vida cultura brasileira, como também seria uma revolução por parte dos meios de
comunicação: a TV Excelsior foi a responsável pela produção do primeiro festival de
música popular transmitido para o país inteiro e inaugurou uma era de integração entre a
imagem televisiva e a canção popular, consagrando artistas e/ou nomes pelo Brasil. O
primeiro exemplo do sucesso desta fórmula perante o grande público foi “Arrastão”, de Edu
Lobo e Vinícius de Moraes, cuja letra citamos abaixo:
Ê, tem jangada no mar
Ê, ê, ê, hoje tem arrastão
Ê, todo mundo pescar
Chega de sombra, João Jovi
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
É, meu irmão, me traz Iemanjá prá mim
62
Minha Santa Bárbara
Me abençoai
Quero me casar com Janaína
Ê, puxa bem devagar
Ê, ê, ê, já vem vindo o arrastão
Ê, é a rainha do mar
Vem, vem na rede João
Prá mim
Valha me meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim
Minha Santa Bárbara
Me abençoai
Quero me casar com Janaína
Ê, tem jangada no mar
Ê, ê, ê, hoje tem arrastão
Ê, todo mundo pescar
Chega de sombra, João Jovi
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
É, meu irmão, me traz Iemanjá prá mim
Valha me meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca jamais se viu tanto peixe assim
17
“Arrastão” definiu um eixo paradigmático de canção de protesto não apenas pelo
talento de seus criadores ou pela temática de cunho social (que aqui retrata o cotidiano de
integrantes das classes inferiores de nossa sociedade, os pescadores tal qual as melhores
obras praianas de Dorival Caymmi), mas principalmente pela expressividade ímpar de sua
intérprete uma jovem cantora com apenas 20 anos de idade, já conhecida por brilhar nas
noites cariocas e apelidada pelo poeta Vinícius de Moraes de “Pimentinha” devido ao seu
forte temperamento. Elis Regina foi a grande revelação do festival da TV Excelsior e se
tornou, instantaneamente, a primeira estrela da canção popular na era da TV e um dos
maiores nomes da música brasileira de todos os tempos. Seu estilo de interpretação,
bastante dramático, era altamente influenciado pelos cantores do rádio, especialmente
Ângela Maria considerada pela cantora gaúcha como a maior cantora do Brasil , o que
17
IN: Elis Regina & Jair Rodrigues, Dois na Bossa (1965).
63
deixava a estrela à beira do histrionismo, característica que a distinguia, por exemplos, dos
cantores de Bossa Nova.
A dicção de Elis era bastante distinta, também, de outra musa dos palcos (e com um
talento dramático tão incisivo quanto o dela) surgida aos olhos do Brasil no mesmo ano de
1965, Maria Bethânia. Enquanto a irmã de Caetano apresentava uma dramaticidade bem
típica do teatro, a Pimentinha reintroduzia os grandes gestos para dentro do terreno da
música popular através da TV (cf. Veloso, 1997: 123). No entanto, a bagagem artística da
cantora só pode ser compreendida a partir de um olhar sobre sua trajetória antes do sucesso
nacional de “Arrastão”: antes de ser projetada nacionalmente, Elis Regina fez fama no
lendário Beco das Garrafas, uma rua do bairro carioca de Copacabana que reunia casas
noturnas de shows cantando samba-jazz. É interessante que foi lá onde a cantora teve seus
primeiros contatos com o coreógrafo e dançarino Lennie Dale, que influenciou
definitivamente sua carreira: aprendeu a fazer maior uso do corpo durante suas
apresentações, girava seus braços freneticamente para o alto, o que não se encaixava com o
estilo consagrado pelos bossa-novistas.
As performances esfuziantes da jovem Elis lhe renderam apelidos como
“Eliscóptero” e “Hélice Regina” e causaram sérias desavenças com Ronaldo Bôscoli (seu
futuro marido e com quem trabalhava ao lado de Luiz Carlos Miele na época), que achava
que seus trejeitos não passavam de uma natação ridícula e decidiu conversar com seu
parceiro a respeito do assunto. Miele devolveu as indagações de Bôscoli com uma
declaração memorável: “Deixa, Bôscoli, assim ela enterra a Bossa Nova de vez” (apud
Echeverria, 2002: 31).
Augusto de Campos nos atentou para o fato de que Elis, por exemplo, “extroverteu
a Bossa Nova, desencravou-a, tirou-a do âmbito restrito da música de câmara e colocou-a
no auditório de TV” (Campos, 1993: 54). Por outro lado, os artistas do programa Jovem
Guarda surgiram no cenário musical pouco depois com ares menos preocupados e
pareciam mais despojados já que faziam um “uso funcional e moderno da voz” (Campos,
1993: 56) por isso, cabe dizer que Roberto Carlos estava mais próximo do estilo de João
Gilberto , ao contrário de Elis Regina, que adotava um estilo interpretativo dramático e
distanciado dos próprios bossa-novistas (Campos, 1993: 55). Reveladas as oposições
estéticas entre os dois, é possível concluir que o canto da cantora gaúcha estava muito mais
64
ligado aos fraseados musicais de Ângela Maria e das lendárias cantoras do rádio do que
propriamente de João Gilberto e Nara Leão, ao contrário do de Roberto.
Conforme Pedro Alexandre Sanches em seu livro Como dois e dois são cinco, Elis
Regina, antes de alcançar fama, era uma “rainha da brotolândia de 1961” que “não se
definia como entre roqueira cor-de-rosa e cantora rubra de boleros” (Sanches, 2004: 25).
Caetano Veloso, por sua vez, disse que a Pimentinha, antes da fama, era uma “cantora
comercial de pop romântico de baixo nível” (Veloso, 1997: 124) que se popularizou
cantando o que se convencionou pelos críticos como samba-jazz. A respeito dos dotes
musicais da dupla Roberto-Erasmo e do Iê--itself, Augusto de Campos levantou em seu
livro Balanço da Bossa que os jovens artistas se apresentavam
descontraídos, com uma espantosa naturalidade, [em] um à vontade total. Não se
entregam a expressionismos interpretativos; ao contrário, seu estilo é claro,
despojado. Apesar do Iê--Iê ser música rítmica e animada, e ainda que os recursos
vocais, principalmente de Erasmo, sejam muito restritos, estão os dois Carlos,
como padrão do uso da voz mais próximos da interpretação de João Gilberto do
que Elis e muitos outros cantores da música nacional moderna, por mais que isso
possa parecer paradoxal (Campos, 1993: 55).
De acordo com a biógrafa de Elis, Regina Echeverria, para a Pimentinha, que vinha
da experiência de cantar boleros e versões em seus três primeiros discos,
o canto cool da Bossa Nova não cabia direito em seu estilo. A bem da verdade, a
voz de Elis Regina destoava radicalmente do caráter intimista da Bossa Nova, em
que o verbo cantar era conjugado com suavidade, no feminino. Bossa Nova, para a
linguagem do jazz, era cool. A voz de Elis era hot. Diferente. Como água e vinho
(Echeverria, 2002: 27).
A respeito da evolução artística de Elis Regina, Augusto de Campos (1993: 55)
pontuou que a cantora
foi (...) levada a uma exageração do estilo interpretativo que criara. Seus gestos
foram-se tornando cada vez mais hieráticos. Os rictos faciais foram introduzidos
com freqüência sempre mais acentuada. A gesticulação, de expressiva, passou a ser
francamente expressionista, incluindo, à maneira de certos cantores norte-
65
americanos, movimentos de regência musical, indicativos de paradas ou entradas
dos conjuntos acompanhantes, ou ainda sublinhando imitativamente passagens da
letra da música, numa ênfase quase declamatória.
Depois de consagrada como uma grande porta-voz da música de protesto, Elis
gravou grandes clássicos do gênero como “Upa, neguinho”, composta por Edu Lobo e
Gianfrancesco Guarnieri e que integrava o espetáculo Arena conta Zumbi, de 1965:
Upa, neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Virge, que coisa mais linda
Upa, neguinho começando a andar
Upa, neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Virge, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Começando a andar
E já começa a apanhar
Cresce neguinho e me abraça
Cresce e me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito eu te posso ensinar
Mas muito eu te posso ensinar
Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Mas liberdade só posso esperar
Upa neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Virge, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
66
Upa neguinho na estrada
Upa pra lá e pra cá
Virge, que coisa mais linda
Upa neguinho começando a andar
Começando a andar
E já começa a apanhar
Cresce neguinho e me abraça
Cresce e me ensina a cantar
Eu vim de tanta desgraça
Mas muito eu te posso ensinar
Mas muito eu te posso ensinar
Capoeira, posso ensinar
Ziquizira, posso tirar
Valentia, posso emprestar
Mas liberdade só posso esperar
18
A canção de Edu e Guarnieri encarnava justamente “o deslocamento do conflito
para uma realização futura em que se realizarão utopicamente os anseios e sonhos”
(Sant’Anna, 2004: 58). E Elis Regina se revelou, no decorrer da década de 60, como a
grande representante desta variante musical, aprimorando cada vez mais seu canto e
assumindo de maneira mais radical o discurso “nacionalista” típico da esquerda musical
com a passagem do tempo. O repertório executado pela artista lhe concedia a possibilidade
de exibir seus dotes vocais e cênicos, por exemplo, ao mexer seus braços tal qual os remos
dos pescadores (“Arrastão”) ou ao cantar as belezas existentes na trajetória do jovem
sofredor que seguia rumo às batucadas da vida (“Upa, neguinho”). A postura de Elis, sem
dúvida, era um passo à frente em relação às cantoras do rádio e às musas da Bossa Nova ou
até à principal estrela Pop da época, Celly Campello cujos rocks inocentes e sua postura
de palco hiper discreta a faziam mais uma cantora comum.
A consagração desta nova leva de artistas contribuiu para o surgimento de uma
vertente musical que seria popularizada a partir de 1965: nascia para os olhos do público a
18
IN: Elis Regina & Jair Rodrigues, Dois na Bossa n.º 2 (1966).
67
chamada “MPB” Música Popular Brasileira vertente de nossa canção popular que, num
primeiro momento, conseguiu fundir o apelo comercial (fator altamente benéfico para a
indústria fonográfica brasileira, também em plena ascensão) e o engajamento político dos
compositores de protesto, além de apresentar, de acordo com o pensamento do historiador
Marcos Napolitano, “tons intimistas e expressionistas, mensagens épicas e líricas” (IN Reis
et alli, 2004: 213). Em outras palavras,
essa fusão, ao receber o aval do mercado, consolidava a vocação de sintetizar
popularidade e qualidade, buscada pela Bossa Nova, sem os apelos considerados
“demagógicos” da música de protesto. Nesta perspectiva de aparamento das arestas
e na diluição de temas mais áridos numa poética sofisticada e até lírica, nascia a
MPB, ungida pelo mercado e pela indústria do disco (Napolitano IN Reis et alli,
2004: 213).
Paulo César de Araújo aponta esta vertente musical (urbana por essência e
excelência), como uma “verdadeira instituição” a qual é “dotada de reconhecimento
cultural e de lugar social bem determinado” (Araújo, 2003: 32) e que tinha o intuito
(polêmico) de “nacionalizar” a canção popular que se produzia no Brasil (cf. Napolitano,
2002: 64-65). Araújo ainda observou que “MPB” não significa necessariamente “toda e
qualquer música popular produzida no Brasil” e sim se trata de uma “expressão de uma
vertente da nossa música popular urbana produzida e consumida majoritariamente por uma
faixa social de elite, segmento que a indústria cultural classifica como produto A ou B”:
Difundida a partir de 1965, a sigla MPB foi utilizada inicialmente apenas como
referência à “moderna música popular brasileira”, de origem universitária, que
surgia da influência direta da Bossa Nova e que, naquele momento, disputava
espaço com uma outra música popular aquela produzida por Roberto Carlos e a
turma da jovem guarda que partia de influências do Rock ‘n’ Roll inglês e norte-
americano. (...) num primeiro momento, a sigla MPB representava uma espécie de
bandeira de luta nacionalista contra um outro tipo de música que era efetivamente
popular e produzida em nosso país, porém, considerada “alienígena”, “não
brasileira (Araújo, 2003: 32).
68
Em “Adeus à MPB”, artigo publicado em 2003, Carlos Sandroni demonstrou que a
concepção do conceito de MPB, na década de 60, está conectada a um contexto histórico no
qual a música popular que se produzia no Brasil tematizava as problemáticas sociais, por
isso, ser ouvinte desta vertente musical representava, essencialmente, em acreditar em uma
determinada “concepção de ‘povo brasileiro’, em certa concepção, portanto, dos ideais
republicanos”. Por isso, em meio ao furor dos anos 60,
as palavras música popular brasileira, usadas sempre juntas como se fossem
escritas com traços de união, passaram a designar inequivocamente as músicas
urbanas veiculadas pelo rádio e pelos discos. E, no quadro do intenso debate
ideológico que caracterizou a cultura brasileira daquele período, elas logo serviriam
também para delimitar um certo campo no interior daquelas músicas. Este campo,
embora amplo o suficiente para conter o samba de um Nelson Cavaquinho (que
poderia ser considerado mais próximo do folclore) e a Bossa Nova de um Tom
Jobim (que se procura aproximar da música erudita), era suficientemente estreito
para excluir recém-chegados, como a música eletrificada influenciada pelo rock
anglo-saxão. A expressão música popular brasileira cumpria, pois, se é que se
pode dizer assim, certa função de “defesa nacional” (e nisso também ela ocupava
lugar que pertencera ao folclore nas décadas anteriores). Nos anos finais da década,
ela se transforma mesmo numa sigla, quase uma senha de identificação político-
cultural: MPB (IN Cavalcante et alli, 2004: 29).
Elis Regina, em pouquíssimo tempo de carreira, já tinha o seu próprio programa na
TV Record, O fino da Bossa, que era apresentado ao lado do cantor Jair Rodrigues e que
teve sua estréia em 17 de maio de 1965. Baseado nas apresentações de Elis e Jair no Teatro
Paramount e nos espetáculos universitários promovidos por Valter Silva, o programa
apresentava um dado inovador: tratava-se de uma espécie de entretenimento que era feito
especialmente para a TV (cf. Echeverria, 2002: 38). A cantora reunia em suas
apresentações no Teatro da Record (onde O fino era gravado) todos os novos expoentes
daquela geração e talentos de outras gerações como convidados especiais, além de atuar
como “porta-voz dos anseios nacionalistas da intelectualidade e da camada politizada das
universidades” (Medeiros, 1984: 37).
Augusto de Campos acrescentou que esta atração se transformou em “porta-voz da
música nova brasileira, assumindo de maneira programática, com a necessária sustentação
69
financeira e a amplitude da televisão” (Campos, 1993: 52). Em termos musicais, o
programa comandado pela Pimentinha era altamente vibrante: “o samba era jazz e o jazz era
samba. Ritmo embalado, marcação forte, som nas alturas tudo feito (...) para que a
performance empolgasse, tanto aos que compareciam ao teatro Record, quanto aos que se
deliciavam com o programa na tela da televisão” (Aguiar, 2002: 96). E em termos
artísticos, O fino da Bossa seria um grande aprendizado para a cantora, cuja
maneira de cantar era eletrizante. Elis não tinha receio de soltar a voz e de fazer
vibrar o corpo. A seu modo, valorizava as canções. Às vezes parecia uma cantora
de protesto, outras uma cantora de músicas de fossa, outras uma sambista ao estilo
de Elza Soares, outras uma típica cantora de rádio, outras uma crooner de
orquestra, outras, ainda, uma interprete jazzística. Sem dúvida, O fino funcionou
como um vasto laboratório para exercícios do igualmente vasto talento de Elis.
Com acertos e erros de interpretação, sua vivacidade era sempre enorme. Era
evidente que precisava lapidar seus recursos, mas, naquela altura, já ninguém
duvidava de que ela era a nova grande cantora do Brasil (Aguiar, 2002: 97).
A respeito deste fato, Regina Echeverria aponta que Elis representava uma geração
de músicos brilhantes que surgiram logo após o boom da Bossa Nova, era a porta-voz da
música de protesto, além de ser amparada ideologicamente por pensadores de esquerda na
escolha do que deveria ser apresentado em seu programa (cf. Echeverria, 2002: 39)
19
. Tais
decisões lhe foram altamente benéficas, pois aos 20 anos de idade, Elis Regina era a artista
brasileira mais bem paga do showbiz brasileiro ao assinar contrato com a TV Record.
Iniciava-se ali, a trajetória “da mais prestigiada cantora popular do Brasil” (Aguiar, 2002:
75), pois
19
Tal postura de Elis se confirma ao lembrarmos que “Terra de ninguém”, um dos clássicos da canção de
protesto de autoria dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, era o tema de abertura e de encerramento de O
fino da Bossa. A canção que discute a questão das lutas camponesas é mais um exemplo paradigmático da
temática “popular” presente na então emergente “MPB”: “Segue nessa marcha triste / Seu caminho aflito /
Leva só saudade e a injustiça / Que só lhe foi feita / Desde que nasceu / Pelo mundo inteiro / Que nada lhe
deu / Anda, teu caminho é longo / Cheio de incerteza / Tudo é só pobreza / Tudo é só tristeza / Tudo é terra
morta onde a terra é boa / O senhor é dono / Não deixa passar / Pára no final da tarde / Tomba já cansado /
Cai o nordestino / Reza uma oração / Pra voltar um dia e criar coragem / Pra poder lutar / Pelo que é seu / Mas
um dia vai chegar / Que o mundo vai saber / Não se vive sem se dar / Quem trabalha aqui tem / Direito de
viver / Pois a terra é de ninguém”. IN: Elis Regina & Jair Rodrigues, Dois na Bossa (1965).
70
Elis (...) teve (...) um grande mérito no sentido da popularização da Bossa Nova,
nessa fase decisiva de sobrevivência. Suas interpretações elétricas e eletrizantes, a
alegria contagiosa que transmitia, não tanto com a sua voz (...), mas com um
compósito de voz e corpo, canto e coreografia articulados numa alegria juvenil e
irresistível, explodiram como uma verdadeira bomba no samba, com um alto poder
de comunicação. A ponto de muitos acharem numa possível reedição do fenômeno
Carmen Miranda (Campos, 1993: 54).
Júlio Medaglia observa que a consagração de Elis e de “Arrastão” provocou o
surgimento de canções de caráter similar e que correspondiam tanto ao estilo de
interpretação vigoroso e extrovertido criado pela Pimentinha
20
(IN Campos, 1993: 118),
bastante apropriado para a apreensão do grande público, como também de obras que
estavam em estado de consonância estrita com as manifestações bossa-novistas mais
discretas, isto é, já de acordo com o gosto de um público mais específico. Os executivos da
TV Record constataram que os festivais de música popular eram sinônimo de altos índices
de audiência, daí compreendemos a criação de programas como O fino da Bossa, o
Bossaudade e o Show em Si...monal, para não citar outros.
Na medida em que a TV buscava definir e segmentar o seu próprio público, fez-se
necessário uma renovação da cena musical brasileira, por isso a canção engajada, o tom
participante das letras e a consolidação de um estilo interpretativo mais dinâmico e
irreverente foram os elementos-chave para a viabilidade deste processo. A canção popular,
com isso, deixara de ter o descompromisso estético e ideológico que caracterizava os anos
anteriores à Bossa Nova (cf. Veloso, 1997: 122). Apesar do largo incentivo à produção de
música popular naqueles tempos, foi a chamada “Era dos Festivais” que, segundo o
pensamento do historiador Marcos Napolitano, consolidou os esquemas gigantescos de
promoção e divulgação dos artistas estreantes, abrindo portas para a criação de “uma
espécie de performance compartilhada’ entre artistas e públicos que foi a base dos
primeiros festivais, mas que se perdeu na medida em que a própria indústria televisual se
transformava” (IN Reis et alli, 2004: 206).
20
Um exemplo bastante interessante que foi identificado pelo maestro Júlio Medaglia foi a respeito das
distintas leituras feitas para “Canto de Ossanha”, de Baden Powell e Vinícius de Moraes: “A música ‘Canto
de Ossanha’, de Baden e Vinícius, para exemplificar, é interpretada pelo Trio Tamba de maneira intimista,
digamos, elaborada e construtiva; Elis a interpreta em O fino..., mais dramaticamente, entrando na segunda
parte da música de corpo e alma, na mais rasgada batucada e no terreno do autêntico ‘sambão’” (IN Campos,
1993: 118).
71
Em meados da década de 60, a TV Record se popularizava como um meio de
comunicação defensor da moralidade e dos bons costumes nacionais ao oferecer uma
programação direcionada a todos os gostos e tendências de público: para os apaixonados
por futebol, as transmissões dos jogos da Copa do Mundo de Futebol (competição o Brasil
se consagrou como vencedor em 1958 e em 1962); para as mulheres, o programa de Hebe
Camargo e seus convidados célebres era garantia de audiência; já os ouvintes de música
popular encontravam em programas como Esta noite se improvisa
21
(no qual convidados
famosos buscavam adivinhar o nome das canções a partir de uma palavra dada pelo
apresentador) e O fino da Bossa. Desde o início da década de 60, a Record já tinha iniciado
a sua tradição de programas musicais ao reunir um cast de artistas como Elizeth Cardoso,
Ciro Monteiro, Elis Regina, Jair Rodrigues e... uma turma de jovens artistas amantes de
Rock capitaneada por Roberto Carlos! Tamanha diversidade do público da TV Record se
justificava pelo incentivo constante à música popular que surgia naquele período:
os musicais da TV Record atendiam a gregos e troianos. A meninada fanática pelos
Beatles, a grande novidade do rock depois de Elvis Presley, podia dispor, nas tardes
de domingo, do Jovem Guarda, variante bem aclimatada do que se fazia na matriz
(Inglaterra ou Estados Unidos), em termos de música pop. Os mais nacionalistas,
apreciadores do novo samba e da Bossa Nova, tinham O Fino. Os mais velhos, se
torcessem o nariz para as novidades, dispunham do Bossaudade. Fileiras de
convidados contribuíram para animar os três programas. Revelações do rock iam ao
Jovem Guarda, a nova geração da MPB comparecia ao Fino, cantores da era do
rádio freqüentavam o Bossaudade. (...) Jamais a música popular seria tão festejada
pela mídia quanto naquela fase áurea da TV Record (Aguiar, 2002: 95).
2.3 - Dissonâncias ideológico-musicais
Em meados do ano de 1965, a Record optou por criar um programa de música
jovem quando a Federação Paulista de Futebol proibiu a emissora de exibir os jogos de
futebol. Com o objetivo de garantir os picos de audiência que foram perdidos, Celly
Campelo foi convidada para estrelar a nova atração das tardes de domingo, mas recusou a
proposta (cf. Medeiros, 1984: 37-39). Com isso, os executivos da TV Record descobriram
21
Caetano Veloso, em Verdade Tropical (1997), descreve, enquanto convidado especial, as exibições e os
bastidores deste programa de TV.
72
em Roberto Carlos (acompanhado de seu parceiro Erasmo Carlos e de Wanderléa), o
carisma suficiente para ser mais um apresentador de TV: em curto espaço de tempo e com
total despretensão, Jovem Guarda
22
se tornou extremamente popular e projetou o Iê--
23
para os quatro cantos do Brasil, conquistando particularmente os jovens entre 10 e 16 anos
(cf. Sanches, 2004: 46). Enquanto o mundo inteiro era literalmente sacudido pela magia da
Swinging London, brasileiros desejavam a criação de uma “música jovem” made in Brazil,
com direito à moda, danças e rapazes cabeludos de terno e gravata (cf. Motta, 2000: 94).
Aos executivos da Record, por sua vez, couberam a intenção de
transformar o pessoal da “música jovem” em ídolos nacionais, fabricar calças,
camisas, chaveiros, bonecos, bonés. Brinquedos e tudo o mais que pudesse ser
comercializado com a marca “jovem guarda”, como Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli
pensaram um dia em fazer com a Bossa Nova (Motta, 2000: 95).
O papel de protagonista desta nova cena inaugurada pela “música jovem” foi
concedido a Roberto Carlos que, com seu corte de cabelo beatle, seus bordões
reconhecíveis, suas roupas um tanto extravagantes e sua aparência de bom rapaz, logo
enfeitiçou as massas do Brasil. Jovem rebelde sem a menor sombra de dúvida, mas com
uma aura completamente inofensiva. Com a aparição do bando que completaria o cast do
programa Jovem Guarda, a canção popular se tornou, definitivamente, um fenômeno de
marketing, visto que a venda de artigos diversos como chaveiros, bolsas e cadernos com
estampas de Roberto e Erasmo se tornaram cada vez mais freqüentes.
Esta tendência não era algo exclusivo apenas em território nacional: no cenário
internacional, o surgimento de quatro rapazes roqueiros oriundos da cidade inglesa de
Liverpool agitou ainda mais o inconsciente coletivo de meninos e meninas do mundo
22
Um fato bastante relevante para o entendimento geral dos anseios dos jovens naquele momento da vida
cultural brasileira gira em torno do nome escolhido para a então recente atração musical da TV Record: o
publicitário Carlito Maia, ligado ao grupo dos jovens roqueiros, ao ler uma citação de Lênin (“O futuro
pertence à Jovem Guarda porque a velha está ultrapassada”), convenceu Roberto e Erasmo a mudar o nome
de seu programa para Jovem Guarda (a dupla pensava em nomear a atração de Festa de Arromba) (cf.
Medeiros, 1984: 46). O programa estreou no dia 22 de agosto de 1965 e ficou no ar por quase três anos (no
início de 1968, a festa de arromba televisiva teria o seu fim decretado com o desligamento de Roberto Carlos
do programa que o projetou nacionalmente).
23
É interessante explicitar que o termo “Iê--Iê” se originou a partir da famosa canção dos Beatles, “She
loves you”, gravada em 1963, cujo refrão que influenciou definitivamente os jovens brasileiros diz: “She
loves you, yeah, yeah, yeah”.
73
inteiro desde 1962 John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr
redefiniram não apenas os padrões do Rock que se produzia até então, mas reinventaram o
que se entendia como Pop music. A afirmação da supremacia dos Beatles se justificava
através de um convite para a liberdade subjetiva já perceptível em seus primeiros sucessos
algumas canções do início da carreira do quarteto fantástico que exemplificam o que foi
dito são “She loves you” e “I want to hold your hand” (1963), mas foi “Twist and Shout”,
com a sua proposta de libertação do corpo e da imaginação, definindo a essência dionisíaca
que impermeava a Beatlemania: “Well, shake it up, baby, now (shake it up, baby) / Twist
and shout (twist and shout) / C’mon c’mon, c’mon, c’mon, baby, now (come on baby) /
Come on and work it on out (work it on out) (...)”
24
. O Fab Four foi um marco
fundamental na instauração de uma nova compreensão do mundo, atentando as percepções
para terrenos nunca antes trafegados:
Daqueles caras de Liverpool emanava um aroma diferente, impregnando de revolta
inocentes descobertas, aquela sensualidade romântica e agressiva reabrindo outra
vez as sensações, como se inventassem de novo um jeito de ser. E isso naquela
atmosfera dionisíaca, que transmudava a percepção musical em anúncio e
celebração da presença do corpo no solo do mundo (Medeiros, 1984: 21).
O auge da Beatlemania auxiliou a popularização deste movimento, com uma
expressão musical mais despojada, com letras de fácil apreensão e a musicalidade pautada
nas baladas românticas. Em outras palavras, o Iê--Iê brasileiro agitou a cultura musical do
Brasil ao inserir um tipo de música voltado essencialmente para o entretenimento
consumista dos anos 60 (cf. Carmo, 2001: 44):
Por entre sonoplastia de beijos estalados, o rock parecia desenho animado, ou filme
de matinê no cinema do bairro a modernidade pop chegava à música nacional,
sob a conjugação de faca e queijo entre o humor daquele primeiro Erasmo
compositor e a irreverência ainda dominante (...), como os gritinhos que davam
ressonância aguda e afetada (...). No mais, reproduzia[m] os “yeahs” dos rocks de
fora ao mesmo tempo em que se moldavam na Inglaterra “yeah-yeah-yeahs”
triplicados nos cabelos tigela dos Beatles. Pois a versão de “Splish Splash”, em seu
24
IN: The Beatles, Please Please Me (1963).
74
final, já abrasileirava o “yeah-yeah”, querendo pronunciar “iê-iê”, organizar o
movimento, inaugurar o monumento (Sanches, 2004: 32-33).
Sabe-se, porém, que os primeiros passos do Rock’n’Roll em território nacional
coincidiram com o surgimento da Bossa Nova através de Celly Campello, a primeira
revelação da chamada “música jovem”
25
. No entanto, a explicação para que o gênero
mundialmente popularizado pelos norte-americanos não ter sido amplamente difundido se
deve ao fato de que “o Rock só servia ao rádio pela metade, dado o seu apelo visual”. Tal
fato se explica perfeitamente ao nos lembrarmos das apresentações de TV do primeiro rei
do Rock, Elvis Presley. Na medida em que o público norte-americano (e conseqüentemente
o mundial) tomou contato com o magnetismo contido em sua presença de palco contagiante
o artista mexia largamente os quadris, balançava as pernas de modo altamente libidinoso,
o que enlouquecia as fãs de todas as idades, rendendo para o cantor a alcunha de Elvis, the
Pelvis , o autor de “Love me tender” se tornou, instantaneamente, em um dos maiores
símbolos da música Pop. (cf. Aguiar, 2002: 81).
Com a TV, o Jovem Guarda tornou-se um verdadeiro fenômeno, encantando as
massas, pois “o eletrizante balanço de guitarra, baixo e bateria (a base até hoje do Rock)
pedia que os cantores se mexam no palco, estimulando a platéia a balançar com eles”
(Aguiar, 2002: 81). Posteriormente, com as novas tecnologias televisivas
26
, a chegada do
videotape em meados da década de 60, possibilitou a transmissão dos programas de TV
para todo o Brasil. A televisão e o seu impecável apelo imagético fez com que, em curto
espaço de tempo, O fino da Bossa perdesse a audiência para o Jovem Guarda, formando
divisões na música popular brasileira: de um lado, a Bossa Nova, representante da “música
nacional”, e, de outro, o Iê--Iê, considerado um artigo de importação estrangeira. Elis
25
No final dos anos 50 até meados da década seguinte, quando os jovens tinham de lutar contra a repressão
das mães, uma cantora já garantia popularidade nos corações do povo brasileiro. Celly Campello foi
considerada não apenas um estandarte deste primeiro momento do Iê--Iê, mas representou também toda a
inocência característica deste movimento cultural em “Banho de lua”, um de seus maiores sucessos: “Fui à
praia me bronzear / me queimei, escureci / mamãe bronqueou, nada de sol / hoje só quero / a luz do luar //
Tomo um banho de lua, fico branca como a neve / se o luar é meu amigo / censurar ninguém se atreve / é tão
bom sonhar contigo / oh, luar tão cândido (...)” (IN: Medeiros, 1984: 22-23).
26
Outros avanços significativos da tecnologia televisiva foi a transmissão via satélite em 1969, (possibilitando
a transmissão da chegada do homem à lua para todo o mundo) e a aparição da TV a cores no ano de 1973, o
que significou um tremendo tiro de misericórdia na cultura do rádio (cf. Aguiar, 2002: 81-82). Segundo
Joaquim Alves de Aguiar, com o advento dos televisores coloridos, “o rádio se tornaria um veículo subalterno
das comunicações, suporte da grande mídia. Nem de longe reabilitaria o prestígio de que havia desfrutado
entre as décadas de 30 e 50” (Aguiar, 2002: 82).
75
Regina e Roberto Carlos, em campos supostamente antagônicos, protagonizaram uma das
maiores polêmicas culturais daquele tempo. Augusto de Campos explicou a razão para a
ocorrência de tamanhos antagonismos:
Se a Jovem Guarda, ou pelo menos alguns de seus sucessos, como o “Quero que vá
tudo para o inferno”, que deu voz a um estado de espírito geral na atualidade
brasileira, conseguem comunicar-se a gente de todas as idades, é inegável que o seu
auditório básico é constituído pelo público infanto-juvenil. O ambiente
universitário com sua problemática menos disponível, coincidindo com a maior
maturidade intelectual do jovem, é muito mais permeável ao influxo da Bossa
Nova, a música popular mais exigente e sofisticada que se faz no Brasil (Campos,
1993: 52-53).
Boa parte da produção do Iê--Iê mimetizava as produções artísticas internacionais.
As versões
27
e covers
28
de clássicos do Rock americano em especial eram ouvidos nas
garagens, bailes, festas de aniversário, espalhando-se por lugares freqüentados pelos mais
jovens. O Rock-balada foi a vertente primordial do movimento, transformando-se num
fenômeno comercial altamente rentável graças ao carisma de seus artistas e da presença de
letristas como Carlos Imperial, Fred Jorge e Rossini Pinto, que combinavam o tom meloso
das palavras com o ritmo enérgico característico da linguagem do Rock (cf. Medeiros,
1984: 19).
Ao contrário da Bossa Nova, que atingia essencialmente as classes média e média
alta, o Iê--Iê tinha como adeptos e admiradores os integrantes das regiões mais periféricas
dos grandes centros urbanos
29
. Numa trajetória oposta aos jovens da zona sul carioca, a
27
Vale observar que muitas versões de sucessos internacionais foram adaptadas para o português de maneira
bastante primária e (por quê não dizer?) leviana. Erasmo Carlos, por exemplo, ao comentar a respeito de sua
“releitura” de “Splish Splash” disse: “Fiz minha primeira versão sem nada a ver com o original; não sei
inglês, mas escrevi o que a música me falava” (Medeiros, 1984: 36). Ao chegar nas paradas de sucesso
brasileiras, a canção feita originalmente por Bobby Darin já estava inserida no padrão de letras românticas das
canções de Iê--Iê, como podemos notar a seguir: “Splish Splash / fez o beijo que eu dei / nela dentro do
cinema / todo mundo me olhou, me condenando / só porque eu estava amando / agora lá em casa todo mundo
vai saber / que o beijo que eu dei nela / fez barulho sem querer // Splish Splash / todo mundo olhou / mas com
água na boca / todo mundo ficou” (Medeiros, 1984: 35-36).
28
É curioso que o primeiro rock gravado no Brasil foi feito por uma cantora do rádio. A veterana Nora Ney,
por ser a única cantora que dominava o inglês naquela época, gravou “Rock around the clock” em meados da
década de 50 (cf. Medeiros, 1984 & Veloso, 1997).
29
Paulo de Tarso Cabral Medeiros (1984: 20) observa que o crescimento dos grandes centros urbanos
“preparou um espaço de disponibilidade para novas práticas e atitudes”, o que comprova o sucesso desta
expressão musical em áreas mais periféricas.
76
juventude da periferia consumia uma expressão musical que concentrava a batida frenética
do Rock’n’Roll e a musicalidade melancólica do bolero e do samba-canção, o que resultava
numa expressão musical marcada pela leveza e uma certa ingenuidade.
Por outro lado, O fino da Bossa, com Elis Regina e Jair Rodrigues acabou se
voltando para o “samba rasgado, (...) a batucada, (...) as orquestrações com instrumentos de
metal gritantes, relançando sucessos”, “deixando de servir à idéia de música de vanguarda e
progressiva, para se transformar gradualmente num apunhado de hits da música popular
brasileira” (Medaglia IN Campos, 1993: 119/120), abandonando o despojamento tão
característico da Bossa Nova de João Gilberto e Nara Leão. Do outro lado, os artistas do
programa Jovem Guarda se apresentavam despojados e descontraídos, aparentemente
descompromissados politicamente e por não se renderem aos “recursos interpretativos” de
Elis e Jair.
De fato, Roberto Carlos e sua turma, ao encarnarem a leveza expressiva e a
vivacidade dos temas românticos, estavam mais próximos do experimentalismo formal dos
bossa-novistas. A poética que se vislumbrava nas “Jovens tardes de domingo” era bastante
própria do cotidiano do homem comum, somando a alegria e frescor da juventude ao
aparato musical (leia-se: guitarras elétricas). Logicamente, as escolhas ideológicas e
estéticas dos artistas de “música jovem” eram criticadas pela ala mais politizada (e
conservadora) da MPB: argumentava-se que esta manifestação era inferior à música de
protesto ou à Bossa Nova pelo fato de simplesmente “absorver” a cultura internacional e
por não apresentar temáticas de caráter engajado.
A ala de artistas que se opunham a Roberto e Erasmo Carlos, por exemplo, defendia
o seu discurso ao denunciar a dependência cultural de um país de terceiro mundo,
latifundiário e assolado pela má distribuição de renda, pela industrialização precária, pelo
populismo de direita
30
. Muitos não percebiam que a incursão dos artistas do programa
Jovem Guarda pelo “ritmo do momento” era a tradução de uma mudança do gosto do
público emergente, “exaltando o sabor de aventura e a promessa de uma vida urbana mais
arejada, que as grandes cidades prometiam. Na boca, um gosto de rum misturado a bolinhas
30
Sobre as agressões sofridas pelo grupo liderado por Roberto Carlos, escreveu Pedro Alexandre Sanches em
Como dois e dois são cinco que “a artilharia de emepebistas mais empedernidos despencava com força sobre
a jovem guarda, girando críticas em torno da dicotomia nacionalismo / colonialismo. Os sons Iê--Iê eram,
para a MPB participante, mera imitação de padrões internacionais e politicamente descompromissada, por
isso dignos de desprezo por parte de quem realmente amasse o Brasil” (Sanches, 2004: 63).
77
e coca-cola” (Medeiros, 1984: 17). Outro fato não menos importante é que o Rock coroava
de vez a ascensão da sociedade de consumo, dos meios de comunicação e da indústria
fonográfica.
Um aspecto que provavelmente muitos daqueles que compunham o rol dos
opositores aos integrantes do programa Jovem Guarda não conheciam (ou possivelmente
desprezavam) era o fato de que a Cultura Brasileira (antropófaga por excelência) sempre
teve o poder de incorporar a cultura do outro e recriar o “artigo importado” com
características completamente nossas. A respeito de tal fenômeno, escreveu Augusto de
Campos que
A expansão dos movimentos internacionais se processa usualmente dos países mais
desenvolvidos para os menos desenvolvidos, o que significa que estes, o mais das
vezes, são receptores de uma cultura de importação. Mas o processo pode ser
revertido, na medida mesma em que os países menos desenvolvidos consigam,
antropofagicamente como diria Oswald de Andrade deglutir a superior
tecnologia dos supradesenvolvidos e devolver-lhes novos produtos acabados,
condimentados por sua própria e diferente cultura. Foi isso o que sucedeu (...) com
a Bossa Nova, que, a partir da redução drástica e da racionalização de técnicas
estrangeiras, desenvolveram novas tecnologias e criaram realizações autônomas,
exportáveis e exportadas para todo o mundo (Campos, 1993: 60).
Com o intuito de desestruturar os argumentos falaciosos radicais da esquerda
musical (que viam a nacionalização da música brasileira acima de coisa) e de demonstrar a
inutilidade da hierarquização das diferentes vertentes de nossa música, Augusto de Campos
resgatou o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels: “as criações intelectuais de uma
nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais
tornam-se cada vez mais impossíveis; das inúmeras literaturas nacionais e locais, nasce
uma literatura universal” (Campos, 1993: 60). É por essa e mais outras razões que é inútil
estabelecer uma espécie de “impermeabilidade artística” às artes. Também não é
naturalmente válido considerar o Iê--Iê como um mero caso de “heresia subversiva de
lesa-samba” (Medaglia IN Campos, 1993: 120) e tapar os ouvidos, os olhos, os sentidos e,
principalmente, o rigor analítico em relação a tais obras, mas sim avaliar este legado
criticamente com respeito e a imparcialidade típica de um crítico ou analista.
78
Em contrapartida, enquanto alguns consideravam a Bossa Nova e a canção de
protesto como expressões musicais do passado, muitos se sentiam atraídos e encantados
pela bela loirinha que animava as tardes dominicais da Record. Wanderléa, ao contrário de
Celly Campello, Elis Regina e Nara Leão, já conquistava destaque no meio musical por
cantar canções de amor inocentes e pueris enquanto exibia seus dotes físicos, “encarnando
o ideal da mulher ativa, meiga, sensual e aparentemente liberada das imposições familiares
e da repressão sexual” (Medeiros, 1984: 39). Em outras palavras, a cantora era a
encarnação da “garota papo firme” que “adora uma praia / e só anda de minissaia / está por
dentro de tudo / e só namora se o cara é cabeludo” (Medeiros, 1984: 40). Incorporando uma
nova imagem de comportamento feminino, a cantora transitava entre o apolíneo
caracterizado pela moral familiar e o dionisíaco transgressor ativado pelo desejo sexual e
pelo sedento olhar do público. Sobre sua postura de palco, afirmou a cantora: “Um dia (...)
usei um vestido preto colado no corpo, com um decote grande e umas correntes trançadas
na frente. O vestido era tão curto que a calcinha aparecia quando eu me movimentava,
cantando” (apud Medeiros, 1984: 40).
O bom comportamento de Celly se tornava coisa do passado na medida em que a
Ternurinha fazia de sua sexualidade não apenas um gesto de afirmação, mas de rebeldia em
relação aos valores tradicionais e conservadores
31
ao mesmo tempo em que encarnava a
“desafortunada heroína desprezada pelo(s) namorado(s)” a partir de seu “canto (...)
soluçado de subidas e descidas, amalucada invenção de loopings vocais”
32
(Sanches, 2004:
31) uma das provas deste fato pode ser constatada em “Prova de fogo”, composta por
Erasmo Carlos e um dos maiores sucessos da estrela, que apesar de não apresentar a
submissão da figura feminina, não deixava de representar uma crise amorosa entre um casal
de namorados, tal qual é possível notar nos versos iniciais: “Esta é uma prova de fogo /
31
A postura levemente rebelde, anti-convencional e fascinante de Wanderléa definitivamente podia ser
compreendida como um passo à frente em relação à sua antecessora, Celly Campello, de acordo com as
pretensões dos executivos da gravadora Columbia, que a contratou em meados da década de 60: “A
Columbia, casa cor-de-rosa vendedora de sonhos e discos, viu nas primeiras gritarias-teste da Wanderléa de
Valadares uma promessa de algo maior além de forte candidata ao vácuo da mocinha Celly Campello, que
passava a querer tudo com as prendas domésticas e nada com a vida de estrela. A noviça rebelde de
Governador [Valadares] ia virar mesmo uma artista. Prendada, espevitada, precoce, despreparada, desafinada.
E encantadora” (Sanches, 2004: 28).
32
Apesar do canto da Ternurinha, muitas vezes, não soar agradável para ouvidos mais apurados e exigentes,
ele não se assemelhava mais ao “bel-canto kitsch de Dalvas e Ângelas”, o que simboliza um passo à frente em
relação à tradição musical pré-Bossa Nova: “No futuro, quisessem ou não, Gal Costa, Maria Bethânia e Baby
Consuelo seriam tributárias obrigatórias da pequena Wanderléa” (Sanches, 2004: 31).
79
você vai dizer se gosta de mim / sei que você não é bobo / porém seu reinado vai chegando
ao fim (...)” (IN: Sanches, 2004: 67).
Semelhantemente à tendência vislumbrada em Wanderléa, esta celebração da
presença do corpo era bastante evidente na persona artística de Erasmo Carlos, que
resolvera trilhar um caminho oposto ao de Roberto Carlos em 1967, Erasmo demonstrava
os traços distintivos entre os dois nomes principais do Iê--Iê em uma de suas declarações
mais famosas: “Roberto é o filho que toda mãe quer, e eu sou o amante que toda mãe
gostaria de ter” (apud Sanches, 2004: 66). O Tremendão, encarnando o ideal adorável da
pilantragem, sempre fez uso da sexualidade de forma quase agressiva em suas
interpretações versos como “Se você quer brigar e acha que com isso estou sofrendo / se
enganou, meu bem / pode vir quente que eu estou fervendo // Pode tirar o seu time de
campo / o meu coração é do tamanho de um trem / iguais a você eu já peguei mais de cem
(...)” e “Tenho que manter a minha fama de mau” eram uma verdadeira afronta em relação
à postura quase trovadoresca adotada pelo Rei, que dialogava com a tradição amorosa da
música popular produzida no Brasil antes de 1958.
Por estas razões, apesar de Roberto ter revelado um agente de inversão de valores
sociais daquele tempo, ele se apresentava como o rapaz bondoso que “até andava na
contramão, mas as mães de suas faz podiam dormir tranqüilas ele queria era casar”
(Sanches, 2004: 34), ao contrário de Erasmo, consagrado como provável motivo de
preocupação das mães mais conservadoras. A respeito da aparência da estrela principal do
programa Jovem Guarda, Pedro Alexandre Sanches observou a necessidade de se aliar a
rebeldia ao recato naquela época:
Os cabelos ameaçavam crescer, mas (...) restava a franjinha começando a crescer
pela testa de um bem-comportadíssimo moço de braços cruzados e camisa
vermelha de botão. Aqueles papos de brasa fumante fogueteiro e de leão papa-tudo
não podiam assustar (demais) mamães zelosas da tradição, da família, da
propriedade castiça de suas filhas. Pois então um abundante lado romântico vinha
de fazer do futuro cabeludo um príncipe digno de receber o afeto desconfiado de
senhorinhas em flor (Sanches, 2004: 37).
Aos poucos, a dupla Roberto e Erasmo se revelava em obras como “Parei na
contramão”, “É proibido fumar” e “Quero que tudo vá pro inferno”, combinando lirismo e
80
“idéias suavemente transgressivas e libertárias” (Sanches, 2004: 33). O grande feito dos
líderes deste movimento cultural foi a capacidade de integrar a linguagem contestadora do
Rock às formas de integração do Brasil moderno, que se interligava à ordem internacional,
pré-globalizada. Para tal, era importante o uso de uma expressão musical direta e simples,
evocando os anseios de liberdade individual e a livre manifestação corporal enquanto fonte
de prazer humano (cf. Medeiros, 1984: 35), por isso, o efeito transgressivo, paulatinamente,
deixou de servir como uma mera contestação de valores para funcionar como uma
“ampliação concreta de espaço e tempo do corpo” (Medeiros, 1984: 34), provocando a
liberação de uma energia do receptor na medida em que a fruição da arte se faz.
Potencializado a esfera do desejo, abria-se o espaço para que os corações
apaixonados, envoltos em um clima de inocente e irreverente sentimentalismo, adentrassem
as pistas de dança. Com a realização deste rito, o Iê--Iê coroava seus reis e construía seus
mitos da cultura de massa ou, mais especificamente, preparava uma “Festa de Arromba”, na
qual Roberto e Erasmo mencionavam os participantes daquele séqüito que se massificava
nos inconscientes de muitos jovens brasileiros (cf. Sanches, 2004: 41).
Enquanto a turma do programa Jovem Guarda celebrava livremente acima dos
louros de sua plena popularidade, a ala mais participante da MPB se empenhava em
consolidar o seu projeto estético perante as grandes massas. A principal plataforma de
discussão destes compositores foram os festivais de música popular, nos quais as disputas
ideológicas se acirravam radicalmente. O II Festival de Música Popular, de 1966, foi uma
prova de tamanho ensejo: 2635 canções inscritas e 36 seriam selecionadas para serem
apresentadas no evento a ser transmitido pela TV Record para todo o país.
Com esta atração, construiu-se, engenhosamente, uma “vitrine da MPB” mais séria,
levando em conta que a emissora tinha um staff de fazer inveja às suas concorrentes O
fino da Bossa, o Bossaudade, o Show em Si...monal e Jovem Guarda reuniam quatro tipos
distintos de público e artistas de todos estes programas foram escalados para o festival, o
que era promessa de elevados índices de audiência. É interessante apontar que, apesar de
nomes como Erasmo e Roberto Carlos terem garantido a sua participação, era
expressamente desautorizado que as canções de Iê--Iê estivessem entre as escolhidas pelo
júri (cf. Napolitano IN Reis et alli, 2004: 205). Preparava-se, com a exclusão da “música
jovem” do roteiro do evento da TV Record, o terreno para os embates entre as obras, os
81
compositores e as diferentes tendências de público, evidenciando o caráter político-
ideológico de uma parcela de artistas plenamente insatisfeitos com a desestruturação
provocada pelo regime militar: “a pretexto de torcer pela vitória desta ou daquela canção
concorrente, essas disputas revelariam o imenso grau de expectativa política projetada em
torno das canções, num Brasil descontente debaixo das botas militares pós-64” (Medeiros,
1984: 37).
Em meio a tais embates, promoveu-se a oposição “arte engajada” “arte pela arte”
(meramente conhecida como “arte alienada” pela esquerda do momento) a partir da
oposição entre os programas O fino da Bossa e Jovem Guarda e que se ampliou com as
oposições entre compositores engajados e aqueles que não compartilharam das mesmas
crenças políticas e estéticas (cf. Medeiros, 1984: 54). Cabe demonstrar que tamanho embate
ideológico se originava pelas próprias redes de televisão, em busca de audiência e prestígio:
De certo modo, a própria televisão alimentava o conflito, na medida em que o
explicitava através de programas reveladores desse dualismo: de um lado, O fino
da Bossa; de outro, Jovem Guarda. O confronto entre as duas matrizes, estimulado
mais por questões político-econômicas do que estéticas, longe de promover a
evolução da produção musical, sustentava a proliferação da mesmice.
Multiplicavam-se nomes e grupos novos, mas o próprio tempo encarregou-se de
neutralizá-los, dada a incapacidade de criação de marcas distintivas que lhes
assegurassem público permanente (Lucchesi & Dieguez, 1993: 26).
Dentre as finalistas do II Festival, duas composições ganharam relativo destaque: a
contundente “Disparada”, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, interpretada por Jair
Rodrigues, e “A banda”, defendida pelo seu talentoso compositor, Chico Buarque de
Hollanda ao lado de Nara Leão. Em pouco tempo, travou-se uma batalha de peso no palco
da Record: de um lado, a letra engajada de Vandré com o inspirado arranjo de Théo de
Barros e a magnífica interpretação de Jair Rodrigues; do outro, o lirismo buarqueano, o
apoio do grande público e a delicadeza interpretativa de Nara. No entanto, “Disparada” foi
um dos momentos mais expressivos do festival, por falar mais diretamente aos anseios
ideológicos do público da época. De acordo com Marcos Napolitano, o sucesso da canção
de Vandré se devia ao
82
impressionante espetáculo de comunhão artista-platéia, que talvez não tenha nunca
mais se repetido durante o ciclo histórico dos festivais de MPB (à exceção da
apresentação de Caminhando no FIC de 1968), “Disparada” foi atenciosamente
ouvida por um público que parecia hipnotizado, como se pode ver pelos freqüentes
closes da câmera. A performance de Jair Rodrigues, numa interpretação enfática e
expressiva, quase solene, experimentou o maior momento de sua carreira. Quando
ele cantou o trecho: “Então não pude seguir / valente lugar tenente / de dono de
gado e gente / porque gado a gente marca / tange, ferra, engorda e mata / mas com
gente é diferente...”, o público irrompeu em palmas e saudações. O Quarteto Novo,
competente grupo instrumental, ostentando traje de gala como a ocasião exigia,
forneceu uma base instrumental sólida, pungente e exortativa ao mesmo tempo. O
gestual de Jair Rodrigues, erguendo os braços para o alto, reforçando o caráter de
comício sugerido pelas performances das canções engajadas, dava continuidade à
tradição de gestual contundente, tal como Elis Regina em Arrastão. Ambos
cantores marcaram a performance televisual dos festivais, marcada por uma forte
expressividade, que em alguns momentos até beirava o histriônico (Napolitano IN
Reis et alli, 2004: 205-206).
Geraldo Vandré, em curto espaço de tempo, se transformou em sinônimo de puro
engajamento ao defender uma concepção musical calcada em uma produção musical mais
direta e vibrante, com inspiração em formas musicais anteriores ao surgimento da Bossa
Nova, ocupando um posto de militância que até pouco tempo pertencia à Nara Leão. A
partir daquele momento, Vandré foi transformado no compositor predileto das esquerdas
festivas, redefinindo instrumentos e ritmos do cancioneiro popular, conforme depoimento
que o próprio artista concedeu na época:
Depois da fase de modernização onde são muito importantes Edu Lobo e Sérgio
Ricardo, tem a fase de “Disparada” que acho fundamental: abre uma perspectiva
para a moda de viola do centro-sul do Brasil. Toda manifestação de cultura
nacional que não tem apoio na classe média urbana, a qual se defende e faz valer
suas razões, não tem condições de afirmação dentro da mentalidade nacional. A
moda de viola é a mais proletária destas manifestações. “Disparada” quebrou esse
preconceito da classe média, (...) significa a única forma de cantar de 60% a 70%
da população brasileira, populações rurais dos estados de Mato Grosso, Goiás,
Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (apud Napolitano IN Reis et
alli, 2004: 207).
83
O Brasil inteiro se viu envolvido naquela disputa: “os mais líricos, mais românticos,
as mulheres, os cariocas preferiam ‘A banda’; os mais políticos, mais agressivos, os
homens, os paulistas gostavam mais de ‘Disparada’” (Motta, 2000: 113), o que não deixava
de ser uma espécie de “materialização da articulação entre as falas dos intelectuais e do
‘povo’, categorias que deram sentido ao imaginário político entre 1964 e 1968” (Napolitano
IN Reis et alli, 2004: 211). Em plena era de massificação da música popular via TV
período no qual a emergente “MPB” passou “a concentrar as atenções de uma ‘cultura de
oposição’ que, timidamente, começava a se formar em setores da imprensa liberal”,
assegurando uma espécie de “triunfo do ‘povo-nação’, símbolo da resistência política, que
ressurgia nos discursos apologéticos da imprensa e de alguns intelectuais de oposição”
(Napolitano IN Reis et alli, 2004: 211) Geraldo Vandré e Chico Buarque
sintetizaram a curiosa situação histórica da MPB nascente dos anos 60, na qual
idolatria pop e engajamento político pareciam se combinar. A mística dos seus
astros, forjada no clima exaltado das platéias do fino da Bossa já anunciava esta
ambigüidade. Sua identidade estava lastreada numa determinada performance de
palco e platéia que mimetizava a efervescência estudantil, ethos originário da MPB
renovada (Napolitano IN: Reis et alli, 2004: 206).
De acordo com os pesquisadores Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (1997 II:
97), o simbolismo presente na lírica de Chico era fortíssimo, visto que “espantando a dor, a
desesperança, a imobilidade, a banda simboliza a importância da música para a vida. Na
visão do poeta, a música é amor, emoção, movimento; o silencio: tristeza, sofrimento,
solidão”. Apesar da aparente sensação de igualdade entre as duas canções favoritas, a
comissão organizadora do evento, por nove votos a três, elegeu “A banda” como a grande
vencedora do Festival da TV Record. Assim que tomou conhecimento do resultado, Chico
exigiu aos juízes que o resultado fosse um empate entre as duas canções, para que não
houvesse uma resposta negativa por parte do público (cf. Cabral, 2001: 123-124).
O evento promovido pela TV Record serviu para revelar o talento do jovem Chico
Buarque, que na época do festival tinha 22 anos, e já se revelava como um grande
compositor através de canções como “Pedro Pedreiro”, “A Rita” e “Morena dos olhos
d’água”, além de ter musicado, já naquela época, os versos de Morte e Vida Severina, de
84
João Cabral de Melo Neto. O festival o transformou em um grande sucesso: “suas músicas
tocavam no rádio, nas festas, nas ruas e ele aparecia com freqüência nos musicais da
Record e nos shows das universidades” (Motta, 2000: 110). O compacto de “A banda”
vendeu mais de 100 mil cópias em uma semana, espalhou-se mundialmente, transformando
seu criador em uma autêntica paixão nacional (cf. Motta: 2000, 113): “O Brasil se
apaixonou por suas músicas e letras, por seus olhos e sua timidez, por seu brilho seco e sua
inteligência emocionada” (Motta, 2000: 113).
Por parte da esquerda nacionalista, Chico seria a reação da chamada “MPB” em
relação ao Iê--Iê do programa Jovem Guarda, o que não deixava de ser mais um engano
lamentável e reducionista por parte da esquerda festiva. A imprensa em geral,
completamente tomada por tamanha discussão, apoiou o ataque aos artistas da chamada
“música jovem” a favor da dita “música brasileira”, conforme observamos no Jornal do
Brasil de 12 de outubro de 1966:
A noite de 10/10/1966 entrou para a história da música popular brasileira não
apenas como a consagração de Chico Buarque ou das duplas Geraldo Vandré e
Theo de Barros (...), mas como a volta da canção do povo. Ninguém poderia
imaginar que três horas mais tarde, numa noite fria e chuvosa, o povo daria na rua a
sua resposta ao pessimismo que dominava os meios musicais desde que o público
do Fino da Bossa desapareceu do Teatro Record para dar lugar à platéia da Jovem
Guarda (...) A grande vitória daquela noite não era dos autores premiados, mas do
compositor brasileiro que afirmava a força de sua música justamente no lugar onde
surgiu a ameaçadora onda do Iê--Iê (apud Napolitano IN Reis et alli, 2004: 210).
É necessário compreender que apesar de Chico ter sido revelado como um grande
sinônimo de vendagens da mesma forma que seus companheiros de geração, Elis Regina
e Roberto Carlos , não estava necessariamente ligado ao engajamento que tomava conta da
música popular daqueles tempos, garantindo uma escala de público mais ampla do que o
público cativo de esquerda porque suas primeiras produções marcavam a fusão de duas
temporalidades opostas de nossa música popular os anos 60 que o projetou e os anos 30,
com referências a Noel Rosa, especialmente.
85
Em O cancionista: composição de canções no Brasil, o ensaísta Luiz Tatit apontou
Chico Buarque de Hollanda como um artista completamente distinto de determinados
clichês que permeavam aquele período:
Emerso no centro da década de 60, Chico não tinha nada a ver com as correntes
típicas desses anos. Seu ponto de partida formal era João Gilberto (no manejo do
violão e na colocação da voz), mas seu objeto era a canção-vivência, esquadrinhada
por pioneiros como Noel Rosa e Ismael Silva, mas sem continuidade desde o
alastramento desbragado da paixão pelos boleros e sambas-canções das décadas de
40 e 50 e desde a esquematização dos conteúdos passionais empreendida pela
Bossa Nova (...). Esbanjava habilidade e vocação numa época em que o mercado
cultural ainda não estava totalmente planejado e nem se sabia, ao certo, o alcance
da televisão na formação dos artistas (Tatit, 2002: 233).
Segundo o historiador Marcos Napolitano, tal junção de tendências tão opostas
entre si justificava “o caráter nostálgico e melancólico de seus primeiros sucessos” (IN Reis
et alli, 2004: 207/208), que garantiu tamanha receptividade por haver dois traços básicos na
produção musical de Chico Buarque: o primeiro seria uma espécie de revival da crônica
social que indiciava as vivências do cotidiano (altamente comum nos sambas dos anos 30) e
“a problematização do lugar social da canção no Brasil, enfatizando a fugacidade do ato de
cantar e os limites da música com amálgama de uma consciência social mais efetiva”
(Napolitano IN Reis et alli, 2004: 208).
A consagração dos festivais de canção popular, a politização de determinados
setores da sociedade brasileira e a popularidade de Chico e Vandré propiciou o
aparecimento de novos padrões musicais conquistando os ouvintes:
Após o II Festival de MPB da TV Record, duas novas personalidades criativas se
afirmaram para o grande público: Chico Buarque de Hollanda e Geraldo Vandré.
Entre 1966 e 1968, estes dois compositores / intérpretes estiveram no centro dos
eventos festivalescos e suas trajetórias são expressões fundamentais acerca das
mudanças que o mercado fonográfico passava, culminando na institucionalização
da MPB como carro-chefe da moderna indústria fonográfica brasileira. Chico
Buarque logo se tornou um “ídolo de massas”, cujo consumo de imagem
potencializava e a aceitação do público nunca foi linear e sua imagem pessoal não
86
muito assimilável pela mídia televisual. Se Elis Regina deu o primeiro grande salto
de popularidade para a MPB, Vandré e Chico podem ser considerados como os
consolidadores desta popularidade (Napolitano IN Reis et alli, 2004: 209).
Em seu artigo sobre os festivais da canção, observa o historiador Marcos Napolitano
que o sucesso do II Festival de MPB da TV Record se explica ao fato de que este evento foi
alçado à condição de uma esfera pública não oficial, amplificada pelo caráter
televisual do evento. Nesta ‘esfera pública’, o ‘povo’, simbolicamente, voltava a se
manifestar num contexto de repolitização geral da sociedade, triunfando nas
canções de MPB que eram vistas como expressão de sua própria voz. Este
imaginário parece estar por trás das matérias jornalísticas sobre os festivais (até
1968, pelo menos). Mas a relação entre imprensa e festivais, não estava isenta de
tensões. Por vezes, a imprensa era também o espaço de expressão dos interesses da
indústria fonográfica e televisual que procurava formar critérios de apreciação e
julgamento estético, conforme o tipo de oferta que lhe era mais interessante
(Napolitano IN Reis et alli, 2004:211).
A imprensa em geral, ao se mostrar como uma representante de uma parcela
sociedade brasileira (assumindo a mesma postura radical de boa parte esquerda festiva),
outorgou à canção popular daquele momento histórico um “lugar social” que detém “um
poder catalisador das expectativas e frustrações coletivas” de setores sociais insatisfeitos
com os rumos políticos da nação, construindo uma espécie de “cultura de resistência civil
ao regime militar” (Napolitano IN Reis et alli, 2004: 212). Todavia, manifestava-se, desde
aquele período, um dado contraditório ao mesmo tempo em que os expoentes musicais da
esquerda festiva ascendiam à condição de astros e estrelas da música popular, veiculando
um discurso denunciador e rebelde, não deixavam de estar atrelados a “um lucrativo setor
de mercado, explorado pela emergente indústria cultural brasileira, que transformava as
obras artísticas em mercadorias como quaisquer outras” (Ridenti IN Duarte & Naves et alli,
2003: 117).
Apesar dessas contradições e outras que criticavam a falta de originalidade das
composições do Iê--Iê nacional e dos clichês dos discursos esquerdistas, a produção
musical deste período era de boa qualidade. A década de 60 revelou Edu Lobo, Geraldo
Vandré, Chico Buarque de Hollanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso, entre muitos outros que
87
aprenderam, seguiram ou contrariaram as lições de João Gilberto, promovendo rupturas no
panorama musical brasileiro de então. Paralelamente ao boom da esquerda musical e à
ascensão do Iê--Iê, uma outra leva de músicos se posicionava de maneira crítica ao
panorama artístico delineado até o início de 1967. Estes artistas se mostravam insatisfeitos
com a tendência “nacionalista” de nomes como Geraldo Vandré, Edu Lobo e Elis Regina: a
música de protesto, apesar de oferecer um discurso de contestação, era imobilista em
termos práticos, limitada esteticamente. No auge da Era dos Festivais, exaltava-se ainda o
Nordeste brasileiro de forma quase mítica.
Por outro lado, boa parte das canções e performances que se viam no programa
Jovem Guarda não deixavam de ser uma mera reatualização das temáticas amorosas da
música de fossa e dos tempos áureos da Rádio Nacional. Surgiu, dessa forma, a necessidade
de retomar os experimentos musicais iniciados com a Bossa Nova e as lições ensinadas por
João Gilberto. Na verdade, em tempos de clarins de bandas militares, de protestos incisivos
e de dissonâncias evidentes, a pesquisa em torno da canção fora posta em segundo plano
(cf. Carmo, 2001: 67). É neste contexto que surgiu o famoso desabafo de um insatisfeito
Caetano Veloso à revista Civilização Brasileira:
Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidade para selecionar e
ter um julgamento de criação. Dizer que samba só se faz com frigideira, tamborim
e um violão sem sétimas e nonas não resolve o problema. Paulinho da Viola me
falou há alguns dias da sua necessidade de incluir contrabaixo e bateria em seus
discos. Tenho certeza de que, se puder levar essa necessidade ao fato, ele terá
contrabaixo e terá samba, assim como João Gilberto tem contrabaixo, violino,
trompa, sétimas, nonas e tem samba. Aliás João Gilberto para mim é exatamente o
momento em que isto aconteceu: a informação da modernidade musical utilizada na
recriação, no dar-um-passo-à-frente, da música popular brasileira. Creio mesmo
que a retomada da tradição da música brasileira deverá ser feita na medida em que
João Gilberto fez. Apesar de artistas como Edu Lobo, Chico Buarque, Gilberto Gil,
Maria Bethânia, Maria da Graça (que pouca gente conhece) sugerirem esta
retomada, em nenhum deles ela chega a ser inteira, integral (IN Campos, 1993: 63).
Reiterando as idéias de Caetano, Augusto de Campos também ressalta a importância
de uma consciência e de um apuro estético mais crítico por parte do compositor popular
naquele contexto específico da vida cultural brasileira:
88
Não se trata de nenhuma “volta a João Gilberto”, de nenhum “saudosismo”, mas da
tomada de consciência e da apropriação da autêntica antitradição revolucionária da
música popular brasileira, combatida e sabotada desde o início pelos verdadeiros
“saudosistas”, por aqueles que pregam violência da música popular e o seu retorno
a etapas anteriores à da Bossa Nova, na expectativa de uma vaga e ambígua
“reconciliação com as formas mais tradicionais da música brasileira” (Campos,
1993: 63).
Naquele insurgente ano de 1967, acreditava-se também que era possível “fazer
música popular, e inclusive de protesto (...) quando preciso, sem renunciar à ‘linha
evolutiva’ impressa à nossa música popular pelo histórico e irreversível momento da Bossa
Nova” (Campos, 1993: 64). Um novo movimento seria criado para completar o cenário
turbulento dos anos 60. A partir daquele momento, a música popular inauguraria um novo
ciclo histórico, sorvendo o dado sóbrio da inteligência e a embriaguez das paixões dignas
das vanguardas.
89
3
A BANDEIRA DESFOLHADA:
A MARGINÁLIA TROPICALISTA & O DESFOLHAR DA BANDEIRA
90
Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira,
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia
Torquato Neto & Gilberto Gil
33
3.1 - O ano do desfolhar
Não é à toa que muitos especialistas em Cultura apontam 1967 como um dos anos
mais decisivos do século XX. O cenário global estava marcado por pura tensão: conflitos
armados no Vietnã e no Oriente Médio se fizeram mais incisivos, incitando um amplo
debate por parte dos direitos humanos de todo o mundo. Várias universidades fervilhavam
em discussões sobre o autoritarismo de governantes e a falência moral do Capitalismo,
apontado como incapaz para atender as reais necessidades do indivíduo como um todo.
No Brasil, o ambiente cultural não estava diferente em relação ao contexto mundial.
Glauber Rocha levou Terra em transe, sua principal obra cinematográfica, aos cinemas em
maio de 1967. José Celso Martinez Corrêa, diretor e mentor do Teatro Oficina, montou em
setembro daquele mesmo ano, O Rei da Vela, resgatando Oswald de Andrade para a
geração 60, atraindo espectadores mais jovens para as salas de teatro, freqüentadas
normalmente por um público mais conservador e dedicando a montagem a Glauber. Tais
manifestações foram primordiais para a construção de um projeto cultural de vanguarda
coletivo, influenciarando definitivamente músicos prestes a despontar para o grande
público. Dentre estes, estavam Caetano Veloso e Gilberto Gil, que até então, não tinham
recebido oportunidades profissionais de peso: Caetano, até então conhecido apenas como o
33
IN: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé, Tropicália ou Panis et
Circensis (1968).
91
irmão de Maria Bethânia, só tinha gravado um compacto com duas de suas composições,
em 1966, e um LP em parceria com Gal Costa, Domingo no início do ano seguinte; Gil, por
sua vez, teve algumas de suas canções gravadas por Elis Regina e Nara Leão
34
, mas nada
que realmente tivesse lhe rendido grande sucesso.
Glauber Rocha retratava um Brasil diferente do que se ouvia na música de protesto,
longe dos folclorismos e/ou paternalismos presentes na Cultura Brasileira (cf. Motta, 2000:
168). Para Caetano Veloso, por exemplo, desejoso em encontrar a chamada “linha
evolutiva” da música popular brasileira, Terra em transe (juntamente com O Rei da Vela)
exerceu uma influência marcante sobre ele por se tratar de
uma outra forma de fazer política e cinema, com uma outra estética, mais brasileira,
mais suja, mais contundente (...). Ao contrário de Deus e o diabo na terra do sol e
de O dragão da maldade contra o santo guerreiro, que foram vistos como
alegorias sertanejas e distantes, Terra em transe era um drama político urbano e
atual, poético e delirante, histórico e existencial. Ambientado num imaginário
Eldorado que revelava como nunca o Brasil real, do populismo e dos ditadores, das
elites corruptas e vorazes do povo ignorante e passivo, narrados em flash-back pelo
poeta agonizante, traído e decepcionado pelo seu líder político. E pelo povo (Motta,
2000: 168).
O Cinema Novo, movimento do qual Glauber Rocha foi o grande arauto,
apresentava propostas bastante distintas em relação ao que já tinha sido realizado no Brasil
(e no mundo) em termos de cinema: recusava peremptoriamente a linguagem
cinematográfica de Hollywood e desejava levar o Brasil, sem cortes e máscaras, para as
telas. A intenção dos homens de cinema daquela geração era romper com a estética
cinematográfica nacional que estava em vigor até então: as chanchadas de nossos estúdios
não provocavam nenhuma identificação por parte de nomes como, além do próprio
Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Arnaldo Jabor, Ruy Guerra, Rogério
Sganzerla e Joaquim Pedro de Andrade.
No início dos anos 60, os jovens cineastas brasileiros estavam muito mais para o
Neo-realismo italiano e a Nouvelle vague de nomes como Jean-Luc Godard do que para as
34
Elis tinha gravado “Ensaio geral”, “Lunik 9”, “Roda” e “Louvação” em 1966. Nara, por sua vez, gravou
“Vento de maio” no ano seguinte.
92
produções cinematográficas do estúdio Vera Cruz ou para as comédias descomprometidas
da Atlântida. Havia uma valorização da figura do autor e um conseqüente desprezo de
produtores de peso e da indústria cinematográfica. Com recursos financeiros
reduzidíssimos, a produção cinematográfica brasileira moderna tinha traços estilísticos
bastante específicos: imagens ausentes de grandes movimentações, cenários despojados,
diálogos de longuíssima duração e uma temática que infinitamente tomava o social como
princípio fundamental (cf. Carmo, 2001: 60-61). A partir do sucesso destes filmes
35
,
tornou-se possível para o público vislumbrar um Brasil visto por pouquíssimos (o que
gerou um extremo impacto em grande parte daqueles que adentravam as salas de cinema), a
“estética da fome” alegórica e profundamente metafórica criada por Glauber Rocha era, aos
poucos, incorporada à realidade brasileira.
1967 marcou também o auge dos embates entre o Iê--Iê e a MPB de protesto. O
fino da Bossa, por ter perdido amplas fatias de audiência para o Jovem Guarda, foi tirado
da grade da TV Record em julho daquele ano, provocando uma tremenda guerrilha
comandada por Elis Regina e seus companheiros nos bastidores da emissora. O alvo era
único: Roberto Carlos, que recebia timidamente a simpatia de artistas significativos como
Elizeth Cardoso, com quem cantara no especial Show do Dia 7. No final deste mesmo
programa, uma enfurecida Elis foi convocada para encerrar a apresentação cantando
“Roda”, de Gilberto Gil e João Augusto. Um pouco antes do fim de sua apresentação, a
Pimentinha interrompeu a execução dos instrumentos para enfatizar os versos “Quero ver
quem vai sair / quero ver quem vai ficar” e provocar os inimigos ao exclamar: “Quem está
conosco, muito bem. Quem não está, que se cuide!” (IN Calado, 1997: 107).
A solução para o impasse foi a criação de um novo musical a ser comandado por
sete cantores Elis Regina, Jair Rodrigues, Chico Buarque, Nara Leão, Geraldo Vandré,
Wilson Simonal e um deslocado Gilberto Gil. O nome criado para a nova atração foi Frente
Única da Música Popular Brasileira, levando em conta a variedade de estilos de seus
mestres de cerimônia e a defesa das origens “nacionais” da canção popular. (cf. Calado,
1997: 107). O furor reacionário que tomava conta das reuniões do novo programa da TV
Record foi muito bem descrito por Caetano Veloso em suas memórias:
35
Outros filmes do Cinema Novo que se destacaram perante crítica e público foram Deus e o Diabo na Terra
do Sol (de Glauber Rocha), Vidas Secas (de Nelson Pereira dos Santos) e Os Fuzis (de Ruy Guerra).
93
Elis, acompanhada de seu marido Ronaldo Bôscoli, o grande letrista e agitador da
Bossa Nova, já então produtor de TV, era, naturalmente, o centro das atenções.
Todos falaram com entusiasmo sobre a necessidade de defender nossas
características culturais. Geraldo Vandré chegou a ficar com os olhos cheios
d’água, tomado pela própria eloqüência. Gil corroborou as heróicas intenções,
somando a elas alguma reflexão sobre os novos meios de comunicação de massa,
restos quase irreconhecíveis dos seus discursos na casa de Sérgio Ricardo. Paulinho
Machado de Carvalho, depois de ouvir todos, concordar com as indignações e
alistar-se no exército de salvação da identidade nacional, propôs que, em vez de se
tentar revitalizar o Fino da Bossa, se criasse um novo programa, desta vez
democratizando as lideranças, distribuindo entre as estrelas crescentes as
responsabilidades. Quatro “núcleos” se criaram: um de Elis, um de Simonal, um de
Vandré e um de Gil. Cada um deles apresentaria um programa por mês, no horário
e dia do Fino, um para cada semana. O nome geral desse programa, inspirado numa
tentativa política de velhos líderes civis (muitos deles antigos inimigos) de retomar
o poder das mãos dos militares, seria Frente Única da Música Popular Brasileira
(Veloso, 1997: 159-160).
No programa que seria comandado por Gilberto Gil, Caetano Veloso sugeriu a
criação de um número musical no qual Maria Bethânia faria uma homenagem a Roberto
Carlos: a musa entraria no palco de minissaia, botas e uma guitarra elétrica para cantar
“Querem acabar comigo”
36
em duo com o Rei em pessoa. Geraldo Vandré soube, na
véspera das gravações, dos planos de Caetano e Gil e travou discussões árduas com os
baianos, justificando que tal medida consistia em trair as “raízes” da música brasileira e
ainda afirmou que as opiniões de Caetano seriam devidamente aproveitadas em um ensaio
sobre Sociologia do que em um programa de TV. Tomado pela emoção, Vandré ameaçou
interromper a apresentação de Bethânia, por isso, a proposta inicial foi cancelada. Vestida
36
Segue a letra da canção que seria cantada por Maria Bethânia e Roberto Carlos, uma mensagem direta aos
perseguidores do Iê--Iê de plantão: “Querem acabar comigo / Nem eu mesmo sei porque / Enquanto eu tiver
você aqui / Ninguém poderá me destruir // Querem acabar comigo / Isso eu não vou deixar / Me abrace assim,
me olhe assim / Não vá ficar, longe de mim // Pois enquanto eu tiver você comigo / Sou mais forte para mim
não há perigo / Você está aqui, e eu estou também / E com você eu não temo ninguém // Querem acabar
comigo / Nem eu mesmo sei porque / Enquanto eu tiver você aqui / Ninguém poderá me destruir // Pois
enquanto eu tiver você comigo / Sou mais forte para mim não há perigo / Você sabe bem de onde eu venho /
E no coração o que eu tenho / Tenho muito amor que é só o que interessa / Fique sempre aqui pois a verdade é
essa // Querem acabar comigo / Nem eu mesmo sei porque / Enquanto eu tiver você aqui / Ninguém poderá
me destruir // Querem acabar comigo / Isso eu não vou deixar / Me abrace assim, me olhe assim / Não vá ficar
longe de mim // Querem acabar comigo / Nem eu mesmo sei porque / Querem acabar comigo / Nem eu
mesmo sei porque” IN: Roberto Carlos, Roberto Carlos (1966).
94
por um modelo do figurinista Denner, a estrela de Opinião chegou até a apresentar a
controvertida canção, porém sem o líder do Iê--Iê e o impacto esperado (cf. Calado, 1997
& Veloso, 1997).
Uma semana antes da estréia do programa, um ato público foi organizado com o
intuito de “defender a música brasileira” da invasão estrangeira. Neste evento, todos os
músicos envolvidos com a Frente Única foram obrigados a se apresentar na tal
manifestação. No dia 17 de julho de 1967, Elis Regina, Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo
Vandré e outros “nobres apaixonados pela causa emepebista” se reuniram no centro de São
Paulo para a realização da “Passeata contra as guitarras elétricas”
37
. Gilberto Gil e Chico
Buarque, profundame nte constrangidos com a situação por não estarem envolvidos em tais
debates, também foram obrigados a marcar presença. Em depoimento concedido à
jornalista Regina Echeverria, biógrafa de Elis, Gil analisou sua participação neste
acontecimento e relatou detalhes a respeito:
Eu estava com ela [Elis Regina] na famosa ‘passeata contra as guitarras’, que
seguiu do Teatro Paramount até o largo São Francisco. Não era bem contra a
guitarra. Na verdade, era um ressentimento todo do pessoal se manifestando, uma
coisa meio xenófoba, meio nacionalóide: vamos a favor da música brasileira.
Aquela passeata era contra um bocado de coisas, mas toda a retórica dos slogans
era contra a música estrangeira, a música alienante. Era uma coisa meio Geraldo
Vandré. Não sei direito também, mas fui pelo lado da solidariedade aos artistas. No
fundo, eu era muito ingênuo por um lado, também resistia muito a criticá-los,
entender qual era a crítica que deveria fazer àquilo tudo. Eu não fazia. Me abstinha
de aprofundar meu grau de exigência e ficava achando um pouco que tudo bem,
havia alguma coisa justa naquilo tudo que eles queria,. Essa passeata era também
uma coisa meio manipulada pela tietagem da época (...). Era uma coisa de porta de
teatro. Porque é preciso saber que o Teatro Record, na época, era uma assembléia
permanente. Todos os dias da semana tinha musicais, e todos eles defendendo
setores, tendências (IN Echeverria, 2002: 43-44).
Os manifestantes percorreram as ruas da capital paulistana com faixas e cartazes
com dizeres do tipo “Abaixo as guitarras!” (cf. Cabral, 2001: 137), revelando o seu caráter
37
Ao contrário das crenças sobre o assunto, é importante frisar que a proposta deste ato público não era contra
as guitarras elétricas necessariamente, mas principalmente contra a invasão da música estrangeira no Brasil
(cf. Calado, 1997: 108).
95
xenófobo e infundado. Nara Leão e Caetano Veloso se recusaram a participar do ato
público, mas assistiram à passeata na sacada do Hotel Danúbio, onde estavam hospedados,
e criticaram seus colegas duramente
38
. Por fim, a indefinição do estilo do programa acabou
prejudicando-o, deixando de ser um acontecimento em termos culturais e políticos,
desinteressando a classe estudantil e o grande público.
Em mais uma das reuniões de preparação da Frente Única, Nara não se
envergonhou em afirmar que tais esforços contrários ao Iê--Iê não passavam de uma
extensa preocupação com a “música brasileira” em termos mercadológicos, e não
ideológicos, como se defendia apaixonadamente. De acordo com a Musa da Bossa Nova, a
queda de audiência do programa O Fino da Bossa foi a verdadeira razão da intensificação
dos combates, visto que acarretou um prejuízo econômico gigantesco para as partes
envolvidas. As análises de Nara Leão certamente deixaram os esquerdistas mais
empedernidos em polvorosa (cf. Calado, 1997: 108-109).
A clarividência de Nara Leão foi percebida também pelo cast do Jovem Guarda,
que decidiu responder aos ataques sofridos por parte da MPB de Protesto e pela Ordem dos
Músicos Brasileiros (OMB), que, contagiada pelo surto nacionalista-revolucionário de Elis
Regina e seus companheiros, tentou implantar um teste teórico como condição de filiação
com o mero intuito de desqualificar certos músicos (cf. Napolitano IN Duarte & Naves,
2003: 130). Um manifesto coletivo foi assinado por artistas ligados ao Iê--Iê e publicado
na época. Ao apontarem uma suposta “onda de inveja” por parta da ala mais politizada da
música popular, o documento argumenta que
essa gente engajada, esses nacionalistas, na verdade, estão defendendo suas
carreiras profissionais. Eles estão ocupando o espaço da mídia e usando a fome do
Nordeste para ocupar esse espaço. E somos nós, da Jovem Guarda, acusados de
alienados, que fazemos caridade, fazemos shows beneficentes (Napolitano IN
Duarte & Naves, 2003: 131).
O III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, mesmo antes de ter suas
eliminatórias iniciadas, já tinha se transformado em uma tribuna de guerra entre o Iê--Iê e
a ala mais engajada da MPB. Era a oportunidade perfeita para que Caetano Veloso, um
38
Na ocasião, disse Nara a Caetano: “Isso mete até medo. Parece uma passeata do Partido Integralista”
(Veloso, 1997: 161).
96
jovem e talentoso compositor naquela época, demonstrasse o seu talento e instaurasse o
novo. Já se mostrava bastante atento às novidades estéticas que surgiam na canção popular
era um rapaz muito entusiasmado por João Gilberto e, graças aos conselhos da irmã
Maria Bethânia, não nutria o menor desprezo por Roberto Carlos e sua turma. Revelava-se
como um artista distinto das duas frentes de combate que dominavam o ambiente musical
daquela época e, por discordar dos acalorados debates devido à inocuidade dos argumentos,
representava uma espécie de “terceira via” de combate a ser desenvolvida a partir daquele
momento. Era necessário por parte de Caetano e seu companheiro Gilberto Gil um gesto de
afirmação em termos artísticos que se distanciasse do reducionismo das duas vertentes de
combate na música popular, pois “o mercado da MPB beirava o esgotamento formal,
deixando-lhe[s] um futuro inexpressivo, caso quisesse[m] competir com os nomes já
tradicionalizados junto ao público. Apostar na marca da diferença seria a saída capaz de
reverter o quadro” (Lucchesi & Dieguez, 1993: 28). O fato das redes de TV procurarem
investimentos maciços em festivais de música popular que substanciavam cada vez mais a
canção de protesto de cunho nacionalista é uma prova latente deste fato.
Caetano, como já se esperava, também decidira inscrever uma canção de sua autoria
no festival organizado pela TV Record. Ao caminhar pelas ruas do bairro carioca de
Copacabana, começou a pensar em uma canção alegre que comentasse as coisas presentes
nas grandes ruas a partir de uma sonoridade entre a música jovem e o irresistível
andamento das marchinhas carnavalescas (Caetano se aproveitara do sucesso de “A banda”,
de Chico Buarque composição vencedora do mesmo festival da Record no ano anterior).
A música tinha que se basear nas melodias alegres típicas do Pop internacional e conter
“algum toque crítico-amoroso sobre o mundo onde esse Pop se dava” (Veloso, 1997: 167).
Não faltaram citações do universo cultural, tais como: nomes de estrelas de cinema
(Cláudia Cardinale e Brigitte Bardot), imprensa alternativa (na figura do jornal O Sol, no
qual trabalhava Dedé Gadelha, primeira esposa do cantor e compositor), cenas violentas
típicas do período (guerrilhas, bomba), uma ironia lancinante à canção de protesto (Eu vou
// por entre fotos e nomes / sem livros e sem fuzil) e até uma transcrição direta de As
palavras, de Jean-Paul Sartre (“Nada no bolso ou nas mãos”), etc.
97
Ao construir este mosaico de referências Pop, Caetano Veloso decidiu convidar o
RC-7
39
, para apresentar a nova canção no III Festival. Porém, o empresário Guilherme
Araújo, que trabalhava com o grupo baiano na época, sugeriu que Caetano se apresentasse
com os argentinos do Beat Boys, mais agressivos do que o conjunto que acompanhava
Roberto Carlos nos palcos. Em 14 de outubro, “Alegria, Alegria” foi apresentada ao grande
público para as platéias de todo o Brasil, revirando mais uma vez o ambiente musical de
cabeça para baixo, por apresentar uma filosofia lúcida, animada por um espírito crítico que
utiliza sua inteligência e compreensão do mundo para dissipar as dores e ilusões que
impedem o homem de pensar livremente:
Caminhando contra o vento
Sem lenço, sem documento
No sol de quase dezembro
Eu vou
O sol se reparte em crimes,
Espaçonaves, guerrilhas
Em Cardinales bonitas
Eu vou
Em caras de presidentes
Em grandes beijos de amor
Em dentes, pernas, bandeiras
Bomba e Brigitte Bardot
O sol nas bancas de revista
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia?
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Os olhos cheios de cores
O peito cheio de amores vãos
39
O RC-7 foi o grupo musical que acompanhou Roberto Carlos em suas apresentações ao vivo naquela época.
Era composto por Bruno (Baixo), Dedé (Bateria), Gato (Guitarras), Maguinho (Metais), Nestico (Metais),
Raul (Metais) e Wanderley (Teclados).
98
Eu vou
Por que não? Por que não?
Ela pensa em casamento
E eu nunca mais fui à escola
Sem lenço, sem documento,
Eu vou
Eu tomo uma coca-cola
Ela pensa em casamento
E uma canção me consola
Eu vou
Por entre fotos e nomes
Sem livros e sem fuzil
Sem fome sem telefone
No coração do Brasil
Ela nem sabe até pensei
Em cantar na televisão
O sol é tão bonito
Eu vou
Sem lenço, sem documento
Nada no bolso ou nas mãos
Eu quero seguir vivendo, amor
Eu vou
Por que não? Por que não? (Veloso, 2003: 56-57).
Desprezando os tradicionais smokings requeridos em uma noite de festival, Caetano
Veloso entrou no palco vestido de laranja e com uma cara feroz e evidenciando uma
postura meramente defensiva perante as vaias que estrepitavam naquela noite de 1967
enquanto os Beat Boys adentraram o recinto vestidos de rosa, para total choque (e a rápida
apatia) do público. “Alegria, alegria” foi, ao mesmo tempo, aplaudida calorosamente, mas
99
vaiada por parte do público que estava : os nacionalistas de esquerda mais extremados (e
posteriormente uma boa ala de compositores de música popular daquela geração) se
sentiram indignados ao se depararem com um grupo de Rock no palco. Aos poucos, as
vaias foram convertidas em aplausos graças à potencialidade da performance apresentada
naquele palco, segundo as palavras do próprio Caetano Veloso:
Iniciou-se uma vaia irada que eu interrompi entrando em cena com uma cara
furiosa antes que meu nome fosse anunciado, o que assustou locutores, diretores,
produtores e público. Esse susto foi tanto maior quanto a constatação de que a não-
observância da tradição de usar smoking na gala desses festivais não se restringia
aos meninos da banda: minha entrada intempestiva era ainda mais chocante por eu
estar usando, diferentemente de todos os outros cantores, dos músicos e dos
apresentadores, um terno xadrez marrom e uma camisa de gola rulê laranja-vivo
(...). O curto silêncio que se seguiu ao meu surgimento sobre o palco foi
interrompido pela voz da apresentadora dizendo meu nome e, quase sem intervalo,
pelas guitarras e bateria dos Beat Boys que atacaram a introdução. Os três acordes
perfeitos em estranha relação, executados por instrumentos elétricos, se impuseram,
e o silêncio da platéia, conquistado pelo susto de minha entrada, não foi mais
ameaçado: o que seria um tumultuosa vaia se transformou em atenção redobrada. E
a canção caiu no gosto dos ouvintes, que terminaram aplaudindo com entusiasmo”
(Veloso, 1997: 173).
Ao incorporar as guitarras elétricas em seu repertório, a Cultura Brasileira era posta
em posição de revisão crítica por Caetano sua criatividade respondia, radicalmente, ao
questionamento de problemáticas como “Cultura nacional X Cultura internacional”, “Arte
engajada X Arte alienada”. O interesse dos baianos pelo trabalho dos Beatles se fazia mais
evidente a partir deste episódio, visto que o quarteto de Liverpool não era mais o mesmo
desde 1965: os “Reis do Iê--Iê”
40
saíam de cena para a entrada de quatro músicos
experimentalistas e psicodélicos, guiados pela lisergia e com uma técnica apurada em
termos poéticos (Lennon) e musicais (McCartney). Com Revolver (1965), Rubber Soul
(1966), passando pelo aclamado Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967) e o
injustiçado White Album (1968), a música popular seguiria por outros caminhos no Brasil e
40
Esse foi o título dado a um dos filmes do grupo aqui no Brasil em meados da década de 60 e foi com este
título que John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr ficaram conhecidos no Brasil.
no mundo graças à instituição de um novo padrão de qualidade musical (cf. Villaça, 2004:
149-154). Caetano Veloso comentou o seu entusiasmo e o de Gilberto Gil pela discografia
do grupo inglês e como ela foi necessária na orientação de novos parâmetros estéticos para
a canção no Brasil:
A lição que, desde o início, Gil quisera aprender dos Beatles era a de transformar
alquimicamente lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando assim a
autonomia dos criadores e dos consumidores. Por isso é que os Beatles nos
interessaram como o Rock’n’Roll dos anos 50 não tinha podido fazer. O mais
importante não seria tentar reproduzir os procedimentos musicais do grupo inglês,
mas a atitude em relação ao próprio sentido da música popular como um fenômeno.
Sendo que, no Brasil, isso deveria valer por uma fortificação da música popular
como um fenômeno. Sendo que, no Brasil, isso deveria valer por uma fortificação
da nossa capacidade de sobrevivência histórica e de resistência à opressão. Nós
partiríamos dos elementos de que dispúnhamos, não da tentativa de soar como os
quatro ingleses. (...) As canções tropicalistas não se parecem com as canções dos
Beatles não na mesma medida em que essas outras são paródias delas (Veloso,
1997: 169-170).
Em “Alegria, alegria”, uma postura de contestação ao se revelar contra as
amarras da “dominação da tendência nacionalista, que se pretendia hegemônica no campo
da MPB. Além do elemento invasor como o Rock, a Coca-Cola era considerada símbolo do
imperialismo ianque. E o sujeito que caminha[va] (...) não parece[ia] se preocupar com
isso” (Carmo, 2001: 70). A canção de Caetano é uma sucessão (supostamente sem sentido)
de fragmentos, de imagens publicitárias, cenas violentas do espaço urbano e
acontecimentos que estavam na ordem do dia como as guerras e as conquistas espaciais do
Primeiro Mundo (cf. Carmo, 2001: 69). A postura positiva deste “eu”, desprovido de
documentos e haveres, se impõe pela consciência da luta e pelo conformismo de prosseguir
resolutamente. As contradições e tensões do cotidiano são empecilhos para o sujeito que
experimenta tudo o que a vida pode lhe oferecer. De acordo com as análises feitas por
Paulo Sérgio do Carmo,
A construção da canção se alicerça na reunião de fragmentos, que sugere a
dispersão da realidade urbana. E o eu, que se reafirma a cada passagem (eu vou, eu
tomo uma Coca-Cola, eu quero seguir), reorganiza os fragmentos da cidade em
função de suas sensações, de seus sentidos, no consolo da canção e nos vãos
desejos do consumo (Carmo, 2001: 70).
Gilberto Gil enfrentou também obstáculos com sua canção inscrita para o festival,
“Domingo no parque”, “uma adaptação de temas básicos de cantos de capoeira ao método
harmônico de cortes bruscos” (Veloso, 1997: 171). Naquela época, o baiano já estava
completamente encantado pela sonoridade de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos
Beatles e queria fundir a sonoridade nordestina típica de sua Bahia natal com as
orquestrações e as guitarras usadas pelo quarteto de Liverpool. Para concretizar suas
propostas musicais nada ambiciosas, Gil decidiu convidar os músicos do Quarteto Novo
(Airto Moreira Percussão / Heraldo do Monte violão / Hermeto Pascoal Flauta / Théo
de Barros Baixo) para acompanhá-lo no evento. Os músicos recusaram a proposta por
acharem que Gil estaria traindo a música brasileira ao querer lançar mão de guitarras
elétricas e outros aparatos musicais do tipo.
O maestro Ro gério Duprat, que já trabalhava nos arranjos desta composição, sugeriu
que o trio de Rock Os Mutantes substituíssem o Quarteto Novo, para total felicidade de
Gilberto Gil, visto que Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias não curtiam música
brasileira, além de admiradores confessos (e profundos conhecedores do trabalho) dos
Beatles há mais tempo que o próprio baiano. Os jovens músicos combinavam os sons
elétricos de baixos e guitarras típicos da Swinging London, irreverência, jovialidade e
ruídos de toda espécie. Para os meninos do grupo, a aparição em um festival de MPB era
mais uma oportunidade para desfrutar da farra e curtição, afinal a provocação ipsis litteris
sempre foi o fator primordial para que eles seguissem a carreira de músicos.
O terreno estava preparado para que mais uma frente de combate surgisse no
ambiente musical brasileiro naquele ano de 1967. Gil, antes de se apresentar no palco,
procurou se defender dos ataques que já sofria dos emepebistas mais aguerridos diante dos
órgãos de imprensa
41
:
41
Gilberto Gil concedeu um depoimento ao livro Furacão Elis em meados da década de 80 e deixou expresso
o ressentimento da Pimentinha em relação às guinadas estéticas escolhidas por ele e seu companheiro Caetano
Veloso naquela época (cf. Echeverria, 2002).
Sinto-me hoje como num tribunal, onde sou acusado de trair a verdadeira música
popular brasileira. E não tenho muitas respostas para dar, porque eu mesmo não sei
se estou agindo certo ou errado, como ninguém no mundo pode ter certeza de
alguma coisa antes de se arriscar a fazê-la (IN Calado, 1997: 131).
Na música Pop de hoje, os Beatles passaram a utilizar todos os tipos de música e
instrumentação eruditas que não pertenciam ao que chamavam Iê--Iê. Estão
evoluindo sempre, enquanto no Brasil a própria música chamada jovem se torna
conservadora. E na música brasileira o conservadorismo é muito pior. Se
pensássemos sempre assim, estaríamos trocando nossas músicas com instrumentos
indígenas. É preciso pensarmos em termos universais. O mundo hoje é muito
pequeno, não há razão para regionalismos (IN Calado, 1997: 131).
Eu vivo no meu tempo (...). Na época em que a gente vive, é muito mais importante
reportar o mundo do que tentar a explicação. Eu acho que vivemos um tempo novo.
Eu chamaria uma nova linha mu sical de introdução da psicologia Pop na MPB.
Seria aquilo de falar de gente e dos fatos, pinturas de som e palavra, documentar as
dúvidas, jovens, gente, nós todos. Uma forma mais Pop poderia levar a nossa
música ao contato com as grandes massas. É aquilo de a gente se ver meio em
caricatura. Então a gente se entende melhor (IN Calado, 1997: 131-132).
No mesmo festival que consagrou Caetano Veloso e sua “Alegria, Alegria”,
Gilberto Gil conseguiu arrancar algumas vaias, mas despertou o encanto do público graças
ao seu canto empolgado (o cantor acabou a apresentação com os dois braços abertos ao ar,
evidenciando sua emoção de estar no palco); Os Mutantes davam a sensação de que tinham
surgido de algum lugar do futuro. Em termos musicais, a “fricção entre o tema afro-baiano
e o som deles era instigante Beatles + berimbau ou Beatles x berimbau , e a belíssima
orquestração de Rogério Duprat dava a tudo aquilo um ar imponente e respeitável que
trazia a platéia para anos-luz de distância” (Veloso, 1997: 180) daquele contexto histórico
um tanto canhestro. “Domingo no parque” foi, com isso, um dos momentos mais marcantes
do III Festival da TV Record, aliando som de qualidade a uma temática amorosa violenta,
com cenas de ciúme, traição e morte:
O rei da brincadeira ê, José
O rei da confusão ê, João
Um trabalhava na feira ê, José
Outro na construção ê, João
A s emana passada, no fim da semana
João resolveu não brigar
No domingo de tarde saiu apressado
E não foi pra Ribeira jogar
Capoeira
Não, foi lá pra Ribeira,
Foi namorar
O José como sempre no fim de semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio
Foi no parque que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu
Juliana na roda com João
Uma rosa e um sorvete na mão
Juliana, seu sonho, uma ilusão
Juliana e o amigo João
O espinho da rosa feriu Zé
E o sorvete gelou seu coração
O sorvete e a rosa ô, José
O rosa e o sorvete ô, José
Foi coçando no peito ô, José
Do José brincalhão ô, José
O sorvete e a rosa ô, José
A rosa e o sorvete ô, José
Oi, girando na mente ô, José
Do José brincalhão ô, José
Juliana girando oi, girando
Oi, na roda gigante oi, girando
Oi, na roda gigante oi, girando
O amigo João oi, João
O sorvete é morango é vermelho
Oi, girando e a roda é vermelha
Oi, girando, girando é vermelha
Oi, girando, girando olha a faca!
Olha o sangue na mão ê, José
Juliana no chão ê, José
Outro corpo caído ê, Jo
Seu amigo João ê, José
Amanhã não tem feira ê, José
o tem mais construção ê, João
Não tem mais brincadeira ê, José
Não tem mais confusão ê, João (Gil, 2003: 86-87).
Gilberto Gil provocou uma notável celeuma no meio musical brasileiro: sons de
berimbaus podiam ser identificados junto ao som de guitarras elétricas, sons de orquestra e
um alto nível poético da letras, eliminando quaisquer barreiras que possam existir em
relação ao que é música de origem nacional (tida por muitos como autêntica e engajada) ou
estrangeira (considerada pela esquerda festiva como alienada), o que causava um tamanho
estranhamento por parte de muitos daquela geração. Os versos da canção, de inspiração
eisensteiniana, narram o triângulo amoroso formado por João, Juliana e José, que tem um
desfecho trágico. A estruturação poética de “Domingo no parque”, semelhante à de
“Alegria, Alegria”, se assemelha aos cortes cinematográficos
42
: as elipses sugerem ao
receptor os atos de José (o feirante) e de João (o pedreiro), o assassinato de Juliana e o
combate mortal dos oponentes. O apuro poético das canções que se destacaram no III
Festival de Música Popular Brasileira da TV Record promoveu uma ruptura em relação as
letras engajadas que podiam ser vislumbradas nos espetáculos promovidos pelo CPC, por
exemplo.
42
Sobre tal aspecto presente em “Domingo no parque”, é importante o comentário de Gilberto Gil que pode
ser encontrado em Todas as letras: “A roda-gigante gira, e o sorvete, até então, sorvete só, já é sorvete de
morango pra poder ser vermelho, e a rosa, antes rosa só, é vermelha também, e o vermelho vai dando a
sugestão de sangue bem filme americano , e, no corte, a faca e o corte mesmo” (Gil, 2003: 87).
Caetano Veloso e Gilberto Gil acreditavam na necessidade de reatualização da
música popular que se produzia no Brasil: com a presença cada vez mais maciça do Pop na
vida cultural brasileira, os baianos buscavam integrar estes elementos “de fora” à nossa
musicalidade através de letras que oferecessem um panorama crítico da sociedade brasileira
pós-64, tal qual um manifesto. A música popular internacional apresentava inúmeras
novidades aos jovens dos anos 60 e, de certa forma, o Brasil não queria estar distante deste
ímpeto de modernização:
Depois dos Beatles e dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, o mundo
musical não era o mesmo. Em Londres e na Califórnia, em Paris e em Nova York,
o mundo estava pegando fogo, os jovens estavam começando uma revolução
movida a sexo, drogas e Rock and Roll. A música brasileira, por melhor que fosse,
não poderia continuar a mesma. E nem o país, cada vez mais fechado ao exterior
pela paranóia dos militares com as idéias subversivas, que eram justamente o que
mais interessava aos jovens rebeldes brasileiros. E Caetano e Gil, que estavam
subvertendo a música brasileira e fazendo um som elétrico e contemporâneo,
popular e provocativo: um “som universal”. Reconhecendo a importância e a
vitalidade da jovem guarda e sua genuína identificação com a juventude, Caetano e
Gil estabeleceram uma aliança com os ex-inimigos, que eram vistos e ouvidos
como “alienados e colonizados” pelas esquerdas musicais. Mesmo sendo um
grande sucesso popular, à jovem guarda faltava ainda o prestígio e o
reconhecimento de artistas mais “culturais”. Caetano e Gil valorizavam a Jovem
Guarda e romperam com o que consideravam a ditadura do “bom gosto” de classe
média, com a estética stalinista da “esquerda nacionalista”, o isolamento
internacional, o nacionalismo musical, o saudosismo bossa-novista. Caetano e Gil
integram a “música brasileira” e a “música jovem” e deflagram a mais furibunda
polêmica musical nacional desde Noel Rosa e Wilson Batista (Motta, 2000: 153-
154).
O sucesso de “Alegria, Alegria”, cujo compacto vendeu cerca de 100 mil cópias em
pouco tempo, fez de Caetano Veloso um superstar. Convidado pela Philips a gravar seu
primeiro LP individual após o término do festival da Record, o baiano começou a compor
obras para compor o seu álbum. Dentre as canções que viriam a integrar o aguardado
trabalho, estava uma canção ainda sem nome, diretamente influenciada pelas incursões
cinematográficas de Glauber Rocha. Em conversas com o produtor de cinema Luiz Carlos
Barreto, o compositor baiano foi apresentado ao trabalho do artista plástico Hélio Oiticica,
cuja exposição estava em cartaz no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.
Lá, Caetano se deparou com uma instalação composta de duas tendas (batizadas por
Oiticica de “penetráveis”) com areia e brita jogadas pelo chão, simulando uma espécie de
“horizonte perdido” nos Trópicos. O receptor era obrigado a percorrer um labirinto e, no
final, encontrar um aparelho de TV ligado na programação do dia (cf. Calado, 1997: 163).
A Tropicália de Hélio Oiticica era, segundo o próprio artista plástico, um desejo explícito
de combater o colonialismo prsente na Cultura Brasileira:
Na verdade, quis eu com a Tropicália criar o mito da miscigenação somos
negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo , nossa cultura nada tem a ver com
a européia, apesar de estar até hoje a ela submetida: só o negro e o índio não
capitularam a ela. Quem não tiver a consciência disso que caia fora. Para a criação
de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte, expressiva ao menos,
essa herança maldita européia e americana terá de ser absorvida,
antropofagicamente [grifo nosso], pela negra e índia de nossa terra, que na verdade
sao as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte brasileira é híbrida,
intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio (...) (IN Calado, 1997:
163).
O impacto sofrido por Caetano Veloso ao entrar em contato com o trabalho de Hélio
Oiticica (um leitor assíduo das idéias incendiárias de Oswald de Andrade) foi tão grande
que ele decidiu seguir os conselhos de Luiz Carlos Barreto e intitular sua canção como
“Tropicália”, não apenas para homenagear Oiticica, mas principalmente pelas “afinidades
eletivas” perceptíveis nas duas obras. Outra presença marcante para Caetano e Gilberto Gil
neste período é a do crítico e poeta concretista Augusto de Campos que, na época, já se
sentia encantado com as intervenções dos baianos e enxergava “um projeto de renovação
artística” (Calado, 1997: 167). Augusto, ao contrário das expectativas, não se aproximou
dos músicos com a intenção de discorrer horas a fio necessariamente sobre música, mas
também sobre Poesia e Estética as conversas giravam em torno de nomes como Oswald,
Joyce, e. e. Cummings e outros. Este intercâmbio favoreceu os futuros tropicalistas de
maneira definitiva, pois na medida em que o poeta trouxe, posteriormente, seu irmão
Haroldo de Campos e Décio Pignatari para as discussões, ampliou-se o horizonte poético
das canções que o grupo baiano gravaria logo depois.
O contato de Caetano e Gil com a obra literária de Oswald de Andrade foi definitivo
para a trajetória artística de ambos, que passou a ser compreendido como um vanguardista
de extrema importância nos anos 60. A “metáfora da Devoração” proposta pelo autor em
seu Manifesto Antropófago, era revisitada décadas depois com a mesma intenção de não
imitar o novo, mas sim de assimilar as informações criticamente e reinventá-las com termos
cunhados por nós, lançando mão de qualidades locais que lhe ofereçam autonomia e,
conforme observou Haroldo de Campos citado pelo próprio Caetano, “a possibilidade de
passar a funcionar por sua vez, num confronto internacional, como produto de exportação”
(Veloso, 1997: 247). Tal gesto era uma defesa perante os ataques da MPB engajada e um
procedimento crítico muito recorrente desde então:
A idéia do canibalismo cultural servia-nos (...) como uma luva. Estávamos
“comendo” os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude
defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva.
Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e
eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também
e procuro agora relê-la nos textos originais, tendo em mente as obras [em] que
ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética
surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre a
experiência modernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecânicos
dos anos 60 (Veloso, 1997: 247-248).
As propostas estético-ideológicas do que viria a ser o Tropicalismo enquanto
movimento estão todas inscritas na “Tropicália” de Caetano Veloso. A nação é construída a
partir de conceitos, citações, fatos e jargões que se desarticulam entre si, resultando em um
painel caótico e contraditório, resultando em uma “imagem mítica do Brasil, grotescamente
monumentalizada, que ‘emite acordes dissonantes’, num momento indefinido, pois, além
dos atos e fatos citados, outros podem ser incluídos” (Favaretto, 2000: 63). A construção
arquitetada por Caetano é demolida ideologicamente, revelando, ao mesmo tempo, a festa e
a degradação através da sátira empregada na composição.
A faixa se inicia com um apanhado de ruídos e dissonâncias que tinha o intuito de
projetar o ouvinte em direção a uma nação brasileira virgem e intocada pelo colonizador
os instrumentos de percussão nos indicavam um certo suspense perante a atmosfera
primitiva recriada em “Tropicália” (cf. Favaretto, 2000: 64). O regressar do tempo se
confirma ao ouvirmos uma voz (no caso o percussionista Dirceu, que trabalhou com
Caetano e Gil naquela época) proferir, comicamente, um discurso que parodiava, ao mesmo
tempo, a carta do Descobrimento do Brasil e a produção literária de Oswald de Andrade:
“Quando Pero Vaz Caminha descobriu que as terras brasileiras eram férteis e verdejantes,
escreveu uma carta ao Rei: tudo que nela se planta, tudo cresce e floresce. E o Gauss
43
da
época gravou...” (IN Calado, 1997: 163). A História é posta em revisão uma espécie de
reflexão crítica dos erros do presente a não serem repetidos no futuro
44
, conforme diz a letra
da canção, que recebeu arranjo do maestro Júlio Medaglia:
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva a bossa-sa-sa
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
43
A referência é feita a Rogério Gauss, engenheiro de som que trabalhou com Caetano Veloso e Gilberto Gil,
naquela época.
44
O retorno às origens foi uma influência de Terra em Transe, conforme escrito por Caetano Veloso em
Verdade Tropical (Veloso, 1997: 99).
A entrada é uma rua antiga, estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta,
Estende a mão
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta
No pátio interno há uma pis cina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
Viva Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
No pulso esquerdo bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração balança ao samba de um tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores ele pões os olhos grandes
Sobre mim
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Viva Iracema-ma-ma
Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Domingo é o Fino da Bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém
O monumento é bem moderno
Não disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a banda-da-da
Carmen Miranda-da-da-da-da
Viva a banda-da-da
Carmen Miranda-da-da-da-da (Veloso, 2003: 53-55).
O arranjo grandiloquente de Medaglia, segundo Celso Favaretto (2000: 66), se
encontra na mesma linhagem de orquestrações típicas das obras de Ary Barroso ou da
lendária Rádio Nacional ao misturar epicidade e a cafonice tão prezada pelos tropicalistas.
Em meio à ampla exposição das ditas “mazelas do subdesenvolvimento” (dramaticamente
apresentadas por Caetano), a concepção musical assume papel-chave:
O arranjo de Júlio Medaglia é extremamente funcional, pois foi criado em
continuidade com a letra, não sendo, portanto, concebido como simples reforço
enfático. Ele traduz o signo verbal como paródia dialogando com a interpretação
“realista” de Caetano. Utilizaram-se os mais diversos instrumentos, dos clássicos
aos populares, inclusive os mais próximos dos ritmos primitivos. A tônica do
arranjo é dada pela percussão: mesmo os efeitos de cordas se integram como
manifestações percussivas, como é o caso dos glissandos e pizicatos. Predominam
os sons vibrantes e violentos, ruídos “tropicais” obtidos por efeitos de cordas. Os
metais e o vibrafone marcam o ritmo mantendo permanente a tensão (Favaretto,
2000: 67-68).
“Tropicália” é anunciada por um eu que indica a ação a partir de “imagens, idéias e
entidades reveladoras da tragicomédia Brasil” (Veloso, 1997: 185), anunciando o
espetáculo e um movimento próximo ao “coração do país”, ou seja, Brasília, capital-federal
erigida na Região Centro-Oeste. A preferência de Caetano pela sede do poder federal ter
sido retratada em sua canção-manifesto foi exposta em seu livro de memórias:
A idéia de Brasília fez meu coração disparar por provar-se imediatamente eficaz
nesse sentido. Brasília, a capital-movimento, o sonho mágico transformado em
experimento moderno e, quase desde o princípio, o centro do poder abominável
dos ditadores militares. Decidi-me: Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da
canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao
nosso ridículo (Veloso, 1997: 185).
As experiências e as temporalidades são organizadas pela voz que canta e,
conseqüentemente, desmonta signos típicos da identidade nacional. A contraposição do
velho ao novo (Bossa X palhoça, Brasília X planalto central, papel crepom X prata, dentre
outros exemplos) evidencia o que há de artificial no monumento arquitetado. A criança
morta e os urubus a passearem no jardim de girassóis, por sua vez, já revelam as
contradições sociais existentes na embelezada
45
Pindorama, cuja mão direita traz uma rosa
(uma alusão aos partidários de direita a flor nos alude ao símbolo da beleza,
provavelmente indicando a alienação dos direitistas em relação aos rumos da política
brasileira) e a esquerda uma arma de fogo (desta vez, uma referência aos esquerdistas
combativos). O estribilho “Viva Maria-ia-ia” é um dos mais polissêmicos da canção por
reunir em torno de si a alusão a um dos filmes mais comentados do cineasta frances Louis
Malle (Viva Maria, estrelado por Brigitte Bardot), Iá (que quer dizer “mãe” em iorubá) e
“iá-iá” (maneira pela qual os negros chamavam suas patroas na Bahia) (cf, Veloso, 1997:
187) e faz desta composição uma das mais ricas e intrigantes de todo o movimento
tropicalista.
Existe também, em “Tropicália”, significativos ataques ao que se convencionou
como “bom gosto”. A Iracema de Alencar, um dos maiores signos da brasilidade, é
justaposta à Ipanema, reduto de um Brasil ideal em sua beleza, boemia e intelectualidade.
Os universos musicais de Elis Regina e Roberto Carlos, típicas representações da
modernização entre nós, aparecem junto da roça e da fossa, evidenciam uma nação envolta
em contrastes. No entanto, a associação mais feliz em relação aos universos arcaico e
moderno é “banda-da-da” e “Carmen Miranda-da-da-da”: o cult de Chico Buarque, ao estar
frente a frente com a figura da Pequena Notável, desnuda um dos principais mitos que
cerceam a Cultura Brasileira: o do nacionalismo calcado em palmeiras, bananas e outras
45
Os traços de beleza como a presença da mulata, da verde mata exuberante e o “luar do sertão” estão
arrolados em “Tropicália”.
belezas pitorescas, visto que Carmen, um dos principais estandartes culturais, representa o
samba e o Pop em sua essência (cf. Souza IN Cavalcante et alli, 2004: 84).
“Marginália II”, composição com música de Gilberto Gil e letra de Torquato Neto,
pode ser compreendida como uma das principais manifestações do Tropicalismo por
apresentar uma visão apocalíptica e amarga da nação brasileira, aliando irreverência e
melancolia. As contradições da nação brasileira são apontadas a partir de imagens
pitorescas do Brasil que aqui também funcionam como representações de puro deboche.
A letra, transcrita abaixo, comprova nossas observações:
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui, o Terceiro Mundo
Pede a bênção e vai dormir
Entre cascatas, palmeiras
Araçás e bananeiras
Ao canto da juriti
Aqui, meu pânico e glória
Aqui, meu laço e cadeia
Conheço bem minha história
Começa na lua cheia
E termina antes do fim
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Minha terra tem palmeiras
Onde sopra o vento forte
Da fome, do medo e muito
Principalmente da morte
Olelê, lalá
A bomba explode lá fora
E agora, o que vou temer?
Oh, yes, nós temos banana
Até pra dar e vender
Olelê, lalá
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo (Gil, 2003: 95-96).
É diretamente da margem de onde ecoa a voz do eu-lírico: tomado pelo viés
melancólico típico dos românticos, dirige-se ao ouvinte/leitor, expõe sua culpa de ser um
indivíduo pensante que nada pode fazer para melhorar as condições cruéis do país
subdesenvolvido. Seus versos tristes, levemente inspirados por “Araçás e bananeiras”,
marcados pelo “pão seco da cada dia” e embalados pelo “canto da juriti” revelam a fome, a
beleza de um país corroído por dentro e praticamente imperceptível por muitos. A benção
que se pede, segundo a canção de Gil e Torquato, revela uma atitude reverente ao mundo
desenvolvido, ou seja, demonstra um “caráter arcaico, de reverência e dependência dos
países de terceiro mundo” (Andrade, 2002: 59).
O arranjo de Rogério Duprat para a gravação de Gilberto Gil buscou a conciliação
dos universos erudito e Pop: o som composto por flautas, metais, violinos e o triângulo
nordestino comprova a intenção dos tropicalistas em criar um som sem barreiras estético-
ideológicas. Por outro lado, Torquato Neto cita textos seminais em “Marginália II”, tais
como Gilberto Freyre (“tropical melancolia”), Gonçalves Dias (“Minha terra tem palmeiras
/ onde sopra o vento forte”), Braguinha (“Oh, yes, nós temos banana / até pra dar e vender /
Olelê, lalá”)
46
e Casimiro de Abreu (“canto da juriti”), constituindo o que Paulo Andrade
entitulou de “poética de estilhaços” (cf. Andrade, 2002) fragmentos que, ao serem
justapostos, compõem um retrato complexo e crítico da realidade brasileira.
De acordo com André Bueno, “Marginália II” é uma canção
que pende para o localismo, pondo o país e a questão nacional no centro de seu
interesse crítico e criativo. Mas trata-se de um nacionalismo lido pelo avesso,
ressaltando o negativo da posição periférica e marginal do país tropical. Daí o tom
ufanista, cru e ironico, que não folcloriza a miséria no Brasil e, por extensao, do
que então se chamava Terceiro Mundo (Bueno, 2005: 54-55).
Em pouco tempo, a imprensa compreendeu as manifestações de Caetano Veloso,
Gilberto Gil e seus companheiros como um movimento, que recebeu o nome de
Tropicalismo contrariando até os próprios Caetano e Gil. Consagrada a inauguração, eles
prosseguiram na criação de intervenções artísticas que se revelassem como alternativas à
Bossa Nova, à MPB de Protesto e ao Iê--Iê, o que não impediram de terem sido
radicalmente agredidos por setores mais politizados. A partir da valorização da música Pop
que ganhava força no mundo (graças à popularidade dos Beatles, que trouxeram um novo
estilo de vida jovem, humor, invenção, irreverência, roupas e corte de cabelo diferentes) e
da tradição musical brasileira (especialmente João Gilberto e a Bossa Nova), os
tropicalistas acreditaram na riqueza cultural do nosso país tal qual o fizeram Mário e
Oswald de Andrade e outros componentes da geração modernista brasileira de 22 e
incorporaram as lições da Poesia Concreta, do Iê--iê (inter)nacional, além de influências
do bolero, do samba-canção e do kitsch, tudo dentro de um mesmo espaço estético.
Apoderaram-se da televisão como instrumento para divulgação de suas propostas estéticas,
46
Ao nos lembrarmos da famosa canção de Braguinha, não podemos nos esquecer de uma máxima atribuída à
Carmen Miranda, a primeiríssima das cantoras mais importantes da música popular produzida no Brasil: “I
make my money with bananas” [Eu ganho meu dinheiro com bananas]. Ao nos remetermos ao contexto da
“Pequena Notável”, que declarou a frase na época em que vivia nos Estados Unidos e participava de
produções hollywoodianas, Pode-se observar que a presença da banana, além de revelar um tom exótico do
Brasil, salienta também a relação de dependência de nós, brasileiros, perante o mundo capitalista. Maiores
informações sobre esta questão podem ser obtidas no documentário Carmen Miranda: Bananas is my
Business (1994), de Helena Solberg e David Meyer e no monumental Carmen: uma biografia, de Ruy Castro
(Companhia das Letras, 2005).
aliando o tom crítico musical ao espetáculo. É o próprio Caetano que nos explica este
processo:
Nós, de nossa parte, queríamos, entre outras coisas, acabar com o hábito de se ter
uma “bola” a cada vez, apostando numa pluralidade de estilos concorrendo nas
mentes e nas caixas registradoras. Uma das marcas da Tropicália e talvez seu
único sucesso histórico indubitável foi justamente a ampliação do mercado pela
prática da convivência na diversidade, alcançada com o desmantelamento da ordem
dos nichos e com o desrespeito às demarcações de faixas de classe e de graus de
educação. Essa saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns
críticos chatos chamam de “complacência cínica pós-60” (Veloso, 1997: 281).
O que era visto como algo esteticamente pobre passa a ser encarado como
sofisticado; por isso, vale dizer que o processo criativo dos tropicalistas se calcou na
inclusão de múltiplas referências das culturas brasileira e internacional. Os manifestos de
Oswald de Andrade passaram a atuar como credo dos tropicalistas, o que tornou possível
re/avaliar criticamente o Brasil, re/visto “com olhos livres”, conforme sentenciara o próprio
Oswald de Andrade no Manifesto Pau Brasil.
Segundo Bina Friedman Maltz, a cartilha antropofágica, ao ser apropriada pelo
Tropicalismo, consistia em “recusar, incorporar e questionar ao mesmo tempo a cultura e os
modelos e repertório literários dominantes, revisando-os e assimilando-os criticamente à
realidade cultural brasileira” (Maltz, 1993: 11). Em entrevista concedida a Carlos Adriano e
Bernardo Vorobow, Caetano Veloso comentou a importância que Oswald de Andrade teve
não apenas para ele como também para os artistas de sua geração:
Oswald foi o ponto que uniu todos os envolvidos direta ou indiretamente nas
atividades que cercaram o Tropicalismo. Tanto os Campos quanto Zé Celso,
Oiticica como Zé Agrippino, Antônio Cícero e Zé Almino, Duprat, Rogério Duarte,
Torquato, Waly, todos concordavam a seu respeito. O patriarca do matriarcado de
Pindorama, o antropófago indigesto, o modernista mais conseqüente porque mais
irresponsável” (Veloso, 2001: 50).
“Domingo no parque” e “Alegria, alegria”, respectivamente segundo e quarto
lugares no III Festival da Canção da TV Record, marcaram a inauguração de um novo
momento na música popular produzida no Brasil graças à incorporação das “conquistas da
moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa, sem, por isso, abdicar dos
pressupostos formais de suas composições, que se assentam, com nitidez, e raízes musicais
nordestinas” (Campos, 1993: 152). O Tropicalismo une, em vários momentos, as esferas do
sublime e do grotesco, ao conjugar o despojamento musical dos bossa-novistas à tradição
musical dos anos 40 e 50 (lembremos de Vicente Celestino na voz de Caetano Veloso) e as
guitarras elétricas do Iê--Iê (esconjuradas pelos puristas), promovendo uma confluência
de ritmos e tendências musicais. Foram responsáveis na assimilação do que existia de novo
ao “incorporar as conquistas da moderna música popular aos seus próprios campos de
pesquisa, sem, por isso, abrir mão dos princípios formais de suas composições” (Carmo,
2001: 71). Daí entende-se que os tropicalistas inauguraram
uma nova relação com a diferença, assumindo uma postura afirmativa e
comprometendo-se de modo indiferenciado com todos os os aspectos captáveis do
universo brasileiro, como o brega e o cool, o nacional e o estrangeiro, o erudito e o
popular, o rural e o urbano e assim por diante (Naves, 2001: 54).
No Tropicalismo, a tradição é relida através do exercício metalingüístico, da paródia
e do pastiche. “Saudosismo” (Veloso, 2003: 73-74), canção de Caetano Veloso lançada em
seu álbum de 1969 (e imortalizada por Gal Costa em disco lançado no mesmo ano), ilustra
perfeitamente tal assertiva ao encontrarmos referências a João Gilberto ou a clássicos da
Bossa Nova, como “Lobo bobo”, “Desafinado”, “Fotografia”, entre outras:
Eu, você, nós dois
já temos um passado, meu amor
um violão guardado,
Aquela flor
E outras mumunhas mais
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E o mundo dissonante que nós dois
Tentamos inventar tentamos inventar
Tentamos inventar tentamos
A felicidade a felicidade
A felicidade a felicidade
Eu, você, depois
Quarta-feira de cinzas no país
E as notas dissonantes se integraram
Ao som dos imbecis
Sim, você, nós dois
Já temos um passado, meu amor
A bossa, a fossa, a nossa grande dor
Como dois quadradões
Lobo, lobo bobo
Lobo, lobo bobo
Eu, você, João
Girando na vitrola sem parar
E eu fico comovido de lembrar
O tempo e o som
Ah! Como era bom
Mas chega de saudade
A realidade é que
Aprendemos com João
Pra sempre
A ser desafinados
Ser desafinados
Ser desafinados
Ser
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade
Chega de saudade (Veloso, 2003: 73-74).
Essa valorização do “velho”, a partir de uma ótica renovada, despojada e
irreverente, foi veiculada em rede nacional via televisão, o que causou uma polêmica com
proporções jamais vistas, fazendo com que músicos e boa parcela da sociedade se sentissem
agredidos pelas posturas radicais dos jovens tropicalistas. Naquele momento, a canção
popular já podia ser divulgada via disco, rádio, TV (que apesar de ter surgido no início da
década de 50, só se popularizou nos anos 60) o que foi fundamental para a afirmação do
Tropicalismo. Com isso, o objeto canção poderia ser reproduzido para todo o país ao
mesmo tempo, mas, ao contrário do que fora proferido por Adorno e Horkheimer, a música
popular dos anos 60 (por ser uma expressão cultural das massas) não estava a serviço de um
monopólio capitalista ou das ideologias dominantes, como qualquer produto que circula
pela indústria cultural, e sim atendia a uma postura crítica do movimento encabeçado por
Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em outras palavras, o Tropicalismo era meramente
um complexo industrial-ideológico que procura[va] explorar ao máximo a força
penetrante que a música tem: o extraordinário poder de propagação social que vem
de sua própria materialidade, do seu caráter de objeto/subjetivo (está fora, mas está
dentro do ouvinte!), simultâneo (vivido por muitas pessoas ao mesmo tempo), e do
enraizamento popular de sua produção no Brasil (Wisnik, 2004: 175).
3.2 - Do pão para as massas ao saudosismo forçado
Os anos 60 foram privilegiados por terem presenciado um movimento de vanguarda
voltado para as massas, que buscava uma comunicabilidade eficiente. Por isso, ele
“consiste em intervir para esquentar os debates e a reflexão do público”, já que eles não
tinham um projeto estético específico. A partir disso, é possível afirmar que “o
Tropicalismo representa um avanço no sentido da tomada de consciência por parte do
compositor diante dos aspectos econômicos que estão por detrás da cultura de massas”
(Lacerda, 2002: 21-22). Outro feito do movimento liderado por Caetano e Gil foi o fato de
que finalmente o Rock fora inserido dentro do nosso universo musical, influenciando a
produção das gerações posteriores de forma definitiva.
Surgia, então, uma nova prática de contestação de valores, completamente
dissociada do engajamento político o que não deixava de estar na contracorrente de
muitos artistas daquele momento, pois o tour de force baiano procurava a liberdade estética
em relação a quaisquer posições de esquerda ou direita. Buscava-se transformar o mundo a
partir dos excessos de autoritarismo e de quaisquer outros aspectos que caracterizassem a
sociedade moderna daquele momento. Por isso, surgia com notável expressividade
o enorme espírito de contestação e insatisfação e a luta por um outro modo de vida,
mesmo que com uma crítica anárquica e radical. A juventude quer romper as
“regras do jogo” e questionar a cultura convencional. Coerente com uma filosofia
utópica de vida, assumida pela contracultura, desencantada com o presente,
descrente no futuro de uma sociedade “doente”, tentava criar uma cultura
alternativa, underground, situada fora daquele meio sociocultural desacreditado
(Carmo, 2001: 52).
A esquerda musical reagia com total agressividade em relação à apropriação do Iê-
-Iê pelos baianos naquela época: para estes, as manifestações dos tropicalistas não
passavam de meras demonstrações da mais pura alienação
47
. No entanto, o que os críticos
desta nova ordem musical que surgia não enxergavam era a liberdade estética necessária
para a evolução da canção popular que se produzia no Brasil. Consciente deste ímpeto
libertário, Nara Leão era uma das poucas artistas daquela geração que compreendia quanto
o livre arbítrio era importante na escolha de um repertório de qualidade
48
:
Canto e cantarei tudo que for de bom gosto. Em São Paulo, recentemente
apresentei algumas músicas dos Beatles. Quem tem coragem de dizer que eles não
prestam? “Yesterday”, por exemplo, é quase erudita. O próprio Roberto Carlos tem
canções que são agradáveis a qualquer ouvinte. (...) Por que ser contra coisas dessa
natureza? Tenho personalidade bastante para gostar ou não gostar do que ouço sem
precisar me orientar pela cabeça dos outros (Cabral, 2001: 139).
47
Um artigo de Dinah Silveira de Queiroz reflete bem a perseguição dos mais “engajados” ao Tropicalismo:
“Esta Tropicália, que anda por aí, importada da Europa, não é nada para nós. (...) Não se aperceberam de uma
realidade dramática: estão caricaturando a sua própria condição” (apud Lontra, 2000: 32).
48
É interessante observar que não apenas a postura ousada de Nara Leão (como as de Caetano e Gil também)
foi alvo de considerações bastante maldosas. No caso de Nara, cabe citar aqui o comentário reacionário de sua
colega Elis Regina, que afirmou de maneira contundente: “Eu não tinha nada contra a moça Nara Leão. Hoje
eu tenho, porque me irrita a sua falta de posição, dentro e fora da música popular brasileira. Ela foi a musa,
durante muito tempo, mas começou gradativamente a trair cada movimento do qual participava. Iniciou na
Bossa Nova, depois passou a cantar samba de morro, posteriormente enveredou pelas músicas de protesto e,
agora, aderiu ao Iê--Iê. Negou todos. Os jornais estão aí para provar o que eu digo. Se juntarmos todos os
recortes, o resultado será um jogo chamado disparate. Nara desmente sempre a imprensa, quando é publicado
algo que não lhe convém. Há sete anos que o seu nome sai nos jornais. Observei que, na música, Nara Leão
segue essa mesma filosofia. Exemplo disso podemos encontrar quando ela conseguiu ser manchete do jornal
Última Hora, ao espinafrar o exército brasileiro. (...) A verdade é que Nara Leão canta muito mal, mas fala
muito bem” (Cabral, 2001: 138).
O movimento tropicalista adquiriu bastante força através da imprensa e virou moda,
contrariando as expectativas dos próprios tropicalistas. A gravadora Philips, ao sentir o
potencial do grupo baiano em atrair o público, arquitetou várias jogadas publicitárias para
promover o Tropicalismo, tais como folhetos promocionais, esquemas amplos de
divulgação e um LP coletivo com as principais expressões do novo fenômeno. Neste último
projeto, que foi o principal manifesto do tour de force baiano e veio a se chamar Tropicália
ou Panis et Circensis, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram acompanhados pelos arranjos
sofisticados dos maestros Rogério Duprat e Júlio Medaglia e do grupo Os Mutantes, além
das vozes de Nara Leão, Gal Costa, Tom Zé e dos versos de Torquato Neto e José Carlos
Capinam. Outros nomes que contribuíram a Tropicália como um todo (ou seja,
indiretamente) foram Hélio Oiticica, José Celso Martinez Corrêa, Glauber Rocha, além de
Rogério Duarte, José Agrippino de Paula, Guilherme Araújo, entre outros. Todos estas
pessoas estavam integradas na realização de um projeto cultural e estético ousado, segundo
a concepção de José Miguel Wisnik:
O Tropicalismo promove[u] um abalo sísmico que parecia sustentar o terraço da
MPB, com vista para o pacto populista e para as harmonias sofisticadas,
arrancando-a do círculo do bom gosto que a fazia recusar como inferiores ou
equivocadas as demais manifestações da música comercial, e filtrar a cultura
brasileira através de halo estético-político idealizante, falsamente “acima” do
mercado e das condições de classe. No fermento da crise que espalha ao vento, o
Tropicalismo capta a vertiginosa espiral descendente do impasse institucional que
levaria ao AI-5 (Wisnik, 2004: 180-181).
No final de julho de 1968, o disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis
chegou às lojas de todo o Brasil, dividindo a crítica especializada. Muitos adoraram o
resultado final, como também outros odiaram o projeto, confundindo ainda mais o público.
A faixa escolhida para a abertura do disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis foi
“Miserere nobis”, de Capinam e Gil. Ao retomar o dito latino que, em português, quer dizer
Tende piedade de nós, os compositores buscavam demonstrar a falta de perspectivas futuras
em relação ao futuro do Brasil, porém a postura pacificada da voz que canta é substituída
por uma consciência crítica: é sentida a mudança por parte de alguns não basta mais
esperar a hora de lutar por mudanças e sim sair em busca de algo para jantar, conforme a
canção nos diz. Restaura-se também o que se chama de princípio cristão da igualdade na
medida em que o alimento (pão) deve ser o mesmo para todos os brasileiros com o intuito
de não aprimorar as dimensões trágicas que sempre permearam o contexto brasileiro. O
discurso veiculado pela canção, como podemos ver, articula a concepção fatalista de nossa
nação:
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
Calados e magros, esperando o jantar
Na borda do prato se limita a janta
As espinhas do peixe de volta pro mar
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Tomara que um dia de um dia seja
Para todos e sempre a mesma cerveja
Tomara que um dia de um dia não
Para todos e sempre metade do pão
Tomara que um dia de um dia seja
Que seja de linho a toalha da mesa
Tomara que um dia de um dia não
Na mesa da gente tem banana e feijão
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Já não somos como na chegada
O sol já é claro nas águas quietas do mangue
Derramemos vinho no linho da mesa
Molhada de vinho e manchada de sangue
Miserere-re nobis
Ora, ora pro nobis
É no sempre será, ô, iaiá
É no sempre, sempre serão
Bê, rê, a Bra
Zê, i, lê zil
Fê, u fu
Zê, i, lê zil
Cê, a ca
Nê, agá, a, o, til ao
Ora pro nobis (Gil, 2003: 104-105).
Antes dos instrumentos começarem a soar, é possível perceber explosões, artilharia
pesada, evidenciando a repressão do regime militar em 1968. Após o último rugir de
pólvora, uma concepção musical complexa entra em cena: o violão de Gilberto Gil se soma
ao som do órgão, sinos e o coro do grupo Os Mutantes e anuncia a marcha tropicalista. Ao
fim de todas as reivindicações propostas por “Miserere nobis”, a última estrofe apresenta
fragmentos aparentemente sem sentido, mas que lidos verticalmente nos permite formar os
vocábulos “Brazil” e “fuzil” as armas rimam com uma nação militarizada, apoiada pelo
imperialismo norte-americano
49
, cujos governantes buscam, obsessivamente, promover a
“paz” diante de seu povo. Por outro lado, os vocábulos, dispostos entre sílabas soltas,
querem nos informar da
violência estabelecida que mantém o Brasil estagnado e afirma uma sublevação não
institucionalizada. Simultaneamente, as palavras sibiladas indicam a forma da
censura política e, até mesmo, uma forma de violência que não reduplica a
49
Partimos, aqui, do princípio de que o Golpe Militar promovido pelos militares brasileiros em 1964 foi
amplamente auxiliado e apoiado pelo governo dos Estados Unidos da América (EUA).
existente: uma ação política indireta que, destacando-se da consciência burguesa,
acentua a sua decomposição, por não ser possível simplesmente destruí-la
(Favaretto, 2000: 99).
Um dos momentos mais comentados do álbum coletivo dos tropicalistas é a
controvertida releitura que Caetano Veloso fez de “Coração materno”, de Vicente
Celestino. Os arranjos orquestrais de Rogério Duprat recriavam a atmosfera dramática da
canção a obra narra um sangrento matricídio. Os floreios melódicos do arranjo de Duprat
pressupunham o dó-de-peito, o tom operístico que popularizou Celestino durante os anos de
30 e 40 entre nós. Contrariando as expectativas, Caetano recusou o estilo emocionado da
gravação original a partir de uma interpretação mais contida, ressaltando o “grotesco de um
tipo de música tida como expressão do sentimento rural, quando não passa de uma mera
convenção” (Favaretto, 2000: 97). Por isso, cabe citar aqui os versos da composição
gravada no álbum Tropicália ou Panis et Circensis:
Disse um campônio à sua amada
Minha idolatrada
Diga o que quer
Por ti vou matar
Vou roubar
Embora tristeza me causes, mulher
Provar quero eu que te quero
Venero teus olhos, teu porte, teu ser
Mas diga, tua ordem espero
Por ti não importa matar ou morrer!
E ela disse ao campônio a brincar:
Se é verdade tua louca paixão
Parte já e pra mim vai buscar
De tua mãe inteiro o coração
E a correr o campônio partiu
Como um raio na estrada sumiu
E sua amada qual louca ficou
A chorar na estrada tombou
Chega à choupana o campônio
Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar
Rasga-lhe o peito o demônio
Tombando a velhinha aos pés do altar
Tira do peito sangrando
Da velha mãezinha o pobre coração
E volta a correr proclamando:
“Vitória! Vitória! De minha paixão!”
Mas em meio da estrada caiu
E na queda uma perna partiu
E a distância saltou-lhe da mão
Sobre a terra o pobre coração
Nesse instante uma voz ecoou:
“Magoou-se, pobre filho meu?
Vem buscar-me, filho, aqui estou
Vem buscar-me, que ainda sou teu!” (IN Favaretto, 2000: 154).
De acordo com as análises de Celso Favaretto, o grotesco em “Coração materno”
nos remete a um espaço arcaico da sentimentalidade rural justaposta, social e
psicologicamente, ao meio urbano industrial” (Favaretto, 2000: 96). Ao efetuar a mistura de
conceitos tão díspares, os tropicalistas resgataram o elemento cafona da cultura brasileira
(que irromperá com força total em outra faixa do disco, “Lindonéia”, de Caetano Veloso e
Gilberto Gil). Porém, é necessário acrescentar que o resgate de Vicente Celestino na
tumultuada década de 60
50
é, também, fruto da memória afetiva do próprio Caetano:
A idéia de gravar essa canção me ocorrera por ela ser um exemplo radical do clima
estético do qual nós nos julgávamos alçados altamente. Mas essa era uma história
que, em vários planos, era mais arcaica do que podia parecer. A minha primeira
lembrança de patrulhamento de gosto ou de educação estética por meio da
humilhação; ou de esnobismo cultural remonta à infância remota, entre os quatro
e os seis anos, quando meus irmãos riram de mim por eu externar admiração por
Vicente Celestino, suas melodias, sua grande voz. Já então, nos anos 40 pelo
menos dentro de minha família , os dramalhões cantados com voz empostada
eram considerados ridiculamente vulgares. Lembro que a vergonha que senti foi
funda e, sem dúvida, a marca indelével que deixou, disciplinou minha
sensibilidade. Cresci para desgostar de ópera italiana e suas imitações, e ainda hoje,
quando se trata de canto lírico, tenho prazer total com sopranos e contraltos e quase
50
Em Verdade Tropical, Caetano Veloso afirmou que, em 1968, Vicente Celestino era um nome
extremamente esquecido pelo grande público, apesar de ter tido bastante sucesso nas décadas de 30 e 40 (cf.
Veloso, 1997: 293).
nenhum com tenores e barítonos. (...) Mas nunca esqueci de todo as canções de
Vicente Celestino, que eu já sabia cantar antes mesmo de eu falar. Para gravar o
“Coração materno” não precisei propriamente reaprender a canção, tive apenas que
conferir a gravação original para evitar eventuais erros tópicos. E lembrava melhor
dela (que era indiscutivelmente a que melhor servia aos propósitos tropicalistas) do
que de qualquer outra de Celestino (Veloso, 1997: 293-294).
No programa do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, Oswald de Andrade
rompeu com a dicção parnasiana ao propor uma poesia simples, ágil, inventiva e ligada ao
cotidiano como uma “sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata
resumida das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo
o jornal. No jornal anda todo o presente” (Andrade, 1995: 44). Entretanto, a leitura do
periódico pode ou não carregar uma consciência crítica da realidade, enquanto a sala de
jantar pode estar minada da mais gritante das alienações. Na medida em que as ideologias
oficiais permitiam o espetáculo dos festivais de música popular sem maiores alardes, a
massa estudantil que constituía a chamada “esquerda festiva” se pacificava através da
catarse provocada pelo artista que se apresentava no palco, enquanto muitas famílias
brasileiras se acomodavam diante da televisão, para fazerem suas refeições, durante a
atração musical do horário nobre. É este o contexto de “Panis et Circensis”, composta por
Caetano Veloso e Gilberto Gil e originalmente gravada pelo grupo Os Mutantes:
Eu quis cantar
Minha canção iluminada de som
Soltei os panos sobre os mastros no ar
Soltei os tigres e os leões nos quintais
Mas as pessoas na sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei fazer
De puro aço luminoso um punhal
Para matar o meu amor e matei
Às cinco horas na avenida central
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer
Mandei plantar
Folhas de sonhos no jardim do solar
As folhas sabem procurar pelo Sol
E as raízes procurar, procurar
Mas as pessoas da sala de jantar
Essas pessoas da sala de jantar
São as pessoas da sala de jantar
Mas as pessoas da sala de jantar
São ocupadas em nascer e morrer (Gil, 2003: 104).
Como podemos entender, as noções de pão e circo estavam bem delimitadas
naqueles idos de 1968. O mesmo processo de dava em relação aos que “jantavam” e aos
que “não jantavam”, ou seja, coadunavam ou não com o status quo. A indiferença de
muitos de nós perante o contexto cultural e sócio -político do Brasil naquele momento era
tamanha ao ponto de neutralizar os feitos ousados do eu-lírico de “Panis et Circensis”. A
gravação original ambicionou a recriação de uma sala de jantar estilizada um espaço onde
todos os membros de uma família se encontravam, o que pressupõe o diálogo entre pessoas
e não o silêncio alienado das individualidades. A mesa é o palco de uma verdadeira “orgia
de guitarras, flautas, cítaras, vozes esganiçadas, garfos e facas nervosos pontuando uma
refeição consensual de tradicional família brasileira” (Sanches, 2000a: 61), além de uma
citação musical da vinheta do programa jornalístico Repórter Esso.
No momento em que a versão do grupo Os Mutantes se aproxima do fim, o som é
radicalmente interrompido: o ouvinte tem a sensação de que uma tomada teria sido
desligada acidentalmente, por exemplo. O desfile musical é retomado logo em seguida: a
tentativa de libertação do “ritual da sala de jantar” (Favaretto, 2000: 102) prossegue,
enquanto o desmonte do “caráter representativo” da canção continua. Segundo Pedro
Alexandre Sanches, existe uma justaposição de dois discursos opostos nesta composição de
Caetano e Gil:
Um disco está tocando, há dois discursos se interpondo, nenhum deles é confiável.
O disco é o disco e o “interdisco”. O disco se esfarela, já não é mais condutor de
parâmetros ilusionistas (como era mesmo na narrativa surrealista de Celestino),
mas sim irada pregação de um novo discurso, ainda não de todo demarcado. Uma
aventura está sendo fundada: daqui em diante, viver não será mais se ocupar em
“nascer e morrer” algo mais enquanto se vive, tem de acontecer. Aliado a essa
angústia existencial, há o elemento existencial, há o elemento de crítica e negação
dos valores familiares (...) (Sanches, 2000a: 62).
Em “Deus vos salve esta Casa Santa”, de Caetano Veloso e Torquato Neto
51
,
também ocorre a persistência da crítica dos valores tradicionais em meio à alienação da
sociedade brasileira:
Um bom menino perdeu-se um dia
entre a cozinha e o corredor
O pai deu ordem a toda família
que o procurasse e ninguém achou
A mãe deu ordem a toda polícia
que o perseguisse e ninguém achou
Oh Deus vos salve
esta casa santa
onde a gente janta
com nossos pais
Oh Deus vos salve
essa mesa farta
Feijão verdura
ternura e paz
No apartamento vizinho ao meu
que fica em frente ao elevador
mora uma gente que não se entende
que não entende o que se passou
Maria Amélia, filha da casa,
passou da idade, não se casou
Oh Deus vos salve
esta casa santa
51
A canção, foi originalmente gravada por Nara Leão em seu álbum de 1968, foi inspirada em um tema
folclórico da Bahia (cf. Calado, 1997: 213). Vale registrar que ela não está no álbum-manifesto dos
tropicalistas, mas foi relembrada em nossas análises devido às afinidades com “Panis et Circensis”.
onde a gente janta
com nossos pais
Oh Deus vos salve
essa mesa farta
Feijão verdura
ternura e paz
O trem de ferro sobre o colchão
A porta aberta pra escuridão
A luz mortiça ilumina a mesa
e a brasa acesa queima o porão
Os pais conversam na sala e a moça
olha em silêncio pro seu irmão
Oh Deus vos salve
esta casa santa
onde a gente janta
com nossos pais
Oh Deus vos salve
essa mesa farta
Feijão verdura
ternura e paz (IN Favaretto, 2000: 167).
“Entre a cozinha e o corredor” de um lar viciado pela cegueira, percebemos o
contágio da indiferença e “uma sobreposião de cruéis historietas familiares paralelas, que
talvez pudessem ser uma só” (Sanches, 2000a: 67). Em meio ao progresso industrial (aqui,
representado pela figura do trem de ferro), estamos diante da paranóia dos pais que não
encontram o filho e decidem chamar a polícia. O cenário também é composto pela família
atônita com a solteirice da filha mais velha e aos moradores apáticos cujos filhos que, ao se
olharem, nos sugere um incesto ardente e que conversam tranquilamente na sala de estar de
uma casa prestes a ser consumida pelas chamas do porão. A força divina torna-se
insuficiente para proteger a “santidade” do seio familiar brasileiro, com sua “mesa farta” de
“feijão verdura / ternura e paz” na verdade, parece-nos que o intuito do refrão de “Deus
vos salve esta Casa Santa” é de ironizar a condição da nação brasileira e sua fé cristã, a
mesa (alienadamente) farta de “Panis et Circensis”. Segundo Pedro Alexandre Sanches, a
reunião de cada uma destas famílias revela um estado de hipocrisia geral, a ser denunciado
pelo artista da canção:
Novamente surge a mesa de jantar como núcleo de reunião e trincheira de artilharia
de hipocrisias que vão do particular ao geral. O belo poema demole, na
apresentação estratégica (...) de uma família arquetípica, um a um os valores
familiares estabelecidos: o poder patriarcal do comandante da família, o medo
entronizado da mãe, que, covarde e reprimida, procura refúgio nas instituições
(casamento e polícia, instituições legalistas e promotoras da ordem geral), o
deslocamento do filho rebelde do seio familiar de modo traumatico, a vocação
feminina ao casamento (ou, descumprida tal vocação, à punição da filha
“solteirona” com prisão domiciliar vigiada e sujeita às maledicências de vizinhos),
as relações instintivamente incestuosas inerentes ao microcosmo familiar (dos pais
com o filho, dos pais com a filha, dos irmaos que se calam dentro de casa em muda
rebelião). É o Tropicalismo se desnudando, uma vez mais, em frente
ostensivamente freudiana, em abandono momentaneo das preocupações globalistas
que sempre o acompanham (Sanches, 2000a: 68).
Convidada especial do projeto Tropicália ou Panis et Circencis, Nara Leão gravou
uma canção feita especialmente para sua voz. Referimo-nos à “Lindonéia”, um bolero com
letra de Caetano Veloso, música de Gilberto Gil e com arranjos orquestrais bastante
tradicionais do maestro Rogério Duprat. A escolha de Nara e seu fraseado musical cool
bossa-novista para interpretar a quarta faixa do disco-manifesto evidencia uma ironia por
parte dos tropicalistas naquele momento, pois a musa já era reconhecida, naquela época,
como uma legítima representante da Bossa Nova e, conseqüentemente, da modernidade
musical brasileira. De acordo com Caetano Veloso em Verdade Tropical (Veloso, 1997:
24), havia uma intenção por parte de Gilberto Gil de que este álbum fosse uma espécie de
reunião de várias gerações de músicos até então.
Inspirada no quadro Lindonéia ou a Gioconda do Subúrbio, assinado por Rubens
Gerchman em 1966, a canção problematiza o universo melancólico de uma jovem
suburbana de 18 anos: os sonhos amorosos da empregada doméstica leitora de fotonovelas
e assídua ouvinte de rádio e TV revelam, de acordo com Celso Favaretto, uma
“sentimentalidade alienada” envolta em profunda “violência social e policial” (Favaretto,
2000: 104), pressupondo uma realidade fantástica. A letra de Caetano Veloso opera como
uma “ampliação de um retrato três-por-quatro de uma moça pobre que (...) fora dada por
perdida, emoldurada, à maneira kitsch dos retratos da sala de visitas suburbanas, por vidro
espelhado com decoração floral” (Veloso, 1997: 274), mantendo o traço puro e doloroso da
pintura original. Eis os versos da canção:
Na frente do espelho
Sem que ninguém a visse
Miss
Linda, feia
Lindonéia desaparecida
Despedaçados
Atropelados
Cachorros mortos nas ruas
Policiais vigiando
O Sol batendo nas frutas
Sangrando
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
Lindonéia, cor parda
Fruta na feira
Lindonéia solteira
Lindonéia, domingo
Segunda-feira
Lindonéia desaparecida
Na igreja, no andor
Lindonéia desaparecida
Na preguiça, no progresso
Lindonéia desaparecida
Nas paradas de sucesso
Ai, meu amor
A solidão vai me matar de dor
No avesso do espelho
Mas desaparecida
Ela aparece na fotografia
Do outro lado da vida (Gil, 2003: 103).
Há, aqui, a inclusão de um elemento do povo no universo da canção: ao contrário do
que ocorria nas práticas do CPC, percebe-se que a protagonista recorre à “fuga onírica dos
folhetins” (cf. Favaretto, 2000: 104) com o intuito de não suportar os pesares do cotidiano.
Lindonéia, a personagem, se projeta nas imagens romanescas para não vislumbrar a feiúra
de sua aparência. O ato de retratar uma personalidade fatalmente tragada pela modernidade
se revela, na verdade, como um mote para retratar o caos presente em uma típica metrópole
industrial. O progresso, inimigo mortal da preguiça que fascina e anula a diarista, não
consegue esconder a alienação do sujeito e evidencia a ideologia colonialista de que a
fadiga dos mais pobres seria a razão para o atraso do Brasil (cf. Vasconcellos, 1977: 94).
De acordo com Pedro Alexandre Sanches em seu livro Tropicalismo Decadência bonita
do samba, a composição de Caetano e Gil retoma a questão da família opressora e apática
de “Panis et circensis” e revela a personagem Lindonéia como uma
moça reprimida pelas convenções de uma sociedade precariamente instalada,
lamuriando por independência, mas alegorizando, também, a impotência do sujeito
que perdeu seus referenciais na agonia do processo, do acúmulo de informações.
Sua esquizofrenia se localiza na solidão banal de dias de vida que são quase sempre
iguais, cotados de presente perpétuo. Tropicália se torna triste, parda em vez de
verde-amarela, em “Lindonéia” (Sanches, 2000a: 62-63).
O discurso poético desta canção é similar às montagens cubistas: caoticamente,
signos essencialmente opostos entre si são justapostos, causando um efeito de choque no
ouvinte os animais dilacerados ao lado de autoridades oficiais em plena atividade, o
desaparecimento da moça perante o reflexo de sua imagem espelhada, além da força dos
fenômenos naturais realçam a feiúra do quadro delineado pelos versos de Caetano Veloso.
A orquestração de Rogério Duprat acrescenta, por fim, o dado cafona à atmosfera da obra.
Mais uma vez, arcaico e moderno se unem, denunciando uma espécie de “inversão, aos
efeitos corrosivos dos valores modernos, veiculados pela indústria cultural sobre o
proletariado, mostrando ser a modernização um dado de classe” (Favaretto, 2000: 106).
A presença da solidão, viabilizada pelo excesso discursivo e musical, se mostra
como o elemento que permeia a canção “Lindonéia” não seria nada menos do que uma
ampla representação da solidão humana no Brasil moderno ou, como afirmou Caetano
Veloso em suas memórias, “uma crônica melancólica da solidão anônima feita em tom Pop
e metalingüístico” (Veloso, 1997: 274). Ruas sem vida, igrejas, feiras, o rádio são claros
exemplos de espaços públicos contagiados pela solteirice e pobreza da doméstica parda e
pelo vazio da fotografia que irrompe em meio ao “outro lado da vida”. A fria beleza da
figura feminina converte-se em uma alegoria do Brasil, por se assemelhar ao estado apático
da nação brasileira perante as leis do status quo.
O Tropicalismo travou uma relação altamente dialética com a indústria cultural, de
forma que as contradições no contexto político-cultural fossem amplamente expostas, ou
seja, “o cenário privilegiado das canções tropicalistas é a grande metrópole e seus
contrastes” (Lacerda, 2002: 51), como é possível concluir. Em uma análise sobre as
relações existentes entre a indústria cultural e o movimento tropicalista, Jerônimo Teixeira
e Sérgio Ferreira (1993) observaram que as intervenções de Caetano, Gil e os tropicalistas,
em geral, renovaram a expressão musical ao operarem um resgate das linguagens
jornalística e publicitária com o intuito de satirizar explicitamente. Um exemplo que se
encaixa perfeitamente neste novo conceito de canção popular é “Parque industrial”,
assinada por Tom Zé:
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz
Basta olhar na parede
Minha alegria num instante se refaz
Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar
E usar
É somente requentar
E usar
Porque é made, made, made
Made in Brazil
Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção
A revista moralista
Traz uma lista dos pecados da vedete
E tem jornal popular
Que nunca se espreme
Porque pode derramar.
É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear
E usar
É somente folhear
E usar
Porque é made, made, made
made in Brazil (Zé, 2003: 210)
É possível depreender que a paródia ao Brasil moderno se faz mais incisiva em
“Parque industrial”. Entoada pelos principais nomes do grupo tropicalista Gilberto Gil,
Caetano Veloso, Gal Costa, Os Mutantes e o próprio Tom Zé
52
, a canção debocha do
avanço tecnológico e de elementos utilizados para a descrição de um Brasil utópico,
ufanista, idealizado (“céu de anil”, “bandeirolas”, “Grande festa em toda a nação”),
52
É interessante que o entrecruzamento destas vozes pressupõe a carnavalização, recurso maciçamente
presente nas criações tropicalistas (cf. Favaretto, 2000: 107).
contrariando todas as premissas ideológicas de uma marchinha ingênua (levada que
caracteriza a gravação dos tropicalistas) ou até de um samba-exaltação. Gil se apresenta,
neste contexto musical, como um mestre de cerimônias de uma festa risonha e desaforada,
comandando o espetáculo grotesco (as improvisações “Mais uma vez” e “Vamos voltar”
são o indício deste fato).
Tom Zé, por outro lado, dá o desfecho ultra-sarcástico ao cantar Brazil”,
“ressaltando a dominação, mascarada pela ideologia” (Favaretto, 2000: 106-107). Outro
recurso utilizado amplamente, neste caso, é a ironia de certos mitos da sociedade
massificada: garotas-propaganda, aeromoças, o jornal popular e a figura da vedete também
se transformam em motivos de riso pela visão paródica da Tropicália. Por isso, recorrer a
estes ícones do universo da cultura de massas demonstrava uma coerente intencionalidade.
Em depoimento a Décio Bar (revista Realidade), Caetano Veloso afirmou que as
propostas estéticas da Tropicália consistiam basicamente em “superar nosso
subdesenvolvimento partindo exatamente do elemento ‘cafona’ da nossa cultura, fundindo
ao que houvesse de mais avançado industrialmente (...)” (Favaretto, 2000: 28), por isso,
torna-se impossível se esquecer das informações outrora absorvidas ou ignorar o país onde
vivemos (cf. Favaretto, 2000: 28). Conclui-se, então, que a mistura de tendências estéticas
não era apenas um modismo por parte dos tropicalistas, mas a afirmação de um projeto
estético profundamente ousado e (por quê não dizer?) participante.
“Geléia geral” (Gil, 2003: 105-106), de Gilberto Gil e Torquato Neto, é uma das
principais canções-manifesto do movimento tropicalista: desenha, através da “linguagem de
mistura” (Favaretto, 2000: 111), um painel alegórico da nação, brinca com signos típicos da
identidade brasileira. O termo “geléia geral” foi originalmente cunhado por Décio Pignatari
em um dos manifestos da poesia concreta
53
e foi apropriado por Torquato anos depois com
o intuito de construir uma visão crítica da cultura contemporânea, uma fala
(des)compromissada sobre o Brasil.
É preciso compreender esta canção como um modo de desconstrução da ideologia
nacionalista típica do discurso intelectual brasileiro e, de certa forma, da canção de protesto
veiculada por Geraldo Vandré e outros. Os primeiros versos de “Geléia geral” nos
53
O manifesto de Décio Pignatari foi originalmente publicado na revista Invenção. O trecho que inspirou
Torquato Neto a escrever a referida canção é: “Na geléia geral brasileira, alguém tem de exercer as funções de
medula e osso” (apud Favaretto, 2000: 109).
apresentam a figura do poeta-ilustrado, oficializado pelas elites, que tem o objetivo de
apresentar a nação brasileira a partir da alusão de suas possíveis belezas tropicais e
vocábulos garbosos típicos de um discurso ufanista. A retórica é duramente questionada
pelo outro personagem, poeta-cantor neste caso, Gilberto Gil, a voz que canta que, por
outro lado, é designado a narrar e desconstruir as ações de seu reflexo invertido (o
intelectualizado) através de sua postura crítica dos acontecimentos (cf. Calado, 1997 &
Favaretto, 2000):
O distanciamento irônico, mantido pela interpretação de Gil, transforma o elogio
das belezas naturais em crítica da ideologia do discurso que as constitui como
símbolos nacionais. As citações literárias e musicais encenam esta ideologia, e a
paródia que resulta de interpenetração e arranjo torna-as ridículas, sejam elas
explícitas ou não (Favaretto, 2000: 108).
Como é possível constatar a partir da letra de Torquato Neto, da música de Gil e dos
arranjos de Rogério Duprat, há várias vertentes musicais presentes no discurso da canção,
além de inúmeras citações literárias e musicais intimamente ligadas aos clichês ufanistas. A
tradição, aqui, passa a contracenar com a modernidade abarcada pelo Pop:
Um poeta desfolha a bandeira
E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira
Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira
Que o Jornal do Brasil anuncia
Ê, bumba---boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba---
É a mesma dança, meu boi
A alegria é a prova dos nove
E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo
E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem
Pindorama, país do futuro
Ê, bumba---boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba---
É a mesma dança, meu boi
É a mesma dança na sala
No Canecão, na TV
E quem não dança não fala
Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala
As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada
Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril
Santo barroco baiano
Superpoder de paisano
Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela
Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim
Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade
Brutalidade jardim
Ê, bumba---boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba---
É a mesma dança, meu boi
Plurialva, contente e brejeira
Miss linda Brasil diz "Bom dia"
E outra moça também Carolina
Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos
E a saúde que o olhar irradia
Ê, bumba---boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba---
É a mesma dança, meu boi
Um poeta desfolha a bandeira
E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento
Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto
Tropicália, bananas ao vento
Ê, bumba---boi
Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba---
É a mesma dança, meu boi (Gil, 2003: 105-106).
Apontando a existência de um gigantesco mosaico cultural entre nós, híbrido por
essência ao mesclar tendências musicais relativamente opostas como o Pop chiclete
representado pelo Iê--Iê e o Bumba-meu-boi, um exemplo da produção artística regional
, nota-se, em “Geléia geral”, as seguintes citações / alusões literárias: Manifesto
Antropófago, de Oswald de Andrade (“A alegria é a prova dos nove”, “roteiro do sexto
sentido”); Memórias Sentimentais de João Miramar, do mesmo autor (“Brutalidade
jardim”); Hino à Bandeira Nacional, de autoria de Olavo Bilac e Francisco Braga (“Salve o
lindo pendão de seus olhos”); a ultra-referenciada “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias
(“Minha terra é onde o sol é mais limpo”). Além de eleger a Estação Primeira de
Mangueira, uma das agremiações mais tradicionais do carnaval carioca e ainda fiel ao
samba de raiz, como um dos elementos culturais mais importantes na estruturação da geléia
(“e Mangueira é onde o samba é mais puro”), vislumbramos, por sua vez, referências
musicais heterogêneas no discurso da canção como alusões à ópera O Guarany, de Carlos
Gomes e “All the way” (Sammy Cahn Jimmy van Heusen), clássico na voz de Frank
Sinatra, além de “Pata pata”, sucesso na voz da cantora sul-africana Miriam Makeba, na
época.
Este procedimento de collage musical se assemelha à “Parque industrial”, por
exemplo, onde podemos perceber trechos do Hino Nacional Brasileiro e o jingle do
analgésico Melhoral (cf. Calado, 1997 e Favaretto, 2000) e, conseqüentemente, deixa “de
lado o folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano tradicional” (Veloso, 1997: 296) na
medida em que dados pertencentes ao erudito, popular, citadino e rural se aglomeram. De
acordo com Celso Favaretto,
Os fragmentos são intercambiáveis, montam-se por coordenação, num processo
descritivo e imediato. A descrição é adequada como procedimento nas imagens
tropicalistas, porque espacializa o tempo, dando conta da visualização das imagens,
da indeterminação da “cultura brasileira” e da permanência dessas indeterminações.
Esse modo de construção ressalta a coexistência de disparidades na geléia geral
brasileira (Favaretto, 2000: 110).
Este procedimento é típico da antropofagia oswaldiana, reeditando as posturas dos
artistas modernas e arquitetando uma
resposta a uma consciência de país que trazia na sua gênese valores burgueses
transpostos e uma visão etnocêntrica, que impedia reconhecer a cultura autóctone.
É, pois, um gesto do colonizado, no sentido de dessacralizar a herança cultural do
colonizador para inaugurar uma nova tradição (Maltz, 1993: 11).
Evidentemente, a aproximação da vanguarda tropicalista com os preceitos dos
modernistas da geração de 1922 se materializava na paródia que ridiculariza as ideologias
do nacionalismo ufanista (cf. Vasconcellos, 1977: 19). Caetano, Gil e Torquato enxergaram
à crítica aguda do Modernismo à “pedantocracia brasileira”, no dizer de Lima Barreto
(apud Vasconcellos, 1977: 21), reconhecendo a importância do prefácio de Machado
Penumbra em Memórias Sentimentais de João Miramar (Oswald de Andrade), da
(hilariantemente) memorável “Carta pras Icamiabas” (Macunaíma Mário de Andrade). É
via linguagem que se revela a alienação provocada pelo beletrismo. Na estrutura de “Geléia
geral”, um tom discursivo se justapõe às elipses, à ausência de linguagem direta e ao
predomínio de versos curtos. Sobre esta questão, é salutar as conclusões de Gilberto
Vasconcellos:
Como se vê, afora as semelhanças quanto à linguagem (uso, por exemplo, da
paródia ou a justaposição direta dos versos), e a mesma crítica ao nacionalismo
ufanista, aproximam-se os dois movimentos noutro ponto: captam dado
fundamental da sociedade dependente, isto é, o desenvolvimento do
subdesenvolvimento. Em outras palavras, ambos registram artisticamente os efeitos
resultantes do desenvolvimento desigual que rege a dinâmica do capitalismo
brasileiro. A partir desse importante fundamento histórico, em virtude desse
substrato estrutural é que aparece na produção tropicalista, como é o caso de
Geléia geral, o amálgama dos opostos, a técnica da justaposição de universos
diferentes (os quais, no fundo, são momentos constitutivos de um mesmo e único
processo histórico-social e a inusitada fusão de elementos os mais diversos). O
humor ou a visão grotesco-caricatural que de depreende de suas composições
surge, implícita ou explicitamente, a partir da constatação de que o paradoxo que
abate o continente (os resultados do desenvolvimento desigual) é elemento
constitutivo da realidade nacional, provocando a perplexidade a quem pretenda
conhecê-la ou reproduzi-la artisticamente (Vasconcellos, 1977: 23-24).
O quadro histórico delineado pelos tropicalistas não difere tanto da visão do Brasil
descrita por Oswald de Andrade, afinal havia a crença num futuro promissor para a nação
brasileira. Resgatar o mito de Pindorama e de fazer renascer a promessa do Brasil como
“país do futuro”, evidenciam o deboche ao arcaico e ao discurso imobilista da canção de
protesto. Por outro lado, referenciam-se as chamadas “relíquias do Brasil”, ou seja, alguns
elementos da cultura massificada (“Canecão”, “formiplac”) através do tom declamatório de
Gilberto Gil, sem contrapor os universos urbano-industrial ao rural. A crítica não é feita ao
passado, mas sim ao presente:
Do mundo pré-civilizacional (antes da ingerência colonialista) irrompe o texto com
uma crítica à contemporaneidade brasileira, quer em seu aspecto cultural, quer no
seu aspexto de denúncia política. Crítico porque, ao contrário da ótica ufanista, que
vê o Brasil apenas sob o ângulo paisagístico e pitoresco, nele encontramos a
tropicalidade, tradicionalmente objeto dos discursos laudatórios, fundida e imersa
na noção de repressividade (“brutalidade jardim”) (...). A esses saltos e lances
diversos no espaço e no tempo (de indiscutível sabor nonsense) corresponde o
próprio embalo da música, na qual os mais diferentes ritmos coexistem a um só
tempo: marcação de bumba-meu-boi com guitarra elétrica, blues, samba de morro e
o pop internacional. Uma autêntica colagem tanto no nível do texto como no nível
musical. Em outras palavras, é a perfeita adequação entre letra, música e arranjo
que costuma existir nas composições tropicalistas. À maneira da deglutinação
antropofáfica, o sofisticado e culturalmente ordenado em contexto industrial
(nacional ou estrangeiro), depois de reelaborado em conformidade com a nossa
experiência, vive ao lado do rústico, do folclore etc (Vasconcellos, 1977: 31-32).
É importante deixar claro que a crítica de valores formulada pela Tropicália
geralmente não possui resquícios de melancolia ou algo do tipo. Há, essencialmente, a
consagração da festa, mas sem deixar de clarificar o caráter fictício do Brasil ufanista:
O tom de animação com que a música é cantada corresponde à empatia com o
Brasil tropical e festivo, na versão do poeta oficial. Simultaneamente há empatia
entre a alegria do cantor e a destruição do oficialismo, propondo-se, a alegria como
“a prova dos nove”, como um modo crítico de prazer (Favaretto, 2000: 110).
Dentre as canções gravadas no disco-manifesto da Tropicália, a de maior destaque
foi “Baby”, composição de Caetano Veloso interpretada por Gal Costa. Originalmente, esta
obra estava destinada à voz de Maria Bethânia, que, apesar de ter oferecido
importantíssimas sugestões à letra, desistiu de participar do projeto Tropicália ou Panis et
Circensis pouco antes das gravações por não querer integrar a trupe dos tropicalistas a
justificativa da cantora residia no simples fato de não ambicionar nenhuma participação em
movimentos musicais e de, futuramente, não ter a obrigação de estar eternamente associada
ao repertório do grupo liderado por seu irmão e Gilberto Gil
54
.
“Baby” tematiza, basicamente, a dominação cultural típica de uma metrópole do
chamado Terceiro Mundo: nomes, mitos da sociedade de consumo, fatos e o locus vivendi
são elencados (e desmitificados na medida em que são equalizados uns aos outros) a partir
de uma construção poética caracterizada pelos cortes típicos de linguagem cinematográfica,
assemelhando-se a “Alegria, Alegria” e “Lindonéia”, por exemplo. A “Carolina” de Chico
Buarque não possui valor estético inferior ou superior em relação à “canção do Roberto”
citada na letra, ou seja, não há resquícios de erudição ou alienação no discorrer da obra em
54
A decisão incisiva de Maria Bethânia, além de revelar sua autonomia artística tão peculiar, se baseia na
superexposição sofrida por ela na época do espetáculo Opinião. “Carcará” é, até os dias de hoje, uma canção
associada à sua voz, para certo desgosto da intérprete (cf. Calado, 1997), que pouco a canta em shows.
“Baby”, ao contrário da canção de João do Vale e José Cândido, chegou a receber uma interpretação de Maria
Bethânia em seu primeiro trabalho ao vivo, Recital na Boite Barroco, também de 1968.
questão. Na verdade, nota-se uma determinada afetividade coerente com a chegada de uma
nova ordem cultural, mais tolerante com os universos da Alta, Média e Baixa Culturas. O
final da década de 60 trouxe ao grande público um novo tipo de sensibilidade,
“disseminada entre jovens marcados pela expansão das comunicações e do consumo. Capta
o tempo urbano como o espaço de uma vida leve e descontraída, sensibilidade à flor da
pele” (Favaretto, 2000: 97-98). A composição de Caetano, imortalizada na voz de Gal, é
um dos exemplos mais fiéis deste acontecimento:
Você precisa saber da piscina
Da margarina
Da Carolina
Da gasolina
Você precisa saber de mim
Baby baby
Eu sei que é assim
Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete
Andar com a gente
Me ver de perto
Ouvir aquela canção do Roberto
Baby baby
Há quanto tempo
Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais
Não sei, comigo vai tudo azul
Contigo vai tudo em paz
Vivemos na melhor cidade
Da América do Sul
Da América do Sul
Você precisa
Você precisa
Não sei
Leia na minha camisa
Baby baby
I love you (Veloso, 2003: 62-63).
Sem perder de vista a tradição antropofágica resgatada pelos músicos tropicalistas,
percebe-se, no final da execução de “Baby”, uma citação de “Diana”, de Paul Anka:
enquanto Gal entoava os versos “Baby baby / I love you”, surgia a voz de Caetano
cantando o verso “Please stay by me, Diana”. É evidente que a canção é uma espécie de
saudosismo com leves tintas de Iê--
55
o som da guitarra e a orquestra conduzida por
Rogério Duprat convivem harmoniosamente dentro do contexto musical revelando-se
como atemporal e paradigmática, na medida em que define um novo conceito de canção
popular. O “famigerado” Iê--, (in)diretamente se faz presente através de suas letras mais
descompromissadas, jovens e... românticas!
Dentre os conselhos valiosos que Maria Bethânia concedeu ao irmão Caetano
Veloso, estava um que se tornou, posteriormente, uma das bases estéticas principais da
Tropicália a incorporação das guitarras do Iê--Iê, marcadas pela vivacidade e opostas à
pasmaceira que agitava o ambiente musical até aquele momento: “Você está por fora,
Caetano. Veja o programa de Roberto Carlos. Ele é que é forte. O resto está ficando um
negócio chato, tão chato que eu prefiro cantar músicas antigas” (apud Calado, 1997: 93). O
fato de Bethânia ter sido substituída por Gal Costa na gravação de “Baby” também foi
bastante feliz, visto que, o canto de Gal (uma admiradora e seguidora confessa do estilo
e do trabalho de João Gilberto), por ser mais doce, contido e jovial ao mesmo tempo, era
mais adequado para a canção. Bethânia, com sua teatralidade e voz áspera, não teria
conseguido o mesmo efeito de sentido se tivesse interpretado, naquele contexto, a
55
Tal assertiva se faz mais clara se levarmos em conta que “Diana” fez bastante sucesso no Brasil graças a
uma versão interpretada por Celly Campello (cf. Favaretto, 2000).
composição de seu irmão
56
. No entanto, Caetano Veloso enfrentou a ira inevitável de um
dos representantes principais da chamada “esquerda festiva” devido ao estilo “jovem” da
obra gravada para o disco Tropicália ou Panis et Circensis. O incidente indigesto foi
descrito pelo próprio cantor e compositor:
Minha alegria ao ouvir, no estúdio, a adequação do estilo de Gal à canção (sendo a
um tempo Bossa Nova e Rock’n’Roll, mas sendo algo diferente disso) e, sobretudo,
a graça e a inteligência do arranjo de Duprat, levou a um incidente profundamente
desagradável. Nós saímos do estúdio para o Patachou, o restaurante com nome de
cantora que freqüentávamos na rua Augusta, para jantar em clima comemorativo.
Geraldo Vandré, que estava em outra mesa, veio até a nossa e, ao perceber nosso
entusiasmo pela gravação, pediu que Gal lhe cantasse a canção recém-gravada.
Quando tinha ouvido o suficiente para ter uma idéia do que era, ele a interrompeu
bruscamente, batendo na mesa e dizendo: “Isso é uma merda!”. Gal calou-se
assustada e eu, indignado, disse a ele que saísse dali. Ele ainda quis argumentar
dizendo que nós estávamos traindo a cultura nacional, mas não permiti que ele
concluísse o discurso e, gritando, exigi que nos deixasse, ressaltando que ele ao
menos deveria ter sido cortês com Gal, cujo canto suave ele interrompera de forma
tão grosseira. Isso inaugurou uma inimizade pessoal que traduzia nossa divergência
ideológica mas não houve nenhuma outra discussão agressiva nem a desavença
ganhou publicidade.
Nós sabíamos da rejeição que nossas idéias e ações encontravam por parte da
esquerda nacionalista. Vandré estava apenas externando francamente o que muitos
sentiam a nosso respeito (Veloso, 1997: 280).
Outra faixa de Tropicália ou Panis et Circensis que merece destaque é “Três
Caravelas” (las Três Carabelas), de autoria de Alguero E. Moreo e com uma versão em
português de João de Barro, o Braguinha. Interpretada por Caetano Veloso e Gilberto Gil, a
canção aborda a descoberta do continente americano e alterna espanhol e o português o
que pode ser uma leitura da América Latina pelo olhar brasileiro. Os versos, logo abaixo,
ilustram a discussão:
Un navegante atrevido
56
Se compararmos as versões de “Baby” contidas em Tropicália ou Panis et Circensis e Recital na Boite
Barroco, notamos que a versão de Maria Bethânia não possui a inocência da interpretação de Gal Costa.
Salió de Palos un día
Iba con tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
Hacia la tierra cubana
Con toda sua valentía
Fue con las tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
Muita cousa sucedeu
Daquele tempo pra cá
O Brasil aconteceu
É o maior
Que que há?!
Um navegante atrevido
Saiu de Palos um dia
Vinha com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
Em terras americanas
Saltou feliz certo dia
Vinha com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
Mira, tu, que cosas pasan
Que algunos años después
En esta tierra cubana
Yo encontré a mí querer
Viva el señor don Cristóban
Que viva la patria mía
Vivan las tres carabelas
La Pinta, la Niña y la Santa María
Viva Cristóvão Colombo
Que para nossa alegria
Veio com três caravelas
A Pinta, a Nina e a Santa Maria
(La Pinta, la Niña y la Santa María)
E a Santa Maria
E a Santa Maria (Favaretto, 2000: 160)
Trata-se, sem a menor sombra de dúvida, de um dos momentos mais irônicos do
disco-manifesto do grupo tropicalista. Ao resgatarem a narrativa da odisséia do
descobrimento do continente americano, Caetano e Gil se utilizam das cores ufanistas da
“tierra cubana” para debochar profundamente do sentimento nacionalista que envolvia o
ambiente cultural brasileiro no final da década de 60. O Brasil estava longe de “acontecer”
enquanto grande nação ou “país do futuro”, visto que existiam inúmeras injustiças sociais
enquanto muitos lutavam por liberdade de expressão perante o governo militar. O
surgimento das caravelas La Pinta, La Nina e La Santa Maria marcou o início do drama
desenvolvimentista do chamado Terceiro Mundo e a figura de Cristóvão Colombo,
relembrada com maliciosa ironia. De acordo com Celso Favaretto, a alusão feita ao
primeiro colonizador “inscreve-se no projeto antropofágico-tropicalista de parodiar os
primeiros cronistas do Brasil” (Favaretto, 2000: 95).
Gravada por Caetano Veloso em seu primeiro LP solo, de 1968, em sua estréia
solo, “Soy loco por ti, América”, de José Carlos Capinam e Gilberto Gil, atenta o ouvinte
para a condição do Brasil perante o contexto latino-americano: os autores não deixaram de
referenciar Cuba, suas revoluções vitoriosas e seu mártir Fidel Castro (morto em combate),
além de debochar do elemento paisagístico tão reverenciado pelos mitos nacionalistas de
exaltação às belezas da pátria (“Y el cielo como bandera”). Desta vez, são os ritmos latinos
que habitam o espaço da canção, interligando versos em castelhano com falas em
português, indicando a interlocução entre o universo brasileiro e o da América Latina em
suas letras e misérias. Os medos e os temores do chamado Terceiro Mundo ainda
possibilitam a criação de um poema em meio à cena pitoresca camuflada por trincheiras,
cantares de protesto e modas praieiras de acordo com Gil e Capinam:
Soy loco por ti, América
Yo voy traer una mujer playera
Que su nombre sea Marti,
Que su nombre sea Marti
Soy loco por ti de amores
Tenga como colores la espuma blanca de Latinoamérica
Y el cielo como bandera,
Y el cielo como bandera
Soy loco por ti, América,
Soy loco por ti de amores
Sorriso de quase nuvem,
Os rios, canções, o medo
O corpo cheio de estrelas,
O corpo cheio de estrelas
Como se chama a amante
Desse país sem nome, esse tango, esse rancho, esse povo, dizei-me, arde
O fogo de conhecê-la,
O fogo de conhecê-la
Soy loco por ti, América,
Soy loco por ti de amores
El nombre del hombre muerto
Ya no se puede decirlo, quién sabe?
Antes que o dia arrebente,
Antes que o dia arrebente
El nombre del hombre muerto
Antes que a definitiva noite se espalhe em Latinoamérica
El nombre del hombre es pueblo,
El nombre del hombre es pueblo
Soy loco por ti, América,
Soy loco por ti de amores
Espero a manhã que cante,
El nombre del hombre muerto
Não sejam palavras tristes,
Soy loco por ti de amores
Um poema ainda existe
Com palmeiras, com trincheiras, canções de guerra quem sabe canções do mar,
Ai, hasta te comover,
Ai, hasta te comover
Soy loco por ti, América,
Soy loco por ti de amores
Estou aqui de passagem,
Sei que adiante um dia vou morrer
De susto, de bala ou vício,
De susto, de bala ou vício
Num precipício de luzes
Entre saudades, soluços, eu vou morrer de bruços nos braços, nos olhos,
Nos braços de uma mulher,
Nos braços de uma mulher
Mais apaixonado ainda
Dentro dos braços da camponesa, guerrilheira manequim, ai de mim,
Nos braços de quem me queira,
Nos braços de quem me queira
Soy loco por ti, América,
Soy loco por ti de amores (Gil, 2003: 99-100).
Em “Mamãe coragem”, de Caetano Veloso e Torquato Neto, a crítica dirigida ao
seio familiar é de outra natureza: mais uma vez, é possível reparar o embate entre a vida
caseira (arcaico) e o frenesi da cidade grande (moderno), além da citação explícita de Mãe
coragem, peça de Bertolt Brecht encenada em 1939. A canção é uma espécie de carta em
que um filho procura consolar a mãe por ter saído de casa. No contexto de rebeldia da
década de 60, o discurso do jovem rapaz avalia positivamente sua decisão, lamenta o choro
materno, mas permanece firme na resolução de assumir o seu próprio destino:
Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo
Eu fui embora
Mamãe, mamãe não chore
Eu nunca mais vou voltar por aí
Mamãe, mamãe não chore
A vida é assim mesmo
Eu quero mesmo
é isto aqui
Mamãe, mamãe não chore
Pegue uns panos pra lavar,
leia um romance
Veja as contas do mercado,
pague as prestações
ser mãe
é desdobrar fibra por fibra
os corações dos filhos
Seja feliz,
seja feliz
Mamãe, mamãe não chore
Eu quero, eu posso, eu fiz, eu quis
Mamãe, seja feliz
Mamãe, mamãe não chore
Não chore nunca mais, não adianta
Eu tenho um beijo preso na garganta
eu tenho um jeito de quem não se espanta
(braço de ouro vale 10 milhões)
Eu tenho corações fora do peito
Mamãe, não chore, não tem jeito
Pegue uns panos pra lavar, leia um romance
Leia Elzira, a morta virgem,
O Grande Industrial
Eu por aqui vou indo muito bem,
De vez em quando brinco o Carnaval
E vou vivendo assim: felicidade
Na cidade que eu plantei pra mim
E que não tem mais fim,
não tem mais fim,
não tem mais fim (Neto, 1982: 426-427).
A canção inicia com o tocar de uma sirene, provavelmente de uma grande fábrica,
indicando a brevidade do tempo deste filho em se comunicar com a mãe, a rigidez do
trabalho braçal típico de um integrante do operariado, ampliando os horizontes da saudade
materna (cf. Sanches, 2000a: 67). A sobreposição do universo industrial perante à vida
familiar chega a ser mais evidente em “Mamãe coragem” do que em relação às outras
canções do Tropicalismo. A opção do filho em utilizar o vocábulo “Mamãe” indica
afetividade em relação à figura materna. A paródia dos versos “ser mãe / é desdobrar fibra
por fibra / os corações dos filhos”, assinados por Coelho Neto
57
, se trata de uma
incorporação de um saber consagrado pela tradição em que o amor materno quer viver a
vida dos filhos de uma forma total e absoluta. Com a independência típica da época, os
jovens denunciam o quanto existia de egoísmo nessa postura.
O contato dos tropicalistas com os concretistas rendeu ótimos frutos, como já
sabemos. A influência de Décio Pignatari e dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos foi
fundamental para a estrutura poética das algumas canções do Tropicalismo. Ao relembrar
aqueles tempos, Gilberto Gil nos oferece um panorama interessante acerca das referências
do movimento que co-liderou:
O Oswald estava muito presente na época; nós estávamos descobrindo a sua obra e
nos encantando com o poder de premonição que ela tem. A idéia de reunir o antigo
e o moderno, o primitivo e o tecnológico, era preconizada em sua filosofia;
“Batmakumba” é de inspiração oswaldiana. E concretista na ligação das palavras
e na construção visual do k como uma marca; no sentido impressivo, não só
expressivo da criação. Não é só uma canção; é uma música multimídia, poema
gráfico, feita também para ser vista (Gil, 2003: 107).
Com isso, Caetano e Gil, especificamente, desenvolveram uma “linguagem
malcriada em relação à sociedade de consumo, à política brasileira do golpe militar de 1964
e aos problemas de sua geração” (Albin, 2004: 292). “Batmakumba”, composta pelos dois,
é o exemplo máximo da realização do projeto estético destes artistas em unir as vanguardas
dos anos 20 e 50 em seu balaio literário-ideológico, sobrepondo os códigos verbal, sonoro e
visual (cf. Favaretto, 2000: 112):
57
O poema “Ser mãe”, do poeta Coelho Neto, parodiado por Caetano e Torquato, vem transcrito logo em
seguida, de forma que seja possível perceber o efeito corrosivo por parte dos tropicalistas: “Ser mãe é
desdobrar fibra por fibra / o coração! Ser mãe é ter no alheio / lábio que suga, o pedestal do seio, / onde a
vida, onde o amor, cantando, vibra. // Ser mãe é ser um anjo que se libra / sobre um berço dormindo! É ser
anseio, / é ser temeridade, é ser receio, / é ser força que os males equilibra! // Todo o bem que a mãe goza é
bem do filho, / espelho em que se mira afortunada, / Luz que lhe põe nos olhos novo brilho! // Ser mãe é
andar chorando num sorriso! / Ser mãe é ter um mundo e não ter nada! / Ser mãe é padecer num paraíso!”.
Batmakumbayêyê batmakumbaoba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmankum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batmakumba
Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumbaobá (Gil, 2003: 106).
A opção de Gil e Caetano em grafar a canção com “K” e “Y” se deu pelo fato de
que, visualmente, a letra forma um grande K, provocando os nacionalistas mais
empedernidos e aludindo o receptor, segundo o próprio Gilberto Gil, para “a idéia do
consumo de coisa moderna, internacional, Pop. E também de um corpo estranho; não sendo
uma letra natural do alfabeto português-brasileiro, causava uma estranheza que era também
a estranheza do Batman” (Gil, 2003: 107). Esta canção possui, pelo menos, três referências
culturais em jogo nesta canção: a macumba, culto sincrético afro-brasileiro, derivado de
práticas religiosas de povos africanos, o Iê--Iê, referência à cultura do rock e suas
guitarras elétricas e Batman, o homem-morcego dos do mundo dos quadrinhos.
Dessacraliza-se, em “Batmakumba”, o substrato cultural brasileiro, automaticamente
convertido em um rico mosaico cultural. A sintaxe e a semântica dos termos é
abruptamente rompida, adquirindo plangente plurissignificação o morcego se encontra ao
lado da manifestação religiosa e do Pop, compondo um signo só, indefinível por natureza.
A concepção musical desta obra também reflete a junção dos elementos mais díspares
58
:
O ritmo básico é uma batida, misto de macumba e iorubá cubano, com
acompanhamento de guitarra elétrica e uma espécie de alaúde como fundo. Há,
ainda, uma marcação rítmica de tambor que, pela sua repetição, funciona como
uma fórmula encantatória, semelhante ao que ocorre na macumba (Favaretto, 2000:
112).
O disco Tropicália ou Panis et Circensis se encerra com uma releitura do “Hino do
Senhor do Bonfim”, de João Antônio Wanderley e Peiton de Vilar, feita por Caetano
Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes, além dos arranjos orquestrais de Rogério
Duprat. O gran finale apoteótico do manifesto tropicalista buscou se apoiar em um dos
pilares principais da Cultura Brasileira: a religiosidade e através deste resgate, integraram
o discurso cafona ao Pop, entrecruzando linguagens diversas. A intencionalidade por detrás
desta gravação é de sintetizar as propostas ideológicas e musicais dos tropicalistas e pedir
glória aos céus para que a entidade religiosa ilumine os caminhos da nação para dias menos
turvos e mais esperançosos:
Glória a ti neste dia de Glória
Glória a ti redentor que há cem anos
Nossos pais conduziste à vitória
Pelos mares e campos baianos.
Dessa sagrada colina
Mansão da misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia
58
Neste caso, estamos levando em conta a gravação original de Gilberto Gil para “Batmakumba” (incluída no
disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis). A concepção musical da gravação do grupo Os Mutantes,
não menos interessante, não corresponde à descrição da citação que virá logo a seguir.
Glória a ti nessa altura sagrada
És o eterno farol, és o guia
És, Senhor, sentinela avançada
És a guarda imortal da Bahia.
Dessa sagrada colina
Mansão da Misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia
Aos teus pés que nos deste o Direito
Aos teus pés que nos deste a Verdade
Trata e exulta num férvido preito
A alma em festa da nossa cidade.
Dessa sagrada colina
Mansão da Misericórdia
Dai-nos a Graça Divina
Da Justiça e da Concórdia (Favaretto, 2000: 164).
O ano de 1968, como se sabe, foi marcado por tensão total no Brasil e no mundo.
Uma das razões que elevaram o ambiente cultural brasileiro a limites nunca vistos foi Roda
viva, peça teatral de Chico Buarque de Hollanda, levada aos palcos por José Celso Martinez
Corrêa e o Grupo Oficina. O espetáculo teve sua estréia nacional nos palcos cariocas em
junho daquele ano e a temporada foi marcada por vários escândalos e debates acirrados na
imprensa. A peça foi escrita por Chico em menos de um mês e contava a trajetória artística
do cantor Benedito Silva (que mais tarde adotara o nome artístico de Ben Silver), que era
destruído, aos poucos, pela implacável máquina do sucesso (cf. Motta, 2000: 167).
Era a oportunidade perfeita para que Zé Celso, um artista profundamente regido
pelos signos da transgressão e da insubmissão, apresentasse uma leitura extremamente
pessoal do texto escrito por Chico, marcada pela agressividade latente e necessária em
tempos de massificação, repressão e questionamentos. Por outro lado, Chico Buarque, ao
misturar a figura pública do autor com a essência do protagonista de Roda Viva, buscava
um rompimento com uma imagem de “unanimidade nacional, de cantor das moças nas
janelas, de bom moço e poeta benquisto” (Motta, 2000: 167). A postura do grupo liderado
por Zé Celso era extremamente agressiva, já que a intenção de todos os envolvidos era de
romper com a postura tradicional e comportada de teatro para instigar, cutucar e
chocar o burguês e ‘uma classe média que devora sabonetes e novela’. No palco, os
artistas provocavam o público com linguajar agressivo, rebolados eróticos e
lançavam mão de um fígado de boi que respingava sangue (Carmo, 2001: 60).
A reação do público que assistia ao espetáculo do Grupo Oficina era de puro
estarrecimento
59
: a quantidade de palavrões, violência e sexo que era encenada no palco era
muito elevada para os padrões daquele tempo, surpreendendo até os mais abalizados e
revoltando os setores mais conservadores da sociedade brasileira O teatro de Zé Celso era
diametralmente oposto às encenações de Augusto Boal e o seu Teatro de Arena: na
montagem do Oficina, uma imagem de São Jorge era posicionada ao lado de outra imagem
nada ortodoxa: uma Coca-Cola gigante. Os atores, a partir de uma atuação mais agressiva,
interagia com os espectadores, arrancando-os de seus assentos exigindo interatividade e
respigando o sangue do fígado cru que era arrancado do herói de Roda Viva. Enfim, uma
demonstração total de anarquia nos palcos brasileiros através de um aprofundamento
extremamente crítico guiado por “uma ambição de transformar não o Estado, mas o
indivíduo” (Motta, 2000: 167-168). Os órgãos oficiais responderam à altura: vários
homens do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiram o espetáculo em passagens
por São Paulo e Rio Grande do Sul, rendendo detenções e violência extrema com vários
que integravam o elenco.
A estupefação se tornava regra e não demorou muito para que as revoltas chegassem
às universidades, mobilizando os jovens, que iam para as ruas afrontar o regime militar,
com destaque para a Passeata dos Cem Mil, que ocorreu em 26 de junho de 1968, reunindo
artistas, estudantes e líderes de esquerda. Naquele momento, os jovens tinham um desejo de
59
É salutar citarmos, como referência, as impressões de Nara Leão a respeito da recepção de Roda Viva e do
autor da peça, Chico Buarque de Hollanda: “Confesso que durante o espetáculo fiquei nervosa e até chorei.
Chico provou que é uma pessoa de caráter e um talento que não está aí para ser mistificado ou aceitar a eterna
imagem do rapaz bonzinho, do moço de boa família, que canta para dizer que o mundo é bonito e agradável.
Eu, que já o achava um dos maiores compositores da história da música brasileira, acho mais ainda: um
homem capaz de arriscar tudo para dizer a verdade de uma maneira direta e violenta, mas com um talento e
uma sensibilidade que ultrapassam o campo da música. A peça não é agradável, mas quem quer fazer coisas
agradáveis não faz teatro, faz relações públicas” (apud Cabral, 2001: 142-143).
combater toda e qualquer manifestação de discriminação racial, social, autoritarismo,
consumismo exacerbado, trabalho alienado, guerra, corrida armamentista dentre outras
formas de poder. O mundo inteiro estava debaixo de uma enorme transformação no plano
cultural graças ao surgimento de novas esferas de pensamento, isto é, de “modos diferentes
de compreender e de se relacionar com o mundo e com as pessoas” (Carmo, 2001: 51).
San Francisco se transformara na grande Meca dos Hippies, espalhando o pólen do
flower power pelos quatro cantos do planeta, transmitindo uma mensagem extremamente
libertária através de várias “comunidades” estabelecidas nos campos e nas grandes cidades:
“festivais de música, viagens de carona com mochila nas costas, orientalismo e passeatas
pela paz ocorriam em toda a parte” (Carmo, 2001: 51). O restante dos Estados Unidos
também fervia em cidades como Nova York com manifestações de semelhante peso como
o Black power, o Women’s lib, o Gay power e inúmeros protestos contra a Guerra do
Vietnã (e o seu clássico slogan: “Make love, not war!”).
Incentivado pelo empresário e arauto dos tropicalistas Guilherme Araújo, que tinha
visto a inscrição “É proibido proibir” pichada em uma das ruas de Paris na época da eclosão
das revoltas estudantis, Caetano Veloso compôs uma canção baseada nas manifestações de
maio de 1968 para o Festival Internacional da Canção, organizado pela TV Globo. A letra,
apesar de possuir um refrão bem forte, não era de grande apuro poético; no entanto, a
música assumiu um caráter experimental a partir de “uma introdução bem dissonante,
atonal até” (Calado, 1997: 216), entremeada por versos de Mensagem, de Fernando Pessoa.
Os arranjos de Rogério Duprat, a participação do grupo Os Mutantes e do hippie Johnny
Dandurand berrando em pleno palco se transformariam em um happening profundamente
anárquico, com o intuito exclusivo de afrontar o público mais conservador dos festivais de
música popular:
A mãe da virgem diz que não
E o anúncio da televisão
E estava escrito no portão
E o maestro ergueu o dedo
E além da porta há o porteiro, sim
Eu digo não
Eu digo não ao não
Eu digo
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
Me dê um beijo, meu amor
Eles estão nos esperando
Os automóveis ardem em chamas
Derrubar as prateleiras
As estantes, as estátuas
As vidraças, louças, livros, sim
Eu digo sim
Eu digo não ao não
Eu digo
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir
É proibido proibir (Veloso, 2003: 65)
Nas primeiras eliminatórias do Festival Internacional da Canção, em 12 de
setembro de 1968, Caetano Veloso e Os Mutantes foram recebidos com vaias (‘Fora!’ e
‘Bicha!’ dentre as mais freqüentes), tomates e ovos. As roupas extravagantes, as guitarras
elétricas e a proposta explosiva de “É proibido proibir” provocaram as reações mais
furibundas do público e de colegas da MPB Geraldo Vandré, por exemplo, ameaçou não
participar do evento (cf. Calado, 1997: 218-219) com sua canção inscrita para o festival.
Nelson Rodrigues, em uma crônica escrita na época dos embates que marcaram o FIC,
criticou diretamente o trabalho de Caetano (por ter recorrido a uma “frase feita”), enalteceu
o trabalho de Vandré e criticou a falta de iniciativa do público da música de protesto no que
concernia às questões políticas:
Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases!
Pena é que vários tenham apelado para o “É proibido proibir”. Pergunto: por que
não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus,
outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela
sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e
arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a
água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a
letra de um centauro de artista e de herói.
Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival
apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No
episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há
frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de
cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles
como na ópera. É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo
numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe
resta uma saída: correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira
esquina (Rodrigues, 2001: 249).
“Caminhando (Pra não dizer que não falei de flores)”, entoada apenas por um violão
e o canto solene da voz de protesto, convocava os ouvintes à revolução e contrastava com
os arranjos orquestrais elaborados das canções concorrentes e tomava a platéia de assalto
devido às suas palavras de ordem contra o regime:
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais braços dados ou não,
Nas escolas, nas ruas, campos, construções,
Caminhando e cantado e seguindo a canção,
Vem, vamos embora que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer,
Pelos campos a fome em grandes plantações,
Pelas ruas marchando indecisos cordões,
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão,
E acreditam nas flores vencendo o canhão,
Vem, vamos embora que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer,
Há soldados armados, amados ou não,
Quase todos perdidos de armas na mão,
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:
De morrer pela pátria e viver sem razão,
Vem, vamos embora que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer,
Nas escolas, nas ruas, campos, construções,
Somos todos soldados, armados ou não,
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Somos todos iguais, braços dados ou não,
Os amores na mente, as flores no chão,
A certeza na frente, a história na mão,
Caminhando e cantando e seguindo a canção,
Aprendendo e ensinando uma nova lição,
Vem, vamos embora que esperar não é saber,
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
60
.
A apresentação de Vandré deixava evidente que a guerra musical já estava mais do
que declarada. Um dia antes da etapa seguinte do festival, Gilberto Gil, acompanhado dos
Beat Boys, sofreu com o desprezo do público em relação a “Questão de ordem”, canção na
qual o compositor abusava de seu experimentalismo à Hendrix. Na segunda eliminatória do
FIC, em 15 de setembro de 1968, as vaias e agressões a Caetano e Os Mutantes
reverberavam ferozmente por todo o TUCA, por isso, era necessário responder às
provocações prontamente. O jornalista Carlos Calado descreve com perfeição a atitude dos
tropicalistas ao entrarem no palco:
A introdução de “É proibido proibir” ainda não tinha terminado, quando os
primeiros ovos, tomates e bolas de papel começaram a cair sobre o palco. Para
provocar mais ainda, como já fizera na noite da eliminatória, Caetano entrou
rebolando. Inventou uma dança agressivamente erótica, com movimentos pélvicos
para frente e para trás, que lembravam uma relação sexual. A resposta dos
desafetos também veio quase em forma de coreografia: num movimento
coordenado, grande parte da platéia virou as costas para o palco, sem parar de vaiar
e gritar.
Os Mutantes não pensaram duas vezes, para retribuir o gentil tratamento que
estavam recebendo: sem parar de tocar, também deram as costas para a platéia. Foi
60
IN: Geraldo Vandré, Geraldo Vandré (1994).
nesse momento que a adrenalina bateu forte em Caetano. Na verdade, antes de
entrar no palco, ele planejara fazer uma homenagem à atriz Cacilda Becker, que
acabara de ter seu contrato com uma emissora de TV rescindido. No entanto, frente
à agressividade do público, a indignação de Caetano acabou explodindo sob forma
de um longo e ferino discurso, transformado em happening:
“Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês têm coragem
de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que vocês não teriam
coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma juventude que vão sempre,
sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! Vocês não estão
entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa.
Eu hoje vim dizer aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de festival,
não com o medo que o senhor Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem
teve essa coragem de assumir essa estrutura e fazê-la explodir foi Gilberto Gil e fui
eu. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!
(...)
Vocês estão por fora! Vocês não dão para entender. Mas que juventude é essa: Que
juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são iguais sabe a quem?
São iguais sabe a quem? Àqueles que foram na Roda Viva e espancaram os atores!
Vocês não diferem em nada deles, vocês não diferem em nada. E por falar nisso,
viva Cacilda Becker! Viva Cacilda Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse
viva aqui, não tem nada a ver com vocês. O problema é o seguinte: vocês estão
querendo policiar a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma
sica com arranjo de charleston. Sabem o que foi? Foi a Gabriela do ano
passado, que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser
americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês querem? Eu vim
aqui para acabar com isso!
(...)
Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Nada a
ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o
festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de
uma vez. Nós só entramos no festival pra isso. Não é Gil? Não fingimos. Não
fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me
ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu,
ele, tivemos coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se
vocês forem... se vocês, em política, forem como são em estética, estaremos feitos!
Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a
vocês... O júri é muito simpático, mas é incompentente. Deus está solto!
(...)
Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia
de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cabeça de vocês, hein? É assim que
eu quero ver”.
As vaias e os insultos só aumentaram, na platéia. Finalmente, com um irritado
“chega!”, Caetano interrompeu a música e deixou o palco. Abraçados com Gil, Os
Mutantes saíram logo atrás, rindo (Calado, 1997: 221-223).
Caetano Veloso decidiu retirar sua canção do FIC, apesar de estar ter sido
classificada para a final como resposta à antipatia do público. A atitude heróica de rebater
aqueles que protestavam ao vivo foi elogiada por alguns e criticada por muitos. Dentre os
que louvaram a atitude de Caetano e criticaram a esquerda brasileira, estava
(surpreendentemente) Nelson Rodrigues, que dedicou parte de uma crônica escrita na época
aos embates ocorridos no evento organizado pela Rede Globo de Televisão:
Pela primeira vez viu-se uma pobre canção linchada. A canção, digo eu, e
respectivo autor. E mais: enquanto Caetano Veloso queria cantar, a platéia
sapateando como uma espanhola fazia coro feroz, unânime e obsceno. Mas o
artista deu-lhe o bravo troco. Chamou os jovens ululantes de “imbecis”,
“analfabetos”, “débeis mentais” etc. etc. E disse tanto que a obscenidade emudeceu.
O comportamento de tal platéia e toda ela “festiva” foi de uma indignidade
inédita. Vejam como cabe, aqui, o “Nada como um dia após o outro” da minha
vizinha. (...) Em São Paulo, porém o “Proibido” foi realmente proibido pela platéia,
e saiu do Festival. (...)
Mas o que ainda me assombra é o poder de promoção da “festiva”. O povo acha
graça e vamos e venhamos: o simples nome de “festiva” é um apelo ao ridículo.
Realmente, há o ridículo, sem prejuízo, todavia, do gênio promocional das
esquerdas. O leitor não tem noção do que sejam os bastidores da glória, do sucesso,
da consagração. Hoje, só se é poeta, romancista, sociólogo, crítico, cineasta, se as
esquerdas o permitirem. Cabe então a pergunta: e por quê? (Rodrigues, 2001: 258-
259).
A recusa dos militantes e artistas de esquerda em relação às intervenções do grupo
tropicalista era uma espécie de negação não apenas a guitarras, atitudes ousadas ou a
influência da cultura do chamado “Primeiro Mundo”, mas principalmente à linguagem de
espetáculo veiculada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros em suas aparições públicas:
Ao vaiar ou até agredir fisicamente representantes do Tropicalismo, contra o que se
insurgia a esquerda brasileira de então? Conscientemente, contra as guitarras, o uso
de ritmos e palavras estrangeiras; a favor do “nacional”. Inconscientemente, contra
a linguagem do espetáculo, utilizada pelo governo e capaz de roubar espectadores
de comícios e encenações de protesto. Fingindo ignorá-la, entretanto, a arte de
protesto falava no vazio. Com o Tropicalismo, ao contrário, a crítica e a indústria
cultural e às margens arcaizantes ou desenvolvimentistas do país se dá no
espetáculo, vira espetáculo (Süssekind, 2004: 25).
Com a saída de Caetano e Gil do FIC, Geraldo Vandré e seus fãs não viram maiores
obstáculos para que “Caminhando” se consagrasse como a grande vencedora do festival.
Porém, poucos esperavam que “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, fosse proclamada
pelos juízes como a primeira colocada, incitando a fúria por parte do público, que retribuiu
com estrondosas vaias a Tom, Cynara e Cybele a dupla de cantoras que defendeu a
canção. A letra segue abaixo:
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De um palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor talvez possa espantar
As noites que eu não queira
E anunciar o dia
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer
Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá (Hollanda, 2006: 172).
A esquerda chamada “festiva”, ávida pelos discursos de combate, era incapaz de
enxergar a temática de “Sabiá”: a do exílio de um indivíduo desejoso de retornar à sua terra
natal. Quando o regime militar restringiu as liberdades da sociedade meses depois, e muitos
foram obrigados a deixar o país
61
, a letra de Chico recuperava de vez o significado poético
(palmeira, flor, amor etc.) do original escrito por Gonçalves Dias no século XIX, deixando
claro a inexistência de beleza (no caso, a flor e a palmeira retratadas na canção) no Brasil
dos generais, clamando o fim da distância entre o sujeito e sua origem (cf. Meneses, 2004:
138). É Nelson Rodrigues quem registra a decepção de Geraldo Vandré, apesar de ter
declarado que as vaias a Jobim e Chico eram desnecessárias e que “A vida não se resume a
festivais” (Calado, 1997: 227):
Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram “Sabiá”, de Chico e Tom. Ao
nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes
da vaidade, e telefonando para casa: “Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo
lugar!”. Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não
tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem,
61
Em meio aos incessantes pedidos por anistia política de exilados ilustres, Elis Regina, uma das principais
antagonistas do Tropicalismo, gravou uma versão de “Sabiá” no álbum Saudades do Brasil (1980), baseado
em um dos espetáculos mais comentados da artista.
também não aceita um reles segundo lugar. O resultado doeu-lhe fisicamente, como
uma nevralgia.
(...)
Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os
presentes não puderam sentir o seu patético, mas o telespectador sim. Para nós, de
casa, a cara de Vandré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras
cesarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos
seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si: “Abro ou não o verbo?”. Seria o
comício.
Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos
parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um
comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade:
por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro lado, era
amigo do Chico e do Tom (Rodrigues, 2001: 251-252).
O autor de Vestido de Noiva e Toda Nudez Será Castigada também descreveu a
profunda decepção dos indivíduos de esquerda:
E (...) as esquerdas caíram do cavalo. Esperavam o primeiro prêmio para Vandré e
quem ganhou foi “Sabiá”. Entre parênteses, não nego o talento de Vandré. Sua
“Marselhesa” nada tem de “Marselhesa” e, pelo contrário, soa como berceuse e o
próprio autor a canta como tal. Mas, berceuse ou “Marselhesa”, há talento. E o
resultado doeu na “festiva”. Logo, com aquela sua coragem sem risco, saiu pelas
redações, rádios e TVs. O nosso Vandré teve uma imprensa que nem Rui, nem o
barão do Rio Branco, nem Santos Dumont mereceram. Mas era pouco. A glória
impressa era pouco (Rodrigues, 2001: 259).
De qualquer maneira, Geraldo Vandré se transformou em um grande estandarte da
esquerda festiva, sua canção tornou-se bandeira dos revolucionários mais radicais, o que
preocupou as autoridades oficiais, pois “a letra (...) atingiu o ponto sensível dos militares: a
honra e o espírito de corporação” (Carmo, 2001: 72). Apesar de ter sido censurada assim
que o festival foi dado como encerrado, “Caminhando” foi relembrada muitas vezes em
eventos públicos organizados pela oposição enquanto o compositor foi transformado em
inimigo n1 do Poder Público, obrigado a se exilar tempos depois para resistir às investidas
que vieram como conseqüência de seu ato criativo.
Com o acirramento das disputas ideológicas em pleno ambiente de festival,
surgiram também uma série de contradições em torno das propostas destes eventos,
conforme apontou Luiz Tatit:
Os festivais sempre tiveram o propósito explícito de revelar novos talentos,
abreviando trajetórias artísticas que, de outro modo, seriam longas e árduas. Sua
lógica, porém, é regida por um princípio perverso, normalmente acatado como
natural e inevitável: a exclusão. Para uma pequena parcela de canções eleitas,
numerosas outras são excluídas por critérios duvidosos, algumas vezes afinados
com o gosto do público. O esforço tácito dos organizadores dessas competições é
sempre de enaltecer os efeitos e de camuflar, ou pelo menos diluir
significativamente, o processo de exclusão. Enquanto conseguem manter esse
sistema como se deu nos primeiros anos da experiência da TV Excelsior e na TV
Record de São Paulo , as respostas, artística e comercial, são as melhores
possíveis.
Quando a prática da exclusão começa a transpirar a ponto de concorrer com a
prática de seleção do concurso, o sistema todo tende a entrar em colapso no
limite, os excluídos tomam o lugar dos eleitos. Tudo indica que a falência dos
festivais começou quando os selecionados passaram a dividir a atenção do público
com os eliminados (Tatit, 2005: 120).
Depois das disputas ideológicas e estéticas promovidas em pleno FIC, Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes fizeram uma temporada de nove shows na boate
carioca Sucata em outubro de 1968, retomando as propostas estéticas apresentadas no
Festival Internacional da Canção, dando margem a polêmicas acaloradas, escândalos na
imprensa e lotações esgotadas (cf. Motta, 2000: 180). O cenário do espetáculo já era motivo
para o acirramento das discussões o cenógrafo David Drew Zingg hasteou uma bandeira
escrita “Yes, nós temos bananas” e outra com a inscrição “Seja marginal, seja herói”, de
Hélio Oiticica
62
. As apresentações se iniciavam às 1h30 da manhã com Arnaldo Baptista,
Rita Lee e Sérgio Dias adentrando o palco; logo em seguida, Caetano começava a cantar
“Saudosismo”, composta dias antes, homenageando João Gilberto apenas com voz e violão.
No final da execução desta obra, Os Mutantes retornavam à cena, enquanto o frontman
comandava uma sinfonia de gritos e ruídos de toda a espécie. Segundo Carlos Calado, “daí
62
A obra de Oiticica foi criada para homenagear o bandido Cara de Cavalo, morto na época.
em diante, tudo era possível: Caetano rebolava, dava cambalhotas, plantava bananeira,
arrastava-se pelo chão e até cantava deitado (Calado, 1997: 230). Gil também se
apresentou lançando mão dos mesmos recursos agressivos dos companheiros tropicalistas.
As polêmicas em torno da fulgurante temporada dos tropicalistas no Rio de Janeiro
atingiram limites não imaginados: parte da imprensa chegou a afirmar que os militares
estavam enfurecidos com a execução do Hino Nacional Brasileiro na verdade, o
guitarrista do grupo Os Mutantes, Sérgio Dias, executava um trecho da Marselhesa, o hino
oficial francês. A bandeira de Hélio Oiticica também trouxe problemas aos artistas, pois um
delegado de polícia obrigou a retirada do cenário e obrigou Caetano Veloso a assinar um
documento que o obrigava a não pronunciar uma palavra sequer durante as apresentações.
Com a recusa do cantor, a turnê foi encerrada (cf. Calado, 1997: 232-233).
A TV Tupi propôs ao empresário Guilherme Araújo a criação de uma atração
comandada pelo grupo tropicalista. O programa Divino, Maravilhoso foi ao ar em outubro
daquele ano e veiculava as anarquias formuladas por Caetano e Gil para os quatro cantos do
país. A produção ficou a cargo de Antônio Abujamra, a direção de imagens ficou nas mãos
de Cassiano Gabus Mendes, além das participações especiais de Gal Costa, Tom Zé, Nara
Leão, Torquato Neto, Jorge Ben, Paulinho da Viola, Jards Macalé, Juca Chaves, Cyro
Monteiro e outros.
O IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record foi ao ar em novembro
de 1968, sem a participação dos baianos tropicalistas e mais barulhentos, mas com o grupo
Os Mutantes, Tom Zé e a principal revelação daquele evento, Gal Costa. “Divino
maravilhoso”, parceria de Caetano e Gil, foi memoravelmente apresentada por Gal neste
festival, marcando, de vez, o fim da chamada “era dos festivais”. O evento também foi
marcado por uma significativa virada de estilo da cantora, que deixou de seguir a matriz
jobino-gilbertiana para se tornar num misto de Jimi Hendrix e Janis Joplin no quesito
estético; ou seja, Gracinha (como os amigos a chamavam) deixava de lado a dicção de João
Gilberto para dar destaque aos grunhidos de Janis e o visual extravagante típico de Hendrix.
Ao ser questionada sobre a influência de Janis Joplin em seu trabalho, Gal fez o
seguinte comentário: “Eu estava muito apaixonada pelo que ela fazia. Queria me integrar
naquela linguagem. Estreei num festival da TV Record com a música Divino Maravilhoso,
de Caetano e Gil. Gil, que fez o arranjo, me perguntou como eu queria cantar. Respondi:
‘Extrovertida, como jamais cantei’. Então fui pro palco com aquele cabelo black power e
aquelas roupas irreverentes… Metade da platéia vaiava, metade aplaudia. Era uma coisa
inteiramente nova pra mim” (Costa, 2007). A canção de Caetano e Gil recebeu uma
interpretação singular da baiana, uma “interpretação vibrante (...), incluindo um repertório
de sons vocais inédito entre nós” (Veloso, 1997: 331), além de prenunciar as trevas do
regime militar que resultariam no silenciamento de vozes e na consagração do horror na
vida cultural e política no Brasil, além da chegada de uma nova ordem cultural, a da
contracultura. Eis a letra:
Atenção
Ao dobrar uma esquina
Uma alegria
Atenção menina
Você vem
Quantos anos você tem?
Atenção
Precisa ter olhos firmes
Pra este sol, para esta escuridão
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para a estrofe e pro refrão
Pro palavrão, para a palavra de ordem
Atenção
Para o samba exaltação
Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte
Atenção
Para as janelas no alto
Atenção
Ao pisar o asfalto mangue
Atenção
Para o sangue sobre o chão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte (Veloso, 2003: 66-67)
Em depoimento concedido a Eucanaã Ferraz em 2003, Caetano Veloso (2003 II: 35)
se queixou da esquerda nacionalista, na época, ter se mostrado incapaz de compreender o
engajamento de “Divino maravilhoso”. A canção, como um todo, é um convite para o
ouvinte/receptor fugir do status quo e perceber, com “olhos firmes”, os descaminhos que a
nação brasileira seguia em 1968 se estivermos atentos na disposição dos versos de
Caetano no papel, percebemos a palavra “Atenção” no início de cada estrofe, o que deixa
mais do que evidente a intenção do eu-lírico de mobilizar, sensibilizar o seu ouvinte para os
perigos e descaminhos que a vida nos oferece[ia]. Ao cantarmos alto e desafiadoramente a
estrofe, podíamos descobrir a escuridão inerente à luz solar na qual a sociedade
mergulhava, a “palavra de ordem” e o “palavrão” subvertores do sistema, duvidar da
ideologia ufanista de um “samba exaltação”, ver com desconfiança “o sangue sobre o chao”
da esquina que dobramos, e, por fim, descobrir o “asfalto mangue” traiçoeiro que sustenta a
gravidade de todo regime democrático. Tudo que nos cerceava podia ser perigoso, por isso
a necessidade de ser visto com extrema desconfiança.
Porém, a desconfiança denunciada em “Divino Maravilhoso” chegou um pouco
tarde demais, pois já era tarde para a sociedade civil esboçar um movimento de
redemocratização do Brasil. O Ato Institucional n.º5 (AI-5), promulgado em 13 de
dezembro de 1968, suspendia o direito dos civis a Habeas Corpus, concedia poderes plenos
às polícias de todo o país (agentes policiais poderiam invadir as residências em quaisquer
momentos), “instaurando um regime (...) truculento que fez, em retrospecto, os primeiros
quatro anos que passáramos sob os militares parecerem razoáveis e amenos” (Veloso, 1997:
342). Os tropicalistas, malvistos pela esquerda e pela direita, jamais imaginaram que suas
posições polêmicas lhes renderiam um alto preço posteriormente e, apesar das
adversidades, prosseguiram com suas propostas agressivas.
No dia 23 de dezembro, o último Divino, Maravilhoso foi ao ar e trouxe Caetano
Veloso cantando “Boas festas”, de Assis Valente
63
, apontando um revólver para a cabeça.
A brutalidade do quadro sugeria um suicida ironizando o espírito do Natal brasileiro e foi o
estopim para que Caetano e Gil fossem interceptados e presos pelos militares quatro dias
depois da exibição do programa. Na medida em que o projeto maléfico dos ditadores se
configurou a partir da vigoração do AI-5, as vozes de nossos artistas foram radicalmente
relegadas ao silêncio, ou de acordo com o que escreveu Roberto Schwarz em seu notável
ensaio sobre este assunto, “em [19]68, quando o estudante e o público dos melhores filmes,
do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros já constituí[a] massa
relativamente perigosa”, criou-se uma necessidade por parte do poder de “trocar ou
censurar os professores, os encenadores, os escritores, os músicos, os livros, os editores”,
ou seja, era necessário “liquidar a própria cultura viva do momento” (Schwarz, 1978: 63).
O exílio de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque na Europa as três
matrizes poético-musicais mais importantes da música popular dos anos 60 a partir de
1969 foi apenas o início de uma série de arbitrariedades que ainda estavam por vir. Apesar
da repressão ditatorial e da instauração de um olhar punitivo por parte dos miliares que
tinha o intuito de fiscalizar e punir as atividades intelectuais produzidas no Brasil (cf.
63
A seguir, a letra da canção de Assis: “Anoiteceu, o sino gemeu / E a gente ficou feliz a rezar / Papai Noel,
vê se você tem / A felicidade pra você me dar // Eu pensei que todo mundo / Fosse filho de Papai Noel / E
assim felicidade / Eu pensei que fosse uma / Brincadeira de papel // Já faz tempo que eu pedi / Mas o meu
Papai Noel não vem / Com certeza já morreu / Ou então felicidade / É brinquedo que não tem”. IN: Assis
Valente, Assis Valente com Dendê, (1999).
Ventura IN Gaspari et alli, 2000: 49), as vozes não foram integralmente caladas, mas
temporariamente silenciadas em meio ao horror instaurado.
Foi inaugurada uma era de caça às bruxas no Brasil: muitas cabeças pensantes
foram presas, torturadas e exiladas (muitas foram mortas) e a censura passou a ser
constante nos meios de comunicação; ou seja, “repressão ampla, total e irrestrita”,
parafraseando um dos clichês proferidos pelo ex-presidente militar Ernesto Geisel. Por
maior que fosse a lama a rodear os artistas da canção, a voz não se calaria de todo:
desafiaria as convenções, os percalços e obstáculos impostos pelo poder, a flor da arte não
se permitiria murchar, o som das violas e as rodas de samba não iriam cessar de vez.
“Roda-viva”, de Chico Buarque, representa o fato destas vozes jamais terem sido
caladas pelo endurecimento do regime militar. Criada em 1967, como se sabe, se
transformou em um hino de resistência, se levarmos em consideração o negror daquele
momento histórico:
Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino prá lá ...
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a roseira prá lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
A roda da saia, a mulata
Não quer mais rodar não senhor
Não posso fazer serenata
A roda de samba acabou
A gente toma a iniciativa
Viola na rua, a cantar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega a viola prá lá
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração
O samba, a viola, a roseira
Que um dia a fogueira queimou
Foi tudo ilusão passageira
Que a brisa primeira levou
No peito a saudade cativa
Faz força pro tempo parar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a saudade prá...
Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração (Hollanda, 2006: 161).
Apesar da inexorabilidade representada pela persença da “roda viva” esmagando a
tudo e a todos, a composição de Chico Buarque abria espaço para novas posturas de
independência estética e ideológica, marcando um dos períodos de maior agitação cultural
no Brasil.
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Só mesmo embriagado ou muito louco
Pra contestar e pra botar defeito
Chico Buarque de Hollanda
64
4.1 - A figura diabólica, definitivamente, em cena!
Caetano Veloso e Gilberto Gil ficaram aproximadamente dois meses detidos pelos
militares no Rio de Janeiro, mas apesar de terem sido privados de contato direto com o
público, os dois não interromperam suas atividades musicais por completo e, então, surgiu
“Irene” uma homenagem de Caetano à sua irmã mais moça. Esta canção revela um eu-lírico
pronto para sair em direção ao mundo exterior, desejoso da luz do sol e ansioso por ouvir o
riso alegre e festivo de uma jovem livre e descompromissada:
Eu quero ir minha gente
Eu não sou daqui
Eu não tenho nada, nada
Quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada
Irene ri, Irene ri, Irene
Irene ri, Irene ri, Irene
Quero ver Irene dar sua risada ...
Quero ver Irene
Quero ver Irene
Quero ver Irene dar sua risada (Veloso, 1997: 395).
O próprio Caetano Veloso nos ofereceu a melhor explicação para a única canção
que fez na prisão, no início de 1969:
64
IN: Chico Buarque, Meus Caros Amigos (1976).
A figura de minha irmã Irene aparecia com freqüência em minha mente como um
antídoto (...). Irene tinha catorze anos então e estava se tornando tão bonita que eu
por vezes mencionava Ava Gardner para comentar sua beleza. Mais adorável ainda
do que sua beleza, era sua alegria, sempre muito carnal e terrena, a toda hora
explodindo em gargalhadas sinceras e espontâneas. Mesmo sem violão, inventei
uma cantiga evocando-a, que passei a repetir como uma regra (...). Eu não pensava
em torná-la pública: pensava tratar-se de algo inconsistente e incomunicável. Para a
minha surpresa, Gil achou-a linda e, uma vez gravada, não só ela fez sucesso de
público como Augusto de Campos publicou uma versão visualmente tratada de
modo a enfatizar o (para mim surpreendente) caráter palindrômico do refrão: com
efeito, a frase “Irene ri” pode ser lida nos dois sentidos (Veloso, 1997: 394-395).
Gilberto Gil, cuja personalidade é mais expansiva que a de Caetano, conseguiu um
violão emprestado com um sargento, três semanas depois de detido no quartel. Lá, chegou a
compor algumas composições que chegaram a integrar seu álbum de 1969, mas o retrato
mais fiel da “ressaca do AI-5” foi “Aquele abraço”. O título da canção se referia ao modo
como os soldados o cumprimentavam na prisão
65
e era uma espécie de catarse por parte do
próprio Gil naquele momento:
O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março
Alô, alô, Realengo - aquele abraço!
Alô, torcida do Flamengo - aquele abraço!
Chacrinha continua balançando a pança
E buzinando a moça e comandando a massa
E continua dando as ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha - velho guerreiro
Alô, alô, Terezinha, Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha - velho palhaço
Alô, alô, Terezinha - aquele abraço!
Alô, moça da favela - aquele abraço!
Todo mundo da Portela - aquele abraço!
Todo mês de fevereiro - aquele passo!
65
A expressão, na verdade, se popularizou através de um programa de televisão da época, por isso, os
militares sempre cumprimentavam o compositor com a saudação “Aquele abraço, Gil!” (cf. Gil, 2003: 120).
Alô, Banda de Ipanema - aquele abraço!
Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço
A Bahia já me deu régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu - aquele abraço!
Pra você que meu esqueceu - aquele abraço!
Alô, Rio de Janeiro - aquele abraço!
Todo o povo brasileiro - aquele abraço! (Gil, 2003: 120).
Em depoimento concedido especialmente para o volume Todas as Letras, Gilberto
Gil comentou a importância de “Aquele abraço” na época em que a composição foi feita:
“Finalmente eu ia poder ir embora do país e tinha que dizer bye bye; sumariza o episódio
todo que estava vivendo, e o que ele representava numa catarse. Que outra coisa para o
compositor fazer uma catarse senão numa canção?” (Gil, 2003: 120). Signos como “Rio de
Janeiro”, “Realengo” (bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, próximo de onde Caetano e
Gil estiveram presos), “torcida do Flamengo”, “Chacrinha balançando a pança”, “Portela” e
“Banda de Ipanema” remetem o ouvinte a uma festança recém-encerrada. Gilberto Gil, ao
discorrer sobre o processo de criação de “Aquele abraço”, comentou que visualizou a cena
da despedida mimetizada na canção numa quarta-feira de cinzas - o verso “Rio de Janeiro,
fevereiro e março” pressupõe a passagem das festas carnavalescas, pois os meses de
fevereiro e março são os que abrigam as comemorações de Momo (cf. Gil, 2003: 121) ,
por isso, o final da festa precisava ser alegre e não menos esfuziante.
Chacrinha é evocado na letra por ser justamente um embaixador da alegria e um dos
principais ícones do movimento tropicalista. Aqui, ele representa um líder das massas, a
transmissão de sua mensagem não foi interrompida pelo arrocho de regime ao contrário, é
ele quem ainda “dá as ordens no terreiro”, ou seja, influencia os brasileiros
independentemente de quem esteja no comando da nação pelo simples fato de conseguir se
comunicar com um número máximo de brasileiros via TV. Nota-se, por fim, o desejo de
enviar saudações à maior parte possível de brasileiros os versos “Todo povo brasileiro” e
“Pra você que me esqueceu” comprovam o que está dito , afinal o abraço, através do
pronome demonstrativo “aquele”, não era uma saudação qualquer (cf. Tatit, 2001: 131),
mas era o último sinal de um eu prestes a se lançar de vez pelo mundo. Segundo Danuza
Leão, “Aquele abraço” foi uma canção que surgiu em um momento no qual a nação
brasileira como um todo necessitava exorcizar seus demônios:
Lembro de uma ocasião, uns quinze dias antes do Carnaval de [19]70, em que ele
[o jornalista Samuel Wainer, ex-marido de Danuza] recebeu para uma feijoada. A
música do momento era “Aquele abraço” (...). E acredite quem quiser: o almoço
começou às duas da tarde, acabou por volta de meia-noite, e só tocou essa música,
o tempo todo. Pode parecer que foi monótono, mas não foi: era a música certa na
hora certa (Leão, 2005: 121).
O Tropicalismo, sem as forças motrizes de Caetano e Gil, foi morto em seu auge,
pois o exílio forçado dos baianos enfraqueceu o movimento de forma letal. Margarida
Autran (IN Novaes et alli, 2005: 87), em seu ensaio O estado e o músico popular: de
marginal e instrumento, aponta que nesta época houve literalmente um êxodo cultural
motivado pelo exílio involuntário de artistas e intelectuais. O artista passa a ser visto como
um “fora da lei”, ocupando um não-lugar, ou seja, “a cultura considerada um supérfluo e o
músico popular era tido como um marginal, um elemento de alta periculosidade cuja
produção passava obrigatoriamente pelo crivo da Polícia Federal que determinava se podia
ou não ser divulgada”. Na medida em que os bens culturais eram considerados como
artigos desnecessários, uma atmosfera falaciosa se criava com o desenvolvimento do Brasil
e a restrição das liberdades individuais:
Nessa passagem há a marca de acontecimentos decisivos no processo político-
cultural brasileiro: a virada da década corresponde a uma nova derrota dos
movimentos de massa especialmente o de composição estudantil e das
esquerdas. O chamado “segundo golpe” instala definitivamente a repressão política
de direita organizada pelo Estado e marca a abertura de um novo quadro
conjuntural onde a coerção política irá assegurar e consolidar a euforia do “milagre
brasileiro”. O país torna-se uma “ilha de tranqüilidade”, extremamente atraente
para o capital monopolista internacional que aperta os laços de dependência,
assegurando sua integração com as classes dominantes internas. Passa-se a viver
um clima de ufanismo, com o Estado construindo seus grandes monumentos,
estradas, pontes e obras faraônicas, enquanto a classe média, aproveitando-se das
sobras econômicas do “milagre”, vai, maravilhada, comprar seus automóveis,
televisões coloridas e apartamentos conjugados para veraneio. No campo da
produção cultural a censura torna-se violentíssima, dificultando e impedindo a
circulação das manifestações de caráter crítico. Não mais apenas os militantes são
violentamente perseguidos, como professores, intelectuais e artistas passam a ser
enquadrados à farta na legislação coercitiva do Estado, sendo obrigados, em muitos
casos, a abandonar o país (Hollanda, 2004: 100-101).
Na cena internacional, nomes como Bob Dylan, Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim
Morrison (The Doors) traziam, com suas composições e performances, uma nova postura
diante do mundo Hendrix e Joplin, mortos em 1970, brilharam intensamente no
Woodstock Festival (1969); já Morrison (falecido por overdose de drogas um ano depois) e
Dylan, por sua vez, buscaram representar a ideologia dos novos tempos através de versos
que se aproximavam intensamente do plano poético literário
66
. Com a separação dos
Beatles no início dos anos 70, os Rolling Stones adquiriram grande prestígio. Coerentes
com as contradições culturais da época, misturavam rock com sexo, drogas, escândalos e
tumultos, numa fúria radical assustadora
67
.
Dessa forma, o fim da década de 60 e o início da de 70 foram marcados pela
desilusão advinda do fim das utopias revolucionárias dos anos que se foram. Nunca um
verso de um dos maiores hits de Janis Joplin, “Me and Bobby McGee”, fora tão sintomático
como naquela época: Free is just another word for nothing left to lose [Livre é apenas
mais uma palavra para quem não tem nada a perder]. O endurecimento do regime resultou
na interdição de vários filmes, peças teatrais e canções, sublimando a “fiscalização punitiva
que abrange todas as atividades intelectuais” (Ventura IN Gaspari et alli, 2000: 49) e a
paralisação da efervescência cultural que o Brasil enfrentava até aquele período. Ao refletir
sobre os efeitos da repressão em nossas artes, Zuenir Ventura (IN Gaspari et alli, 2000: 43)
observou que
foi o Ato Institucional n.º5 que viria transformar mais radicalmente a cultura
brasileira, através de uma implacável ação que se exerceu em dois planos. Com a
censura prévia agindo no interior do campo cultural cortando, expurgando ou
simplesmente vetando , pôde exercer um rigoroso trabalho de prevenção; com os
66
Devemos registrar que os escritores Arthur Rimbaud, Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Dylan Thomas foram
influências literárias marcantes tanto de Bob Dylan quanto de Jim Morrison.
67
A fase mais marcante da obra dos Stones, na opinião de especialistas e fãs, é a dos anos 1967-1974, na qual
Mick Jagger, Keith Richards e cia. gravaram discos eminentemente clássicos como Their Satanic Majesties
Request (1967), Let it Bleed (1969), Sticky Fingers (1971), Exile on Main Street (1972) e It’s only
Rock’n’Roll (1974).
outros poderes que transcendem a cultura cassação, expulsão, aposentadoria e
prisão , pôde instaurar-se um implacável mecanismo de punição.
Com o aprimoramento do mecanismo repressivo, buscava-se a destruição do traço
contestador nas artes: a televisão passou a exibir uma programação ruim em termos
qualitativo s e a cultura de massas se pautava cada vez mais na esfera do consumo fácil e
efêmero. O “vazio cultural” e “a falta de ar”, que foram brilhantemente apontados por
Zuenir Ventura no início dos anos 70, deram início a uma crise cultural marcada pela
“decepção e pessimismo em relação ao passado recente e preocupação em relação ao
futuro”. Num primeiro momento,
o processo de criação artística estaria completamente estagnado. Um perigoso
“vazio cultural” vinha tomando conta do país, impedindo que, ao crescimento
material, cujos índices estarrecem o mundo, correspondesse idêntico
desenvolvimento cultural. Enquanto o nosso produto interno bruto atinge recordes
de aumento, o nosso produto interno cultural estaria caindo assustadoramente
(Ventura IN Gaspari et alli, 2000: 40).
Para o jornalista Alberto Dines, que atuava como editor-chefe do Jornal do Brasil
na época, “o AI-5 (...) instalou definitivamente o arbítrio na era da informação” (Ventura
IN Gaspari et alli, 2000: 46). O crítico de arte Frederico de Moraes afirmava, por sua vez,
que “sem arte não existe a idéia de nação: a livre manifestação criadora, isto é, a perfeita
educação é necessária à própria vida social”. Já o diretor teatral Paulo Afonso Grisolli
pontuara na época que “o gesto de criação (...) tem de ser igual ao da liberdade do menino
que entra num playground para brincar. Cercam-no de grades, a pretexto de protegê-lo, para
que se possa mantê-lo debaixo de olhos vigilantes” (Ventura IN Gaspari et alli, 2000:
45/48).
A partir do momento em que a censura adquiriu um papel decisivo no que se
produzia no Brasil em termos culturais, gerou-se em vários setores um impasse no plano da
expressão artística: o artista cedia aos mecanismos de consumo fácil ou optava pela
marginalidade, assumindo o risco de sua própria expressão. Não só o Brasil como toda a
América do Sul sofriam as terríveis conseqüências “do choque da quimioterapia das
ditaduras”, que faziam da violência “uma forma de coerção política” (Gaspari et alli, 2000:
29), o que inibiu vários compositores e fizeram com que eles se autocensurassem:
Essa hipótese, que poderia até ser confundida com a imagem de um paraíso sem
censura por falta do que censurar, por medo de criar. (...) A substituição do
aparelho ostensivo da censura pelo mecanismo interno de auto-repressão, com cada
criador ousando cada vez menos, é o caminho mais rápido para levar a cultura ao
estado tão sonhado por aqueles que pensam em revolver quando ouvem a palavra
cultura: ao reino da ordem, do conformismo e da obediência à paz dos cemitérios
(Ventura IN Gaspari et alli, 2000: 55).
Por isso, faz-se necessário refletir sobre a noção de poder como uma série de
relações que perpassam todo o corpo social e objetivam deter a força produtiva através de
um discurso que se mostra numa posição ideológica contrária ao discurso do oprimido. Em
suas obras Microfísica do poder e Vigiar e punir, o filósofo francês Michel Foucault
assinala que o poder possui uma função vigilante e punitiva ao olhar do oprimido,
impedindo, por conseguinte, a interiorização do indivíduo. Daí a brilhante decisão do
governo em lançar o seu “olhar dominador e vigilante” (Foucault, 1999: 215) sob nossas
artes naquele período, cerceando reações contrárias à ordem vigente. Foucault ainda
compreende que o poder é dotado de um olhar impessoal que, por ser vigilante, faz com
que “cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por interiorizar, a ponto de observar a si
mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra si mesmo” (Foucault,
1999: 218).
O regime militar tinha o poder de influir no comportamento de toda a sociedade
brasileira e fazia da força a canalização de sua potência. Segundo uma fórmula de Max
Weber (apud Lebrun, 1991: 134) a “potência (Macht) significa toda oportunidade de impor
a sua própria vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências,
pouco importando em que repouse tal oportunidade”. Com isso, o olhar vigilante ou o
discurso arrogante do poder político, segundo Roland Barthes em sua memorável Aula,
tinha a função de engendrar o erro do outro, em que o indivíduo, como no regime fascista,
não é necessariamente impedido de se expressar mas é obrigado a dizer algo. Na notável
lição de Barthes, compreendemos que o poder se engendra em qualquer discurso, por isso
ele está inscrito na linguagem, “ou para ser mais preciso [na] sua expressão obrigatória: a
língua” (Barthes, 2000: 12).
Em agosto de 1969, Nara Leão considerava sua carreira de cantora como encerrada
por não encontrar alternativas artísticas capazes de sobreviver ao vazio cultural provocado
pelas imposições governamentais da ditadura. Em entrevista para o Pasquim, afirmava a
cantora na época: “No Brasil (...) não há condições de trabalho, não há estímulo, não há
vontade de cantar. Acho que se não houver liberdade de criação, vai acabar tudo. O que é
que você vai dizer?” (apud Cabral, 2001: 159). O álbum gravado por Nara naquele ano,
Coisas do Mundo, refletia seu espírito amargurado, ao escolher para o repertório do disco
as canções de Jacques Brel (“La colombe”), Rolando Alarcón (“Parabién de la paloma”), e
“Tambores de paz”, de Sidney Miller, cuja letra vem a seguir:
Ouço batidas ao longe, muito longe
Quem será?
Vejo a poeira crescendo no horizonte
Quem vem lá?
Talvez uma escola de samba,
A invasão do planeta
Um desfile de modas
Ao som de cornetas triunfais
das bandas marciais
São os tambores da paz
que vêm rufando de alegria
Cores, bandeiras ao vento me acenando
Quem diria?
E eu que pensava, tão triste
Momento presente, as batalhas campais
Encontro sorrisos nos lares, nos bares
Nos mares tropicais
Garçom me traga uma cachaça
É preciso mudar esse tom de agonia
É preciso beber a guerra fria
É preciso, morena, o seu abraço
Tambores de paz me trouxeram seus braços
Ouve os gemidos de amor
É preciso uma vida serena
Pra fingir carnaval são tambores de paz,
Morena
Ouve os gemidos de amor
É preciso uma vida serena
Pra fingir carnaval são tambores de paz,
Morena
68
A gravação de Nara se inicia com o rufar de tambores que se assemelham às
apresentações oficiais de honras militares, mas os versos de Sidney Miller nos remetem a
um cotejo de outras possibilidades, todas positivas, contrárias às idéias de tristeza e agonia.
Ao som dos “Tambores de paz”, o eu-lírico se enche de esperança. Renasce a alegria de
viver, a vontade de se solidarizar com o outro, a crença na vida e no amor. A paz interior,
tão cobiçada por Nara, é reclamada na versão de “Parabién de la paloma”, do compositor
chileno Rolando Alarcón, assinada por ela:
La paloma se murio y el palomo no sabia
La paloma se murio y el palomo no sabia
Foi a pomba que morreu e o pombo não sabia
“Levanta-te, minha pombinha”, lhe dizia, lhe dizia
Nós iremos nos casar, assim que romper o dia
Que parabienes tristes tengo que cantar yo.
La paloma se murio y el palomo esta llorando
Foi a pomba que morreu e o pombo está chorando
Pobre, pobre do pombinho, para onde irá voando?
Não há as luzes da igreja, nem alegrias nem cantos
Que parabienes tristes tengo que cantar yo.
La paloma se murio, se murio con un disparo
Foi a pomba que morreu, e morreu com um disparo
68
IN: Nara Leão, Coisas do Mundo (1969).
Um homem fez pontaria, tendo seu fuzil na mão
Para sempre esperaram seus irmãos dentro da igreja
Que parabienes tristes tengo que cantar yo.
La paloma se murio, llorando se queda un nino
Foi a pomba que morreu, e chorando fica um menino
Um homem com um fuzil, nunca soube o que é carinho
Nunca entrou numa igreja, nunca acendeu um círio
Que parabienes tristes tengo que cantar yo.
La paloma se murio, la mato un hombre cobarde
Foi a pomba que morreu, e a matou um homem covarde
Sabendo que era inocente, castigamos um culpado
No lo perdona el palomo, no lo perdona su madre
Que parabienes tristes, tengo que cantar yo.
La paloma se murio, señores aqui presentes
Foi a pomba que morreu, senhores aqui presentes
Um homem vendeu o fuzil, que continua sua matança
Disparando sobre irmãos, destruindo continentes
Que parabienes tristes, tengo que cantar yo.
69
Nas versões assinadas por Nara, podemos notar procedimento semelhante ao que
Caetano Veloso adotara em “Soy loco por ti, América”. Versos de protesto originalmente
escritos em espanhol se misturavam às palavras poéticas entoadas pelo eu-lírico feminino,
nos transmitindo uma sensação de espelhamento entre o Brasil e a América Latina, prestes
a ser castigada duramente por ditaduras ferrenhas. O lamento de se cantar um parabién
70
triste existe justamente pelo assassínio da pomba, o símbolo maior da paz (seja esta no
sentido mais imediato da palavra, como também se relaciona com a quietude interior de
cada indivíduo). O AI-5 concedeu aos cruéis
71
portadores de botas e fuzis carta branca para
liquidar quantas pombas lhes interessassem, pois para o poder instituído, era preciso
69
IN: Nara Leão, Coisas do Mundo (1969).
70
Gênero musical popular da música chilena.
71
O adjetivo foi escolhido não por opção pessoal, mas graças à sugestão interpretativa dos versos “Um
homem com um fuzil, nunca soube o que é carinho” e “Nunca entrou numa igreja, nunca acendeu um círio”.
extinguir quaisquer manifestações revolucionárias como se fossem focos de incêndio a
consumir o país.
Logicamente, as armas possuíam muita munição a disparar sobre pessoas, países e
continentes afinal estávamos submetidos a um modelo capitalista a ser adotado ipsis
litteris pelos governantes empossados pelo golpe de 1964 , o que nos renderia um preço de
amigos forçadamente desaparecidos, sangue derramado em vão e muitas vidas
desperdiçadas com o único objetivo de afirmar a supremacia exigida pelos governos
imperialistas. Os versos escritos por Nara Leão para a releitura de “La colombe”, de
Jacques Brel, complementam as insatisfações expressas em “Parabién de la paloma”, como
podemos concluir logo a seguir:
Por quê essa fanfarra?
Se os homens enfileirados
Esperam o massacre
E vão morrer ou matar
Por quê esse trem sem cores?
Que ronca altos suspiros
Para nos conduzir
À tragédia, à mentira
Por quê a música, o canto?
A multidão que traz flores
E parece festejar
Aqueles que não vão voltar
Nous n’irons plus au bois
La colombe est blessée
Nous n’allons pas au bois
Nous allons la tuer
Por quê chega o momento
Onde teve minha infância?
E acaba toda chance
De se viver a paz?
Por quê vagão pesado
E tão depressa carregado
De rostos cor-de-cinza
Que se vão pra nunca mais?
Por quê esse trem de chuva?
Por quê esse trem guerreiro?
Por quê esse cemitério
Em direção à noite?
Nous n’irons plus au bois
La colombe est blessée
Nous nallons pas au bois
Nous allons la tuer
Porque tantos discursos
Para saudar os mortos?
E sempre as frases feitas
Nos enterros de seus corpos?
Por quê criança morta
Para saudar a vitória?
Por quê dia de glória
E o sangue derramado?
Por quê toda essa terra
Coberta de cinzas e cruzes?
Por quê toda essa guerra
Se a pomba ficou ferida?
Nous n’irons plus au bois
La colombe est blessée
Nous nallons pas au bois
Nous allons la tuer
Onde o teu caro rosto
Desfigurado pela lágrima
Enfeiado de desgosto
Quando limpava nossas armas
E o teu corpo sombrio
Que ao longe desaparece
Essa chuva no cais
Uma flor nesse túmulo
Como viver um novo dia
Se os amigos não voltaram?
Onde encontrar alegria?
Que fazer desse amanhã?
Nous n’irons plus au bois
La colombe est blessée
Nous nallons pas au bois
Nous allons la tuer.
72
O quadro desolador delineado pelo canto triste de Nara Leão é construído através de
uma sucessão contínua de questionamentos relacionados ao mundo que nos rodeava. A
fanfarra era inútil perante a evidência do massacre: o sangue de mortos e desaparecidos se
mistura ao sangramento da pomba (colombe). A paz, mais uma vez, aniquilada e substituída
pelo silêncio incômodo dos cemitérios nos faz duvidar da existência das noções de alegria e
futuro em meio à Pindorama militar. A saída encontrada por Nara, não diferente de alguns
de seus colegas, foi o exílio voluntário: por temer o cerco da ditadura militar, que
aguardava uma oportunidade propícia para prendê-la, torturá-la e puni-la, a eterna musa da
Bossa Nova seguiu os conselhos de vários e deciciu morar em Paris durante dois anos junto
do cineasta Cacá Diegues, com quem era casada desde 1967 (cf. Cabral, 2001 & Leão,
2005: 120).
O artista Pop, imerso em uma ordem autoritária de poder, se viu em meio à
descrença e à desilusão: o AI-5 fez o Brasil caminhar por uma das etapas mais negras de
sua História. Em um curto espaço de tempo, assistimos a ascensão da TV e da indústria do
disco, a exaustão das utopias revolucionárias, o surgimento da censura prévia aos meios de
comunicação e uma repressão generalizada nos planos político e moral. Consciente da
gravidade deste retrato, foi Silviano Santiago quem apontou, em brilhante ensaio, os
verdadeiros prejudicados pela censura prévia aos meios de comunicação:
O grande punido, punido injustamente, pela censura artística, é a sociedade o
cidadão, este ou aquele, qualquer. (...) diremos que a censura traz uma “salvação”
para qual a sociedade não foi consultada nem deu o consentimento. É o cidadão
que deixa de ler livros, de ver espetáculos, de escutar canções, de ver filmes, de
72
IN: Nara Leão, Coisas do Mundo (1969).
apreciar quadros, etc. Ele é quem recebe um atestado de minoridade intelectual. Por
causa da censura, nesses períodos, a sociedade tem a sua sensibilidade esclerosada
e o seu pensar-artístico embotado (e também o seu pensar-crítico e o seu pensar-
científico). Nessa circunstância, o fruidor da obra de arte fica desfalcado de certos
elementos que o ajudariam a compor o quadro global da sociedade em que vive,
pois apenas recebe uma única voz que circunscreve toda a realidade. A voz do
regime autoritário, a única permitida.
Passa o fruidor a ser um cidadão de pensamentos e sensações amputados, mal-
informado quanto a problemas estéticos, sociais, políticos e econômicos; fica
desatualizado com relação ao seu colega de outros países do mundo; fica, enfim,
desvencilhado desse lugar e tempo de contemplação e reflexão que é o lugar e o
tempo da obra de arte no nosso mundo contemporâneo, momento e espaço em que
pode ele simples cidadão, pagando do bolso o seu livro, disco ou ingresso se
entregar não só à satisfação intelectual e ao divertimento estético, como ainda
deixar que a sua cabeça, nervos e sentimentos trabalhem, parasitariamente, com
problemas seus dentro da perspectiva do outro (Santiago, 1982: 51).
4.2 - As trapaças dos Deuses
Obrigado a se exilar na Itália entre 1969 e 1970, Chico Buarque de Hollanda
também sofreu com os dissabores do AI-5. Os discos gravados na Europa não obtiveram a
repercussão esperada; sua primeira filha, Sílvia, nasceu em Roma e as dificuldades
financeiras aumentaram paulatinamente. O convite para largar a gravadora RGE e integrar
a Philips foi um sinal de mudanças de perspectiva em sua carreira de músico. Amplamente
apoiado pela nova gravadora e por amigos, como Vinícius de Moraes, Chico retornou ao
Brasil para uma série de projetos inéditos: um disco, uma temporada de shows no Rio de
Janeiro e um especial para a TV Globo. Tudo parecia conspirar a favor do compositor que,
anos antes, era tido como uma espécie de “mania nacional”, porém ele estava disposto a
inaugurar uma fase nova em sua trajetória, mais incisiva, buscando mensagens além da
festa, da dança, do carnaval.
Uma única canção foi suficiente para que os olhares dos censores se voltassem para
o filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda: depois de (surpreendentemente)
liberada pela Censura Federal e “estourada” nas paradas de sucesso, “Apesar de você”
vendeu 100 mil cópias e foi vetada dias depois. A fábrica da Philips, no Rio de Janeiro, foi
invadida por tropas do Exército, que apreenderam e destruíram as cópias do compacto do
cantor e compositor. Ao comentar sobre o assunto em seu livro Noites tropicais, Nelson
Motta escreveu que a polêmica composição de Chico Buarque “era a proibição mais
pública do Brasil, o que a fazia ainda mais popular” (Motta, 2000: 223):
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando d e lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Eu pergunto a você
Onde vai se esconder
Da enorme euforia
Como vai proibir
Quando o galo insistir
Em cantar
Água nova brotando
E a gente se amando
Sem parar
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros, juro
Todo esse amor reprimido
Esse grito contido
Esse samba no escuro
Você que inventou a tristeza
Ora , tenha a fineza
De desinventar
Você vai pagar e é dobrado
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Inda pago pra ver
O jardim florescer
Qual você não queria
Você vai se amargar
Vendo o dia raiar
Sem lhe pedir licença
E eu vou morrer de rir
E esse dia de vir
Antes do que você pensa.
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia
Você vai ter que ver
A manhã renascer
E esbanjar poesia
Como vai se explicar
Vendo o céu clarear
De repente, impunemente?
Como vai abafar
Nosso coro a cantar
Na sua frente
Apesar de você
Amanhã há de ser
Outro dia.
Você vai se dar mal,
Etc. e tal (Hollanda, 2006: 184-185)
Os insatisfeitos com o regime cantarolavam a plenos pulmões os versos da canção
proibida nas ruas do país. A gravadora, apesar de ter amargado uma nova invasão militar e
prejuízos incalculáveis
73
com a interdição de uma das canções de maior sucesso em 1970,
decidiu investir novamente em novos trabalhos de Chico Buarque de Hollanda. No entanto,
houve outros prejudicados com veto do incendiado samba o então estreante Benito di
Paula, depois de gravar um mal-sucedido compacto de boleros, tinha lançado seu primeiro
LP em março de 1971. Como é possível perceber, a época incorporou a mensagem,
passando a interpretá-la como uma resposta à ditadura. A ironia consistia nesse
deslocamento de sentido, muitas vezes à revelia do próprio autor. A estréia de Benito em
disco não causaria maiores problemas se a faixa de abertura não tivesse sido justamente
uma releitura de “Apesar de você”; para total infelicidade do cantor de “Charlie Brown” e
“Mulher brasileira”, seus discos foram recolhidos das lojas como conseqüência natural do
arbítrio da Censura Federal. Em depoimento concedido ao historiador Paulo César de
Araújo, o artista explicou a medida tomada pelos órgãos oficiais:
Naquela época não se podia tirar música de um disco. Hoje em dia quando há
algum problema, você tira a música e coloca uma outra ou não coloca nenhuma.
Naquele tempo era muito difícil, era muito complicado fazer isso. E o meu disco já
estava pronto. Aí seguraram ele também. Quer dizer, na realidade eu não tive um
disco lançado, tive um disco guardado, porque nem sequer consegui divulgar esse
trabalho (apud Araújo, 2003: 103).
Os versos de Chico Buarque incomodavam aos reacionários porque acentuava a
tensão entre o sentimento de independência e o poder indiscutível do outro. Na segunda
estrofe, inscreve-se a certeza de que, apesar de todos os pesares, não fica descartada a
hipótese de um futuro promissor, pleno de luz e poesia. Devido ao incidente, Chico foi
chamado à Polícia Federal para prestar esclarecimentos. Aproveitando do duplo sentido
presente em sua composição, o autor justificou, sem disfarçar a ironia, que os versos eram
73
A outra invasão da Philips se deu um ano antes , quando a canção francesa “Je t’aime moi non plus”
(interpretada por Serge Gainsbourg e Jane Birkin) foi vetada pela Censura Federal por causa de seu conteúdo
erótico explícito (cf. Motta, 2000 & Araújo, 2003).
destinados a “uma mulher muito mandona e muito autoritária. E era impossível provar que
não fosse” (Motta, 2000: 223). Era evidente, a partir deste episódio, que a censura
prejudicou muitos compositores nos mais diversos aspectos:
O homem-artista e o artista-família sofrem bastante sob as mãos da censura e da
repressão, tanto econômica quanto moralmente. A censura acaba por atingir, de
maneira drástica, a pessoa humana do artista, o seu ser físico e não a sua obra. E
daí a injustiça maior da censura, dentro de uma sociedade.
Economicamente, o artista sofre na medida em que sua principal fonte de renda
pode ser cortada de uma hora para outra, ocasionando às vezes prejuízos
formidáveis (...) (Santiago, 1982: 49).
O tricampeonato conquistado pela Seleção Brasileira de Futebol de Futebol na Copa
do Mundo em 1970 foi o pretexto principal para que o Governo Federal investisse em
slogans como “Brasil: ame-o ou deixe-o”, “Ninguém segura este país” e outros artigos do
tipo e canções-propaganda. Os militares faziam uso da euforia nacionalista para forjar a
imagem de uma nação em evolução constante e varrer de vez quaisquer indícios de
oposição ao seu regime político. A sociedade, excluída de vez do processo democrático,
era constantemente bombardeada pela máquina propagandista operada por Médici.
A mensagem ufanista de “Pra frente, Brasil”, de Miguel Gustavo, além de
homenagear os jogadores da Copa do Mundo de 1970, foi uma das maiores canções-
propaganda do regime militar, colaborando “para consolidar a visão de que o país vivia
naquele momento uma nova era histórica, marcada pelas noções de mobilização,
transformação, crescimento e progresso”, ou seja, o ufanismo dos versos da marchinha se
baseava em um conceito de nação fundado “nos princípios de coesão e da união de todas as
classes em prol de um objetivo em comum” (Araújo, 2003: 280), com direito a ilustrações
que exibiam pessoas de mãos dadas ao lado da bandeira brasileira. Eis os versos tão
divulgados pelos militares:
Noventa milhões em ação
Pra frente Brasil
Do meu coração
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil,
Salve a seleção!
De repente
É aquela corrente pra frente,
Parece que todo o Brasil deu a mão!
Todos ligados na mesma emoção
Tudo é um só coração!
Todos juntos vamos
Pra frente Brasil!
Brasil!
Salve a seleção!
74
Para termos uma compreensão acerca do mecanismo alienante destas composições,
é preciso relembrar outros casos de ufanismo em nossa música popular. A relação de amor
entre o poder e as canções de exaltação ao território nacional é mais antiga durante o
Estado Novo, por exemplo, o flerte do ex-presidente Getúlio Vargas e a produção musical
de Ary Barroso era bastante intenso. A “Aquarela do Brasil”, maior documento histórico-
poético daquele tempo, caiu como uma luva para o país dos militares foi gravada por Elis
Regina, Tom Jobim, Erasmo Carlos, Agostinho dos Santos e o grupo Os Incríveis entre os
anos de 1969 e 1971. Porém, a versão gravada pelo grupo de Iê--Iê Os Incríveis deixava
evidente uma postura ideológica favorável ao regime militar com os seguintes ditos: “Esta é
a nossa homenagem, Brasil / A homenagem dos jovens que mais do que nunca / Vai e
escreve nas páginas da História / O teu glorioso nome” (IN Araújo, 2003: 279).
Outra gravação de destaque é “País tropical”, composta por Jorge Ben e um dos
maiores hits do Rei da Pilantragem - uma espécie de de “malandragem dos tempos
modernos” (Araújo, 2003: 217) , o carismático Wilson Simonal
75
. Tal qual o maior
clássico de Ary Barroso, esta canção elenca inúmeros elementos de uma nação idealizada e
coerente com a imagem onírica que Médici precisava para manter sua máquina
74
IN: Vários intérpretes, Pra Frente Brasil (s/d).
75
O potencial de Wilson Simonal em entreter o público foi o fator principal de sua popularidade, conforme as
palavras de Nelson Motta: “Mais do que um cantor, Simonal se afirmava como um entertainer, que divertia a
platéia e a fazia cantar com ele, que contava piadas entre uma música e outra. Do início ao fim, o público
cantava com ele seus maiores sucessos populares, obedecendo alegremente a seus comandos. Quanto mais o
público participava cantando, mais aplaudido era o show no final” (Motta, 2000: 186).
propagandista viva e atuante: paisagens exóticas, religiosidade de um grupo dominante (não
nos esqueçamos de que vivemos em uma nação majoritariamente católica, de misticismo
exaltados, o que propicia o aparecimento de cultos religiosos diversos e xenofobismo
fáceis). A alegria expressa pelos versos de Ben e potencializada pelo carisma de Simonal,
estava de acordo com o projeto perverso da ditadura militar e foi o estopim para o boom do
ufanismo na alienante música popular
76
:
Moro...
Num país tropical,
Abençoado por Deus
E bonito por natureza (Mas que beleza!)
Em fevereiro (Em fevereiro)
Tem carnaval (Tem carnaval)
Eu tenho um fusca e um violão,
Sou Flamengo e tenho uma nêga chamada Tereza
“Sambaby”, “Sambaby”
Sou um menino de mentalidade mediana (Pois é)
Mas assim mesmo, feliz da vida pois eu não devo nada a ninguém (Pois é)
Pois eu sou feliz, muito feliz comigo mesmo...
Moro...
Num país tropical,
Abençoado por Deus
E bonito por natureza (Mas que beleza!)
Em fevereiro (Em fevereiro)
Tem carnaval (Tem carnaval)
76
Diante do panorama crítico aqui traçado, cabe refletirmos a respeito do seguinte: em seu segundo disco, Gal
(1969), Gal Costa fez uma releitura de “País tropical” e contou com a participação de Caetano Veloso e
Gilberto Gil, antes de seguirem para o exílio. Não se sabe se a regravação de “País tropical” foi realmente
uma ironia perante o regime ou uma simples (e singela) homenagem a Jorge Ben, muito ligado ao grupo
baiano. De acordo com Nelson Motta em seu livro de memórias, Noites tropicais, os integrantes do
Tropicalismo “adoravam Jorge Ben, que tinha sido banido da MPB por tocar guitarra e cantar na Jovem
Guarda, porque ele fazia o que eles queriam fazer, em termos de ritmo, de síntese, de liberdade. E mais:
valorizavam as letras de Jorge, desprezadas como pueris e primitivas pela MPB universitária e literária, mas
celebradas pelos baianos pela sonoridade de suas palavras, pelo ritmo de suas palavras, pelo ritmo de suas
sílabas e rimas, pela liberdade e originalidade de suas abordagens do cotidiano. As letras de Jorge não eram
literárias, eram musicais. Suas palavras eram puro som, diziam o que soavam. Sua música ia além do samba e
do Rock. Nada mais tropicalista” (Motta, 2000: 187).
Eu tenho um fusca e um violão,
Sou Flamengo e tenho uma nêga chamada Tereza
“Sambaby”, “Sambaby”
Eu posso não ser um Band Leader (Pois é)
Mas assim mesmo, lá em casa todos meus amigos,
Meus camaradinhas me respeitam (Pois é)
Essa é a razão da simpatia, do poder do algo mais e da alegria...
Moro...
Num país tropical,
Abençoado por Deus
E bonito por natureza (Mas que beleza!)
Em fevereiro (Em fevereiro)
Tem carnaval (Tem carnaval)
Eu tenho um fusca e um violão,
Sou Flamengo e tenho uma nêga chamada Tereza...
“Mor...
No patropi,
Abençoá por Dê
E boni por naturê (Mas que Belê!)"
"Em feverê (Em feverê)
Tem carná (Tem carná)
Eu tenho um fuca um vió
Sou flamen e tenho uma nêga chamá Terê
Do meu Brasil”
77
O compositor Dom, da dupla Dom & Ravel, em longo depoimento concedido para o
livro Eu não sou cachorro não, de Paulo César de Araújo, confessou que a principal fonte
de inspiração para seu maior sucesso, “Eu te amo, meu Brasil”, foi justamente “País
tropical” (cf. Araújo, 2003: 217). Composta em setembro de 1969 e gravada pelo grupo Os
Incríveis no ano seguinte, a controvertida canção retrata um Brasil obediente à idéia de
77
IN: Gal Costa, Gal (1969).
“paraíso erótico-tropical” (Araújo, 2003: 214) com espaço apenas para a alegria e o gozo.
Dom ainda alegou, na mesma entrevista, que seus versos eram uma espécie de reflexo da
época, pois as vitórias de Maria Ester Bueno no tênis, de Éder Jofre no boxe e as bandeiras
brasileiras hasteadas em várias residências compunham um ambiente altamente
influenciável para ele. As palavras do cantor e compositor comprovam como a influência
do ambiente político-cultural foi definitiva para compor os versos de “Eu te amo, meu
Brasil”:
Eu me lembro que havia realmente um orgulho das pessoas de ser brasileiras. E eu
apenas captei isso; registrei numa canção esse entusiasmo que estava presente em
todos os corações, em todos os olhares, em todas as almas, em todo o sentimento de
todo brasileiro, do pequeno ao grande. Era uma marca da época. E eu fui de roldão
envolvido nisso também (apud Araújo, 2003: 215).
De fato, a vitória nos esportes enaltecia o orgulho pelos brasileiros que brilhavam
no exterior, no entanto, a mensagem contagiante da canção mascarava os conflitos do
momento, servindo facilmente a manifestação político-cultural. O ex-governador de São
Paulo, Abreu Sodré, declarou ao presidente Médici na época que “Eu te amo, meu Brasil”
deveria ser transformada no mais novo Hino Nacional (cf. Araújo, 2003: 275) e a máxima
autoridade do Estado brasileiro não deixou de demonstrar seu apreço pela dupla em
público, exaltando os versos de Dom, pois afinal eles eram umcontraponto aos protestos
que a MPB conseguia veicular ao grande público em tempos de extrema censura:
As praias do Brasil ensolaradas,
O chão onde o país se elevou,
A mão de Deus abençoou,
Mulher que nasce aqui tem muito mais amor.
O céu do meu Brasil tem mais estrelas.
O sol do meu país, mais esplendor.
A mão de Deus abençoou,
Em terras brasileiras vou plantar amor.
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Meu coração é verde, amarelo, branco, azul anil.
Eu te amo, meu Brasil, eu te amo!
Ninguém segura a juventude do Brasil.
As tardes do Brasil são mais douradas.
Mulatas brotam cheias de calor.
A mão de Deus abençoou,
Eu vou ficar aqui, porque existe amor.
No carnaval, os gringos querem vê-las,
No colossal desfile multicor.
A mão de Deus abençoou,
Em terras brasileiras vou plantar amor.
Adoro meu Brasil de madrugada,
Nas horas que estou com meu amor.
A mão de Deus abençoou,
A minha amada vai comigo aonde eu for.
As noites do Brasil tem mais beleza.
A hora chora de tristeza e dor,
Porque a natureza sopra
E ela vai-se embora, enquanto eu planto amor
78
.
Para muita gente, o exílio de Caetano Veloso e Gilberto Gil fez com que houvesse
uma maior aproximação do público com suas canções. Muitos dos opositores dos baianos,
atônitos com a violência da prisão dos artistas, decidiram rever suas posições em relação ao
trabalho de ambos demonstraram solidariedade, cessando com as polêmicas. Elis Regina,
uma das principais opositoras do movimento tropicalista, foi uma das pessoas a modificar
sua atitude: em uma turnê feita ao lado de Luiz Carlos Miele, entre 1969 e 1970, cantou
“Irene” e “Aquele abraço”, além de uma supreendente versão para “Se você pensa”, dos ex-
desafetos Roberto Carlos e Erasmo Carlos. As releituras de Elis estão registradas no álbum
Elis, Miele e Bôscoli no Teatro da Praia, lançado pela Philips em 1970, o que deve ter
78
IN: Vários intérpretes, Coleção Toque Popular (2001).
surpreendido emepebistas de plantão (cf. Motta, 2000: 215/202). No início da década de 70,
a Pimentinha, mais envolvida politicamente, comandou uma série de programas na TV
Globo que recebeu o nome de Som Livre Exportação, se dirigindo a um público
universitário e, conseqüentemente, mais ligado às causas públicas
79
.
No entanto, é o álbum Em pleno verão..., lançado por Elis em 1970, onde podemos
observar uma aproximação mais clara entre ela, Caetano Veloso e Gilberto Gil, que
compuseram duas canções inéditas especialmente para a sua voz. “Fechado pra balanço”,
samba assinado por Gil, é uma claríssima alusão ao exílio em Londres e à obrigatoriedade
de ter que sair de circulação (cf. Gil, 2003: 131):
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um samba de roda, um côco
Um xaxado bem guardado
E mais algum trocado
Se tiver gingado, eu tô, eu tô
Eu tô de corpo fechado, eu tô, eu tô
Eu tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Tô fechado pra balanço
Meu saldo deve ser bom
Deve ser bom
Um pouco da minha grana
Gasto em saudade baiana
Ponho sempre por semana
79
Nelson Motta (2000) e Joaquim Alves de Aguiar (2002), em suas respectivas obras aqui citadas, apontam
que a mudança radical dos rumos da carreira de Elis Regina se justificava por mera questão competitiva da
estrela: a rápida ascensão de Gal Costa com seu repertório altamente moderno para a época, a má reputação
adquirida na época dos festivais, dentre outros aspectos. A escolha de novos compositores para integrar seu
repertório (Ivan Lins, Tim Maia, Roberto Carlos, entre outros) reflete, indubitavelmente, esta mudança de
paradigma em seu repertório.
Cinco cartas no correio
Gasto sola de sapato
Mas aqui custa barato
Cada sola de sapato
Custa um samba, um samba e meio
E o resto?
O resto não dá despesa
Viver não me custa nada
Viver só me custa a vida
A minha vida contada (Gil, 2003: 130).
John Lennon, em uma de suas primeiras canções pós-Beatles, “God”, concluiu
publicamente que “O sonho acabou” (The dream is over), o que indicava a existência de
uma nova realidade para toda uma geração (cf. Lennon, 2001: 31). Gilberto Gil, atento
àquela série de mudanças que ocorriam na virada da década de 60 para a de 70, iniciava
uma de suas canções com os versos “O sonho acabou / Quem não dormiu no sleeping bag
nem sequer sonhou” (Gil, 2003: 145). Esta era a perspectiva da voz que cantava “Fechado
pra balanço” findo o sono, restava encarar um penoso estado de coisas e seguir em frente
através das solas de sapato que se gastam, as cinco cartas enviadas pelo correio para aliviar
a “saudade baiana” e os sambas que surgem como reflexo da dor e da ausência
80
. O
“patrimônio cultural” (“samba de roda”, “coco”, “um xaxado bem guardado”) serve como
antídoto para o amargor do exílio e manter o “corpo fechado” para os males do
autoritarismo. A noção de vida, aqui, está sob balanço, sob re/avaliação; ou seja, repensar
atos individuais e coletivos é uma necessidade primordial para que o artista da canção
refletisse seu estar no mundo e a importância de seu ofício.
80
É interessante acrescentar que “Desde que o samba é samba”, canção gravada por Caetano e Gil no disco
Tropicália 2 (1993), duas décadas após a gravação de “Fechado pra balanço”, também associa o samba à
noção de tristeza os versos “A tristeza é senhora / Desde que o samba é samba é assim” e “O samba é o pai
do prazer / O samba é filho da dor / O grande poder transformador” apresentam o ritmo como uma expressão
de prazer calcada no sofrimento, por isso, a canção gravada por Elis Regina em 1970, apesar de conter
“balanço, malemolência, (...) insinuações de ginga, (...) finta, no sentido futebolístico” (Gil, 2003: 131),
apresenta também uma espécie de dor.
“Não tenha medo”, de Caetano Veloso, complementava os versos de Gil
81
e advertia
o ouvinte: o temor de viver não deve existir no enfrentamento de obstáculos, visto que a
mudez de um coração calado por um gesto arbitrário é muito mais grave do que a existência
de ladrões, cães, aviões, dragões, bichos papões e outros tipos de assombração a compor
um painel tomado pela escuridão das prisões e dos porões da ditadura. Os versos de
Caetano, repletos de elipses, se apresentavam como uma espécie de diálogo com a nova
persona pública de Elis Regina e com uma faixa de público mais conservador e tinham o
intuito de buscar um alívio para o medo generalizado de muitos, abrindo um feixe de
coragem em meio ao niilismo geral:
Tenha medo não,
Tenha medo não,
Tenha medo não.
Nada é pior do que tudo,
Nada é pior do que tudo.
Nem um não,
Nem um sinal,
Nem um ladrão,
Nem uma escuridão
Nada é pior do que tudo que você já tem
no seu coração mudo...
Tenha medo não,
Tenha medo não,
o tenha medo não,
Tenha medo não,
Nada é pior do que tudo,
Nada é pior do que tudo.
Nem um cão,
Nem um dragão,
Nem um avião,
Nenhuma assombração.
81
Vale acrescentar que no álbum Em pleno verão..., a ordem das faixas assinadas por Gil e Caetano foi
organizada em seqüência. As duas gravações abriam o lado B do referido LP.
Nada é pior do que tudo que você já tem
no seu coração mudo...
Tenha medo não,
Tenha medo não,
o tenha medo não,
Tenha medo não,
Nada é pior do que tudo,
Nada é pior do que tudo.
Nem um chão,
Nem um porão,
Nem uma prisão,
Nem uma solidão...
Nada é pior do que tudo que voce já tem
no seu coração mudo...
Tenha medo não,
Tenha medo não,
o tenha medo não,
Tenha medo não,
Nada é pior do que tudo,
Nada é pior do que tudo
82
.
A partir de então, era necessário apelar para a resistência democrática para fugir do
olhar punitivo do poder, já que o cerco da censura e a repressão generalizada tinha como
objetivo dificultar o processo criativo, a gravação de canções e as apresentações ao vivo
dos artistas. Enquanto o grupo Os Mutantes prosseguiu uma trajetória artística regada a
deboches extremamente críticos declaradamente próprios, psicodelia e outros elementos
lisérgicos não necessariamente ligados ao Tropicalismo
83
, Gal Costa foi a única expressão
do grupo a manter as propostas estéticas agressivas do movimento que a gerou. Não existia
cantora com as suas características dentro do espaço dedicado à “MPB”: Gal era
82
IN: Elis Regina, Em pleno verão... (1970).
83
Esta tendência foi seguida por eles até 1972, data de lançamento de Mutantes e Seus Cometas no País do
Baurets. A partir deste álbum, o veio satírico foi preterido pelo virtuosismo duvidoso do Rock progressivo e
provocou, em parte, a turbulenta saída de Rita Lee do conjunto em 1973.
extremamente moderna, ousada e tinha um repertório inédito, atenta às novidades do Pop
internacional (Janis Joplin, por exemplo), quanto para a tradição do banquinho e violão
instaurada por João Gilberto, capacitada para absorver as transformações que ocorriam no
universo musical da época (cf. Aguiar, 2002: 121)
84
. Em outras palavras, a musa
tropicalista
cantava para os jovens, para roqueiros e amantes do tropicalismo e da
contracultura. Não era uma cantora para todos os gostos. Era uma alternativa
razoavelmente cult para quem buscava na mistura de rock pesado com MPB uma
sonoridade up to date. Enfim, Gal cantava o que certa camada da juventude queria
ouvir. Para tanto, tinha grande respaldo. Pertencia ao grupo baiano, liderado por
Caetano e Gil, seus amigos, naquela altura já bastante famosos e, os dois, no auge
da criatividade. Não faltariam, portanto, belas canções para gravar (Aguiar, 2002:
122).
Enquanto Caetano Veloso e Gilberto Gil estiveram exilados em Londres, Gal Costa
desempenhou o papel de porta-voz dos baianos. “Cultura e civilização”, de Gil, foi gravada
no segundo disco solo da cantora, de 1969, e trazia questionamentos pertinentes para aquele
período:
A cultura e a civilização
Elas que se danem ou não
Somente me interessam
Contanto que me deixem meu licor de jenipapo
O papo
Das noites de São João
Somente me interessam
Contanto que deixem meu cabelo belo
Meu cabelo belo
Como a juba de um leão
Contanto que me deixem
84
Dentre os compositores jovens que Gal cantava naquela época, além de Caetano, Gil e Jorge Ben, estavam
Jards Macalé, Duda Machado, Waly Salomão, Lanny Gordin e o recém-descoberto Luiz Melodia.
Ficar na minha
Contanto que me deixem
Ficar com a minha vida na mão
Minha vida na mão,
Minha vida
A cultura e a civilização
Elas que se danem ou não
Eu gosto mesmo
É de comer com coentro
Eu gosto mesmo
É de ficar por dentro
Como eu estive algum tempo
Na barriga de Claudina
Uma velha baiana
Cem por cento (Gil, 2003: 111).
A rebeldia (sem tintas épicas) sendo, ou não, um modo de colocar certas convenções
em dúvida, é o recurso principal para delimitar um novo ponto de partida por parte de
muitos. O cabelo é um dos elementos que indicam o culto ao corpo, tão recorrente em
tempos de contracultura: o visual, ao lado da sexualidade, era o sinal de “uma nova
permissividade madura e responsável”, visto que homens e mulheres, descrentes da
possibilidade de mudar o mundo, visavam “uma liberdade que rejuvenesce[sse] o espírito e
reabilita[sse] o corpo” (Beirão, 2006: 49). Gal Costa, por sua vez, foi transformada em uma
musa permanente deste novo universo, enquanto o bairro carioca de Ipanema se
transformou em uma espécie de meca do desbunde ou uma San Francisco tropical, reunindo
intelectuais, jovens (e) interessados em lisergia
85
.
1969 era o momento no qual era necessário ter o curso da vida nas mãos, por isso,
muitos desejavam “voltar para o ninho” (tal qual Gil deve ter desejado voltar para o útero
de Dona Claudina, sua mãe) se afundar em ácidos e outras drogas alucinógenas para “fugir”
da realidade nacional guiada por Emílio Garrastazu Médici, explorando as vias do deboche
85
A praia de Ipanema, para homenagear a musa maior da Contracultura, reservou a ela um trecho específico
de seu território: eram as míticas Dunas da Gal, que reunia a artista e vários desbundados que surgiam por lá.
irrestrito. Com isso, surgia uma nova frente de combate ao regime militar: a contracultura,
colorida pelas tintas do desbunde, foi mais uma alternativa de oposição aos generais, sem
apelar para o discurso engajado da esquerda festiva ou para o radicalismo de esquerdistas
mais convictos (cf. Leão, 2005: 127), arrebanhando jovens dispostos a viver em estado de
pura transgressão:
Massacrados pela repressão política e pelo autoritarismo violento, os jovens,
muitos deles sem apetite para a luta armada, optaram pelo rompimento total com a
sociedade. Viraram hippies pacifistas radicais e caíram de boca no ácido e na
maconha, viviam em comunidades, faziam música e artesanato, comiam
macrobiótica e tentavam abolir o dinheiro, o casamento, a família, o Congresso, as
forças armadas, a polícia e os bandidos, tudo de uma vez só e numa boa. Muitos
encontraram a felicidade, ainda que fugaz, vivendo com amigos numa “nova
família”, convivendo e se divertindo como irmãos (Motta, 2000: 249).
Em 1971, Gal Costa decidiu rever sua breve e fulgurante trajetória musical no show
Fa-Tal Gal a todo vapor
86
, que contou com a direção musical de Alexander Gordin, o
Lanny, e direção geral do poeta Waly Salomão. O apuro vocal da cantora chegava ao auge
neste espetáculo, que iniciava com a musa cantando “Fruta Gogóia”, um tema do folclore
baiano, a capella. Finda a introdução, Gal prosseguia, gilbertianamente, apenas com voz,
banquinho e violão, executando releituras de clássicos do samba (“Falsa Baiana”, de
Geraldo Pereira e “Antonico”, de Ismael Silva) e apresentava o que existia de melhor da
produção musical de sua geração (“Como dois e dois”, de Caetano Veloso sucesso na voz
de Roberto Carlos , “Coração vagabundo”, de Caetano, gravada por ambos na estréia
dos dois em disco, Domingo e o já clássico do Iê--Iê, “Sua estupidez”, de Roberto e
Erasmo Carlos). O encontro da Gracinha joãogilbertiana com a “Musa da contracultura”
ocorria em “Vapor barato”, de Waly e Jards Macalé. Neste momento, Fa-Tal se dividia em
uma segunda metade distinta na medida em que a voz que cantava passou a exprimir, à
moda de Janis Joplin, o grito calado de muitos que foram impedidos de falar em meio às
trevas inauguradas pelo AI-5.
86
O título do show foi retirado de Me segura que eu vou dar um troço, de Waly; o subtítulo, por sua vez, é
uma alusão a “Vapor barato”, momento central do espetáculo de Gal.
A letra de “Vapor barato”, a seguir, é o marco poético principal não apenas do
espetáculo levado aos palcos por Gal Costa em 1971, como também atesta a subjetividade
que pairava naqueles ares:
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general
Cheio de anéis
Vou descendo por todas as ruas
E vou tomar aquele velho navio
Eu não preciso de muito dinheiro
Graças a Deus
E não me importa, honey
Minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, sim, eu estou tão cansado
Mas não pra dizer
Que eu tô indo embora
Talvez eu volte
Um dia eu volto
Mas eu quero esquecê-la, eu preciso
Oh, minha grande
Ah, minha pequena
Oh, minha grande obsessão
Oh, minha honey baby
Baby, honey baby
Oh, minha honey baby
Honey baby, honey baby, ah
87
87
IN: Gal Costa, Fa-Tal: Gal a todo vapor (1971).
O eu de “Vapor barato” é um indivíduo sem rumo, farto de seu cotidiano, por isso
pronto para partir daquele contexto (“E vou tomar aquele velho navio”). O sujeito poético
ainda acredita na potência transformadora existente no outro, mas, mesmo assim, decide
seguir rumo à paz interior, mesmo que isso possa significar ausência de bens materiais (“Eu
não preciso de muito dinheiro / Graças a Deus”) e a irremediável dor provocada pela
partida e pela saudade. Transformar o mundo através de armas e discursos políticos se
converteu em mera obsessão, por isso sair de cena é a alternativa mais salutar a escolher
naquele momento histórico.
Jopliniamente, Gal prosseguia com o segundo ato de Fa-Tal acompanhada por uma
banda (guitarra / baixo / bateria) capitaneada pelo guitarrista Lanny Gordin. A nova geração
de compositores ainda se mantém no segundo ato do espetáculo através das obras de
Moraes Moreira e Galvão, do grupo Novos Baianos (“Dê um rolê”), Luiz Melodia (“Pérola
negra”), Duda Machado, Jards Macalé e Waly Salomão (“Hotel das estrelas” e “Mal
secreto”) e, novamente, Caetano Veloso era representado graças à inclusão de “Maria
Bethânia”, “Chuva, suor e cerveja” e uma segunda versão de “Como dois e dois”, cujos
versos expressam claramente o inconformismo perante o status quo:
Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo,
Deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar
Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto. não minto, estou longe e perto
Sinto alegrias tristezas e brinco
Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco
Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar
Tudo vai mal, tudo
Tudo mudou não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto
E a mesma lua a furar nosso zinco
Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco (Veloso, 2003: 130).
“Como dois e dois” nos traz a idéia de imperfeição, a partir de irônicas afirmações
contraditórias (“Tudo certo como dois e dois são cinco”, por exemplo), de um Brasil crente
no progresso econômico-social (leia-se o milagre econômico arquitetado pelo ex-
presidente Médici) lá pelos idos da década de 70, mas atrasado por deixar sangrar
88
e
simplesmente renegar várias de suas cabeças pensantes. Mais uma vez, Caetano Veloso
“cede” seu discurso à Gal Costa, revelando uma evidente “submissão de quem se viu
obrigado a deixar o país em confronto com o projeto artístico” do qual o baiano jamais “se
afastou, vencendo todas as limitações e cerceamentos a ele impostos” (Lucchesi &
Dieguez, 1993: 64).
Outro momento marcante de Fa-Tal é a releitura intrigante de Gal para “Sua
estupidez”, do duo Roberto e Erasmo. A versão deste espetáculo desconstruía a inocência
89
das canções do programa Jovem Guarda e afirmava um projeto estético de combate e
resistência na medida em que renegava os arroubos dramáticos da gravação original “para
se tornar [em] uma das glórias da [resistência contra o autoritarismo da] ditadura e, ao
inverso, uma das bandeiras disfarçadas de que a ditadura poderia se prolongar por quantos
anos fosse, mas não resistiria” (Sanches, 2004: 102). É o jornalista Pedro Alexandre
88
É interessante que o verso “Deixo sangrar” é uma clara alusão à Let it Bleed, estridente álbum dos Rolling
Stones lançado no mesmo ano em que Caetano Veloso e Gilberto Gil desembarcaram em Londres.
89
O diálogo de Gal Costa com Roberto e Erasmo, na verdade, se dava desde o primeiro disco da cantora, Gal
Costa, de 1969, onde se encontra uma versão de “Se você pensa” e a inédita “Vou recomeçar”. Já o segundo
álbum, Gal (lançado no mesmo ano), trazia “Meu nome é Gal”, feita sob medida para sua voz. Já LeGal
(1970) continha uma releitura de “Eu sou terrível”, mostrando de vez que a musa tropicalista tinha plena
consciência da essência rebelde (e politicamente anárquica) dos versos de Iê--Iê (cf. Sanches, 2004).
Sanches quem nos oferece uma interpretação nada convencional para este momento do
show:
Num inteligentíssimo rasgo de ironia e num esperto comentário crítico contra a
própria canção que interpretava, Gal removeu de “Sua estupidez” o tom
melodramático espirrado por Roberto, cantando-a da forma mais suave,
sussurando-a, sonhando com João Gilberto. A ironia estava em dizer palavras tão
ásperas e ameaçadoras em tom tão brando, convincente, comovente. Não haveria
quem, ouvindo “Sua estupidez” daquela garganta fina e macia, não voltasse
correndo para os braços de amor zangado ou indeciso, do jeitinho exato como RC
planejara. De volta à dimensão política, Gal também dizia ao Brasil, portando às
vozes então exiladas de Caetano e Gil: “Brasil, sua estupidez não lhe deixa ver que
os tropicalistas te amam”. Ao cantar com toda a doçura do mundo os versos de
“Sua estupidez”, Gal cochichava aos ouvidos moucos do Brasil, como se não
existisse a repressão política que os ensurdecia, um pedido de reconsideração. A
voz moça era patriótica, apaixonada, cruel: o Brasil estava estúpido, não entendia o
que se passava diante de seus olhos e ouvidos. Ou, se entendia, temia, relevava e
calava. Murmurando, Gal não se calava, e assinava o contrato de sua importância
cultural no Brasil no início dos anos 70, para sempre inextinguível. Tortura girando
solta nos cafofos, o sussurro até podia, pela curva do desprezo e do rancor, ir
acariciar os ouvidos dos brucutus do Estado Maior e dos comandos de pau-de-
arara: na declaração de amor torturada ao Brasil, Emílio Garrastazu Médici e sua
trupe eram os vermes que mereciam, em recibo de cobrança às violências
impingidas, palavras-beijos de amor e sedução. Enquanto miava “Brasil, sua
estupidez não lhe deixa ver que nós te amamos”, Gal peitava, com a sutileza dos
inocentes, declarar: “Sr. Médici, sua estupidez não lhe deixa ver que nós te
detestamos”, ou, melhor, “sua estupidez não lhe deixa ver que te desprezamos”.
Roberto e Erasmo tinham resgatadas ali a dignidade e a grandeza histórica que já
nem sabiam que possuíam. A ambigüidade tropicalista era a prova dos nove.
Mais, na interpretação de Gal os significados de “Sua estupidez” se emaranhavam
numa rede complexa, à qual Roberto, Erasmo e sua canção pertenciam de fato,
ainda que naquele tempo provavelmente parecesse que não. Caetano e Gil, que
haviam aborrecido o regime militar mais que artistas ortodoxos de protesto, haviam
se exilado na Europa em 1969, e em sua ausência Gal se tornara sua porta-voz
oficiosa, ecoando mesmo sem querer ou saber o pensamento ainda inconformado
dos parceiros expulsos. Cantar “Sua estupidez”, um hino cândido de concordância
com o status quo, era coragem virada do avesso chamava Caetano e Gil de volta,
como chamava Médici para uma conversa olhos nos olhos com uma moça baiana
bonita (com o intuito intuitivo de ofendê-lo, mas de enamorá-lo e reconciliá-lo com
seus inimigos exilados). Colocava em contato João Gilberto e Chico Buarque,
como inseria Roberto e Erasmo no grande contexto da canção brasileira. Era muita
coisa para uma só canção, e provavelmente nenhum dos personagens em questão
tinha vaga noção das ações complexas que rodeavam aquele pequeno ato político-
musical (Sanches, 2004: 101-102).
Fa-Tal ainda tinha em seu setlist os clássicos “Assum preto” (de Humberto Teixeira
e Luiz Gonzaga) e o tema folclórico baiano “Bota a mão nas cadeiras”, mas o momento de
encerramento do espetáculo era marcado por pura demonstração de vontade de libertação.
“Luz do sol”, de Carlos Pinto e Waly Salomão, tinha a missão de se revelar como um
clamor para que o mal se dissipasse pelos ares:
Desta vez você chegou, arrebatou
Alegria e calma do meu lar
Desta vez você chegou, arrebatou
Alegria e calma do meu lar
Quando estiver assim não me apareça
Saia, desapareça
Não me chegue assim, desapareça
Saia, desapareça
Quando estiver assim não me apareça
Saia, desapareça, hey
Saia, desapareça, hey
Saia, desapareça da minha vista
Apareça como a luz do sol
Batendo na porta do meu lar
Apareça como a luz do sol
Batendo na porta do meu lar
Quero ver de novo a luz do sol, eh eh eh
Quero ver de novo a luz do sol, eh eh eh
Quero ver de novo a luz do sol
Quero ver de novo a luz do sol
Que me brilha, acende, aquece e me queima
Batendo na porta do meu lar, ahn!
Eu sou o Sol
Ela é a Lua
Quando eu chego em casa
Ela já foi pra rua
Ah, eu sou o Sol
Ela é a Lua
Quando eu chego em casa
Ela já foi pra rua
Quero ver de novo a luz do sol
Quero ver de novo a luz do sol
Quero ver de novo a luz do sol
Quero ver de novo a luz do sol
90
Há um pedido incessante do sujeito lírico (representando pela voz de Gal a plenos
pulmões) em ser iluminado pela luz solar e encontrar a paz tão cobiçada (um desejo de
presos políticos relegados aos porões da ditadura?). A capacidade de captar o espírito
coletivo daquele momento histórico-cultural conferiu a este show/álbum de Gal Costa um
dos momentos mais significativos da resistência de nossos artistas da canção na era do
regime militar. A musa ainda prosseguiu com uma carreira orientada por escolhas estéticas
ligadas a um “rigor” tropicalista nos álbuns Índia (1973) e Cantar (1974) que contou com a
produção musical de Gilberto Gil e Caetano Veloso (já regressos do exílio em Londres),
respectivamente; entretanto, o decorrer da década de 70 trouxe à artista um público mais
diversificado e abrangente, rendendo uma mudança de rumos profissionais e,
conseqüentemente, estéticos Gal canta Caymmi (1976), Caras e Bocas (1977), Água viva
(1978) e o super incensado Gal Tropical (1979) fizeram da antiga Gracinha uma cantora
standard, por isso, uma das integrantes da Santíssima Trindade Feminina da MPB (ao lado
de Elis Regina e Maria Bethânia). Ao equilibrar tons graves e agudos, seu canto se tornou
mais aprazível aos ouvidos mais comuns (e menos apurados esteticamente) com o passar do
tempo, garantindo maiores níveis de popularidade (cf. Aguiar, 2002: 122-123).
Maria Bethânia foi outra voz reconhecidamente eleita por Caetano Veloso e
Gilberto Gil durante os anos de exílio. Livre do estigma de “C arcará”, Bethânia foi em
90
IN: Gal Costa, Fa-Tal: Gal a todo vapor (1971).
busca de um repertório bastante tradicional (Noel Rosa, Antônio Maria, Dorival Caymmi,
dentre outros) e de composições do grupo baiano. Ao contrário de Elis Regina, não cantou
em festivais e não era “figurinha fácil” em programas de TV e utilizou sua verve teatral
cada vez mais freqüentemente no palco em espetáculos como Comigo me desavim (1967),
Recital na Boite Barroco (1968) e Brasileiro, Profissão Esperança (1970). Em seu
primeiro trabalho na Inglaterra, Caetano escreveu para a irmã uma canção-homenagem,
cuja letra vem a seguir:
Everybody knows that our cities were built to be destroyed
You get annoyed, you buy a flat, you hide behind the mat
But I know she was born to do everything wrong with all of that
Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better
Better, better, Beta, Beta, Bethânia
Please send me a letter I wish to know things are getting better
She has given her soul to the devil but the devil gave his soul to God
Before the flood, after the blood, before you can see
She has given her soul to the devil and bought a flat by the sea
Maria Bethânia, please send me a letter
I wish to know things are getting better
Better, better, Beta, Beta, Bethânia
Please send me a letter I wish to know things are getting better
Everybody knows that it's so hard to dig and get to the root
You eat the fruit, you go ahead, you wake up on your bed
But I love her face ‘cause it has nothing to do with all I said (Veloso, 2003: 105).
Os versos de Caetano, justapostos uns aos outros sem fazer muito sentido (seriam
estes dispostos deste jeito como um modo de driblar o olhar dos censores?), retratam uma
figura feminina desafiadora, ousada, resistente às convenções do status quo. Ela envia sua
alma ao demônio, mas por possuir uma aura tão límpida de espírito, é ofertada aos céus
para iluminar a subjetividade do sujeito exilado, distante do “sol dourado” e das coisas de
seu país
91
. O refrão funde, através da sonoridade do canto, Beta, apelido da cantora, e
Better (melhor), a partir da pronúncia do vocábulo no inglês britânico.
A ida de Bethânia para a gravadora Philips no ano de 1971 lhe permitiu a produção
de discos musicalmente mais arrojados. A tua presença..., seu primeiro lançamento pelo
novo selo, contou com a produção de Manoel Barenbein (que já trabalhou com artistas do
porte de Caetano, Gil e Nara Leão) e teve uma de suas faixas proibidas. “Mano Caetano”,
de Jorge Ben, foi gravada com a participação especial do próprio compositor e foi vetada
por citar diretamente o nome de um exilado político:
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Ele vem sorrindo, ele vem cantando
Ele vem feliz, pois ele vem voltando
Lá vem meu mano Caetano
Menino adorado, menino encantado
É o mano Caetano
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Lá vem o mano Caetano
Vem numa linda estrada verde
Cheia de sol e rosas amarelas
Lá vem o menino de camisolas brancas
Debaixo de um lindo céu azul
Verde e amarelo, azul e branco
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Lá vem o mano, meu mano Caetano
Lá vem o mano Caetano
Cae, Cae, é Caetano
Cae, Cae, é Caetano
92
91
Em “If you hold a stone”, canção de seu primeiro disco gravado em Londres, Caetano Veloso canta o
desespero do exílio e, por fim, indaga: “Eu não vim aqui / Para ser feliz / Cadê meu sol dourado / E cadê as
coisas do meu país? [grifo nosso] IN: Caetano Veloso, Caetano Veloso (1971).
92
IN: Maria Bethânia, A Tua Presença... (1971).
“Mano Caetano” não seria nada mais do que uma espécie de sonho no qual Caetano,
“personagem” re/criado por Ben, retornaria sem restrições ao país que o renegou
93
. As
cores do céu brasileiro (“verde e amarelo, azul e branco”) representam um país harmônico,
ideal, colorido, sem trevas e pronto para receber seu filho saudoso em uma estrada florida,
elegantemente decorada para o menino “adorado” e “encantado”. Jorge e Bethânia
clamavam, discretamente, o retorno do amigo e irmão ao território nacional, algo
incogitável para os militares naquele momento. Por isso, os censores foram rápidos em
impedir o direito dos cantores em sonhar com o improvável.
Originalmente gravada em 1967, “Quem me dera”, de Caetano Veloso, foi relida
por Maria Bethânia com conotações extremamente políticas. Dividida em três partes a
primeira consistia em uma instrumentação típica da música de fossa conduzida por um
canto solene, piano e cordas e anuncia um eu (Caetano) que está de partida, sem o intuito
de voltar; a segunda, por sua vez, explodia em uma rumba colorida, revelando a alegre
Bahia que fica para trás; a terceira, por fim, nos sugere a mensagem que se finda, o adeus
consumado e a saudade de um irmão que acredita, esperançosamente, na possibilidade de
posteriores encontros:
Adeus, meu bem
Eu não vou mais voltar
Se Deus quiser, vou mandar te buscar
De madrugada, quando o sol cair dend’água
Vou mandar te buscar
Ai, quem me dera
Voltar, quem me dera um dia
Meu Deus, não tenho alegria
Bahia no coração
93
Caetano Veloso chegou a fazer uma aparição relâmpago no Brasil em 1971, graças aos esforços da irmã
famosa, para assistir a cerimônia comemorativa de 40 anos de casamento dos pais. Ao desembarcar, enfrentou
os militares em um longo interrogatório e foi obrigado a seguir regras impostas que consistiam, por exemplo,
em não cortar o cabelo enquanto estivesse no país, não conceder entrevistas à imprensa e se apresentar em
dois programas da TV Globo para demonstrar harmonia com as autoridades brasileiras. No programa Som
Livre, Exportação, Caetano cantou “Adeus, batucada”, uma das principais interpretações de Carmen Miranda,
e “Janelas Abertas n.º 2”, ao lado de Maria Bethânia, para uma platéia de estudantes e retornou a Londres (cf.
Veloso, 1997: 453-455).
Ai, quem me dera o dia
Meu Deus, quem me dera o dia
Ter de novo a Bahia
Todinha no coração
Ai, água clara que não tem fim
Não há outra canção em mim
Que saudade!
Ai, quem me dera
Mas quem me dera a alegria
De ter de novo a Bahia
E nela o amor feliz
Ai, quem me dera
Meu bem, quem me dera o dia
De ter você na Bahia
O mar e o amor que eu quis
Adeus, meu bem
Eu não vou mais voltar
Se Deus quiser, vou mandar te buscar
Na lua cheia
Quando é tão branca a areia
Vou mandar te buscar
94
“Jesus Cristo”, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, também recebeu uma releitura
agressiva por parte de Maria Bethânia em A tua presença... . Ao se “apropriar” dos versos
supostamente inocentes do Rei
95
, a artista aproveitou para questionar os rumos da nação
brasileira naquele momento (“Essa gente não sabe aonde vai”), a ausência de paz de
espírito nos corações dos homens e não deixa de exercer a crença na religiosidade como
instrumento para sobreviver à falta de delicadeza instaurada naquele período:
94
IN: Maria Bethânia, A tua presença... (1971).
95
Na contracorrente de certos trabalhos acadêmicos acerca deste período, parte da produção musical do duo
Roberto-Erasmo também apresentava críticas ao autoritarismo do regime. “Debaixo dos caracóis dos seus
cabelos”, de 1971, foi composta em homenagem a Caetano e surgiu depois do encontro entre o Rei e o baiano
em Londres (cf. Veloso, 1997: 424).
Olho pro céu e vejo uma nuvem branca
Que vai passando
Olho na terra e vejo uma multidão
Que vai caminhando
Como essa nuvem branca
Essa gente não sabe aonde vai
Quem poderá dizer o caminho certo
É você meu Pai
Jesus Cristo, Jesus Cristo
Jesus Cristo eu estou aqui
Toda essa multidão tem no peito amor
E procura a paz
E apesar de tudo a esperança não se desfaz
Olhando a flor que nasce
No chão daquele que tem amor
Olho pro céu e sinto
Crescer a fé no meu Salvador
Jesus Cristo, Jesus Cristo
Jesus Cristo eu estou aqui
Em cada esquina eu vejo
O olhar perdido de um irmão
Em busca do mesmo bem
Nessa direção caminhando vem
É meu desejo ver aumentando sempre
Essa procissão
Para que todos cantem na mesma voz essa oração
Jesus Cristo, Jesus Cristo
Jesus Cristo eu estou aqui
96
96
IN: Maria Bethânia, A tua presença... (1971).
A tua presença... deu origem a um dos espetáculos musicais mais comentados pela
crítica e público até os dias atuais. Rosa dos Ventos foi levado por Maria Bethânia aos
palcos em 1971 e marcava o início de sua parceria com o ator, diretor teatral e dramaturgo
Fauzi Arap
97
. O título do show era baseado em uma canção de Chico Buarque de Hollanda,
cuja letra aparece a seguir:
E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima para socorrer
E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr
Mas sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena
E chovesse o perdão
E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios
O sorriso e a paixão
Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa-dos-ventos danou-se
O leito do rio fartou-se
E inundou de água doce
97
Arap foi responsável pela direção geral de vários espetáculos estrelados por Bethânia a partir do sucesso de
Rosa dos Ventos. Segundo a própria artista, a parceria entre eles funcionou perfeitamente porque ele já
possuía, naquela época, um vasto conhecimento de música popular, além de outras “afinidades eletivas”.
Dentre os demais espetáculos que fizeram juntos, destacam-se A Cena Muda (1974), Pássaro da Manhã
(1977), Maria (1988), Diamante Verdadeiro (1999) e Maricotinha (2002). IN: Maria Bethânia, Maricotinha
Ao Vivo (DVD) (2002).
A amargura do mar
Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde o seu despertar (Hollanda, 2006: 182).
O retrato trágico pintado por Chico, evidenciando catástrofes de todo o tipo, sob os
olhos atônitos da multidão, se mistarava aos textos de Fernando Pessoa e Clarice
Lispector
98
, às cantigas de roda do folclore nordestino, às canções de Sueli Costa, Jards
Macalé e Edu Lobo. Rosa dos Ventos foi um marco na carreira de Maria Bethânia porque
era um recital montado para exibir as potencialidades dramáticas da intérprete. Ela
era o espetáculo, tudo o mais funcionando como cenário para realçar sua
performance. Não por acaso, o subtítulo de Rosa dos Ventos era Um Show
Encantado. Com efeito, um clima de magia acabava regendo aquelas noites de casa
cheia e vibração intensa. A seu modo, o propunha certo descanso do espírito em
época por demais atormentada. Vivia-se o apogeu do regime militar, arbítrio por
todos os lados, a cultura parecendo estar num beco sem saída. Ficou meses em
cartaz, e fixou uma imagem e um comportamento de palco que Bethânia ainda
cultiva. Há quem lhe torça o nariz, mas há os que a aplaudem de pé (Aguiar, 2002:
117-118).
Ao relembrar o impacto de Rosa dos Ventos décadas após a estréia nos palcos,
Maria Bethânia não consegue se esquecer do clima tenso que envolvia a estréia do show:
treze censores apareceram no Teatro da Praia (RJ) com o intuito de aprovar o show para a
censura. A equipe de produção acreditava no surgimento de cortes, mas os enviados pelo
governo ficaram embevecidos com o final do primeiro ato do espetáculo no qual a artista
intercalava o “Poema do Menino Jesus”, de Fernando Pessoa, com “Doce mistério da vida”
(de Victor Herbert e com versão em português de Alberto Ribeiro) e recriava um Jesus
Cristo infante em pleno palco. O trabalho foi liberado integralmente para o público acima
de 12 anos. Os oficiais provavelmente não estavam aptos para compreenderem o impacto
98
Amiga próxima de Fauzi Arap, Clarice Lispector chegou a escrever textos especialmente para Rosa dos
Ventos e chegou até a assistir alguns ensaios do show. IN: Maria Bethânia, Maricotinha Ao Vivo (DVD)
(2002).
de “Janelas Abertas n.º2”, composta por Caetano Veloso no exílio. Era um dos momentos
mais eletrizantes daquele show e um dos melhores exemplos da interseção entre o texto
poético enquanto recurso dramático e os versos da canção popular nos espetáculos
estrelados por Bethânia:
Texto de Fernando Pessoa:
Mestre
Meu mestre querido,
Aqui nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou
Seguro como o sol fazendo o seu dia involuntariamente
Natural como o dia mostrando tudo
Meu mestre,
Meu coração não aprendeu a tua serenidade
Meu coração não aprendeu nada
Meu coração não é nada
Meu coração está perdido
E depois, por quê me ensinaste a clareza da vista
Se não podias me ensinar a ter a alma que haver clara?
E por quê me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale,
Não sabia respirar?
99
Letra de Caetano Veloso:
Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos
Dentro do apartamento
Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
Na sala receber o beijo frio em minha boca
Beijo de uma deusa morta
Deus morto, fêmea língua gelada,
99
IN: Maria Bethânia, Rosa dos Ventos Show Encantado (1971).
2
15
Língua gelada como nada
Sim, eu poderia em cada quarto rever a mobília
Em cada um matar um membro da família
Até que a plenitude e a morte coincidissem um dia
O que aconteceria de qualquer jeito
Mas eu prefiro abrir as janelas
Pra que entrem todos os insetos (Veloso, 2003: 94).
Ao retomar as “Janelas Abertas”
100
criadas por Tom e Vinícius (eternizadas na voz
de Elizeth Cardoso), “Janelas Abertas n.º2” transforma o lamento amoroso original numa
profunda expressão de revolta, remetendo para imagens de destruição ou de conformismo.
A voz que canta, tomada pelo desejo da busca e pela resistência às negatividades da vida,
rompe com as possibilidades negativas e opta pelo gesto simbólico de abrir as janelas,
deixando entrar a vida na sua multiplicidade.
“Movimento dos barcos”, de Jards Macalé e Capinam, era o encerramento do show
e um dos momentos mais eletrizantes daquele espetáculo. Navegar pela vida afora é
impossível sem a existência de bonanças e tempestades, por isso é inútil ficar como mero
espectador das barcaças a partir pelos mares, e sim ter o leme do barco em mãos e trilhar o
seu próprio caminho. A canção-recado cumpre o seu papel enquanto a atriz que canta some
rumo aos bastidores e os instrumentos cessam a última nota de suas partituras:
Estou cansado e você também
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais
Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que eu não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
100
Segue a letra da canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes: “Sim, eu poderia fugir, meu amor, / Eu
poderia partir / Sem dizer pra onde vou / Nem se devo voltar; / Sim, eu poderia morrer de dor, / Eu poderia
morrer / E me serenizar... // Ah, eu poderia ficar sempre assim / Como uma casa sombria / Uma casa vazia /
Sem luz nem calor. / Mas, quero as janelas abrir / Para que o sol possa vir / Iluminar nosso amor”. IN:
Elizeth Cardoso, Canção do Amor Demais (1958).
Que passa ao largo do nosso corpo
Não quero ficar dando adeus
As coisas passando, eu quero
É passar com elas, eu quero
E não deixar nada mais
Do que as cinzas de um cigarro
E a marca de um abraço no seu corpo
Não, não sou eu quem vai ficar no porto
Chorando, não
Lamentando o eterno movimento
Movimento dos barcos, movimento...
101
Rosa dos Ventos unia poesia, teatro e música popular se fez constante em sua
carreira desde então e garantindo o apreço do público, tornando-se o grande referencial dos
espetáculos artísticos de Maria Bethânia. Entretanto, o papel desempenhado pela intérprete
em meio aos anos de chumbo foram fundamentais não apenas para consolidar sua imagem
e seu projeto estético de plena autenticidade, como também foi importante para engrossar o
coro dos descontentes com as arbitragens do Estado autoritário brasileiro.
Caetano Veloso foi de todos os compositores perseguidos pela ditadura quem
melhor expressou em versos e sons o amargor do exílio. Apenas retomou sua carreira de
músico oficialmente no ano de 1971, quando seu primeiro disco gravado em Londres foi
lançado no Brasil e no Reino Unido. A capa deste trabalho exibe um rosto de fisionomia
sofrida, austera, fechada, abalada pelo frio inglês, um olhar extremamente melancólico, ou
seja, a imagem principal deste álbum é “portadora de fortíssima eficácia estético-
comunicativa” por justamente “concentrar todos os signos denunciadores de uma
existencialidade calcada na dor” (Lucchesi & Dieguez, 1993: 54). O eu que surge nas sete
canções deste álbum é uma voz que exorciza os demônios da saudade e do choque cultural
sofrido por um baiano na Europa:
O processo de supressão violenta de um projeto desejante, que tivera início com a
prisão e continuara com o confinamento na Bahia, agora se consumava de modo
101
IN: Maria Bethânia, Rosa dos Ventos Show Encantado (1971).
pleno em Londres. O idílio se fez exílio. O reconhecimento e o sucesso foram
radicalmente substituídos pelo anonimato. Outro continente, outra cultura. Tudo é
estranho, hostil e, ao mesmo tempo, familiar e aconchegante. É a saudade dolorosa
de quem foi expatriado, mesclada a certo sentimento de gratidão por ter recebido
acolhida, alem da indignação própria de quem sabe que tal experiência não resulta
de uma escolha, mas de uma vontade alocada em sombrios porões da mente
brasileira. Por melhor que seja a adaptação, e até proveitosa, jamais desaparece de
quem vive a experiência do desterro a sensação de diluição da identidade,
paulatinamente substituída por outra, com a marca da insularidade existencial.
Somente a memória sobrevive, sob a permanente ameaça da necessidade de pensar
e sentir em outra língua, mesmo que esta antes já lhe soasse com certo grau de
familiaridade (Lucchesi & Dieguez, 1993: 53-54).
“London, London”, como se sabe, é a faixa principal do primeiro álbum de Caetano
Veloso em Londres, e um dos maiores sucessos do compositor. Apesar de já ter sido
gravada por Gal Costa em 1970
102
, o eu que emerge dos versos desta canção é diretamente
associado à figura do artista por apresentar no retrato um olhar estrangeiro na grande
metrópole européia, porto de solidão de uma voz ainda a cantar (por mais combalida que
estivesse):
I’m wandering round and round nowhere to go
I'm lonely in London, London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London without fear
I’m wandering round and round, nowhere to go
While my eyes
Go looking for flying saucers in the sky
Oh Sunday, Monday, Autumn pass by me
And people hurry on so peacefully
A group approaches a policeman
102
IN: Gal Costa, LeGal (1970).
He seems so pleased to please them
Its good to live, at least, and I agree
He seems so pleased, at least
And its so good to live in peace
And Sunday, Monday, years, and I agree
While my eyes
Go looking for flying saucers in the sky
I choose no face to look at, choose no way
I just happen to be here, and its ok
Green grass, blue eyes, grey sky, God bless
Silent pain and happiness
I came around to say yes, and I say
But my eyes
Go looking for flying saucers in the sky (Veloso, 2003: 195-196).
A ausência de cores propiciada pelo fog londrino em contraste com o colorido de
Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, capitais brasileiras onde o compositor viveu antes do
exílio é um fator a mais que pesa na dor silenciosa deste sujeito lírico, imerso em um
território de pessoas e paisagens desconhecidas, mas não intimidado pela situação imposta
por um outro. Nesta composição, Caetano Veloso buscou inserir a cultura de seu país em
uma ótica cosmopolita, no que é extremamente bem-sucedido, eliminando as barreiras
ideológicas que isolavam as artes brasileiras do contexto internacional. O sucesso de
Caetano na construção de um repertório culturalmente híbrido é devidamente explicado por
Ivo Lucchesi e Gilda Korff Dieguez:
Sob esse aspecto, a experiência no exílio terá até intensificado essa convicção que
tantos desentendimentos e perseguições provocou nos setores da chamada
‘esquerda nacionalista’. A compreensão de que o repertório cultural brasileiro não
pode deixar de incluir e absorver experiências culturais de outros povos, por
entender que tal característica se aloja nas próprias raízes constitutivas do “ser
brasileiro”, continua sendo exatamente a mesma (Lucchesi & Dieguez, 1993: 62-
63).
Transa, seu segundo álbum gravado em Londres, foi gravado no final de 1971 e
lançado no Brasil no início do ano seguinte, coincidindo justamente com a volta definitiva
de Caetano ao país. As gravações contaram com um time de músicos de categoria, além de
serem amigos do compositor: Jards Macalé, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo
de Sousa, além da participação especialíssima de Gal Costa em três faixas e de uma
brasileira que vivia em Londres, completamente desconhecida do grande público brasileiro
e que, no final da década, arrebataria algumas multidões com o nome artístico de Angela
Ro Ro.
A proposta deste trabalho, mais agressiva do que o anterior, misturava sonoridades
diversas (reggae, rock, folclore baiano, blues, MPB...) e apresentava uma safra musical
mais madura, menos melancólica e ligada ao entrelaçamento entre diferentes culturas.
“Nine out of ten”, “It’s a long way”, “Nostalgia (That’s what Rock’n’Roll is all about)”,
por exemplo, refletem uma guinada por parte do artista em relação à sua trajetória até 1972.
“You don’t know me”, o número musical de abertura, por sua vez, transmitia um recado de
Caetano Veloso diretamente aos que sentiram sua falta e/ou se solidarizaram com o seu
exílio forçado: “Eu agradeço ao povo brasileiro / Norte, Centro, Sul inteiro / Onde reinou o
baião” (Veloso, 2003: 95). Definitivamente, uma nova postura diante dos fatos pairava nos
ares...
“Triste Bahia”, por outro lado, é o momento mais expressivo de Transa baseada
em um poema homônimo de Gregório de Matos, esta canção cruza discursos distintos,
incorpora o folclore e a sonoridade da região a um som moderno (o primeiro som a se ouvir
é de um berimbau, que depois se soma ao da guitarra, violão, baixo e diferentes
instrumentos de percussão) relembrando uma fase da História do Brasil, a “Triste Bahia”,
rica e abundante, que se deixou corromper pela ganância e exploração:
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante estás
E estou do nosso antigo estado
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado
Rico te vejo eu, já tu a mim abundante
Triste Bahia, oh, quão dessemelhante
A ti tocou-te a máquina mercante
Quem a tua larga barra tem entrado
A mim vem me trocando e tem trocado
Tanto negócio e tanto negociante (...)
103
O soneto do poeta barroco, escrito originalmente no final do século XVII, ao ser
relido séculos após o seu surgimento, marca uma relação tensa entre o eu-lírico e o seu
espaço de origem (o Estado da Bahia). Há um sentimento de descontentamento e denúncia
em relação aos caminhos trilhados pela história baiana e consequentemente tal paralelo
não pode deixar de ser feito aos detentores do poder que acenavam com o progresso do país
à custo do endividamento da nação.
Em Dialética da Colonização, Alfredo Bosi aponta que “A Bahia não está só
magoada; também é exemplo lastimável de mudança para situação pior, de cuja
responsabilidade não pode isentar-se” (Bosi, 1992: 95). Gregório de Matos assistiu a
transformação do Brasil colônia em uma máquina mercantilista profundamente explorada.
Caetano Veloso, por sua vez, foi espectador da transição de um projeto de Brasil
revolucionário a um país extremamente reprimido e com seus bens culturais sufocados pela
máquina repressora de um Estado tomado pelos militares. Trezentos anos após a aparição
do texto original, a terra brasileira ainda se mantinha triste e explorada, tal qual a voz de
Gregório cantara um dia.
Caetano Veloso retornou ao Brasil, em janeiro de 1972, foi festejado pelo público,
correspondendo com uma série de shows no Rio de Janeiro e na Bahia, provocando frenesi
por parte de vários setores da mídia e de seus espectadores quando homenageava Carmen
Miranda (com direito a repertório, requebros, tamancos e outros procedimentos) em suas
primeiras aparições em palcos brasileiros pós-exílio. O tempo era ainda insuficiente para
que a esquerda mais radical e os indivíduos mais conservadores compreendessem a postura
andrógina do artista baiano, questionadora de tabus morais e ideológicos:
Caetano, compondo e cantando no estrangeiro, difundiu a MPB num nível de
qualidade e profundidade como poucos antes dele. A visão que Caetano sempre
teve quanto à necessidade de incorporar formas e discursos estéticos de outras
culturas à nossa, só encontra eco, concretamente, nas figuras daqueles que, à frente
de todos, tocaram na ferida: Oswald de Andrade (na literatura), Carmen Miranda,
João Gilberto e Tom Jobim. Note-se, portanto, que sob o ponto de vista estético,
103
IN: Caetano Veloso, Transa (1972).
Caetano, superando todas as dificuldades, ratificou de modo ainda mais
aprimorado, no exílio, as linhas mestras e fundadoras do Tropicalismo (Lucchesi &
Dieguez, 1993: 81).
Ainda no mesmo ano de 1972, Caetano Veloso se juntou a Chico Buarque para uma
série de apresentações, que resultou no belo álbum Caetano e Chico Juntos e Ao vivo,
considerado um “ato de resistência contra a ditadura e a sua censura, sofrendo inúmeros
atos de sabotagem técnica, como o desligamento de microfones durante a apresentação das
canções” (Napolitano, 2001: 87). A união de um ex-exilado político e de um dos
compositores mais perseguidos e censurados do regime militar no mesmo palco incomodou
profundamente os militares mais conservadores e aqueles que alimentavam, desde a década
de 60, a oposição destes dois talentos indiscutíveis da música brasileira.
O lançamento de Araçá Azul, de Caetano, no início de 1973, foi um dos maiores
fracassos de vendas da história da indústria fonográfica: houve recordes de devoluções de
LPs às lojas. O baiano, naquele momento, era bastante querido pelo grande público graças
aos discos lançados recentemente, por isso, deve ter sentido bastante confiança ao retomar
uma experiência musical nova, que tinha o título original de Boleros e Sifilização. Tratava-
se de um projeto radical, influenciado pelo trabalho de virtuoses de vanguarda como Walter
Franco e Hermeto Pascoal, registrando gritos, assobios e sons de todos os tipos, fazendo do
próprio corpo um instrumento de percussão e ainda “inverteu e superpôs gravações; usou
efeitos de estúdio e até tocou piano” (Calado, 1997: 294). O público, não acostumado
àquele tipo de composição vanguardista, reagiu ao projeto, rejeitando o disco:
O problema é que quase ninguém entendeu e provocou um fato inédito na história
de nossa música popular: uma grande quantidade de pessoas voltou às lojas para
devolver o disco e não por algum defeito técnico do produto, mas por rejeição ao
seu conteúdo. Pressionada pelos lojistas, a Phonogram se viu forçada a receber e
depois dissolver as bolachas pretas dos LPs já que devoluções não podiam ser
revendidas pela gravadora. Procurando encarar o fato com naturalidade, Caetano
afirmou na época que “Araçá azul” não era mesmo disco “pra ser comprado, nem
mesmo pra ser vendido, ele foi apenas muito bom de fazer”. Pode ser, mas nunca
mais ele repetiu a experiência, e a autonomia do artista de “prestígio” teve o seu
limite testado e estipulado pelo próprio público consumidor (Araújo, 2003: 192).
Nesta época, a música popular produzida no Brasil se dividia em várias frentes:
tínhamos as produções musicais de uma MPB de origem universitária; os álbuns de trilhas
sonoras das novelas da Rede Globo de Televisão que marcava um momento de
prosperidade para a emissora de TV e para a indústria fonográfica; o samba era
representado pelos talentos de Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Clara Nunes; o Rock
Rural de (Luiz Carlos) Sá, (Zé) Rodrix e (Gutemberg) Guarabyra também dava o seu tom;
os Novos Baianos surgiam em cena combinando a tradição bossa-novista de João Gilberto
à linguagem musical do Rock; o Rei Roberto Carlos, livre das amarras estético-ideológicas
do programa Jovem Guarda, seguia em sua fase mais romântica (e elaborada poética e
instrumentalmente), vendendo milhões de discos por ano e fez de canções como
“Detalhes”, “As Curvas da Estrada de Santos” e “Proposta” verdadeiros clássicos das
paradas românticas de sucesso. Entretanto nenhuma destas manifestações musicais tinha o
mesmo valor poético-ideológico perseguido pelos integrantes do Tropicalismo.
No entanto, devemos nos atentar para a existência de dois modos de produção
distintos nesta época: o primeiro seria o industrial marcado por produtos fabricados por
uma indústria fonográfica em expansão graças ao avanço da TV e do rádio , o outro seria
o artesanal que engloba uma ala de compositores mais preocupados com uma
subjetividade poética da canção popular (cf. Wisnik, 2004: 169). A expansão da indústria
do disco no Brasil nos tornou
uma praça importante para o consumo de padrões musicais produzidos no exterior,
principalmente nos Estados Unidos. Na década de 70, dois movimentos de
importação-consumo-diluição deixaram marcas na música brasileira, em níveis
bem diferentes. Primeiro, o Rock com um consumo numericamente baixo (os
grandes vendedores eram os estrangeiros do gênero (...) [que] atingiram, no Brasil,
marcas medíocres de vendagem, entre as 10 e as 30 mil cópias, no máximo, com
uma saída média, mensal, entre 2 e 5 mil unidades vendidas) , que acabou por
conseguir passar de forma indelével e indiscutível elementos de sua linguagem para
a fala musical brasileira: o uso generalizado da eletricidade, de instrumentos
eletrificados, a síntes e entre suas estruturas rítmicas e as do baião, do samba e até
mesmo do choro (Bahiana, 2005: 53).
O crescimento da indústria cultural no Brasil coincidiu com o auge da repressão da
ditadura militar. O historiador Paulo César de Araújo observou que as gravadoras de discos
tiveram um lucro de aproximadamente 1375% no país, ao mesmo passo que o consumo de
aparelhos de som cresceu em 813% entre as décadas de 60 e 80. Em meio a este panorama,
a canção popular adquiriu, de vez, um local de destaque na cultura brasileira e se
transformou em um dos principais canais expressivos da sociedade (cf. Araújo, 2003: 19).
Entretanto, não foi apenas o mercado musical que foi favorecido pelo surto modernizante
sofrido pela nação brasileiro no início da década de 70, conforme atesta Heloísa Buarque de
Hollanda:
A modernização, levada em ritmo de “Brasil grande”, provoca um salto na
indústria cultural que encontra no consumismo da classe média um ótimo público
para as enciclopédias e congêneres em “fascículos semanais” das editoras Bloch,
Abril etc. A televisão passa a alcançar um nível de eficiência internacional,
fornecendo valores e padrões para um “país que vai para a frente”. As artes
plásticas sofrem um boom de mercado com os leilões e a bolsa de arte
determinando sua produção que, ao transformar-se preponderantemente em
rentável negócio, perde em muito sua vitalidade crítica e praticamente deixa de
interessar aos setores da juventude universitária. Por sua vez, o teatro empresarial
encontra um ótimo ambiente para as reluzentes e pausterizadas superproduções e o
cinema começa a assumir definitivamente sua maturidade industrial. Vinga,
portanto, a ideologia da competência, do padrão técnico e dos esquemas
internacionalmente consagrados pela indústria cultural. Muitos artistas e
intelectuais, vivendo o clima de “vazio cultural” que alguns dizem marcar o
momento, passam progressivamente a ser cooptados pelas agências estatais ligadas
à área da cultura que são redinamizadas ou criadas a partir desse período. E aqui
mais uma novidade: o Estado que até então fora incapaz de fornecer opções para a
produção artística passa agora a definir uma política cultural de financiamentos às
manifestações de caráter nacional, tornando-se, aos poucos, o maior patrocinador
da produção cultural viável em termos das novas exigências do mercado (Hollanda,
2004: 101-102).
O início da década de 70 trouxe ao público brasileiro expressões poético-musicais
novas, como por exemplo, Milton Nascimento, que, apesar de ter surgido pela primeira vez
nos festivais dos anos 60, despontou de vez para o sucesso ao lado dos companheiros do
Clube da Esquina (Lô Borges, Beto Guedes, Márcio Borges, Wagner Tiso...), ao fundir o
Rock com vários estilos musicais da região do triângulo mineiro. As canções do grupo eram
politicamente mais sutis do que a produção musical dos anos 60, porém não eram menos
críticas no tocante ao contexto político-social em que o Brasil estava inserido. “Cais”,
“Paisagem na janela” e “Nada será como antes” (cuja letra é citada logo a seguir), parcerias
de Milton e Ronaldo Bastos, nos remetiam a um contexto de torturas, exílios e abandonos e
ilustravam com perfeição a necessidade de se buscar uma liberdade individual e coletiva:
Eu já estou com o pé na estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol
Num domingo qualquer, qualquer hora
Ventania em qualquer direção
Sei que nada será como antes amanhã
Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite
Um gosto de sol
104
Com a depressão criativa que abalava os setores culturais da época
105
, a gravadora
Philips o maior complexo fonográfico do país até então resolveu retomar o ambiente
coletivo dos festivais da canção com o Phono 73, uma série de três noites de música
brasileira ao vivo (especificamente entre 11, 12 e 13 de maio de 1973) com todo o time de
104
IN: Milton Nascimento, Clube da Esquina (1972).
105
Além da censura que afligia muitos compositores naquela época, a falta de vigor dos festivais da canção
chegou ao ápice com a última edição do Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo em
1972.
artistas da empresa. Nada mal para a companhia, que tinha em seu staff, os músicos mais
populares do Brasil, exceto Roberto Carlos, que era contratado pela CBS (hoje Sony -
BMG). Era uma oportunidade para encontros musicais de alta qualidade: cada artista
entrava no palco, fazia um número solo e depois convidava um colega para dividir a cena.
Alguns encontros importantes foram os de Caetano Veloso e Odair José, Elis Regina e
Gilberto Gil, Ivan Lins e MPB-4, Erasmo Carlos e Wanderléa, Gilberto Gil e Jorge Ben e
Gal Costa e Maria Bethânia, além dos talentos recém-surgidos de Raimundo Fagner, Sérgio
Sampaio e Raul Seixas. O evento se revelou como uma espécie de amplo manifesto contra
as arbitrariedades do regime, conforme podemos observar no manifesto publicado no LP
triplo
106
que registrou seus melhores momentos, logo a seguir:
PHONO 73 O CANTO DE UM POVO
M A N I F E S T O
Gilberto Gil disse um dia:
“Há várias formas de fazer Música Brasileira. Eu prefiro todas”.
Nós acreditamo s e continuamos acreditando cada vez mais.
A torrente criativa na Música Popular Brasileira se processa em vários níveis.
Escolha o seu e deixe que cada um escolha o que seu ouvido e sua vida mandar (ou
pedir, ou exigir).
Chô chuá, cada macaco no seu galho / Chô chuá, eu não me canso de falar.
Cada um tem a música que precisa. Ou que merece.
Quem pode ter a pretensão (ou a loucura) de dizer o que o povo DEVE ou TEM
que ouvir?
Na Alemanha, numa época, tentaram. Não deu certo...
A Música Brasileira é hoje, em sua totalidade, uma das mais fortes expressões das
angústias, sonhos e emoções coletivas de nosso povo.
A inspiração brasileira: da mais simples moda de viola a mais elaborada harmonia.
106
Em 2005, a Universal Music relançou as gravações da Phono 73 em um luxuoso pack que continha dois
CDs e um DVD adicional com os momentos mais eletrizantes daquelas quatro noites de 1973, como “Cálice”
(de Chico Buarque e Gilberto Gil), “Cabaré” (de João Bosco e Aldir Blanc) na interpretação arrebatadora de
Elis Regina, a apresentação do autor e intérprete da contagiante “Eu quero é botar meu bloco na rua”, Sérgio
Sampaio, e “Sebastiana” (de Rosil Cavalcanti) na voz e corpo indefectíveis de Gal Costa, dentre outros
exemplos.
Nós aceitamos todas, porque negá-las seria negar comunidades inteiras, com suas
necessidades e suas formas de expressão.
Estamos abertos à música que se faz no Brasil. E se faz muita música no Brasil.
Porque há muita gente no Brasil querendo ouvir música. Gente das mais diversas
sensibilidades, das mais distantes classes sociais, dos mais defasados níveis de
consciência.
E nós queremos que sempre haja uma música enquanto houver alguém disposto a
ouvi-la.
A PHONO 73 é a expressão viva de nossa posição e disposição diante da música
que se faz hoje no Brasil.
Canto aberto. Pra todos que quiserem ouvir. Para um país inteiro.
Canto de Um Povo
107
.
O encontro mais barulhento do Phono 73 foi a parceria, até então inédita, de
Gilberto Gil e Chico Buarque. Eles começaram a trabalhar em uma nova canção durante a
Semana Santa de 1973: Gil, em plena sexta-feira da paixão, começou a refletir sobre a idéia
do cálice sagrado e do calvário vivenciado por Cristo e escreveu o refrão e os versos do que
seria a primeira estrofe da futura canção (cf. Gil, 2003: 161). Chico, por sua vez, ao travar
contato com a idéia do parceiro, associou o cálice de Jesus ao ato de se calar (cale-se!) e
descobriu, através da ambigüidade, uma maneira possível de aludir o trabalho poético
coletivo à falta de liberdade de expressão que as pessoas sofriam no Brasil na década de 70.
Por outro lado, o “vinho tinto de sangue” era uma referência explícita ao sangue derramado
nos DOI-CODI.
Chico Buarque vivia, nesta época, em um apartamento de frente para a Lagoa
Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, por isso, o monstro que emerge da lagoa é uma
referência ao horripilante torturador, semelhante ao lendário bicho do lago Loch Ness e
lançando mão de facas e outros instrumentos com o intuito de agredir os que estavam
presos nos porões de órgãos da ditadura. O vinho da dor possuía um gosto amargo, mas
continha o silêncio de quem resiste, por mais que surgissem tentativas por parte do poder,
as vozes jamais se calariam. A saída era apelar para os céus (no caso a presença do “Pai”)
para que a possibilidade da liberdade e do livre pensamento expresso pela “palavra presa na
garganta” se tornasse real:
107
IN: Vários intérpretes, Phono 73, o canto de um povo (CD/DVD), (2005).
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça (Gil, 2003: 160-161).
Os versos de “Cálice”, que veiculavam uma mensagem de dor e protesto, não
agradaram os censores, que a vetaram na véspera do show. Não satisfeitos com a medida do
Governo Federal, os dois resolveram apresentar uma versão instrumental da canção no
Phono 73, apenas pronunciando o título escolhido para nomeá-la. Enquanto Gil cantarolava
palavras em um dialeto africano, Chico repetia o termo cálice/cale-se! cada vez mais forte.
A censura (ou alguém que respondesse ou temesse por ela) revidou o gesto de denúncia
desligando, um a um, os cinco microfones utilizados pelos dois artistas no palco.
Acuado pelos acontecimentos, Gilberto Gil decidiu que o melhor a ser feito naquele
momento era se retirar do palco do Anhembi. Chico, por sua vez, foi obrigado a prosseguir
com mais duas canções de seu repertório (“Cotidiano” e “Baioque”) e, ao final de sua
apresentação, insultou a censura aos berros com palavrões em meio aos gritos dos
integrantes do grupo vocal MPB-4, que o acompanhava. De acordo com Nelson Motta, era
crível que quem decidiu desligar os microfones “tenha sido um funcionário mais apavorado
da Philips, para evitar represálias. Ou talvez o censor, abominável presença obrigatória que
acompanhava todos os shows, tenha mandado o técnico cortar o som” (Motta, 2000: 264).
Apesar de Chico Buarque de Hollanda ter superado o episódio ocorrido na Phono 73 com
uma certa destreza ao ter reagido com braveza “ao sufoco e à repressão explodindo de
criatividade, usando a linguagem como arma e arte, como truque e verdade ao mesmo
tempo” (Motta, 2000: 268), muitas de suas canções ainda foram vetadas pela Censura
Federal e sua peça Calabar, escrita em parceria com Ruy Guerra, foi censurada em todo o
território brasileiro às vésperas de entrar em cartaz.
Outro acontecimento desagradável ocorreu com Elis Regina. Criticada pela
esquerda por ter se apresentado nas Olimpíadas do Exército em setembro de 1972, a
Pimentinha recebeu severas vaias dos presentes que a acusavam de ter defendido os
militares. Cessado os insultos, a cantora fez uma das interpretações mais aplaudidas da
primeira noite do festival. Gal Costa, para a noite de encerramento, não escolheu discursos
politizados, mas brilhou nas interpretações de “Trem das onze” (Adoniran Barbosa) e na
inédita “Oração de Mãe Menininha” (Dorival Caymmi), dividindo a cena com Maria
Bethânia. A emoção invadiu o evento, visto que “as duas, filhas do terreiro do Gantois,
Iansã e Oxum, respectiva mente, levantaram o público e no final da música, de mãos dadas,
se beijaram na boca” (Motta, 2000: 264).
Apesar das inúmeras controvérsias, 1973 não foi apenas sinônimo de frustração para
a música popular produzida no Brasil. É neste ano que o talento de Raul Seixas começou a
se evidenciar para o grande público em canções como “Ouro de tolo”, um clássico que
criticava o milagre econômico do governo Médici. A canção de Raul ironizava o
consumismo típico de uma classe média conformista e satirizava o Rio de Janeiro
imortalizado pelas canções da Bossa Nova como bonita, ingênua e pacífica. Apesar de Raul
Seixas ter surgido na cena musical brasileira fazendo o público refletir num tom de
brincadeira, suas propostas estéticas continham visíveis traços de agressividade: o título de
seu álbum de estréia, Krig-ha, bandolo, que fora extraído das ficções de Tarzan, tinha como
significado “Cuidado, aí vem o inimigo”. Depois de uma reflexão acerca de Raul, era
impossível enxergar a existência de um “belo quadro social” (Sanches, 2004: 180-181):
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar um Corcel 73
Eu devia estar alegre e satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Ah! Eu devia estar sorrindo e orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto: “E daí?”
Eu tenho uma porção de coisas grandes
Pra conquistar, e eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família ao Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos
Ah! Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro, jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir um grandessíssimo idiota
Saber que é humano, ridículo, limitado
Que só usa dez por cento de sua cabeça animal
E você ainda acredita que é um doutor, padre ou policial
Que está contribuindo com sua parte
Para o nosso belo quadro social
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador
Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais
No cume calmo do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora de um disco voador (Seixas, 1992: 153-155).
As letras de Raul Seixas investiam violentamente contra a estagnação social, a
opressão e a tolerância dos padrões estabelecidos, numa postura irreverente, com
argumentos inusitados e até absurdos. Segundo a análise do historiador Marcos Napolitano,
a memorável canção de Raul fazia a
autocrítica de um jovem bem-sucedido, financeiramente, dono de um Corcel 73
um dos carros mais cobiçados na época mas entediado e insatisfeito com os
padrões comportamentais e os limites existenciais da vida numa sociedade de
consumo marcada pelo autoritarismo. Em outras canções, Raul procurava passar a
imagem de “maluco” utilizando metáforas aparentemente sem nexo para criticar a
falta de liberdade e as normas comportamentais aceitas (Napolitano, 2001: 87-88).
Ao uso de metáforas para desviar o olho censor, Roland Barthes (2000: 16) chamou
de trapaça, ou seja, um malabarismo que permite ao receptor “ouvir a língua fora do poder,
no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, a partir do fato de que a língua,
por ser fascista, ela tem o poder de nos fazer “obrigar a dizer” (Barthes, 2000: 14). E
poucos foram tão irônicos quanto Chico Buarque de Hollanda, que para driblar a censura
criou Julinho da Adelaide, um sambista fictício de carreira curtíssima, para conseguir lançar
três canções gravadas em 1974: “Acorda, amor”, “Jorge Maravilha” e “Milagre Brasileiro”.
Era impossível desprezar a falta de sensibilidade artística do momento histórico, que visava
anular qua isquer traços de criatividade, isto é, “vista como ameaça ao regime, a criação
artística e intelectual ficou na mira da ‘segurança nacional’ ” (Campedelli, 1995: 13).
“Jorge Maravilha” ironizava a moralidade do regime ao retratar a oposição entre jovens, os
curtidores de uma música transgressora e velhos, moralistas e, conseqüentemente,
guardiões da ordem repressiva do poder:
Há nada como um tempo
Após um contratempo
Pro meu coração
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais voando
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Ela gosta do tango, do dengo
Do mengo, domingo e de cócega
Ela pega e me pisca, belisca
Petisca, me arrisca e me enrosca
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta
Há nada como um dia
Após o outro dia
Pro meu coração
E não vale a pena ficar
Apenas ficar chorando, resmungando
Até quando, não, não, não
E como já dizia Jorge maravilha
Prenhe de razão
Mais vale uma filha na mão
Do que dois pais sobrevoando
Você não gosta de mim
Mas sua filha gosta (Hollanda, 2006: 216-217).
Apesar do enorme drama que o artista da canção precisou viver em meio aos cortes
da censura e à perseguição dos generais, é um engano afirmar que houve falta de
criatividade durante a década de 70. Como dizem os versos de uma famosa canção de
Chico Buarque, “Enquanto eu puder cantar / Enquanto eu puder sorrir / Enquanto eu puder
cantar / Alguém vai ter que me ouvir” (Hollanda, 2006: 191). Conforme concluiu Silviano
Santiago, o processo de repressão do governo militar não arrefeceu o ânimo do artista
polêmico, inteligente e criativo:
Podemos afirmar, de forma aparentemente paradoxal, que a censura e a repressão
não afetaram, em termos quantitativos, a produção cultural brasileira. Isso porque,
no caso específico da obra de arte, o processo criador semelhante a um avestruz
se alimenta praticamente de tudo: flores, pregos, cobras e espinhos. Livros, peças,
canções continuaram a ser escritas. E, pelo que se sabe, artista algum mudou de
partido político por causa da censura; ou deixou de pensar, imaginar, inventar,
anotar, escrever por causa da censura. Nenhum deixou de dizer o que queria, ainda
que em voz baixa, para o papel, para si ou para os poucos companheiros. Enquanto
houver cabeça, papel, lápis e esperança, sempre haverá um Plínio Marcos, um
Chico Buarque, um Antônio Callado, um Rubem Fonseca, etc. A repressão e a
censura podem, no máximo, alimentar certa preguiça latente em cada ser humano,
podem justificar racionalmente o ócio que impele o artista muitas vezes a fazer só
amanhã e pensar hoje (Santiago, 1982: 49).
Os aspectos negativos que rondaram as relações entre o artista e o Estado repressor
não podem ser esquecidas. No entanto, é próprio do verdadeiro artista estar exposto às mais
diversas formas de experimentalismo. Os anos de perseguição e tortura violentas deixaram
o testemunho de que muitos são capazes de entrar e sair de todas as estruturas políticas e
ideológicas, enfim, conseguir salvaguardar sua obra das ingerências governamentais e das
posições ostensivas.
Por isso, devemos entender esta etapa da História brasileira como um momento de
embates vitoriosos dos compositores em um plano no qual os generais não conseguiram
intervir: o da linguagem. Com isso, as esperanças dos artistas da canção e dos ouvintes de
música popular sempre foram renovadas por pior que fossem as adversidades impostas pela
ditadura. O artista da canção popular e seu público souberam lutar contra os (des)mandos
do poder através da linguagem: seja através de um verso, de um violão ou uma boa idéia na
cabeça, seja através da simples vontade de estar com os ouvidos atentos (e fortes) para a
mensagem poética do disco, que jamais deixou de ser veiculada pelos quatro cantos do país,
ainda mais se levarmos em conta a necessidade de se “esbanjar poesia” (Hollanda, 2006:
185) em momentos nada poéticos.
5
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108
(OU UM ESBOÇO BIOGRÁFICO SOBRE O SECOS & MOLHADOS)
108
O termo em itálico consiste de uma apropriação de um termo da autoria de Luiz Carlos Maciel em seu
texto sobre o Secos & Molhados (cf. Anexo I).
E lá no fundo azul
na noite da floresta
A lua iluminou
a dança, a roda, a festa
João Ricardo & Luhli
109
5.1 - Antes do vôo...
Enquanto a década de 70 surgia sombriamente de um lado, dois rapazes descobriam
os libertadores prazeres propiciados pela musicalidade vibrante do Rock’n’Roll. Acordes e
versos das criações dos Beatles, Rolling Stones ou de Bob Dylan e Crosby, Stills, Nash &
Young ecoavam livremente pelos ouvidos dos jovens João Ricardo Carneiro Teixeira Pinto
e Gerson Conraddi, que em 1970 tinham, respectivamente, 21 e 18 anos de idade. A
influência destes artistas acendia ainda mais o desejo dos dois de formar um grupo de Rock.
João Ricardo, na verdade, não é de origem brasileira: nascido em Ponte de Lima,
Portugal, em 21 de novembro de 1949, foi obrigado a se mudar para o Brasil no final de
março de 1964 (um pouco antes da instauração do golpe militar) devido ao acirramento da
ditadura salazarista em sua terra natal. Na medida em que seu pai, o poeta e crítico de arte
João Apolinário (um dos principais responsáveis da formação literária de seu filho), se
sentiu cada vez mais asfixiado pela repressão que se respirava na terra de Salazar e
temendo que seu filho adolescente fosse lutar nas ex-colônias portuguesas sentiu a
necessidade de lançar-se ao mar em busca de abrigo e liberdade de expressão.
Assim, Apolinário, estabeleceu suas raízes por aqui passando a escrever para o
jornal Última Hora de São Paulo. Foi para este mesmo órgão que João Ricardo trabalhou
como jornalista por oito anos e começou a desenvolver suas “aptidões literárias” (cf.
109
IN: Secos & Molhados, Secos & Molhados (1973).
Morare, 1974: 37). A mãe de João atuou no Brasil como maquiadora-chefe na filial
paulistana da TV Bandeirantes e chegou a auxiliar o filho anos depois, quando este já era
um músico famoso. Desde infante, João Ricardo, alimentava o sonho de musicar poetas de
renome da Língua Portuguesa, para ele uma das mais perfeitas do mundo.
Já Gerson Conraddi que passou a assinar como Conrad a partir do momento em
que enveredou pelo meio artístico nasceu em São Paulo em 15 de abril de 1952, e é
proveniente de uma família de origem austríaca. Seu contato com a música já existia
também desde a infância: estudou piano por imposição de sua mãe entre 8 e 11 anos de
idade, mas suas aulas tiveram de ser interrompidas definitivamente por causa de um
acidente que provocou a fratura de seu braço direito, para total felicidade do garoto, que
achava o piano um instrumento musical difícil, nada informal, despojado e nada apropriado
para os tempos de Swinging London. Logo depois, sua família se mudou para Porto Alegre
e aos 12 anos começou a aprender violão clássico (Escola de Tárrega). A capital gaúcha
rendeu ao jovem sua primeira experiência musical no grupo Sic Sunt Res, que não foi
muito adiante por imitar a música internacional da época.
Gerson tinha como grande influência não apenas os quatro rapazes de Liverpool,
como também e curtia o trabalho de músicos de formação mais clássica como Baden
Powell e Paulinho Nogueira. No entanto, sua grande paixão não se restringia apenas a
ritmos, versos e sons: era apaixonado por Arquitetura, curso que chegou a estudar na
Universidade Braz Cubas em Mogi das Cruzes (região metropolitana da grande São Paulo)
durante três anos antes de ser famoso. Um acidente de trem em 8 de julho de 1972 quase
interrompeu a trajetória do futuro arquiteto, rendendo-lhe uma enorme cicatriz na perna
direita. Durante a fase de ensaios com seu futuro grupo, estagiou numa construtora e obteve
uma grande oportunidade profissional: concluir a graduação em Paris sob a orientação de
um dos maiores arquitetos do mundo, Oscar Niemeyer. Apesar da oferta tentadora, a opção
do rapaz foi se enveredar pelo universo da música.
João Ricardo, desde muito jovem, se interessava por música e era fascinado pelos
Beatles (especialmente a inventividade musical de Paul McCartney), Elvis Presley e Chuck
Berry. Não se sentiu muito entusiasmado por música brasileira durante seus primeiros anos
em São Paulo, porém o movimento tropicalista chamou sua atenção, principalmente
Gilberto Gil. Já tocava piano e violão de ouvido desde a época em que ainda morava em
Portugal, e desembarcou no Brasil já pensando na idéia de montar um grupo de Rock.
Sempre pensando na música, compôs sua primeira canção aos 15 anos de idade, chegando a
formar uma dupla com um rapaz de nome Antônio Renato, porém as incompatibilidades
entre os dois impediram o projeto de seguir adiante
110
. Tempos depois da dissolução da
dupla, investiu em bandas com formações variáveis e conheceu Gerson, seu vizinho de 16
anos de idade, e ambos passaram a tocar violão apenas por diversão e ausência de
compromissos.
Os encontros musicais entre os dois eram marcados por total informalidade, pois
não tinham o desejo de formar uma banda. O ponto de união entre os dois era o Rock que
despontava naquele momento. A simplicidade formal das obras dos Rolling Stones, o apuro
poético das canções de Bob Dylan e as harmonizações mais elaboradas de Elton John e
Crosby, Stills, Nash & Young deixavam João Ricardo completamente entusiasmado,
colecionando LPs destes artistas. Também ocorriam várias discussões musicais entre eles,
pois Gerson Conrad, por exemplo, não gostava muito de Dylan e se mostrava inconformado
com a simplicidade do Pop Rock daquela época
111
.
Uma curiosidade dita por Gerson Conrad, em depoimento concedido
exclusivamente para este trabalho, foi que João Ricardo (apesar de já se revelar como um
músico criativo e talentosíssimo), por não ter formação musical erudita, apresentava
dificuldades em tocar violão e chegou a aprender como dedilhar o instrumento com o
amigo e Annete Conraddi, irmã de Gerson. Um ano depois, as reuniões musicais se
tornaram mais sérias, e surgiu o desejo de formarem, juntos, um grupo musical. João
propôs ao vizinho a formação de um grupo, convite que foi aceito pelo amigo
imediatamente. Em pouco tempo, metade do repertório a ser gravado no primeiro álbum do
Secos & Molhados já tinha sido criado enquanto ambos se aprimoravam musicalmente,
João Apolinário se revelava como uma referência ideológica e poética para seu filho, fato
que deve ter estimulado o ritmo da criação.
Porém, ainda faltava um nome para o grupo que nascia naquele momento. A
primeira escolha foi Eric Expedição, cujos integrantes foram Gerson, João e um vizinho
110
Segundo João Ricardo, o parceiro Renato, ao invés de querer tocar Rock, insistia em uma concepção
musical que estivesse “na linha dos sambões e sambinhas” (Morare, 1974: 7).
111
É interessante que tanto a linguagem musical mais despojada de João Ricardo não necessariamente se
contrapunha à formação clássica de Gerson Conrad e foi um diferencial da sonoridade do Secos & Molhados,
tempos depois.
deles que, segundo Gerson Conrad, era um péssimo baterista. Graças a João Apolinário e
seu filho, a máxima popularidade do futuro Secos & Molhados foi uma nota na Última
Hora. Na época em que era um funcionário deste jornal, João Ricardo era chefiado por
ninguém menos que seu pai, João Apolinário. Começou como copidesque e depois passou a
escrever artigos sobre música
112
e cobrir eventos sobre o assunto. A idéia para nomear o
conjunto foi originada em uma viagem feita por João à praia de Ubatuba. Ao se deparar
com um armazém do litoral paulistano, viu um velho armazém e optou por nomear o
projeto de “Secos & Molhados” pelo simples motivo de que determinava “tudo e nada ao
mesmo tempo” (IN Morare, 1974: 7).
Gerson achou a escolha do amigo estranha, mas não se opôs. Entretanto, o mal estar
se manifestaria em uma ocasião bastante peculiar: ao registrar o grupo, as pessoas presentes
no local, além de acharem o nome do grupo bastante engraçado, debocharam de seus
integrantes, envergonhando-os profundamente. O próprio João Ricardo justificou, em
entrevista ao jornalista Antônio Carlos Morare, a proposta eclética que seria adotada pelo
grupo tempos mais tarde:
Eu, praticamente, comecei a viver a partir dos Beatles, que marcaram a década de
60. Quando entro na década de 70, vejo milhares de opções, mas não existe
ninguém que defina nada. Eu acho, entretanto, que o Secos & Molhados é um
resultado natural, do que aconteceu no mundo, numa continuidade natural, como
qualquer outro conjunto que pode aparecer. Agora, uns aparecem numa medida;
outros, em outra medida. Nós aparecemos na medida que nos interessava, e você
pode nos analisar a partir da nossa música, da nossa mise-en-scène, dos poetas
escolhidos etc (apud Morare, 1974: 37).
As atividades de João Ricardo como jornalista não apenas lhe rendeu a
possibilidade de escrever sobre um assunto do qual gostava muito, como também lhe
garantiu amizades bastante importantes. Um desses amigos abriu um “cavern club” no
bairro do Bixiga. O lugar em questão chamava-se Kurtisso Negro e tinha um visual
bastante intrigante: o estabelecimento era completamente pintado de preto, com latas pretas
revestidas por carbono, um pátio interno grande e muito freqüentado por jovens. Era a
112
O último artigo assinado por João Ricardo, publicado em 1973, é nada menos que uma análise do legado
das duas maiores bandas inglesas já surgidas na música Pop, os Beatles e os Rolling Stones.
primeira oportunidade profissional para que Gerson e João, assíduos freqüentadores dos
eventos culturais paulistanos, pudessem exibir seu trabalho para pessoas interessadas em
ouvir coisas novas.
No entanto, empecilhos dos mais variados impediam Gerson Conrad de acompanhar
o amigo nesta empreitada: a obrigatoriedade de se apresentar às Forças Armadas, de se
apresentar como mesário nas eleições da época e o fato de estar às voltas com os estudos
preparatórios para o Vestibular para Arquitetura. João resolveu se apresentar sem o amigo e
convidou os irmãos Antônio Carlos (mais conhecido pelo apelido de Pitoco) e Fred para
irem junto com ele ao Kurtisso Negro.
Ao contrário das informações veiculadas no site oficial do Secos & Molhados
(mantido na rede por João Ricardo e sua atual esposa, a jornalista e assessora de imprensa
Tânia Teixeira Pinto), Gerson Conrad disse, em depoimento exclusivo, que os tais irmãos
jamais integraram oficialmente o grupo. Controvérsias à parte, tempos depois, Gerson foi
dispensado de suas obrigações com o Exército por excesso de contingente, garantindo,
assim, a retomada de contatos com João Ricardo.
Com um novo convite para retornarem ao Kurtisso Negro, Gerson e João poderiam
colocar em prática os sonhos de se tornarem músicos famosos. As apresentações no
Kurtisso renderam a João Ricardo o primeiro convite para gravar um disco: os produtores
musicais Solano Ribeiro e Manuel Barembein propuseram que ele e seu grupo gravassem
um LP pelo selo Som Livre (mais um dos vários empreendimentos do empresário Roberto
Marinho e que seria um dos principais selos musicais do Brasil naquela época), porém o
convite foi imediatamente recusado. O músico acreditava que ainda não era o momento
adequado para a gravação de um primeiro álbum, considerava-se imaturo e sem uma
produção poético-musical significativa.
A oportunidade surgiu em maio de 1971, quando Heloísa Orosco Borges da
Fonseca, cantora e compositora carioca conhecida como Luhli
113
, foi convidada para se
113
Neste momento, a artista assinava seu nome artístico como Luli. O “h” foi acrescentado ao seu nome
artístico a partir de 2005. Em 1971, Luhli já tinha iniciado sua carreira musical: tinha gravado um disco como
artista solo pela Philips em 1965, mas foi a parceria com a cantora, compositora (e também violonista) Lucina
(Lúcia Helena Carvalho e Silva) que a tornou conhecida perante o público. A dupla Luli & Lucina chegou a
gravar sete discos entre 1979 e 1996 e se desfez no final da década de 90, depois de sete trabalhos lançados.
Em 2006, Luhli lançou seu primeiro álbum solo, pouco mais de quarenta anos depois de estrear em disco o
trabalho contém não apenas canções feitas em parceria com sua ex-companheira que foram gravadas por
vários artistas, canções inéditas e sucessos que compôs para primeiro LP do Secos & Molhados.
apresentar no Kurtisso Negro uma vez por semana. Naquela época, ela estava em São Paulo
ao lado de seu marido, o fotógrafo de cena Luiz Fernando Borges da Fonseca, que,
trabalhava nas filmagens do longa-metragem Roberto Carlos a 300 km/h. Dentre os outros
músicos que se apresentavam no Kurtisso, estavam um cantor cego e um grupo de um
jovem português parecido com John Lennon (com direito a cabelos longos e barba) que
tocava um repertório semelhante ao Quarteto de Liverpool, misturando violões, violas,
gaitas, Rock ‘n’ Roll e percussão. Lá, Luhli conheceu João Ricardo, se encantou pelo
trabalho do grupo e logo estabeleceu laços de amizade com ele com Gerson Conrad, não
houve amizade por existir uma significativa diferença de idade entre eles, segundo
observações do próprio compositor.
Juntos, João Ricardo e Luhli passaram a ouvir e cantar com bastante entusiasmo
Beatles no apartamento dele no bairro da Bela Vista, formando uma parceria que seria
famosa a partir do surgimento do Secos & Molhados. Três frutos nasceram desta união: “O
vira”, “Fala” e a vinheta “Toada & Rock & Mambo & Tango & etc”, canções que viriam a
ser conhecidas pelo grande público brasileiro graças às gravações que figuram nos dois
primeiros álbuns do grupo.
Todavia, eles necessitavam de um cantor de voz potente para acompanhá-los. O
primeiro passo foi sair em busca de alguém que pudesse harmonizar seu timbre vocálico
com os demais integrantes, semelhante aos efeitos sonoros ouvidos nos discos do quarteto
Crosby, Stills, Nash & Young, algo que, naquele momento, não era desenvolvido pelos
músicos brasileiros
114
. Em uma manhã de julho de 1971, João Ricardo e Gerson Conrad
foram à casa de Luhli, no bairro de Santa Tereza, Rio de Janeiro, para conhecer o cantor
cuja voz aguda eles tanto desejavam encontrar. Foi apresentado para eles, Ney, um amigo
de quem ela falava muito, que trabalhava com pintura e artesanato. Nesta oportunidade,
também foram apresentadas a João e Gerson, duas pessoas que teriam importante
participação para o Secos & Molhados: o flautista e ex-aluno de Luhli, Sérgio Rosadas
(mais conhecido como Gripa, o músico participou dos dois primeiros discos do Secos &
Molhados) e o cineasta Paulinho Mendonça, na época, assistente de direção do longa de
Reginaldo e autor de um futuro sucesso do grupo, “Sangue latino”.
114
Vide o exemplo de “O patrão nosso de cada dia”, canção que integra o primeiro álbum do Secos &
Molhados, que se assemelha às obras do grupo internacional.
Ainda amador, Ney tinha adotado o estilo de vida hippie, participou de um
madrigal, de conjuntos vocais e já tinha se apresentado ao vivo em rádios, TVs e festivais
no Rio de Janeiro e em Brasília, além de ter gravado “Estrada azul”, o tema principal do
filme Pra quem fica, tchau (1970), de Reginaldo Faria. Além desta participação, marcou
presença em festivais de música popular no auge da popularidade da Bossa Nova e da
Canção de protesto na cena musical brasileira, tanto que as primeiras obras cantadas pelo
rapaz em público foram “Terra de ninguém” (Marcos Valle / Paulo Sérgio Valle) e “Só
tinha de ser com você” (Antônio Carlos Jobim / Aloysio de Oliveira). Na época, era um
jovem extremamente tímido, que atendia pelo seu nome de batismo, Ney de Souza Pereira e
já tinha completado 30 anos. Ficou combinado que as outras duas canções do filme seriam
cantadas por ele, mas a insegurança e a timidez excessiva atrapalharam os planos de todos
as canções restantes foram registradas por outro cantor com o codinome de Bill Rivas
115
.
A timidez de Ney era algo que o atrapalhava em momentos decisivos. Em
depoimento concedido à jornalista Denise Pires Vaz, Luhli comentou que certa vez ela
levou o amigo para a residência de Roberto Carlos com o intuito de que ele vendesse seus
artigos de artesanato à Nice, mulher do Rei naquela época. Quando requisitado para cantar
para um dos maiores vendedores de discos no Brasil, o rapaz simplesmente enrubesceu e
não conseguiu pronunciar uma palavra sequer. Outro exemplo dos problemas em relação ao
medo de se apresentar em público é um distúrbio físico do artista, que provoca bastante
sudorese nas mãos, não permitindo com que ele se aprofundasse nos estudos de violão
(apud Vaz, 1992: 250). Paulinho Mendonça, em depoimento concedido para a mesma
publicação, relembrou que, na ocasião em que a trilha sonora de Pra quem fica, tchau foi
gravada, o dono do estúdio de gravação, Jorginho Abicalil, atormentava tanto Ney que
provocou a desistência de sua participação naquele projeto (apud Vaz, 1992: 254).
Além de ter participado da trilha deste filme, Ney também gravou antes de ser
descoberto por João Ricardo um tema para a trilha sonora do curta-metragem A casa
tomada, cuja trama se baseava em um conto do escritor argentino Julio Cortázar. A direção
desta película foi de Paulinho Mendonça, contou com a fotografia de Luiz Fernando e teve
115
Um boato sobre a participação do cantor na trilha do filme de Reginaldo Faria confirmado por Ney em
uma entrevista concedida em 2005 é bastante curioso. Sua insegurança em cantar seria tanta que os produtores
decidiram registrar o nome da voz não como o de Ney de Souza Pereira, mas sim com a alcunha de Bill Rivas
(?!). Esta informação pode ser encontrada em um artigo escrito por Tárik de Souza em 1974.
o tema principal composto pelo violonista Jorge Omar (que veio a trabalhar no segundo
disco do Secos & Molhados e com o próprio Ney em carreira solo, anos depois) e pelo
próprio Paulinho os mesmos autores de “Estrada azul”.
Integrante do elenco desta produção, a atriz Duse Nacaratti se sentiu tão
impressionada com a voz e o talento do jovem cantor que mal conseguia assistir o filme
pediu, depois de ver seu trabalho pela primeira vez, que Paulinho projetasse a película
novamente (apud Vaz, 1992: 259). Apesar de João ter apreciado a voz do amigo de Luhli e
de não ter gostado de seu repertório (que consistia, basicamente, de nomes da MPB como
Chico Buarque e Milton Nascimento), Ney seria o vértice que completaria o triângulo
musical com o qual João Ricardo tanto sonhara.
Nascido na cidade de Bela Vista (MS) em 1.º de agosto de 1941, Ney teve
influências musicais das mais diversas desde cedo o fato de ter nascido na fronteira do
Brasil com o Paraguai e de sempre ter ouvido atentamente os vinis de 78 rotações de seu
pai foram dois marcos fundamentais para que o repertório do artista, em diferentes etapas
de sua carreira, transitasse entre as mais variadas tendências musicais. As atividades
artísticas sempre atraíram o cantor desde criança: cantou em programas de calouros, fez
teatro na escola e sempre demonstrou talento para as artes plásticas (desenhava muitíssimo
bem na infância) para total desespero de Antônio Matogrosso Pereira, pai do cantor, que
desaprovava quaisquer manifestações artísticas por parte do filho.
A postura radical do Sr. Matogrosso provocava incessantemente a vontade
transgressora de Ney em defender seus pensamentos e suas opções existenciais.
Paralelamente ao pai, que tinha preferência às grandes vozes da Rádio Nacional Francisco
Alves, Dalva de Oliveira, Linda Batista, Dircinha Batista, Orlando Silva, Nelson
Gonçalves, Cauby Peixoto e Ângela Maria, por exemplo , o filho também vislumbrava
nos balangandãs, cores, trejeitos e a irreverência de Carmen Miranda e nos estranhíssimos
figurinos de Elvira Pagã suas referências artísticas primárias (cf. Vaz, 1992: 45-46). A
vedete, cujo verdadeiro nome era Elvira Cozzolino, com seus figurinos ousados compostos
de peles de animais e trapos diversos, que resultavam numa postura artística literalmente
chocante foi uma influência definitiva no imaginário do jovem Ney de Souza Pereira. Em
depoimento concedido a Bené Fonteles, o cantor comentou a respeito disso:
Eu vi a Elvira Pagã toda vestida com trapos e pele de onça, e tive um choque com
aquilo. Era como se tivesse acendido uma luz, sabe? O fato dela estar cantando
com o corpo exposto com aquilo tudo... E hoje em dia eu noto que tenho essa coisa
do corpo bem acentuada. (...) Isso, inconscientemente, foi me despertando. E
quando eu vejo o meu histórico, acho que tenho muito a ver com isso (IN Fonteles
& Fonseca, 2002: 83).
Na biografia escrita por Denise Pires Vaz, Ney descreveu mais detalhadamente o
encantamento e identificação pela estrela:
Pirei com aquela mulher, que parecia ter saído do meio da mata. Aquilo era tudo o
que eu carregava na minha cabeça como símbolos da floresta, e sintonizou com um
lado meu exótico. Nunca mais esqueci aquela imagem e, de certo modo, a
reproduzi muitos anos depois. Embora não considere meu corpo bonito, aprendi
que ele possui ângulos favoráveis, e passei a utilizar o artifício de só mostrá-lo de
determinadas maneiras. Nunca alguém vai me flagrar relaxado no palco: estou
sempre colocado, porque descobri que, se você entra numas [sic] de que seu corpo
é bonito, você passa essa sensação para as pessoas (Vaz, 1992: 109-110).
Outro grande nome que influenciou a trajetória artística do rapaz definitivamente foi
Caetano Veloso. Seu primeiro encontro com o ideólogo do Tropicalismo se deu em 1967,
numa série de espetáculos da Rhodia (uma grife que era responsável por espetáculos que
mesclavam música e desfiles de moda) em que ele participou ao lado de Gilberto Gil, Rita
Lee e outros artistas. Ney ainda morava em Brasília e se deparou com um Caetano
extremamente cabeludo, vestido de rosa da cabeça aos pés, e disse para si próprio que se ele
tivesse a chance de ser artista, ele adotaria uma atitude semelhante a de seu artista predileto.
Foi o artista em pessoa, através de depoimento concedido ao jornalista Rodrigo Faour,
quem esclareceu os efeitos da influência marcante de Caetano em seu trabalho: “Não queria
ser o Caetano Veloso, mas queria provocar nas pessoas o que ele provocava em mim. Ele
me estimulava, me deixava todo interessado. E eu queria ser um artista assim, que
interessasse às pessoas” (apud Faour, 2006: 395).
Apesar de não querer imitá-lo, o futuro cantor de sucesso tinha plena consciência da
importância de ser visto e ouvido de maneira irreverente e desabusada, mas ao mesmo
tempo consciente dos jogos de poder que impermeavam a cultura e as artes do período e de
que as razões para o exílio dos artistas ligados ao movimento tropicalista não estava
necessariamente ligado ao discurso político tradicional, e sim ao teor de insubmissão
presente nas canções e performances da Tropicália. De acordo com o próprio Ney,
Caetano foi o primeiro artista que agiu profundamente no comportamento desse
país, e talvez por isso tenha sido enredado em armadilhas mais palpáveis. Eu já vim
numa leva depois, e eles nunca conseguiram me pegar pela política tradicional,
porque ela realmente não me interessava; mas só o fato de me considerarem
subversivo já servia como uma confirmação, de que havia alcançado meu objetivo:
mexer com o inconsciente das pessoas. Apesar de não saber até que ponto isso gera
uma ação o que seria meu ideal artístico e humano, sinto que vou fundo em muita
gente. Mas sei também que nada disso me teria sido permitido se não existisse
antes o Caetano, que abriu caminho para eu já chegar escancarando e
transbordando sexualidade. Isso tudo faz com que a minha ligação com ele seja
muito forte, porque, além da enorme admiração que sinto pelo artista, sou
eternamente grato ao Caetano por ter possibilitado a minha manifestação artística
nessa encarnação. Sem ele, isso não seria possível, porque apareci num momento
ainda muito careta, no qual a repressão podia tudo: se já não houvesse essa
primeira abertura feita pelo Caetano, eles teriam me capado e me jogado no mato
(apud Vaz, 1992: 105).
Dentre várias tentativas frustradas de ingressar na vida artística, aos 17 anos de
idade, o jovem aspirante a artista decidiu sair da casa dos pais à procura de sua própria
liberdade: viveu no Rio de Janeiro e em Brasília e teve experiências profissionais das mais
variadas. Serviu a Aeronáutica em 1959 e depois atuou em um hospital de Brasília como
recreador de crianças terminais e foi preparador de lâminas de biópsia até adotar uma
postura hippie, se desprendendo de valores materiais e vivendo tal qual um nômade, sem
destino ou rumo definidos.
Foi durante sua estadia na Capital Federal do país que Ney começou a se apresentar
como cantor: no início, quase todos achavam a sua voz de bastante estranha; no entanto, era
inegável que tal característica o favorecia artisticamente. Ao receber um elogio de Livino
Alcântara, regente do coral da Rádio Educadora de Brasília, resolveu cantar em corais e
num conjunto vocal. A voz aguda, a partir de então, não só lhe rendia elogios, como foi o
principal passaporte para a liberdade artística e (principalmente) individual de Ney de
Souza Pereira. Um episódio interessante em relação aos comentários feitos ao timbre do
rapaz ocorreu no ano de 1966, quando Ney sequer pensava em ser famoso como artista da
canção popular:
Na época, Ney conheceu [os atores] Leonardo Villar e Leina Krespi, que estavam
em Brasília fazendo um filme. Conversava muito com o Leonardo sobre sua
vontade de ser ator, até que um dia ele foi vê-lo cantar: ‘Desiste de ser ator, você é
cantor’, afirmou Leonardo. ‘Não sou cantor. Apenas canto, mas não sou cantor’,
reafirmava, cheio de convicção. Quando voltou para o Rio, Leina Krespi deu uma
entrevista na qual falava que, numa boate em Brasília, escutara uma mulher
cantando ‘Carcará’ com a voz bem grossa (era a Lena) e um homem cantando
‘Zumbi’ com a voz bem fina (quem seria?) (Vaz, 1992: 47).
Apesar de ter se consagrado através de sua voz incomum para um indivíduo do sexo
masculino, Ney enfrentou vários conflitos por causa do que não parecia um dom, mas uma
verdadeira maldição:
Criança ainda, a meninada pegava no seu pé porque falava fino. No começo, não
entendia direito a razão de zombarem dele, mas, com o passar do tempo,
compreendeu que possuía uma voz diferente. Essa realidade tornou-se ainda mais
evidente por volta dos doze anos, quando todos os meninos começaram a mudar de
voz. A dele soou ainda mais estranha. Ele mesmo a achava esquisita demais. Só
relaxou em Brasília, quando percebeu que o grilante para ele era especial para os
outros. E é bastante interessante o fato de ser exatamente sua voz objeto de chacota
na infância a responsável por ele ser um artista famoso” (Vaz, 1992: 48-49).
Sua estréia como cantor se deu em um coral nos auditórios da Universidade de
Brasília, recém-inaugurada (e altamente reconhecida dentro do meio acadêmico mundial
por ser considerada uma instituição-modelo), cantando um repertório de MPB (nesta época,
vivia-se o esplendor da vertente engajada na música popular produzida no Brasil, variante
musical com a qual Ney estabeleceu significativo contato) para um público composto de
universitários. Dentre os músicos estreantes naquela noite, estava o compositor Paulinho
Machado, estudante de arquitetura da UnB e autor de um dos maiores sucessos na voz de
Ney em carreira solo, “América do Sul”, gravada pelo astro em 1975.
A experiência vivenciada na Capital Federal foi fundamental para que o artista
tivesse consciência do estado de coisas do país em meados da década de 60 (cf. Matogrosso
IN Fonteles & Fonseca, 2002: 93), pois foi a partir da depredação da Universidade pelos
militares que fez com que Ney se conscientizasse poeticamente. Machado convidou o
jovem de timbre agudo a participar de um quarteto vocal o qual produzia (ele também
tocava piano na banda que acompanhava o grupo) e buscou a ajuda de Luhli, a amiga do
Rio de Janeiro que tinha contato com vários compositores da vertente engajada da música
popular como Sérgio Ricardo, Sidney Miller e Luiz Carlos Sá, dentre outros.
Ainda em 1966, Ney, desencantado com suas incursões na música, buscava
trabalhar no que acreditava ser sua verdadeira vocação: o teatro. Com o autoritarismo
instaurado pelos militares, foi abortada a sua primeira oportunidade de surgir na boca de
cena a censura impediu que A invasão, de Dias Gomes, chegasse aos palcos, após
inúmeros ensaios e dedicação. O grupo vocal do qual participava aos poucos se desfez,
deixando-o livre para ir à procura de oportunidades individuais. Ao se fixar no Rio de
Janeiro, dividiu um apartamento com dois amigos na Zona Sul da cidade e começou a
trabalhar com artesanato na garagem da casa de Luhli e Luiz Fernando. Chegava de manhã
cedo, produzia seus artigos, vendia para os alunos de violão de sua amiga e, no final do dia,
voltava para casa. No momento em que os dois não tinham nada para fazer, ela pegava o
violão e ficava cantando com ele.
Em 10 de novembro de 1971, Ney se mudou para São Paulo, onde Gerson e João
moravam, para iniciar os ensaios de seu novo grupo, vislumbrando a possibilidade de se
consagrar como artista. No final daquele ano, estava definida a formação do grupo que
sacudiria o Brasil em pouco mais de um ano: Gerson Conrad nos violões e vocais, João
Ricardo seria o compositor principal
116
e seria responsável pelos violões, harmônica e
vocais. E por fim, Ney seria a voz principal do grupo Secos & Molhados
117
. É deste período
que data a primeira gravação deles enquanto grupo: trata-se de “Vôo”, com música de João
Ricardo e letra de João Apolinário, foi especialmente composta para a trilha sonora do
116
Como é possível perceber, a maioria das composições gravadas pelo Secos & Molhados durante o período
1973-1974 era da autoria de João Ricardo.
117
A partir desta etapa do trabalho, quaisquer menções feitas a respeito dos três integrantes do Secos &
Molhados será em ordem alfabética. A intenção deste trabalho é de demonstrar a imparcialidade técnica digna
do bom analista, não alimentar mais rusgas por parte de Gerson, João e Ney e, muito menos, tomar partido de
um ou outro dos componentes do grupo.
espetáculo teatral Corpo a corpo, com texto de Oduvaldo Vianna Filho e direção de
Antunes Filho.
A preparação do repertório do Secos & Molhados ocorria duas ou três vezes por
semana, sempre no quarto de um dos rapazes, no bairro da Bela Vista. Dois violões se
alternavam com as vozes dos três, a flauta doce de Gerson Conrad e a gaita de João
Ricardo. Este período foi importante para que os três delimitassem os conceitos de
repertório do grupo, aprimorassem a técnica de cada integrante a respiração no exato
momento, sem atravessar nenhum ritmo, por exemplo e, mais que tudo, estabelecessem a
harmonia e a cumplicidade necessária entre quaisquer componentes de um grupo musical.
Enquanto os primeiros convites para se apresentarem ao vivo não surgiam, eles ensaiavam
as canções que gravariam posteriormente.
Os rapazes tiveram que conciliar as atividades artísticas com outras formas de
sustento: Gerson Conrad, estudante de arquitetura, obteve algumas oportunidades de
estágio em sua área; João Ricardo continuava trabalhando como jornalista; já a única fonte
de sobrevivência de Ney, além do artesanato, foi o teatro: para se manter na capital
paulistana, fez um total de três peças teatrais duas foram os espetáculos infantis Dom
Chicote Mula-Manca e seu Fiel Companheiro Zé Chupança e Rosinha no Túnel do Tempo,
nas quais interpretou personagens como Dom Pedro, um pastor de ovelhas, um secretário,
um espantalho e um cientista louco. Um dos motivos que estimularam Ney a se mudar para
São Paulo foi justamente o fato de que a peça na qual trabalhava no Rio de Janeiro faria
uma temporada na capital paulistana por isso, teria como manter seu sustento entre o final
de 1971 até às vésperas do boom que popularizou o Secos & Molhados para todo o Brasil.
João recebeu um convite para fazer a direção musical de Dom Chicote, mas recusou
coube a Gerson executar tal tarefa. Estes trabalhos ficaram em cartaz entre o início e
meados do ano de 1972.
Durante sua primeira experiência profissional no teatro infantil, Ney esteve em cena
ao lado de Regina Duarte, na época, uma atriz iniciante. Seu primeiro personagem foi um
sentinela do reino; porém, depois ganhou um papel maior como um mercador e finalmente
ganhou o papel de espantalho, usando uma maquiagem bastante pesada. A peça foi um
motivo e tanto para que Regina e o futuro cantor do grupo Secos & Molhados se tornassem
bons amigos. Anos depois, a “Namoradinha do Brasil” recebeu o seguinte comentário de
Ney:
Regina era uma mulher muito doce. Bacaninha mesmo. A gente se deu sempre
muito bem e foi ela, inclusive que me incentivou a prosseguir na carreira. Depois
da peça eu nunca mais a vi. Logo em seguida, encontrei o João Ricardo e ele me
convidou para ser um dos integrantes do Secos & Molhados.
Apesar da distância, quando o Secos & Molhados se tornou um sucesso nacional,
Regina Duarte relembrou o tempo em que trabalharam juntos em depoimento para a
Revista Contigo:
Claro que me lembro do Ney, ele sempre foi formidável. Quando fazia o
espantalho, a criançada ficava maravilhada com ele. Desde aquela época ele já
mostrava toda essa expressão corporal que o faz tão conhecido hoje em dia. Apesar
de termos ficado somente oito meses em contato, nós nos tornamos bons amigos.
Já a terceira incursão de Ney nas artes cênicas, A viagem, era um musical voltado
para o público adulto uma adaptação com a autoria de Carlos Queiroz Telles para os
palcos do Teatro Ruth Escobar de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Este último trabalho
foi de natureza fundamental para o cantor, pois o preparou para a música e o estrelato. Uma
banda executava a trilha sonora ao vivo no decorrer do espetáculo, havia aproximadamente
100 pessoas no elenco (algumas “voavam” de uma extremidade do palco a outra), nenhum
ator saía de cena, o que o motivou a passar muito tempo no palco dançando no escuro sem
jamais ser percebido. A partir daquele momento, dançar não era algo que necessitasse de
estudo e sim de “soltar o corpo e se deixar levar pela música” (Vaz, 1992: 52).
5.2 - A ave passeia...
Um ano se passou em meio a ensaios e os trabalhos paralelos que Gerson, João e
Ney desenvolviam para sobreviver, quando o grupo recebeu o primeiro convite para se
apresentarem ao vivo e alçar o vôo meticulosamente planejado por tanto tempo. A Casa de
Badalação e Tédio um misto de café, bar e restaurante que oferecia shows, jogos e
entretenimentos dos mais variados que integrava o Teatro Ruth Escobar foi o espaço que
abrigou a première do grupo, graças aos contatos do então jornalista João Ricardo. Os
responsáveis pelo espaço alternativo tinham planos de ocupar o local com música ao vivo e
queriam artistas desconhecidos para se apresentarem ali (cf. Vaz, 1992: 52); como eles
conheciam Ney do elenco de A viagem, peça encenada no espaço principal do Ruth
Escobar, a idéia de convidar a banda de um dos integrantes do elenco para se apresentar lá
em uma temporada de quarta a domingo foi prontamente cogitada.
No dia do ensaio geral para a estréia, a voz principal do Secos & Molhados se
atrasou devido a uma de suas apresentações com o espetáculo de teatro. Che gou com o
rosto sujo de graxa que ajudava a compor o figurino de seu personagem, “incidente”
bastante produtivo momentos depois. Luhli, ao ver seu amigo daquele jeito, sugeriu que
todos se apresentassem daquele jeito e distribuiu potes de purpurina a serem utilizados por
todos. A idéia dela tinha surgido pelo fato de ter assistido O jardim das borboletas, peça
teatral com texto de Paulinho Mendonça e direção de Cláudio Tovar em cartaz no Rio de
Janeiro. Nesta montagem, os atores estavam bastante maquiados tais quais os grandes
nomes do Glam Rock.
Segundo o pesquisador britânico Roy Shuker (1999), o Glam ou Glitter Rock surgiu
em oposição ao Rock progressivo (Genesis, Pink Floyd, Emerson, Lake & Palmer) e à
contracultura do fim dos anos 60; não deixando, necessariamente, de ser uma extensão das
ideologias desta última. Seus principais porta-vozes Gary Glitter, Alice Cooper, Elton John
(em sua primeira fase de carreira), Lou Reed e, especialmente, David Bowie (com destaque
para o antológico Ziggy Stardust & The Spiders from Mars, de 1972) e a banda New York
Dolls que fazia uso recorrente de maquiagens e de recursos cênicos (momentaneamente
duvidosos) em suas manifestações.
Uma das estrelas principais do movimento originado na terra natal da Rainha
Elizabeth II foi, indubitavelmente, Bowie, que, no início da década que o projetou
definitivamente, posava de Marlene Dietrich na capa de seu álbum Honky Dory (1971)
revelando uma postura abusada, provocativa, de puro deboche (o glamour estilizado pelo
artista era a chave para a realização deste processo) e de liberdade sexual
118
impulsionada
118
Em entrevista concedida ao semanário Melody Maker, em 22 de janeiro de 1972, David Bowie falou
abertamente sobre androginia e bissexualidade, o que rendeu uma famosa chamada de capa: “Hi, I’m bi” [Oi,
sou bi].
pela ideologia hippie e pelo megahit “Changes”, um dos maiores de toda a sua carreira. Por
outro lado, este movimento foi responsável pela recuperação da sonoridade e do espírito
sonoro do Rock de Chuck Berry e pela liberação das subjetividades até a primeira metade
da década de 70 (cf. Só, 2005: 17-18), todavia, como todo fenômeno ligado a um aparato da
indústria cultural, o Glam foi vítima da publicidade excessiva, resultando em banalização,
provocando a sua extinção a partir de meados daquele decênio.
Os primeiros espectadores do Secos & Molhados foram os próprios integrantes do
elenco da peça, que, tal qual os restantes que estiveram no n 209 da Rua dos Ingleses em
São Paulo, ficaram encantados com o que viram naquelas apresentações feitas entre 17 e 21
de dezembro de 1972. No dia seguinte ao último show do conjunto, o Ruth Escobar
interrompia as atividades devido aos festejos de fim de ano. O sucesso perante o público foi
causado, em parte, pelo contraste da presença de palco dos integrantes enquanto Gerson
usava uma camiseta estampada e João estava caracterizado como um guerrilheiro, Ney, sem
camisa (por suar bastante), usava um insólito figurino que consistia de bastante purpurina
dourada espalhada pelo rosto e por todo o corpo, um enorme bigode de português (na
verdade, uma caracterização usada para as apresentações de A viagem) e uma grinalda na
cabeça, algo completamente improvável em meio à atmosfera de chumbo que se respirava
no Brasil dos militares no início da década de 70 e que escapava completamente da
proposta inicial do grupo, atrelada ao engajamento tradicional (cf. Vaz, 1992: 103).
Ao ver o amigo cantor pela primeira vez no palco como a voz principal do Secos &
Molhados, Paulinho Mendonça não conseguia esconder o espanto que sentiu: “A primeira
vez que vi o Ney no palco (...), levei um susto. De repente, pintou um animal que eu não
conhecia, e era difícil imaginar que existisse aquilo tudo contido dentro daquela pessoinha
que era amiga. Era outra pessoa” (apud Vaz, 1992: 255). Outro espectador que assistiu o
grupo na noite de estréia foi o produtor cultural e empresário Moracy do Val, acompanhado
do radialista e jornalista Valter Silva. Ambos gostaram muito do que viram. Moracy chegou
até a escrever um artigo de meia página para o paulistano Jornal da Tarde comentando as
apresentações vistas no Ruth Escobar. A divulgação extremamente incomum para uma
atração iniciante incitou a curiosidade do público e muitos se dirigiram ao teatro na noite
seguinte. Filas já se formavam para descobrir o novo conjunto musical que brilharia
fulgurantemente nas noites paulistanas desde então.
De acordo com Antônio Carlos Morare, o uso de máscaras aliado à ambientação de
caráter lúdico presente nas apresentações do grupo tinha uma plena razão de ser (cf.
Morare, 1974: 5), recriando uma espécie de Neverland em pleno Ruth Escobar: “Eles não
usa[va]m máscaras gratuitamente, com o objetivo único de parecerem ‘diferentes’. Só por
trás delas podem transmitir sua mensagem poética. Desse modo, surgem como seres
estranhos, vindos de um país de belezas, só de fadas e crianças”. Porém, enganam-se
aqueles que acreditavam que o impacto se restringia somente ao visual. Ele residia também
na voz
119
e na postura de palco do cantor: o timbre de soprano, “cortante e de surpreendente
extensão” (Albin, 2004: 324) se assemelhava às primas donnas da canção brasileira,
límpida e pouquíssimo masculina; o corpo, em exercício pleno da liberdade, dançava e
rodopiava em pleno palco tal qual Elvis Presley e Mick Jagger, embora nenhum destes dois
artistas tivessem ousado aparecer diante do público seminus e paramentados como Ney,
deixando aflorar quaisquer emoções que estivessem no limbo do inconsciente das pessoas
que estavam naquela platéia (cf. Vaz, 1992: 51).
O frontman daquele grupo que surgia no Teatro Ruth Escobar sabia que
manifestações de alto teor de sexualidade provocaria o assedio instantâneo de quem o
assistisse, por isso, achou necessário preservar sua identidade e vida pessoal criando um
nome artístico: “nascia naquele momento, com o conjunto Secos & Molhados, Ney
Matogrosso
120
(grifo nosso)” (Vaz, 1992: 51), envolto em máscaras, pinturas, enfeites ou
algo que o valesse para deixar seu rosto encoberto e distantes dos apelos do público em
geral. A preocupação do cantor em relação ao assédio do público é perfeitamente visível
em um trecho de uma entrevista concedida (ao lado de Gerson Conrad e João Ricardo) ao
jornalista Antônio Carlos Morare: “o fato da gente usar máscaras ameniza bastante isso,
119
Sobre este assunto, Ney justificou que, ao contrário de sua persona desconcertante, foi a sua voz o fator
primordial de sua permanência no show business nacional: “As pessoas esquecem disso, pelo fato de eu ter
sido sempre pelado, símbolo sexual e não sei mais o quê; mas uma bunda de fora não se mantém por vinte
anos, se não houvesse uma voz em primeiro lugar. Se eu não cumprisse bem a função de cantor, não teria
permanecido apenas por ser símbolo sexual; se fosse um cantorzinho, aconteceria o impacto naquela época e
já não existiria mais. O escândalo se mantém durante muito pouco tempo, e eu sei que a minha postura era
escandalosa e que muita gente, naquele primeiro momento, ia em busca do escândalo e da atitude desafiadora.
Em nenhum instante estive iludido, achando que as pessoas prestavam atenção apenas na voz maravilhosa.
Sempre entendi a história inteira, mas o que digo (...) é que se eu não tivesse a voz não teria sobrevivido tanto
tempo” (apud Vaz, 1992: 123-124).
120
O termo Matogrosso, como se pode reparar a partir do nome do pai do artista, é de origem familiar, além
de evocar o estado que deu origem a Ney. Entretanto, apenas as irmãs de cantor o assinam. Os filhos da
família Pereira, porém, não receberam o sobrenome.
porque a gente pode andar na rua e conversar normalmente com as pessoas, sem elas
saberem quem nós somos (...). Isso já facilita bastante (...)” (apud Morare, 1974: 52).
A indefinição da complexa personagem apresentada em cena seria uma meta de Ney
desde sempre:
Eu me apresento pelado, com um rabo de penas preso à cabeça, colares de dentes e
ossos envolvendo os braços, dedos postiços e grandes com unhas afiadas, cintura
com penas, pintura do rosto com várias cores complementando a máscara,
parecendo uma figura muito estranha. Mas não estou querendo criar nenhum tipo
específico com isso, não estou querendo parecer uma coisa específica. Talvez
procure, inconscientemente, a indefinição (...) porque quanto mais indefinido, mais
aberto e mais amplo pode ficar tudo. Se eu me definisse como um índio, seria um
índio. Se eu me definisse como um pássaro, seria um pássaro. Mas eu não quero ser
uma coisa nem outra. Quero ser tudo, uma figura que pode ser qualquer coisa
(Morare, 1974: 28).
Bené Fonteles também descreve u com sensibilidade a importância da teatralidade
desde as primeiras apresentações do Secos & Molhados:
O frêmito acontecia quando um estranho ser, que não parecia homem e nem carecia
ser mulher, adentrava audacioso e solene naquele palco. A face pintada não fingia
uma máscara. Esta também revelava dezenas de personagens exalando do corpo
que cantava. Era a incomum ousadia de um deus / deusa que celebrava, pela
primeira vez na música brasileira, uma extrovertida teatralidade e uma feminina e
prazerosa forma de cantar. E tudo isso habitava num único ser humano: Ney
Matogrosso (IN Fonteles & Fonseca, 2002: 39).
Evidentemente, o surgimento de Ney Matogrosso no palco da Casa de Badalação e
Tédio causou espanto até por parte dos outros integrantes do Secos & Molhados que além
de contar com Gerson Conrad e João Ricardo, tinha também o apoio de Marcelo Frias na
bateria, Willie Verdaguer no baixo e do guitarrista John Flavin (o flautista Sérgio Rosadas e
o tecladista Emílio Carrera se uniriam tempos depois aos músicos de apoio do grupo). Ney
não tinha a intenção de apenas ser a voz principal do Secos & Molhados, mas queria fazer
uso de toda a sua experiência acumulada em anos e anos de teatro (máscaras, purpurinas e
maquiagem definitivamente não era algo alheio a ele), sua vontade era de conceder à
canção a corporificação dos conflitos propostos por ela, uma performance que traduzisse
em gestos cênicos os versos e a musicalidade exuberante apresentada pelo grupo. Em
entrevista concedida a Bené Fonteles, Ney comentou a respeito da importância de sua
liberdade criativa e de sua experiência anterior como homem de teatro:
No primeiro ensaio eu perguntei: “O que vai sobrar de espaço aqui pra mim?” Eles
disseram: “Olha, sobra esse quadrado aí”. Eu disse: “Então vamos fazer um trato.
Aqui dentro desse quadrado eu vou fazer o que me der na cabeça, tá?”. Eles
concordaram. Nem eu, nem ninguém sabia o que eu ia fazer naquele quadrado. Eu
sabia que não queria ser um crooner, e que não queria perder minha privacidade.
Eu estava muito treinado na coisa do teatro, pois estava fazendo uma peça,
cantando e dançando. Resolvi liberar aquilo que eu sabia fazer, que era cantar e
dançar” (IN Fonteles & Fonseca, 2002: 102).
Como podemos observar, de acordo com este depoimento de Ney Matogrosso, o
palco não lhe concedia passado ou futuro: “Entro em cena com todo o meu fogo. Quando
estou lá em cima, liberto tudo que possa sair de mim. Não coloco barreiras” (Matogrosso,
1974: 78). Em outras palavras, ao utilizar amplamente (e corajosamente) sua sexualidade,
de seu timbre vocálico raro, de seus trejeitos extremamente incomuns, das máscaras
originadas pela maquiagem e purpurina e da androginia em si (cf. Severiano & Mello,
2002: 195), “Ney era uma bomba erótica, corpo masculino servindo de ‘cavalo’ a uma
rumbeira com alma de cigana” (Dias, 2003: 146). O artista não demonstrava a menor
preocupação em relação aos olhares do público e suas possíveis interpretações em relação
ao que se via nos palcos. Era indiferente se as pessoas, naquela época, o viam como
“homem, mulher, marciano, bicho, pomba-gira, louco, divino, tudo. E eu quero que cada
um continue vendo em mim o que bem entender. Quero ser tudo que as pessoas desejam
que eu seja” (Matogrosso, 1974: 78).
O sucesso da temporada na Casa de Badalação & Tédio foi tão retumbante que
surgiram matérias sobre as apresentações nos jornais paulistanos e a fama já ecoava pelos
ouvidos de toda São Paulo. O Teatro Ruth Escobar, que retornaria às suas atividades
originais apenas a partir da segunda quinzena de janeiro, foi reaberto dias antes para não
perder o embalo do sucesso de sua mais recente (e controversa) atração musical. Com uma
infra-estrutura maior, o Secos & Molhados foi convidado para mais uma temporada de 15
shows a partir de 9 de janeiro de 1973. As novas aparições do grupo causaram mais furor,
visto que cada vez mais pessoas ainda se concentravam nas redondezas da Rua dos Ingleses
na expectativa de ver as estripulias de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso no
palco.
Com o intuito de satisfazer a todos os interessados, as portas do teatro foram
abertas na última noite da temporada e Ney aproveitou a oportunidade para utilizar um
figurino um tanto especial: além dos componentes insólitos que compunham sua figura
cênica, amarrou um couro de jacaré nas costas, deixando o rabo arrastar no chão. Tal
escolha deixou a própria Ruth Escobar, que assistia ao espetáculo naquela noite,
completamente irada ao ver aquilo, pois ela achava que o Secos & Molhados era “um grupo
de maconheiros” e que não desejava aquele tipo de gente se apresentando em seu
estabelecimento. Tratava-se, na verdade, de uma tremenda contradição da parte da própria
Ruth, pois seu teatro era considerado um dos maiores símbolos da vanguarda teatral
paulistana devido às ruidosas montagens de O balcão, de Jean Genet e as primeiras
apresentações paulistanas do Grupo Oficina de Roda Viva, de Chico Buarque de Hollanda.
Por outro lado, em sua biografia, Ney Matogrosso comentou que o Secos & Molhados
atraía muitos usuários de drogas para as platéias de seus espetáculos e que, por isso,
naquele ano de 1973 se respiravam os ares revolucionários da contracultura, isto é, não
havia a menor preocupação com a procedência daqueles que iam ao teatro para assisti-los.
(cf. Vaz, 1992: 53-54).
Consciente do potencial artístico do grupo, Moracy do Val foi assistir o conjunto
mais uma vez com a intenção de propor aos rapazes a chance de aparecem em programas
de TV e shows agendados, além de uma promessa de contrato com uma gravadora. Foram
dezoito noites bastante compensadoras: no fim da temporada na Casa de Badalação e
Tédio, o Secos & Molhados seguiu rumo a uma série de apresentações pela cidade de São
Paulo, insistindo sempre na qualidade e originalidade dos espetáculos.
Apesar do lamentável episódio com Ruth Escobar, a temporada seguinte do Secos &
Molhados rendeu shows com lotação esgotada em vários clubes paulistanos (Juventus,
Corinthians, Pinheiros e Hebraica, por exemplo). A série de aparições de êxito do gr upo no
grande e caríssimo Teatro Aquarius, espaço administrado pelo empresário do grupo,
também foram memoráveis, pois o estabelecimento não era utilizado às segundas e terças-
feiras (ou seja, não havia nenhum custo por parte de ninguém) e já tinha abrigado vários
espetáculos jovens de sucesso até aquele momento, era o lugar perfeito para a garantia de
um público jovem e ansioso por novidades musicais.
Moracy do Val iniciou uma incansável estratégia de trabalho agendando shows e
enviando fitas-demo para várias gravadoras. Entretanto, foi apenas a pequena Continental
que apostou no sonho musical primeiramente formulado por João Ricardo e decidiu
contratar a nova sensação do público paulistano tempos depois. É importante ressaltar que a
proposta da companhia apenas se concretizou graças a Moracy, dirigente de um jornal
interno da empresa e conhecido dos figurões mais importantes da gravadora (cf. Vaz,
1992). Com a possibilidade de gravar o primeiro álbum em vista, iniciaram-se várias
sessões de ensaios de preparação para a gravação do disco, que ocorreria entre os meses de
maio e junho de 1973. É desse período de aprimoramento que datam as primeiras
apresentações do Secos & Molhados na TV (cf. Conrad, Anexo II) os programas
Mixturasom, Papo Pop e Band 13, interessados em exibir os mais jovens talentos musicais
daquele momento
121
, foram as primeiras atrações televisivas a exibirem o que se viu nos
palcos do Teatro Aquarius ou da Casa de Badalação & Tédio.
De fato, havia uma grande qualidade no que ocorreu naquele palco: o timbre único
da voz de Ney, somando-se aos violões serenos de Gerson e João, ao som de gaitas e
flautas, aos acordes ácidos de guitarras, baixo e muita percussão, além da androginia
transbordando por todos os poros do palco. Em 1973, era uma proposta ousada cantar
música com textos modernos, com visual provocante, expondo um rosto pintado e um
corpo sensual. Tudo soava muito estranho em um país conservador, vivendo sob um regime
autoritário. De acordo com um artigo de Geraldo Mayrink escrito na época, o Secos &
Molhados oferecia
músicas simples e ritmadas, fáceis senão de cantar pelo menos de acompanhar
batendo com os pés, exibem um encanto próprio de artistas imaturos, capazes de
esquentar uma temperatura morna, e começam a ser vistos como um conjunto
situado na terra de ninguém que vai do infantil ao pretensioso, do teatral ao
rebolado, da seriedade à curtição pura (IN Morare, 1974: 8).
121
De acordo com depoimento exclusivo de Gerson Conrad para este trabalho, dentre os jovens artistas que
também fizeram aparições nestes programas de TV estavam os pouco experientes Fagner, Simone e o grupo
de dançarinos Dzi Croquettes.
Tal mistura de tendências sonoras e visuais aparentemente excludentes
(especialmente se refletirmos a respeito do contraste entre os efeitos sonoros da flauta e das
guitarras ou do escândalo provocado pela junção de um bigode um símbolo absoluto de
masculinidade viril com uma grinalda na cabeça) resultava num espetáculo vigoroso:
Glam Rock (ainda que inevitável e instintivamente), folclore português, Rock ‘n’ Roll,
limites máximos de transgressão, tradição e modernidade de nossa música popular
conviviam amistosamente em um único espaço. Em outras palavras, a MPB tradicional se
encontrava com um Rock de traços latinos, resultando em uma musicalidade bastante
singular e inovadora.
Com o surgimento do Secos & Molhados, subvertiam-se mais uma vez as leis do
comportamento jovem no início dos anos 70 e revitalizava-se a cena musical transgressora
inaugurada pelos tropicalistas momentos antes. Tal resgate se deu a partir da existência de
Ney Matogrosso, “frágil e delicado”, “feroz e agressivo, satânico, feérico, pagão e sensual,
frio, racional e irracional” (Morare, 1974: 13), lembrando a ousadia dos Tropicalistas,
fazendo renascer a beleza das vozes de Ângela Maria e Nelson Gonçalves, a performance
cativante de colegas de geração como Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia, além de
reviver a postura cênica da exuberante Carmen Miranda
122
e até de um Caetano Veloso pós-
exílio, por isso vale evidenciar que
Ney era o resumo de todas essas vertentes numa expressão única: ele seria o
intérprete mais original do sonho desses artistas, com uma percepção precisa do
recurso teatral. Usava o instrumento corporal para ser, ele mesmo, a própria
canção; e estar à vontade com o seu nu e com as instrumentais vestimentas que lhe
oferecia sua amada musa: a música (Fonteles & Fonseca, 2002: 44)
De acordo com as palavras de Bené Fonteles, “Matogrosso era a provocação que
faltava; o auxílio precioso para desreprimir definitivamente a sutil libido poética da
machista utopia Brasil” (Fonteles & Fonseca, 2002: 40). A pluralidade de sons e a
“desabusada anarquia” (Fonteles & Fonseca, 2002: 39) nos palcos abarcavam diferentes
122
A influência da Pequena Notável na arte de Ney Matogrosso é altamente perceptível ao longo de sua
carreira. Uma analogia esclarecedora a respeito deste fato foi feita por Bené Fonteles: “Ney não teve medo de
ser a Carmen sem-vergonha de nossa ópera bufa carnavalesca ou a nossa refinada Miranda que, com seus
jujus e balangandãs, assume o risco fatal dos exageros” (Fonteles & Fonseca, 2002: 44).
faixas etárias, visto que antes do início das apresentações as mais diferentes tendências
(pacifistas, místicos, românticos, jovens e velhos, por exemplo) se aglomeravam na
bilheteria dos teatros, ou seja, o Secos & Molhados atraía “o público mais diferenciado e
contraditório em matéria de gostos e facções, de idade, classes e camadas sociais (Morare,
1974: 6). A imediata empatia do público é compreensível porque havia o desejo de “abrir a
panela de pressão da ditadura e [de] explorar os limites” (Fonteles & Fonseca, 2002: 43)
através de uma musicalidade e da performance exuberantes que
exprimiam a transparente vontade sensorial de todos os nossos desejos escondidos
no beco da sensualidade nacional. Havia ali a mais profunda cor do pecado da
realidade brasileira, exposta às vísceras naquela década de 70: nossa sexualidade
reprimida, sem o gosto fundamental do prazer; e a amorosidade, ainda mascarada
pelo discurso de posse e o sonho do poder.
Eram tempos em que extraímos, com mil ardis do que mais arraigado simbolismo,
os substratos para enganar engenhosamente a censura e revelar, ao mesmo tempo,
uma força criativa que nos trouxe um original projeto construtivo de encantamento
pelo humano e por estar no mundo (IN Fonteles & Fonseca, 2002: 41).
A contracultura e o desbunde tinham como características a irreverência herdada
pelos tropicalistas, a paródia e o experimentalismo, o culto ao corpo, para não citar outras
mais. A junção de todos estes elementos resultava em um fenômeno complexo,
independente, marginal, contrário ao status quo do início da década de 70. Envolto nesta
atmosfera efervescente, o exagero visual, a teatralidade implantadas pelo Secos &
Molhados lhe rendeu, automaticamente, um público numeroso e cativo em pouco tempo,
estádios passaram a concentrar uma quantidade de espectadores superior aos festivais da
canção, campeonatos esportivos e eventos de outro tipo. O Brasil estava diante de um grupo
disposto a se comunicar com quem estivesse apto a se libertar de uma visão de mundo
ditada pelo conservadorismo e questionar tabus que rondavam a sociedade brasileira
naquele contexto (cf. Morare, 1974: 12).
Em meio à cena do desbunde, conforme nos atenta Silviano Santiago, as divisões
entre a figura pública do artista e a do ser humano em seu lado mais mundano deixam de
existir. O chamado superastro, geralmente confunde as noções de real e artifício e faz de
seu comportamento espetáculo: uma “atitude artística da vida” se ligou de vez à “atitude
existencial da arte” (Santiago, 2000: 149), ocasionando, assim, a união da vida com o
palco. No caso de Ney Matogrosso, são aspectos referentes à sua personalidade como o
imaginário hippie e sua postura desaforada e abusada perante o status quo (até então
restritos ao plano do privado) que adentrava o espaço dedicado ao entretenimento. As
máscaras impediam sua figura humana de se tornar integralmente pública, mas não tinham
como não transformá-lo em um rico “significante em que os olhares se encontram para a
metamorfose carnavalesca” (Santiago, 2000: 149).
O Secos & Molhados é considerado pela crítica musical especializada como um dos
ícones do Pós-Tropicalismo e a única representação do Glam Rock no Brasil graças ao
apelo visual de suas apresentações e da postura cênica andrógina de Ney Matogrosso. De
acordo com esta variante musical “a música estava atrelada ao desempenho cênico,
enquanto a imagem do ídolo tornou-se parte da apresentação criativa dos músicos” (Shuker,
1999: 45) o que não deixa de ser verdade se nos remetermos ao visual insolitamente
andrógino, sarcástico e provocante de Ney e o encanto que ele provocava na mesma medida
em indivíduos de ambos os sexos e a conseqüente influência de sua postura cênica nos
outros integrantes e nos espetáculos do grupo. A novidade daquele momento, a androginia,
era não apenas um veículo de libertação, mas de afirmação da singularidade e da
subjetividade de muitos brasileiros em 1973, segundo o psicanalista Eduardo Mascarenhas:
Através da androginia, Ney trouxe uma mensagem de que toda singularidade é
possível. (...) [Ele não se apresenta] como um militante da androginia, e, sim, como
um militante da singularidade e da originalidade. No fundo, ele não é um
problematizador das identidades sexuais, mas da liberdade de possuir uma
identidade própria. As pessoas se fascinam com o Ney no palco, por ele manter a
verticalidade vertebral nesse lugar tão movediço e escorregadio. Se alguém centra-
se num lugar, ele transporta para o outro o respeito. Ainda mais ele, que se centrou
no lugar onde tão poucos conseguem fazê-lo, mostrando também que o intérprete
pode ser autor. Em outras palavras, Ney revela que a força de uma interpretação
adquire poder autoral, na medida em que a música cantada por ele tem uma co-
autoria sua muito forte. Raros são os intérpretes com essa pujança, e hoje, de uma
novidade que paira acima do tempo, como se tivesse passado por um processo de
canonização artística (apud Vaz, 1992: 294).
Por outro lado, na medida em que o grupo se revelou como um fenômeno musical
essencialmente jovem, surgiram (inevitáveis) comparações com o Dzi Croquettes ou
grandes nomes do Glam como Alice Cooper (cf. Bahiana, 2006: 50). Tais posições por
parte da imprensa desagradavam João Ricardo, que, certa vez, disse que os maiores
expoentes desta vertente musical eram do hemisfério norte e “refletiam a decadência de
uma sociedade superdesenvolvida, e nós somos brasileiros, um país subdesenvolvido” (IN
Bahiana, 2006: 50). Gerson Conrad justificava o uso da maquiagem como algo espontâneo
e original: “foi o inconsciente coletivo, um movimento paralelo ao que ocorria naquele
movimento no exterior” (IN Barbo, 2004: 52). Entretanto, enganavam-se os que
acreditava m que o Secos & Molhados não passava de uma “versão latinizada e pós-
tropicalista” (Sanches, 2004: 197) do Glam. A jornalista Mary Ventura, em artigo de 1974,
justifica o caráter inovador da arte veiculada pelo grupo:
Embora seja uma transposição mimética do que de mais atual esteja ocorrendo lá
fora, em termos de postura, o Secos & Molhados introduziu alguns elementos
originais que certamente são responsáveis pelo seu sucesso, ao contrário do que
ocorreu com outros grupos brasileiros que disputavam um lugar ao sol do consumo
apenas procurando transportar para cá, sem tradução ou mesmo adaptação, o
fenômeno musical que mobiliza hoje grande parte da juventude no mundo.
O que o Secos & Molhados consegue, na verdade, é fazer uma excelente tradução,
ou como quer seu líder, João Ricardo, uma reinvenção, talvez para ressaltar que o
seu trabalho não se limita a uma simples cópia [grifo nosso]. De fato, essa tradução
tinha aspectos muito criativos, e o primeiro deles é a escolha para astro central de
uma voz singularíssima, aqui e em qualquer parte do mundo: a voz de Ney
Matogrosso, que com seu incrível registro (...) é uma das mais insólitas e bonitas
surgidas na música popular brasileira. Ela é sem dúvida a grande vedete do
conjunto, por mais que este lance mão de outros sucessos de efeito fácil, como a
cuidada programação visual da cara do cantor e uma quase sempre exagerada
expressão (ou contorção) corporal, mais próxima de uma Maria Antonieta Pons do
que de um Alice Cooper, por exemplo, provocando nos melhores momentos vagas
evocações andróginas e, nos piores, duvidosas e incontidas associações (IN
Morare, 1974: 53-54).
Ao elaborar um Rock bastante personalizado e autêntico no qual cruzava o ritmo
consagrado por Elvis Presley com folk, fado, sonoridades à Bob Dylan e pós-Tropicalismo
e instituir uma postura teatral até então não vista em música popular, o Secos &
Molhados ultrapassou de forma definitiva as temáticas pacatas e a sonoridade inocente do
--Iê de Roberto, Erasmo e Wanderléa enquanto os versos possuíam um caráter
altamente crítico e politizado: Gerson Conrad usava a sua formação musical (Bossa Nova,
Jazz, Paulinho Nogueira) para compor uma musicalidade mais complexa e experimental.
João Ricardo lançava mão de versos de grande expressividade (seja poemas musicados ou
letras originais), com o intuito de atrair o público interessado por poesia e/ou por questões
mais políticas. Já Ney Matogrosso, com sua irreverência, deboche, exuberância e postura
cênica (muito mais agressiva que os gestos largos de Elis Regina e/ou os vestidos
provocantes da Ternurinha, diga-se de passagem), faziam das manifestações que se
assistiam no programa Jovem Guarda algo do passado (cf. Domingues, 2004: 174-175).
De uma certa maneira, o grupo foi responsável por uma espécie de reinvenção do
que se compreendia como Pop, sem a preocupação em definir os limites entre uma
expressão artística nacional ou internacional, contrariando as discussões que estiveram na
moda durante boa parte da década de 60. A provocação de João Ricardo a respeito desta
problemática é bastante enriquecedora e elucidativa para nossas análises:
Veja, pelo fato de ser português, [eu] tive uma formação dentro da música
estrangeira e do Rock... Enquanto vivia em Portugal, muito jovenzinho, não sabia
nada sobre música popular brasileira nem portuguesa nem nada. Quando cheguei
aqui, notei que havia brigas homéricas por causa disso, pra se saber o que era
importante pra música popular brasileira. Mas nessa época eu já pensava que todo
esse pessoal se desgastava à toa, pura e simplesmente, porque hoje você ouve um
disco nosso o que prova que era um desgaste e tem de tudo, e as pessoas
gostam (apud Morare, 1974: 43).
Apesar do Secos & Molhados ter se revelado como o que havia de mais
contemporâneo na música popular produzida no Brasil até aquele momento, era inegável a
influência do movimento tropicalista e do Iê--Iê não apenas na sonoridade plural presente
nos shows e no primeiro disco, mas, principalmente, na atitude de Gerson, João e Ney. Os
três comentaram a importância do Tropicalismo e do impacto do programa Jovem Guarda
para o grupo em uma entrevista concedida ao jornalista Antônio Carlos Morare em 1974. O
primeiro comentário a respeito deste fato a ser citado neste momento é o de João Ricardo,
líder do grupo:
Caetano Veloso e Gilberto Gil foram extremamente importantes para a existência
do Secos & Molhados. O “tropicalismo” (sic) foi uma abertura para a gente ser
hoje dessa forma. Roberto Carlos também foi importante, sabe, porque bem ou mal
ele abriu um mercado, uma linguagem nova para a juventude toda. Gil, Caetano
logo após, tentaram uma conscientização maior da juventude, tentaram acabar com
tabus na música e em uma porção de coisas. Hoje o Secos & Molhados é um
resultado disso tudo, como futuramente virá alguém que poderá ser o resultado de
nossa presença igual (apud Morare, 1974: 26)
123
.
Ney Matogrosso, naquela ocasião, comentou a importância de nomes como Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Roberto Carlos, sem deixar de apontar o caráter pouco criativo da
obra do Rei em relação aos baianos:
Definir essas pessoas é ver o que elas fizeram, e tudo o que fizeram é digno de
respeito, até mesmo o que o Roberto Carlos fez. Agora, Roberto Carlos ainda não
se modificou, continua como era (...), mas ele foi muito importante aqui há 10 anos
atrás. Caetano e Gil trabalharam certamente em seu tempo para dar nisso,
permitindo que hoje a gente fizesse isso. Mesmo Roberto Carlos influenciou para
que hoje a gente fizesse isso, embora Caetano tivesse sido o mais agressivo de
todos eles (apud Morare, 1974: 26-27).
E, por fim, Gerson Conrad complementou os comentários de seus companheiros de
Secos & Molhados com a seguinte declaração:
A importância deles não se discute mesmo. E, como foi dito, contribuíram
decisivamente para uma série de coisas que aconteceram aqui, inclusive para a
123
É interessante observar como o comentário feito por João Ricardo em 1974 é contradito em duas
entrevistas concedidas pelo mesmo em 2003. Em depoimento concedido por e-mail ao webclub Flores
Astrais, o fundador do Secos & Molhados afirmou que seu grupo jamais deveria ser incluso no contexto da
“música brasileira convencional” por ser algo incomparável com que se produzia naquele momento. A Isto É,
em dezembro de 2004, trouxe uma entrevista com o cantor e compositor na qual ele não poupava elogios e,
muito menos, críticas extremamente ferinas e ácidas a nomes como Caetano Veloso, por exemplo. João
afirmou naquela ocasião que tudo que o compositor baiano fez em sua carreira foi imitar o norte-americano
Bob Dylan (cf. Ricardo, 2004 & Ricardo, 2006).
gente, enquanto mostravam a continuidade de todo um trabalho, que a gente tenta,
inclusive, desenvolver (apud Morare, 1974: 27).
Caetano Veloso, em depoimento publicado em 1992, reconhece a importância do
legado tropicalista para o trabalho do Secos & Molhados, como também reconhece em Ney
Matogrosso um seguidor das tendências estéticas do Tropicalismo e, principalmente, por ter
compreendido o dado anárquico existente no que foi feito naqueles anos de 1967-1968,
radicalizando, numa atitude insolente e hiperbólica, fundindo objetos cotidianos, roupas,
linguagens, acontecimentos:
Lembro, por exemplo, do grande escândalo gerado pela minha forma de cantar “É
proibido proibir”: em vez de usar um smoking, apareci com uma roupa de plástico,
colares de tomadas elétricas, o cabelo grande e rebolando o quadril para frente e
para trás. Aquilo representou uma quebra de comportamento cênico do artista de
música popular, e o Ney foi uma das pessoas que souberam se beneficiar muito
bem deste tipo de comportamento (apud Vaz, 1992: 264-265).
Por outro lado, a musicalidade do Secos & Molhados não estava unicamente
atrelada ao Rock’n’Roll, e equilibrando-se entre canções mais agitadas e dançantes como
“O vira” e “Amor” e baladas de protesto tal qual “Rosa de Hiroshima” ou “Fala”. Em seu
site oficial, Ney afirmou que a postura do Secos & Molhados era levemente pautada no
Rock, pois esta não era uma prioridade musical dos demais membros, isto é, tratava-se de
uma atitude “desafiadora (...) [e] transgressora, mas o repertório era Pop (Matogrosso,
2007). O baterista do grupo Titãs, Charles Gavin
124
endossa o pensamento de Ney
Matogrosso ao afirmar que a sonoridade do grupo era bastante moderna naquele momento
histórico, por isso, impossível ser rotulada como a de um grupo de MPB ou de Rock, por
exemplo. A indefinição de um estilo musical por parte do grupo era uma espécie de trunfo e
um (necessário) descompromisso em relação ao cânone da música popular produzida no
Brasil até então.
124
Gavin, além de músico, é também um dos pesquisadores musicais mais importantes dos últimos tempos no
Brasil. Além de ter sido responsável pela remasterização e reedição dos dois primeiros álbuns do Secos &
Molhados em CD, reeditou os dois trabalhos solo de Gerson Conrad (Gerson Conrad & Zezé Motta, 1975 e
Rosto marcado, 1981) respectivamente pela Som Livre e Warner Music Brasil (Continental) e Seu tipo, de
Ney Matogrosso (Warner, 1979).
A não-identificação da musicalidade do Secos & Molhados com as variantes
musicais que compunham o cânone da MPB pode ser comprovada em uma declaração de
João Ricardo à Revista da MTV em janeiro de 2003: “Todo o garoto que amou os Beatles e
os Rolling Stones, seguramente, quis fazer o disco de sua vida o mais parecido possível (eu
me refiro artisticamente) com os emblemas dessas referências, por exemplo. No meu caso,
eu consegui” (Ricardo, 2003). As palavras que João Ricardo proferiu na época em que seu
conjunto estava no auge da fama também atestam este fato:
Eu não esqueço que vivo numa terra e numa realidade específica, mas ser ortodoxo
no fato de pegar a bandeira da música popular brasileira e sair por aí, é uma
besteira, na minha opinião. Eu tenho de entrar nas regras do jogo, que já existem, e
a partir delas tentar uma solução. Minha solução é essa: minha música pode ser
Pop enquanto vanguarda, mas não Pop enquanto Rock, porque ela não existe
enquanto Rock (IN Bahiana, 1980: 144).
Apesar das extravagâncias cênicas, o grupo se esforçava para não ser considerado
um símbolo do underground ou um estandarte-mor do gaypower. Em depoimento contido
no livro-reportagem de Antônio Carlos Morare, Gerson Conrad declarou que o grupo não
se enquadrava nos moldes dos movimentos citados. Vale lembrar também que o livro Secos
& Molhados se inicia com a seguinte tese: “Quando as pessoas pensam no conjunto Secos
& Molhados interpretando (...) formam logo na mente a imagem de três jovens que cantam
com a voz fina, dançam e rebolam como mulheres (Morare, 1974: 5). O autor da referida
obra elencou, na mesma página, mais um argumento “infalível” para a comprovação de sua
tese: “Mas logo se vê que o grupo não é isso, que possui um encanto próprio e que um
mistério profundo o envolve. São três jovens (...) que surpreendem o ouvinte com uma
variedade tão grande de sons a ponto de impedir qualquer definição simplista” (Morare,
1974: 5). A partir das informações expressas acima, cabe questionar se a preocupação do
Secos & Molhados ser composto por gays partiu de integrantes do grupo ou do próprio
autor da obra citada.
Ney Matogrosso revidava de maneira desaforada (e até agressiva) às pressões que
surgiam de todos os lados, afirmando que se ele não tivesse a liberdade necessária para
trabalhar, outro vocalista poderia substituí-lo prontamente. Paulinho Mendonça sentiu a
necessidade de intervir para resolver o impasse criado naquele momento:
Durante as primeiras apresentações, ainda na Casa de Badalação & Tédio, eles
vieram passar uns dias no Rio, e a gente conversava muito, andando pela praia.
Naquele início, somente o Ney cantava pintado, e eu tentei explicar ao João
Ricardo que não fazia sentido apenas um dar nas cadeiras, como um bugre, e os
outros permanecerem caretas, por trás dele. Era preciso criar uma imagem de
conjunto, e cantar mascarado talvez significasse vestir o que existia de mágico na
sica claro que utilizando uma pintura coerente com o psiquismo e a
personalidade de cada um. E isso realmente aconteceu. Hoje, quem olha as fotos do
Secos, percebe pinturas bem individualizadas (apud Vaz, 1992: 255-256).
Gerson Conrad relatou que tanto sua família quanto a de João Ricardo
questionavam a respeito da sexualidade dos dois e não escondiam o incômodo decorrente
da postura cênica ousada de seu colega definitivamente não devia ser algo muito palatável
para uma estrutura familiar chefiada por um integrante da Fundação Rotary (a de Gerson) e
um tradicional clã de portugueses (a de João, notoriamente) compreender a utilidade dos
trejeitos rebolativos de Ney Matogrosso no palco. Existia por parte de todos uma
preocupação em relação à imagem pública de cada um e aos valores recebidos por cada um.
O co-autor de “Rosa de Hiroshima” nos oferece um exemplo do desconforto gerado nas
apresentações do Secos & Molhados:
Eu me lembro de um show em janeiro de [19]74, no Rio, que foi a primeira vez que
eu fiquei sozinho com o Ney no palco, e num momento, ele vinha dançando de
uma extremidade do palco e eu da outra, e quando a gente se cruzava, fazia a
menção de um beijo durante os ensaios. Na hora do show, ele resolveu me beijar de
verdade. Me pegou de surpresa, mas tirei aquilo de letra. Mas a cena chocou a
minha mãe, a mãe do João, a irmã do João, os amigos que estavam na platéia.
Aquele beijo, inclusive, passou a ser uma constante do show, mas não me
incomodava (Conrad, 2004: 8).
Naquela altura dos acontecimentos, era tarde demais para dispensar a estrela
ascendente de Ney Matogrosso, o que não deixava de desvirtuar a proposta original de João
Ricardo em relação ao visual dos componentes do grupo planejado por ele sua primeira
intenção era vestir todos com figurinos de guerrilheiros cubanos, ao estilo de Che Guevara,
possibilidade que deixava Ney em estado profundamente receoso. Em outras palavras,
tratava-se de realizar um trabalho engajado de forma tradicional, à moda da canção de
protesto dos anos 60. No decorrer do ano de 1972, período no qual apenas o repertório do
Secos & Molhados foi ensaiado, ninguém tinha refletido a respeito da visualidade a ser
adotada posteriormente pelo grupo (cf. Vaz, 1992: 103-104), ficando apenas a versão de
que fora Luhli que completou com purpurina o rosto sujo de graxa de Ney. Todos
concordavam e a maquiagem passou a ser elemento integrante às personalidades do grupo.
A controvertida imagem ganhou ares (bem) mais atraentes no momento em que
ocorreu a primeira entrevista concedida pelo Secos & Molhados a um jornal (cf.
Matogrosso apud Fonteles & Fonseca, 2002: 104). Enquanto Gerson Conrad e João
Ricardo apareceram vestidos de maneira “convencional” no Jornal da Tarde, Ney
Matogrosso surgiu com seu vestiário hippie, deixando a barriga exposta algo bastante
inquietante naquele tempo, rendendo comentários por parte dos jornalistas, influenciando
de vez os figurinos que seriam utilizados pelo grupo a partir de então e apresentando a
androginia no contexto cultural do Brasil da década de 70. Ney justifica o porquê de sua
roupagem:
Essa era a roupa dos hippies, e eu andava desse jeito pela rua: calça saint-tropez,
uma camisetinha que parecia um bolero e o umbigo de fora. Isso em plena São
Paulo, que era uma caretice. A gente entrava na Hering e comprava umas camisetas
listradinhas para crianças de quatro ou cinco anos, que mal cobriam o peito, e vivia
vestido dessa maneira. Achei engraçado que, dois dias depois da referência no
jornal sobre a minha maneira de vestir, o João Ricardo apareceu com uma dessas
camisetinhas listradas, que ele não usava até então. Isso me fez perceber como o
assunto devia ser controvertido na sua cabeça: ao mesmo tempo que incomodava a
possibilidade de ser chamado de bicha, ele sacava um filão atrativo e capaz de
mobilizar as pessoas. O João Ricardo possuía tino comercial, e acho que foi por
isso que desistiu de me forçar a mudar a minha manifestação no palco, e também
não colocou outra pessoa no meu lugar. Depois de algumas apresentações, ele é
que começou a modificar seu visual e a se aproximar muito mais da minha
proposta. E claro que o filão explorado pela imprensa caminhava sempre para o
lado da androginia; com o Secos e Molhados era isso mesmo, não tinha nem como
lutar contra. Imagina, no início da década de 70, um homem cheio de penas na
cabeça, pintado, se requebrando seminu. O que eles iam dizer? Em algumas
publicações, eu sentia nítido que eles queriam mesmo era me chamar de veado,
mas, como não tinham coragem, optavam pelo andrógino. E, depois, andrógino
acabou virando uma palavra da moda. Aliás, a primeira vez que eu li, não sabia o
que ela queria dizer, apesar de já ter ouvido falar de plantas andróginas. Quando
descobri o significado, percebi que a imprensa havia descoberto talvez a única
palavra para definir sob um certo aspecto, o que eu buscava com o meu trabalho
(Vaz, 1992: 103-104).
A postura desabusada do vocalista do Secos & Molhados, posteriormente se
transformou em uma atitude desafiadora assumida pelos outros integrantes para imprimir
uma espécie de auto-defesa. Em tempos nos quais exercitar a sexualidade era um
verdadeiro acinte por parte dos mais conservadores, é altamente compreensível a escolha
feita por João Ricardo e Ney Matogrosso, como podemos notar a partir de um comentário
feito pelo próprio vocalista do grupo a sua biógrafa, Denise Pires Vaz, no início da década
de 90:
O Secos e Molhados era frontalmente desafio. Mas, se você ataca antes, já impõe
um certo respeito. E eu fazia isso: não dava chance de ninguém me atacar, porque
agredia primeiro. Logo no início do conjunto, percebia que as pessoas ficavam
chocadas só com a minha figura. Aí pensava assim: “Até agora não fiz nada para
chocar, e vocês estão assim? Pois vão ficar chocadas, agora, com razão”. E aí ia
descendo a calça, segurava meu pau com a mão, virava e mostrava a bunda de fora.
Outra hora, sentava em cima de chifre. Desaforo total contra tudo. Rebeldia sem
causa. Em 73, isso era demais para a cabeça das pessoas. E sacar isso só fazia eu
enlouquecer cada vez mais. Dizia pro João Ricardo: “Vou ficar de quatro na sua
frente, e você finge que está me comendo”. O mesmo tipo de coisa que os Dzi
Croquetes fizeram depois, mas que aí já se considerava balé. No Secos e Molhados
não tinha nem essa justificativa. Era pura loucura. O João Ricardo ficava atrás de
mim rebolando, me agarrando, e eu ficava de quatro olhando sério para a cara das
pessoas (Matogrosso apud Vaz, 1992: 56-57).
Em determinadas ocasiões a postura cênica agressiva de Ney Matogrosso não
causava apenas fascínio por parte do público, mas dava margem a sentimentos agressivos
de alguns, o que provocava reações vindas diretamente do palco, conforme é descrito por
Denise Pires Vaz:
Uma vez, quando [Ney] cantava num ginásio para cinco mil pessoas, uma parte do
público começou a chamá-lo de bicha. Pensou que, se ficasse quieto, perderia o
controle da situação e todo mundo iria agredi-lo. Parou de cantar e fez uma pose
linda. Continuaram chamando-o de bicha. “Olha, então vocês vão tomar no cu”.
Passaram a jogar flores em cima dele e a bater palmas. Não entendeu nada.
Precisava compreender melhor alguns componentes daquela história: por que
somente uma reação agressiva fazia a parte do público que estava calada se
manifestar e calar a boca dos que o estavam agredindo? Não encontrava resposta,
apesar de já possuir dados interessantes sobre o comportamento das pessoas.
Percebera, por exemplo, que essas manifestações agressivas só apareciam nos
momentos em que cantava músicas mais delicadas e sensíveis, como Rosa de
Hiroshima . Nas horas de brabeira, quando agredia o público deliberadamente,
ninguém reagia. Gostava também dos momentos em que alguém fazia um fiu-fiu,
crente que o estava ofendendo. Quando ele adorava o fiu-fiu, a pessoa (em geral,
um homem) imediatamente se calava. Ney confessa que adorava a manifestação
por duas razões: primeiro, para sacanear o manifestante, e, depois, porque estava
tirando alguém do sério para um homem ter coragem de fazer fiu-fiu para outro
homem é porque se sentira bastante ameaçado e agredido. E aí partia também para
o que considerava uma agressão: um elogio destinado somente às mulheres.
Quanto mais aconteciam essas reações, mais Ney se esmerava nas provocações.
Aparecia com um pássaro vermelho pousado no ombro, ou com borboletas na
cabeça, cada vez mais requintado e tentando atingir a essência da questão: o limite
preconceituoso entre homem e mulher. Nunca procurou fazer uma cópia de mulher.
Ao contrário. Quis defender o direito de o homem também ser sensual e atraente
(Vaz, 1992: 57-58).
As impressões de Luci Dias são bastante elucidativas para uma compreensão geral
da (necessária) agressividade de Ney Matogrosso nos palcos:
Fosse o que fosse, ele provocava sobressaltos na libido de todos, e a androginia de
todos, e a androginia de cada um saía do armário para brincar com Eros ali
encarnado, contestando regras e limites claros, borrando as fronteiras do “é homem
ou mulher”, sem outra possibilidade (2003: 146).
Para completar este quadro, nada melhor do que resgatar as palavras de João Nunes
a respeito da ousadia do Secos & Molhados em um contexto político-cultural totalmente
marcado pela falta de liberdade e pelo moralismo exacerbado: “Quase tudo no Secos &
Molhados beirava a metáfora. Nada era explícito, nada era dito de cara, mas os efeitos
seriam perfeitamente assimilados, como discutir o homossexualismo através do
personagem interpretado por Ney Matogrosso” (Nunes, 2003). Logicamente o preconceito
faria uso das atitudes de outras pessoas para mostrar sua vil missão em nome da moral e
dos bons costumes. Um dos artistas mais censurados e perseguidos pelo regime militar foi o
cantor e compositor brega Odair José, que teve muitas de suas canções censuradas “Vou
tirar você desse lugar” e “Pare de tomar a pílula”, por exemplo, incomodavam
profundamente os generais por abordar temáticas nada puritanas e um tanto revolucionárias
para a época. Como vários artistas que sofreram com o peso das botas da censura, o “cantor
das empregadas” prestou depoimento às autoridades com o intuito de justificar o uso de
determinados termos em suas criações e questionou as autoridades afirmando uma postura
preconceituosa, como descreve o historiador Paulo César de Araújo:
Esse desrespeito às leis do país dos generais efetuado por Odair José, por Chico
Buarque e por outros compositores da época, constitui mais um dos capítulos da
resistência do músico popular às arbitrariedades do período da ditadura militar no
Brasil. Mas no caso específico de Odair (...), este embate vem também
acompanhado de algumas contradições, como a que aparece no diálogo que ele
travou com um alto oficial do Exército, no Rio de Janeiro, ainda em conseqüência
da proibição de “Pare de tomar a pílula”. O cantor recorda que, lá pelas tantas,
depois de ouvir o militar fazer seu proselitismo contra a canção, não se conteve e
desabafou. “Poxa, general, mas pílula é uma coisa normal. É engraçado, o senhor
permite o Ney Matogrosso e os Secos & Molhados fazerem uma proposta de gay
(...) e não permite que eu faça uma proposta de homem?! O senhor é gay? O
exército é gay? Eu fiz essa pergunta ao general”.
Esta atrevida intervenção do cantor não poderia mesmo passar sem uma resposta do
militar. “Ele mandou eu me retirar da sala. Ou melhor, ele me respondeu de uma
forma que o advogado que estava comigo me olhou e disse ‘é hora de sair’. Mas o
general falou coisas do tipo ‘o senhor não é grato’, ‘se não está satisfeito que mude
do país’, esse papo todo. Aí eu fiquei até meio assustado” (Araújo, 2003: 65).
Em maio de 2006, Odair concedeu uma entrevista ao apresentador Jô Soares e
retomou as críticas aos militares e a Ney Matogrosso. Meses depois, no entanto, o cantor
buscou afirmar, em um chat promovido pelo portal UOL, que não guardava qualquer
espécie de preconceito em relação ao vocalista principal do Secos & Molhados, e que, na
verdade, questionava a decisão dos militares em censurá-lo enquanto o grupo prosseguia
em suas atividades “impunemente”. Naquele contexto, uma internauta questionou
duramente Odair José a respeito desta polêmica passagem:
(08:48:24) Maria: No Programa do Jô você disse que, quando foi censurado,
questionou os censores, pelo fato de censurarem a você, e não a Ney Matogrosso.
Continua com esse preconceito quanto a ele? Lembro-me que ele gravou, inclusive,
uma canção sua.”
(...)
(08:51:38) Odair José: Maria, eu não tenho preconceito contra o Ney, sou fã dele.
Pensei até em convidá-lo para participar do meu DVD, cantando a música. Eu
questionei a censura, que censurou uma música minha que falava sobre sexo entre
homem e mulher; e não censurava a postura andrógina do Secos & Molhados. Eu
não queria que ele censurasse o Ney, mas que me permitisse também (José, 2006).
Um acontecimento ocorrido com pessoas ligadas aos integrantes do grupo é
exemplar para ilustrarmos o quanto a curiosidade de parte do público estava atrelada ao
preconceito. No momento em que o Secos & Molhados se transformou em uma mania
nacional, Luhli recebeu seu primeiro cheque referente aos direitos autorais das canções do
primeiro disco e se juntou a seu marido Luiz Fernando e a Lucina em um cruzeiro turístico
de um mês pelas principais cidades litorâneas do Brasil. A popularidade do grupo era tão
absurda naquele momento (1974) que os 500 passageiros do navio embarcaram (e
cantarolavam) ao som de “O vira”. Muitos dos viajantes, inclusive os integrantes da
tripulação, perguntaram a Luhli inúmeras vezes a respeito da sexualidade de Ney
Matogrosso, despertando respostas das mais inusitadas:
Eu tive todas as reações. Tive a reação de dizer: “Não sei e não quero saber! Meta-
se com a sua vida!”, “O que eu tenho a ver com isso?!” ou “O mais importante não
é saber se ele é bicha, [mas] saber da vida dele como músico!”, “Vai dormir com
ele pra ver!”. Eu fui passando por todas as respostas. No final, eu já dizia assim:
“Meu amor, você quer saber se eu vou dizer? Mas é claro que não!” (risos). E eu
aprendia a dizer o NÃO com o maior sorriso... As pessoas têm um interesse
absurdo na sexualidade dos outros
125
.
Outro que fez questão de mostrar a face da insensibilidade foi o apresentador
Abelardo Barbosa, o Chacrinha. Enquanto se revelava como “mais um vigilante da moral e
dos bons costumes” (Araújo, 2003: 66) e exigia que a censura atuasse perante artistas como
Gal Costa e Maria Bethânia
126
, também não deixou de alvejar Ney Matogrosso e seu grupo.
De acordo com a língua ferina do Velho Guerreiro, o Secos & Molhados deveria ser
implacavelmente combatido pelos censores e pelo Juizado de Menores por ser “rebolativo,
erótico e muito do bichânico”, visto que o vocalista principal deste fenômeno de vendas era
“muito mais comprometedor, mais erótico do que qualquer travesti”. Ao saber das
limitações impostas pela censura aos trejeitos do cantor, o apresentador não hesitou em
exclamar: “Bem feito, pra tomar jeito” (Araújo, 2003: 67). Percebe-se que os artistas da
contracultura, ao exibirem perversa e anarquicamente a desmesura, conseguiam abalar as
instituições conservadoras que detinham o poder do país.
As posturas contrárias ao grupo no Brasil durante os anos de 1969 e 1974, atingiam
o plano político e se estendiam aos redutos da moralidade. Em outras palavras,
durante os “anos de chumbo”, que compreendem todo o período do governo
Médici (...), a repressão moral caminhou passo a passo com a repressão política. A
referência explícita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. E
além de programas de TV, diversos filmes, livros, revistas, canções e até obras de
gênios da pintura foram proibidos ou mutilados pela censura. Em 1973, foi
impedida de circular no Brasil um álbum com a reprodução de 347 gravuras
eróticas de Picasso. Como enfatiza o general Antônio Bandeira, que na época
dirigia a Polícia Federal, “a nossa preocupação era moral. Mulher pelada não
podia” (Araújo, 2003: 55).
125
Este relato foi feito por Luhli, em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de 2006.
126
A implicância do apresentador foi originada a partir dos álbuns Drama Anjo Exterminado (1972), de
Bethânia e Índia (1973), de Gal, nos quais as duas evidenciavam seus dotes mais sensuais nas fotos dos
encartes. Tal postura se revela como profundamente contraditória se não nos esquecermos de que a linguagem
chula do Velho Guerreiro e suas Chacretes seminuas e extremamente sensuais seriam um motivo e tanto para
que a tesoura afiada dos militares atuasse com pleno rigor. A partir da análise destes fatos, cabe perguntar se,
partindo da lógica do Sr. Abelardo Barbosa, a censura não deveria também atuar sobre a Discoteca do
Chacrinha...
As primeiras aparições do grupo no vídeo (antes da gravação do primeiro disco,
diga-se de passagem) causaram bastante celeuma por parte das autoridades oficiais, visto
que as emissoras de TV estavam sob total vigilância dos militares. De acordo com o diretor
do Mixturação, Nilton Travesso, o tipo de pressão exercida pelos censores era de ordem
psicológica, os interrogatórios eram ocasiões nas quais se faziam claras ameaças devido a
programas de TV que se produziam no início da década de 70 (apud Silva Júnior, 2001:
285/286).
Em determinadas ocasiões não existia uma preocupação com o conteúdo político
das grades de programação, mas sim com quaisquer aspectos que estivessem fora da moral
conservadora vigente. Na época, havia uma censora, senhora de idade, conhecida como D.
Solange, que se insurgia contra as temáticas sexuais “agressivas”, “irreais” e dotadas de
uma “mensagem diferente”: “Ela achava (...) que, ao permitir[mos] as apresentações de
Ney Matogrosso com o grupo Secos & Molhados na televisão, nós estávamos incentivando
o homossexualismo” (Travesso apud Silva Júnior, 2001: 285). Muitos militares
conservadores também não escondiam o desconforto ao ver Ney Matogrosso seminu, se
apresentando provocativamente diante das câmeras de TV. Para não serem impedidos de
aparecerem, Gerson Conrad e João Ricardo tiveram de pegar roupas emprestadas com
Lennie Dale e os outros dançarinos do Dzi Croquettes de forma que a censura não vetasse o
Secos & Molhados.
Dentre vários brasileiros que devem ter se chocado com o grupo no vídeo, há um
caso bastante peculiar: apesar de ter recebido vários avisos do filho famoso, Antônio
Matogrosso Pereira, descrente de que o filho se tornaria repentinamente famoso um dia,
não conseguiu esconder o impacto profundo que sentiu ao ver Ney em seu aparelho de
televisão cantando com voz fina no programa Clube dos Artistas, de Airton Rodrigues,
maquiado, requebrando e usando uma calça de odalisca semelhante a uma saia. A família
Pereira só conseguiu acreditar que a voz daquele conjunto era realmente de Ney quando
uma amiga da família retornou de São Paulo a Mato Grosso confirmando as suspeitas de
todos. Algo bastante estarrecedor para um militar da Aeronáutica, rígido ao extremo como
chefe de família, no limiar de 1973, auge da repressão moral, política e existencial imposta
por seus colegas de patente, integrantes do governo.
A mãe do cantor, Beita de Souza Pereira, se revelou uma admiradora confessa do
trabalho do filho e mostrou vontade de vê-lo no palco. Ao ser informado de que sua mãe
assistiria um dos espetáculos do Secos & Molhados, Ney Matogrosso avisou: “Mãe, você ia
me dar um susto, mas garanto que levaria um susto ainda maior, porque eu estou pelado”.
A advertência não a impediu de se dirigir a um show e se deixar encantar pela magia do
grupo: “Vi o Secos pela primeira vez em São Paulo (...) e achei bonito demais. A gente
esperava o Ney aparecer por uma porta, e ele surgiu de um buraco feito no chão do palco.
Parecia um sonho!” (IN Vaz, 1992: 289).
O Sr. Matogrosso assistiu Ney ao vivo apenas em 1975, quando estava de serviço
em São Paulo. Dona Beita pedira-lhe que acompanhasse as filhas no show Homem de
Neanderthal, primeira incursão do cantor nos palcos após o Secos & Molhados. Antes de
assistir o espetáculo, tomou um remédio para o coração; iniciada a apresentação, não
desgrudou os olhos do palco um minuto sequer. Findo o show, assumiu diante de uma de
suas filhas que presenciara a estréia solo de um grande artista e, desde então, começou a
escutar os discos do filho em volume ensurdecedor para que jamais se esquecesse das
sensações obtidas no teatro (cf. Vaz, 1992: 59/289).
Apesar dos preconceitos e das perseguições do regime militar, que o viam como um
travesti (cf. Vaz, 1992: 59), Ney Matogrosso conseguia driblar a censura de seus
opositores, como ele mesmo contou a Bené Fontelles:
“Você está passando dos limites”. Quanto mais eles me mandavam recados, mais
louco eu ficava. Eles queriam me proibir na televisão por causa da androginia. E a
primeira vez que [a] gente fez televisão em São Paulo, um censor lá dentro disse:
“Olha, você não pode aparecer pintado desse jeito, porque isso é coisa de mulher”.
Eu disse: “Olha, me mostra uma mulher com cara pintada de branco do queixo até
a testa, de preto do nariz até a orelha. Eu nunca vi uma mulher pintada assim”. E aí
o rabo de cavalo não podia, porque rabo de cavalo era coisa de mulher. Eu disse:
“Mas o rabo de cavalo é porque o cabelo é uma coisa muito valorizada. Não quero
valorizar o cabelo exatamente, quero tirar esse valor dado ao cabelo. Por isso eu
prendo o cabelo”. E ele ainda disse: “Mas não pode se requebrar”. E eu: “Tudo
bem, não precisa me mostrar da cintura pra baixo”. Ele não desistiu: “Mas, e esse
olhar?”. Eu saquei o que eles estavam vendo, mas me fiz de desentendido e disse:
“Ah, mas eu não sei do que vocês estão falando”. Não sei o que eu estava pensando
naquele momento, mas sabia perfeitamente bem tudo a que ele estava se referindo.
Era sobre um olhar muito incisivo, olho a olho com o espectador de casa. Isso
também foi uma coisa subvertida por nós, porque esse olhar não existia dentro da
televisão. Quando nós viemos à TV Globo pela primeira vez, a primeira coisa que
disseram foi: “Vocês não podem olhar pras câmeras”. Eu disse: “Mas eu quero me
comunicar com quem está em casa”. Disseram: “É, mas não pode olhar para as
câmeras”. E falei: “Mas eu vou olhar sim”. Eles sabiam desse poder. Era uma lei
dentro das televisões: “a câmera mostra você, mas não olhe pra ninguém em casa”.
Ninguém se comunicava diretamente (apud Fonteles & Fonseca, 2002: 103-104).
Em 23 de maio de 1973, o estúdio Prova teve suas portas abertas para a gravação de
um dos discos mais importantes da música popular brasileira. Em um espaço de apenas 15
dias, 13 faixas foram produzidas precariamente em 4 canais, sendo que em uma delas o
grupo teve a participação especial de Zé Rodrix responsável pelos arranjos de “Fala” (de
João Ricardo e Luhli) e por tocar piano, ocarina e o sintetizador nesta mesma canção. O uso
deste último instrumento era algo bastante audacioso pelo fato de ser pouco usado nos
discos produzidos naquela época.
A capa do primeiro álbum foi um episódio à parte: idealizada pelo fotógrafo
Antônio Carlos Rodrigues, ela foi eleita pelo jornal Folha de S. Paulo, em 2000, como a
melhor dentre todas as capas de discos produzidos no Brasil nos últimos tempos. Ao
contrário do que a maior parte do público acredita, Rodrigues já tinha a idéia da capa antes
de ser convidado por João Apolinário a fazer seu trabalho mais conhecido, conforme
depoimento cedido pelo próprio fotógrafo a uma edição especial da Revista Bizz (2005: 66-
67). Em uma viagem que o fotógrafo fez ao Rio de Janeiro, ele encontrou numa praia
carioca moças com o rosto pintado tal qual Gerson, João e Ney isso lhe serviu de
inspiração para a produção de um ensaio fotográfico com sua esposa, na época, modelo. A
cabeça da manequim foi “servida” em uma espécie de travessa, semelhante à capa do disco.
Surpreendentemente, as fotos foram recusadas por uma revista e só foram publicadas pela
Fotoptica porque Antônio Carlos Rodrigues não cobrou os direitos autorais de seus
originais o editor do periódico foi avisado de que um dia pagariam dez vezes o valor
merecido pelas fotos.
João Apolinário na época, colega de Rodrigues no jornal Última Hora decidiu
procurar o fotógrafo após uma apresentação do Secos & Molhados, convidando-o para
fazer a capa do disco. O pai de João Ricardo alegou que não poderia pagar um cachê muito
alto porque a Continental não liberara uma quantia financeira considerável por não
acreditar na banda (o fotógrafo afirmou à revista Bizz que, na moeda corrente, seu trabalho
lhe rendera o montante de apenas 80 reais). Ao tomar conhecimento do nome do grupo,
Antônio Carlos Rodrigues montou uma mesa de jantar em seu estúdio fotográfico com
produtos perecíveis vendidos em armazéns (amendoins, manteiga, frutas, vinho, lingüiça
etc), serrou quatro buracos de maneira que as cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo,
Gerson Conrad e Marcelo Frias, respectivamente, fossem encaixadas e se assemelhassem a
pratos principais de uma farta refeição, acompanhada de quitutes A obtenção do produto
final tomou toda uma madrugada, resultando em sensações de frio extremo debaixo da
mesa e de grande calor na região da cabeça para cima (cf. Vaz, 1992: 207).
Antes de qualquer coisa, é necessário observar que o baterista argentino Marcelo
Frias (cujo verdadeiro nome é Raul Carlos Frias) era considerado como o quarto integrante
do Secos & Molhados até o final da sessão de fotos para o primeiro disco. O músico veio
para o Brasil nos anos 60 e fez parte do grupo de rock Beat Boys junto com Willie
Verdaguer o mesmo que acompanhou Caetano Veloso com a canção “Alegria, Alegria”
(os arranjos desta canção foram feitos pelo mesmo baixista que acompanharia o Secos &
Molhados anos depois!) no III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record no ano
de 1967. Também gravou com outros nomes como Roberto Carlos, Walter Franco, Ronnie
Von e Gal Costa chegou a tocar percussão na gravação que Gal Costa fez de “London,
London”
127
. Entretanto, Frias decidiu continuar apenas como músico de apoio por não ter a
obrigatoriedade de se apresentar maquiado tal qual os outros integrantes e por não desejar
fazer parte de uma banda com probabilidades de sucesso incerto.
Gerson Conrad, em depoimento concedido a Sérgio Barbo (2004: 51), confirmou
este fato: “Convidamos os músicos [de apoio] para se tornarem membros oficiais do grupo,
mas só o Marcelo aceitou. Depois, receoso, ele preferiu seguir como músico contratado,
mas a foto [da capa do disco] já havia sido feita”. Marcelo Frias se recusa terminantemente
a conceder entrevistas sobre o assunto provavelmente pelo fato de ter se arrependido de
tamanho engano cometido. Pouco tempo depois, por divergências com os colegas, o
baterista foi substituído por Norival D’Ângelo e sequer chegou a participar das gravações
do segundo álbum.
127
IN: Gal Costa, LeGal (1970).
Não seria demais analisar que o cenário montado para a capa do disco demonstrava
não apenas o impacto do receptor em vislumbrar quatro cabeças humanas sendo servidas
para “pessoas na sala de jantar” “preocupadas em nascer e morrer”
128
. Para outros, também
evidenciava a idéia do desejo e da subjetividade coletivas, asfixiadas pela morte, uma
metáfora da falta de liberdade de pensamento e expressão que reinava no Brasil de então.
Outra leitura possível se prendia à idéia de que a música do Secos & Molhados era
desprentensiosa e se oferecia para o ouvinte livremente. A partir desta última possibilidade
interpretativa, torna-se inevitável não nos esquecermos de uma famosa máxima proferida
pelo modernista Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago: “Só a antropofagia
nos une” (Andrade, 1995: 47).
A aparição de Gerson, João e Ney na programação da TV Globo, em 3 de agosto de
1973, foi fundamental para que canções como “Sangue latino”, “O vira” e “Rosa de
Hiroshima” se tornassem populares no território nacional. O número musical acontecia num
cenário bem produzido em pleno Teatro Fênix, que recriava a controvertida e trabalhosa
capa do disco. O resultado final causou um tremendo impacto aos receptores. Era o
primeiro ano do Fantástico, atração quase obrigatória de muitos brasileiros em meio às
noites dominicais.
De acordo com o conceito de Richard Wagner para “Obra de arte total”, o palco
dava ao receptor a possibilidade de vislumbrar música, teatro e poesia num mesmo espaço
cênico. Theodor Adorno e Max Horkheimer apontam a televisão como o veículo mais
apropriado para a realização do que Wagner ambicionava:
A televisão tende a uma síntese do rádio e do cinema, retardada enquanto os
interessados ainda não tenham conseguido um acordo satisfatório, mas cujas
possibilidades ilimitadas prometem intensificar a tal ponto o empobrecimento
dos materiais estéticos que a identidade apenas ligeiramente mascarada de todos
os produtos da indústria cultural já amanhã poderá triunfar abertamente. Seria
ironicamente a realização do sonho wagneriano da obra de arte total. O acordo
entre palavra, música e imagem realiza-se mais perfeitamente que no Tristão,
enquanto os elementos sensíveis são, na maioria dos casos, produzidos pelo
mesmo processo técnico de trabalho e exprimem tanto a sua unidade quanto o
seu verdadeiro conteúdo (Adorno & Horkheimer, 2000: 173).
128
A referência é feita a “Panis et Circensis”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Do mesmo modo que Elis Regina, quase uma década antes do surgimento do Secos
& Molhados, Ney Matogrosso trouxe uma nova dinâmica para o ambiente musical da época
ao revitalizar “a música popular de palco, de show e TV, através de uma personalidade
viva, que se manifestava pelo canto, por uma coreografia temperamental e contagiante que
lhe dava grande poder de contato com as massas” (Medaglia IN Campos, 1993: 118). O
público que se interessava pelo trabalho do grupo entrava em contato não apenas com uma
música repleta de jovialidade, como também com uma produção poética de altíssima
qualidade.
Duas noites após a ruidosa aparição do Secos & Molhados na TV ocorreu o show de
lançamento do primeiro disco no Teatro Aquarius. A apresentação daquela noite foi tão
bem sucedida que uma semana depois o grupo retornou ao mesmo local para mais três
apresentações de sucesso. Em pouco tempo, o grupo era uma grande mania entre pessoas de
várias idades, gostos e tendências, transformando-se em uma das discussões mais
freqüentes em todo o país. As rádios passaram a executar todas as canções do disco recém-
chegado às lo jas, resultando num tremendo fenômeno de vendas a Continental, receosa de
que o álbum não obtivesse tanta repercussão, prensou a quantidade “generosa” de 1500
discos com a expectativa de vendê-los no prazo de um ano, ignorando sumariamente a
repercussão das apresentações no Fantástico. As tais cópias foram literalmente vendidas no
período de uma semana, surpreendendo os executivos da empresa.
Em entrevista concedida à jornalista Ana Maria Bahiana (1980: 142) em dezembro
de 1973, João Ricardo observou que todos os grupos musicais que tiveram discos lançados
pela Continental não tinham uma infra-estrutura decente. Anos depois, em 2004, Gerson
Conrad revelou que a gravadora do Secos & Molhados realmente não possuía uma estrutura
adequada para dar suporte aos artistas nacionais:
A Continental era uma empresa nacional que tinha um acervo considerável em
termos históricos, mas representava artistas americanos. Naquela época ela
representava o grupo que lançou Michael Jackson, Earth, Wind & Fire, entre
outros. E essas multinacionais impunham um percentual assim: “Você lança 50%
do produto nacional, mas lança 50% do nosso produto”. Então o Roberto Carlos
ganhava um disco de outro e estava na CBS (...), que vinha essa política nos
bastidores, ou seja, mesmo que ele não tivesse talento e não fosse brilhante, (...) ele
teria tudo isso dessa mesma forma, porque eles precisavam de produtos que
tivessem representatividade no mercado nacional (Conrad, 2004: 6).
Em um mês, cerca de 50 mil LPs já tinham sido comercializados; surpreendendo os
integrantes, o empresário Moracy do Val e os executivos da gravadora, que, para atender a
demanda, recolheram discos de outros artistas, derreteram e fabricaram novos exemplares
da obra anteriormente desacreditada por muitos. Em menos de 60 dias após o lançamento,
cerca de 100 mil cópias foram vendidas, algo surpreendente para a estréia de um novo
nome da música popular brasileira. Quase um ano depois, o Secos & Molhados vendia
discos aos milhares
129
, chegando a ameaçar a posição de Roberto Carlos, como o maior
vendedor de discos até aquele momento. A margem de vendas do primeiro trabalho do
conjunto ainda se revela como surpreendente décadas após o seu lançamento, visto que
nenhum grande vendedor de discos como Roberto Carlos ou o grupo RPM chegaram a
vender 1 milhão de cópias de um disco de estréia em uma década na qual a média de discos
vendidos por artista não passava de 50 mil.
O medo de ser ultrapassado pelo grupo emergente se refletiu no álbum lançado por
Roberto em 1974: a regravação de “É preciso saber viver” tinha um solo de guitarra
hipnotizante, moderno tal qual a sonoridade presente no primeiro disco do Secos &
Molhados (Sanches, 2004: 198-199). Com o sucesso, a Continental passou a trabalhar
pesado na fabricação de mais discos 21 dentre as 25 prensas da gravadora trabalhavam
unicamente no LP do Secos & Molhados. De um momento para o outro, o grupo
representava 90% das vendas de todos os discos produzidos pela companhia, o que devia
ser pensado como um fenômeno incalculável para qualquer executivo da indústria musical.
Não é recente na história da Cultura Brasileira que os meios de comunicação
impulsionem a carreira de um artista ou de um grupo musical, tal qual ocorreu com o Secos
& Molhados depois da aparição no Fantástico e a bem pensada capa do primeiro disco. A
influência das imagens na construção das trajetórias dos grandes ídolos da música popular
brasileira, entretanto, ocorria desde a formação do samba na década 30 quando o cinema se
transformou no principal aliado do músico popular, divulgando suas performances para
129
Uma curiosidade interessante a ser citada a respeito do lucro originado a partir das vendas do Secos &
Molhados é que Paulinho Mendonça, co-autor de “Sangue latino”, pagou as despesas do nascimento de seu
filho Rodrigo com parte do dinheiro dos direitos autorais de seu texto musicado por João Ricardo (Mendonça,
2006).
todo o país. Apesar de naquela época já existirem as presenças do rádio e de uma
rudimentar indústria fonográfica, a imagem dos cantores era praticamente estática, visto
que nomes como Carmen Miranda, Mário Reis, Lamartine Babo, Aurora Miranda e
Almirante podiam ser vistos em fotografias das revistas especializadas e eventualmente nas
telas de cinema, por exemplo. Com Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso não
foi diferente: durante o estrelato, os três foram capa de inúmeras publicações entre os anos
de 1973 e 1974.
A partir de produções nacionais, ambicionava-se consolidar um modelo referencial
para os homens de cinema naquele momento: o padrão cinematográfico de Hollywood e
todo o seu star system ao invés do paradigma das películas européias. Com a entronização
deste novo referencial para os cineastas brasileiros, iniciam-se produções que primam o
espetáculo e o entretenimento como requisitos primordiais; criando um star system
cinematográfico: os periódicos divulgavam em larga escala imagens dos astros e estrelas,
repletos de juventude e luxo o cinema, por sua vez, se utiliza deste “império de beleza”
para criar ambientações vistosas e paisagens acachapantes, com o objetivo de conquistar o
público em geral (cf. Fenerick, 2005: 59-60).
Em outras palavras, a música brasileira produzida nos anos de Vargas encontrou um
contexto bastante propício para a sua popularização, pois “o cinema é uma arte feita para os
olhos e o subconsciente, não para a razão ou para a explanação verbal” (Sevcenko, 1998:
600). Quatro décadas depois, a televisão incorporou a premissa de veicular produções com
o intuito de seduzir os receptores, não de explicar ou persuadir a respeito de algo. Com isso,
abria-se um espaço para o artista da canção garantir a sua inserção na vida cultural
brasileira, ampliava-se margens de público e a presença de novos ídolos da indústria
cultural. É por esta razão que
o ser visto, juntamente com o ser ouvido, tornam-se questões fundamentais para
aqueles que queiram galgar os degraus da fama e os meios de comunicação de
massa levam rotineiramente tanto a imagem quanto o som (a música) para todo o
público, quase à exaustão (Fenerick, 2005: 62).
Na verdade, 5 de agosto de 1973 foi uma data significativa para que o Secos &
Molhados se tornasse imagem, som e música para o consumo para uma grande faixa de
público. Na noite de lançamento do primeiro disco do grupo, Ney Matogrosso aproveitou a
ocasião especial para apresentar um personagem ainda mais insólito do que todos os
surgidos anteriormente. Ele afixou penas brancas por todo o corpo (segundo o próprio
artista, cada uma delas equivalia a um de seus inúmeros pêlos) e surgiu no palco do Teatro
Aquarius. A construção das personagens encarnadas por Ney ao vivo era algo bastante
elaborado: os vidros de purpurina, panos, fitas, broches, enfeites e outros artigos cênicos
eram inteiramente distribuídos em sua massa corpórea um fator altamente contributivo
para tamanho apuro era seu talento nato para as artes plásticas e sua experiência anterior
com o artesanato, resultando em figurinos muito extravagantes que eram um misto do
visual hippie, do impacto típico da androginia e da exuberância dos balangandãs das
baianas estilizadas por Carmen Miranda.
A respeito das influências de outras manifestações artísticas no trabalho de Ney
Matogrosso, resgatamos, nesta etapa de nosso trabalho, algumas palavras do próprio acerca
disso:
O meu senso artístico e pictórico [depois de sua incursão pelo Secos & Molhados]
ficou todo voltado para a manifestação musical. Eu não fui pintor, mas tinha uma
preocupação com a forma e com o desenho corporal. Nunca entrei num palco para
as pessoas me pegarem desprevenido. Eu sempre ofereço um desenho, que pode ser
visto de vários ângulos, mas é um desenho” (apud Fonteles & Fonseca, 2002: 84).
O Secos & Molhados apresentava espetáculos densos e um tanto complexos
conforme as declarações do artista ao jornalista Antônio Carlos Morare: “Nossa
proposta é sermos também um espetáculo visual (...). Nada é muito definido, nem
em relação às roupas, nem em relação às máscaras. Permitimos que a nossa
imaginação funcionasse, e cada um se veste como quer, e entra em cena como
quer” (apud Morare, 1974: 28).
Como é possível depreender, o corpo torna-se peça-chave na constituição do
espetáculo. Cada noite era a promessa da realização do imprevisível: Ney Matogrosso
recebia de alguns amigos vários apetrechos para que fossem usados em cena e sempre
apresentava um personagem diferenciado. O artista, convertido em uma espécie de
escultura viva, adquire a missão de cativar o público, de materializar a mensagem poética a
ser divulgada pelo Secos & Molhados, isto é, sua massa corpórea é “tão importante quanto
a voz; a roupa é tão importante quanto a letra; o movimento é tão importante quanto a
música. O corpo está para a voz, assim como a roupa está para a letra e a dança para a
música” (Santiago, 2000: 158-159).
Em determinada ocasião, Ney Matogrosso “ganhou um monte de penas pe pavão e
formou um rabo aberto de ave que prendia na cabeça com barbante (...) [;] as penas de
pavão e faisão foram os adereços mais constantes no tempo do Secos & Molhados, porque
eram as únicas que (...) [ele] colocava na cabeça”. De tão excêntricas, as peças utilizadas
pelo cantor no palco eram “presas na cabeça, enrolavam no pescoço, passavam pelo peito e
terminavam amarradas na cintura” (Vaz, 1992: 56). Porém outros fatores influenciaram a
escolha de diferentes personas:
As roupas, que muita gente certamente não classificaria com esse nome,
completavam a construção dos personagens e diminuíam gradativamente de
tamanho. As calças de odalisca, usadas no início, deram lugar a muitas franjas,
amarradas somente na cintura e nas coxas e amenizadas por um tapa-sexo. Muitas
vezes, apenas este último permanecia, para atenuar os sobressaltos do público (Vaz,
1992: 56).
O palco transformou-se em um passaporte para que Ney Matogrosso exercitasse a
sua liberdade de expressão enquanto ser humano e artista de forma livre e espontânea,
entretanto tais escolhas lhe geravam um significativo desgaste físico - o cantor chegou a
perder bastante peso nos últimos meses em que foi a voz principal do Secos & Molhados.
Em entrevista ao jornalista e crítico musical Tárik de Souza, o próprio Ney confessou que
transpirava demais nas apresentações ao vivo do grupo, que todo palco em que se
apresentava ficava uma poça, onde eu estava dançando. Batia com o pé e espirrava nos
outros (IN Souza, 1974a). Ao lançar mão de agressividade, fragilidade, sexualidade,
desacato e outros componentes, Ney converteu-se numa espécie de “quebra-cabeça que só
pudesse ser organizado na cabeça dos espectadores. Mudando e recriando a imagem de
número para número (...)”, providenciando ao espectador “uma experiência que ultrapassa
os limites prescritos pela passividade com que se olham quadros num museu ou numa
galeria” (Santiago, 2000: 159/162). Os dois depoimentos do cantor, citados a seguir,
comprovam nossas análises:
E como eu me permito tudo na vida, eu me permito mais ainda no palco. As
pessoas estão pagando pra me ver, pra ver nosso trabalho, pra ver tudo. Então,
quando a gente está no palco, a gente tem que se permitir tudo, tem que ser
audacioso (apud Morare, 1974: 29).
Eu não fico dirigindo as coisas quando estou lá em cima, não fico dirigindo minhas
emoções para as pessoas, não. Eu libero minhas emoções, simplesmente libero.
Não fico pensando: “Bom, fiz isso, foi forte demais, agora vou adoçar”. Não estou
preocupado com isso; não adoço. Eu falo talvez o que o inconsciente manda. Não
tenho em cena a menor barreira, a menor limitação. Eu faço o que tiver vontade,
como uma coisa que sai de dentro pra fora. E tudo pinta, sabe? (apud Morare,
1974: 32)
Pouco depois do seu surgimento, o Secos & Molhados se revelou como um dos
maiores fenômenos do Pop no Brasil, configurando o Rock como ritmo musical em voga na
cena cultural brasileira. Nelson Motta, uma das principais testemunhas daquele contexto da
música popular produzida no Brasil, afirmou em seu livro Noites Cariocas que o Secos &
Molhados foi “o primeiro grupo com uma atitude Rock a conquistar o sucesso de massa no
Brasil” (Motta, 2000: 276) feito que Os Mutantes, por exemplo, jamais conseguiu, pois
apesar de possuir o respeito da crítica, não tinha popularidade entre o grande público.
As diferenças entre o Secos & Molhados e Os Mutantes não se restringiam apenas à
popularidade e a crítica. Elas deixavam de ser aparentes ao notarmos o caráter de
experimentalismo das criações de ambos. “O Vira” e “Assim assado” não possuem o
mesmo radicalismo experimental de canções como “Ando meio desligado”, “Jardim
elétrico” e “2001”, por exemplo. Por outro lado, em termos de postura de palco, o Secos &
Molhados apresentava uma posição mais radical, pois a “imagem sustentada por Ney
Matogrosso torna ingênuas as brincadeiras de Arnaldo Baptista e Rita Lee, no mesmo
Maracanãzinho, quando da apresentação de ‘Caminhante noturno’. No Secos & Molhados é
impossível esquecer o que Ney Matogrosso significa, informa (!), denota, conota etc.
(Morare, 1974: 67).
As apresentações ao vivo atraíam um número progressivo de espectadores, enquanto
Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso ascendiam à condição de astros sob os
olhos do público e a vigilância da mídia. Não deixa de ser interessante (e, ao mesmo tempo,
curioso) o surgimento de tamanha popularidade ao levarmos em consideração que muitas
das canções do grupo possuía um cunho inteiramente literário. Por outro lado, existia uma
clara intenção do grupo em atingir um público de origem mais massificada através do
visual, da escolha de poemas de literatos consagrados e canções de forte efeito (cf. Bahiana,
1980: 143).
Após o lançamento do primeiro disco, o Secos & Molhados deu início a uma série
de apresentações pelos grandes palcos do país. A temporada no Teatro Itália, localizado no
centro da cidade de São Paulo, entre 12 e 23 de setembro, foi uma das mais memoráveis de
toda a trajetória do grupo. Dentre os que estiveram na platéia daquele espaço, estava João
Nunes, um jovem seminarista indeciso em relação a qual rumo tomar em relação ao seu
futuro profissional. O rapaz interiorano tinha comparecido ao casamento de seu irmão na
cidade e se divertido bastante ouvindo incansavelmente o primeiro LP do grupo.
Entusiasmado, resolveu ver Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso em uma destas
apresentações. Depois desta experiência única, tomou uma decisão que modificara sua vida
para sempre:
Na noite daquele sábado, em vez de retornar ao seminário, como bem deveria fazer
um bom seminarista mesmo em crise de vocação , rumei para o Teatro Itália.
Apliquei mal o dinheiro dado por meu pai, porque se fosse um seminarista de bom
comportamento compraria livros teológicos ou o gastaria em causas mais nobres,
mais úteis e, claro, menos mundanas.
Mas, mesmo dando um pé em falso, mesmo cometendo um pecado, mesmo
contrariando qualquer recomendação cristã, lá fui eu ver o Secos & Molhados.
Inseguro na ante-sala do teatro, não sabia onde colocar as mãos. Então, filei um
cigarro de um rapaz ao lado eu que nem fumava para poder dar sentido aos
meus gestos. E me afoguei na fumaça e corri para o banheiro na ansiosa espera pelo
show.
Na minha memória, o palco e a platéia do Teatro Itália são pequenos. O suficiente
para ver Ney Matogrosso rebolar feito cobra mal matada muito perto de mim. E, no
papel de seminarista presbiteriano, minha reação foi de incômodo, de espanto e...
de deslumbre.
Isso foi em setembro. Em dezembro, abandonei o seminário. E a culpa deve ser
creditada ao Secos & Molhados, pois desviou meus pensamentos sãos para desejos
e sonhos demoníacos. É verdade que voltei ao seminário no ano seguinte e, mesmo
tomado de uma eterna crise vocacional, segui ligado à igreja durante quase duas
décadas. Apesar disso, o certo é que não fui mais o mesmo depois de ter visto o
show do Secos & Molhados naquele setembro de 1973. Nunca mais (Nunes, 2003).
No entanto, foi a primeira aparição no Rio de Janeiro, no final de novembro de
1973, que provocou bastante inquietação: o Teatro Tereza Rachel permaneceu lotado
durante a passagem do fenômeno musical pela Cidade Maravilhosa. O estabelecimento
comportava apenas 600 a 700 pessoas, aproximadamente; no mesmo passo, em que pouco
mais de 2000 pessoas desejavam ver o Secos & Molhados naquele palco. A formação de
tumultos nas escadarias do shopping center que abrigava o Tereza Rachel foi inevitável, a
intervenção de policiais militares foi necessária para conter o ímpeto do público e foi feito
um show extra às 23 horas da última noite do grupo, 26 de novembro de 1973. Segundo
uma reportagem publicada pelo Jornal do Brasil na época, os integrantes e os músicos
acompanhantes tiveram de ser escoltados por policiais para se alimentarem no intervalo
entre a primeira e a segunda sessão.
Outra explicação para tamanha popularidade foi formulada por Nelson Motta em
seu livro Música, humana música: para ele, quando um artista da canção “consegue viver
com intensidade e sinceridade em cena as fantasias e fantasmas que povoam seu cotidiano e
sua memória”, ocorre um processo de identificação entre o público e o cantor/grupo. Os
integrantes do grupo Secos & Molhados, tais como os demais cancionistas, “mostram uma
face verdadeira de sua personalidade, com emoção, ao público, de certa forma estão
representando vivendo ali o que suas vidas e suas artes representam para as pessoas,
falando por elas; representando-as” (Motta, 1980: 105).
Após a breve aparição no Rio de Janeiro, Gerson Conrad, João Ricardo e Ney
Matogrosso retornaram a São Paulo para uma temporada de 20 noites no Teatro 13 de
Maio. A imprensa paulistana, completamente tomada pelo encanto do grupo, buscava
compreender as razões para tamanho fenômeno de vendas e popularidade. As indagações
do jornalista Valter Silva são exemplos concretos deste fato:
A resposta verdadeira nunca se saberá, uma vez que é inexplicável o sucesso. O
sucesso acontece e só.
A voz fina e superafinada de Ney Matogrosso; o violão acústico de João Ricardo; a
sobriedade de Gerson Conrad; os arranjos deles mesmos; a caracterização plástica
do conjunto; as melodias com acentuada tendência para o melódico português; o
surto de músicas bissexuais que domina o mundo; ou tudo isso junto, talvez ajude a
explicar o sucesso do mais importante grupo Pop do Brasil, surgido em São Paulo
nas parcas apresentações na antiga Casa de Badalação & Tédio e no programa
Mixturação, ou ainda no Teatro Aquarius. Suas temporadas no Teatro Itália e nos
clubes sociais onde lotaram todas as noites, contribuíram muito para a solidificação
desse prestígio. Mas, como sempre, nada explica o sucesso. Mais de setenta mil
discos vendidos, a ponto de sua gravadora não poder atender a procura cada vez
maior por parte do público, fazendo com que dezenas de lojas da cidade não
tenham o disco. Em uma loja apenas, venderam-se em menos de duas horas, 150
discos do conjunto. Há quem pague no câmbio negro, até 50 cruzeiros por um LP e
já houve, no Rio de Janeiro, Teatro Teresa Raquel (sic), quem oferecesse duzentos
cruzeiros por um ingresso (Silva, 1973).
Outra justificativa para o êxito do Secos & Molhados é apresentada por Antônio
Carlos Morare, que se deteve na qualidade musical das letras e arranjos, ao mesmo tempo
em que reforça a idéia de que a exuberância cênica aliada à voz de Ney eram as razões do
sucesso:
Certamente seu sucesso não provém da facilidade das letras que cantam, pois essas
letras, escolhidas por João Ricardo (...) são poemas de linguagem refinada e
erudita, de poetas consagrados da Língua Portuguesa. O êxito do conjunto não pode
ser explicado também através de uma riqueza musical inexistente pelo menos no
primeiro disco (...). O êxito talvez se explique pelos seus achados melódicos,
sempre novos e vários, pela beleza das letras cantadas, pelo mistério envolvente da
androginia e pelo clima mágico que o grupo consegue criar em torno de si, a partir
de seus shows, das máscaras e das roupas coloridas, da maquilagem, da
coreografia, das expressões corporais. Finalmente, pelo contraste, que se equilibra
formidavelmente na voz de Ney Matogrosso, única no mundo, o conjunto se impôs,
no Brasil, como um fenômeno original e poderoso dentro da linguagem do rock
(Morare, 1974: 6).
Doze meses se passaram entre a primeira apresentação do Secos & Molhados na
tacanha Casa de Badalação & Tédio e a temporada do Teatro 13 de Maio. Após as mais
diversas reações do público, das avassaladoras aparições na TV, do olhar autoritário dos
militares e da gravação do primeiro disco, nada parecia impedir o grupo de atingir o pleno
estrelato. Já se especulava, então, a respeito de como seria o segundo disco: dizia-se que o
trabalho seguinte seria gravado em Nova York e que algumas apresentações em teatros
norte-americanos já estariam agendadas.
A popularidade de Gerson, João e Ney para além do território nacional era
realmente um fato consumado, pois o disco fora lançado no México e na Argentina até
aquele momento
130
. Na esteira desta conquista de novos mercados, previa-se um
lançamento em Portugal para o início do ano seguinte. O que foi visto no 13 de Maio
naquelas noites de dezembro de 1973 era o prenúncio de algo jamais visto no Brasil, como
podemos comprovar a partir da reportagem da revista Veja assinada por Geraldo Mayrink:
Não se via nada parecido desde que John Lennon decretou o fim do sonho. Todas
as noites, com uma assuidade maníaca, pequenas multidões de seiscentas,
setecentas ou mais pessoas espremem-se sob o calor do Teatro 13 de Maio para
ouvir os primeiros acordes de verão que começa, cantados e dançados pelos Secos
& Molhados, um conjunto que poderia provocar no mais atualizado espectador a
pergunta: “Secos o quê!?”. Mas o próprio ambiente do teatro sugere que a massa de
beautiful people não foi ali em vão. Recém-saído do glorioso e coruscante trottoir
dos Dzi Croquettes, o lugar sugere logo alguma coisa de mágico e excitante, com
seus trapos pendurados no palco e sua iluminação digamos psicodélica. E o
espetáculo, curto (uma hora) e denso (de vez em quando algum músico precisa
trocar a roupa encharcada de suor), tem um efeito fulminante sobre a platéia (IN
Morare, 1974: 68-69).
O ano de 1974 foi decisivo para o Secos & Molhados. A turnê do grupo foi
retomada com mais uma temporada de shows no Teatro Tereza Rachel, em janeiro daquele
ano. O verão carioca não teria tido o mesmo sabor anárquico se aquelas apresentações (que
tiveram a duração de um mês) não tivessem acontecido. Outros procedimentos foram
tomados para conter a avidez e o ímpeto do público: cordões de isolamento foram
montados em torno do shopping center que abrigava o recinto e os ingressos custaram 30
cruzados (um preço muito caro para a época). Nada mal para o grupo que alcançava o
estrelato em menos de um ano, ameaçando a liderança de Roberto Carlos nas vendagem de
130
Para o mercado latino-americano, foi gravada, nesta época, uma versão em espanhol de “Sangue latino”,
intitulada “Sangre latina”. Esta nova versão foi apresentada ao vivo pelo Secos & Molhados no antológico
show do Maracanãzinho, em fevereiro de 1974.
discos. A expectativa dos cariocas em relação a aos rapazes era grande, como assinala uma
reportagem da época:
As longas filas e a intensa expectativa da platéia, predominantemente jovem com
infiltração de crianças e casais maduros, mas curiosamente bem comportada nos
trajes e atitudes, lembrava aqueles momentos em que um certo clima parecia
prenunciar a ocorrência de um fenômeno, como aconteceu com algumas
apresentações de Caetano, Gil e, sobretudo, com o show Fa-Tal, de Gal Costa, ali
mesmo naquele teatro quente, sem conforto e sem segurança (Morare, 1974: 53)
Os censores também decidiram agir durante a temporada do Secos & Molhados no
Rio de Janeiro. Ney Matogrosso foi obrigado a conviver com uma censora dentro de seu
camarim durante um mês. De acordo com o artista, a tal mulher chegava ao teatro junto
com todos os músicos e a produção do espetáculo e permanecia no Tereza Rachel até o
final do show. A biógrafa de Ney, Denise Pires Vaz, traçou um panorama deste momento,
como podemos comprovar no trecho citado abaixo:
Era só Ney aparecer no pedaço que Dona Maria já estava a postos, com direito,
inclusive, a ida ao camarim. Aliás, não era bem uma ida, e, sim, uma verdadeira
estada, que possibilitou até um certo grau de amizade, entre conversas e eventuais
trocas de roupas. (“Ué, ela não estava dentro do meu camarim? Aí também eu fazia
tudo na sua frente. Não sei por que ela queria ficar ali, mas eu deixava. Decerto,
queria me estudar”). Um dia, certamente em meio a um desses estudos, Ney estava
se pintando, só de tapa-sexo, quando Dona Maria perguntou se iria entrar no palco
daquela maneira. Brincando, respondeu que sim, porque estava fazendo muito
calor. “Mas você não pode entrar assim, porque as mulheres vão acabar com você”,
assustou-se Dona Maria, aposentando por um momento a censora, que deveria
apenas se preocupar com a nudez (Vaz, 1992: 98).
Era claro que Ney Matogrosso era um alvo em potencial dos militares, apesar dos
breves contatos com a repressão do regime. Durante uma temporada do Secos & Molhados
em São Paulo, o cantor
recebeu a visita de um homem do DOI-CODI, que dizia estar ali para protegê-lo,
em virtude de uma denúncia de que iria sofrer um atentado. A figura passou a
aparecer no teatro todas as noites e a insistir em levá-lo para casa. Ney confessa
que sentia mais medo do cara do que do atentado e saía sempre a pé, enquanto o
homem ia junto, de carro. Um dia, não arranjou jeito de escapar: o tipo meio
esquisito repetia que recebera ordens de levá-lo para casa, e a única alternativa foi
agarrar o primeiro que passava, para lhe fazer companhia. Quando chegou na rua
em que morava, escolheu um trecho que não dava mão para o carro, desceu e saiu
correndo, para o cara não ver aonde ia entrar. Percebeu depois sua grande
bobagem, porque já deviam saber tudo sobre ele. O homem apareceu ainda durante
um tempo, até um belo dia sumir (Vaz, 1992: 32).
Em entrevista concedida a Louraidan Larsen na década de 2000, Ney Matogrosso
descreveu detalhadamente a sensação de ousar e quebrar tabus em pleno vigor da ditadura
militar:
Era caminhar em cima de um fio de navalha, pois tudo eles podiam fazer. Eu tinha
uma coisa a meu favor: eu não era engajado politicamente, embora eu tivesse as
minhas convicções políticas, eu não era de nenhum partido, não tinha uma
atividade política partidária. E era o que esperavam, o que eles reprimiam e era o
que queriam reprimir sempre. Não permitiam que houvesse uma independência de
pensamento.
Eu não falava de política, mas eu me expunha de uma maneira que acabava sendo
uma forma política de estar em público (Matogrosso, 2006b).
Curiosamente, os militares concentravam seus olhares na figura intrigante de Ney
Matogrosso e ignoravam quase integralmente o tom político de insubmissão, resistência e
protesto contido em canções como “Sangue latino”, “Primavera nos Dentes” e “Rosa de
Hiroshima”. Gerson Conrad confidenciou em entrevista à revista Zero a existência de uma
dificuldade sofrida nas ocasiões em que era necessário obter alvarás de liberação para os
espetáculos do Secos & Molhados, porém a má organização dos órgãos oficiais favorecia o
grupo:
A censura não era integrada nacionalmente, então um lugar não queria liberar o
Ney de peito de fora, o outro implicava com os pés descalços, o outro implicava
com uma das músicas. Tivemos algumas canções vetadas, que deixamos de gravar.
Em Brasília, tivemos a luz cortada por 23 minutos durante um show num episódio
porque a exposição do corpo do Ney chocava a família de um ministro. Ele sabia
que não podia suspender o show, sob o risco de provocar uma catástrofe, e acabou
liberando a luz depois desse tempo. Mas eu fiquei realmente assustado quando
prestamos depoimento antes de sair do país, indo pro México.
Fomos interrogados pelo SNI (Serviço Nacional de Informação), em Brasília. Era
aquele esquema salinha, mesa, holofote na cara, parecia um filme de terror. Cada
um foi interrogado separadamente, e a minha maior preocupação era a de um
contradizer o outro, pois não tivemos tempo para conversar antes. O papo comigo
foi o seguinte: “Como vocês vão representar o país lá fora? Vocês sabem que
representam divisas para o país...”. Uma coisa é ouvir falar que isso existe, outra
coisa é ser confrontado. Fiquei muito assustado, tinha 21 anos de idade, não tinha
um texto elaborado, me pegaram de calças curtas (Conrad, 2004: 7).
No entanto, era tarefa difícil censurar um grupo musical tão popular entre as mais
variadas faixas de público. Idosos e crianças sentiam adoração pelas performances de palco
e a musicalidade do primeiro disco recriados nos palcos. A maquiagem, uma das marcas
registradas do Secos & Molhados, passou a ser copiada pelos próprios fãs mirins nas
platéias que os assistiam. A respeito do fascínio que o grupo provocava nos mais jovens,
cabe citar uma declaração de João Ricardo:
As crianças passam a ser, então, sabe, a medida exata da nossa absoluta
honestidade. Eu acho que uma criança você nunca engana, sabe? Tudo o que surge
para as crianças, elas conseguem, com ingenuidade natural, saber se aquilo é ou
não um engodo. Por esse lado, é uma maravilha que gostem de nós. Por outro lado,
acho que elas, em nos ouvindo, estão ouvindo, na minha opinião (...) alguma coisa
que lhes pode fazer bem, de alguma forma. É muito bom, então, que as crianças
nos imitem. Se todos os “Zorros” fossem esses, e não os americanos da TV a cores!
(apud Morare, 1974: 52)
A receptividade do público foi perfeitamente traduzida com a aparição inesquecível
do Secos & Molhados no ginásio do Maracanãzinho, em 23 de fevereiro de 1974, batendo
todos os recordes de bilheteria. Até aquele momento, apenas os festivais da canção, eventos
especiais (Holiday on Ice, por exemplo), artistas internacionais e campeonatos esportivos
conseguiam lotar os espaços destinados à platéia. Tratava-se de um público heterogêneo
“que ia de unidas famílias a grupos mais desmunhecantes, passando pela juventude típica
da Tijuca, por hippies, o vovô que levou o neto e pelo tio que fingiu que levou a sobrinha,
mas que, tanto quanto ela, estava interessadíssimo em ver o que aconteceria (...)” (Morare,
1974: 65/67). Tamanha consagração perante o público fez com que o grupo fosse a
primeiríssima atração na história da música popular produzida no Brasil a se apresentar ao
vivo para um grande número de pessoas.
Apesar do número gigantesco de pagantes que compareceram à apresentação, foi
um show tenso e precário: Ney Matogrosso, ao se deparar com a lotação esgotada do
ginásio do Maracanãzinho, chegou a perder a voz por três minutos; o som dos violões não
foi captado apropriadamente, pois os microfones foram posicionados estrategicamente ao
lado dos instrumentos. O produto final foi pouco satisfatório, pois chiados e microfonias
ocorreram diversas vezes. Antes da aparição de Gerson, João e Ney no palco, o nervosismo
era uma constante entre os três, visto que era a primeira vez que uma atração nacional
lotava o Maracanãzinho e ainda tinha a ousadia de deixar outras milhares de pessoas
curiosas em ver o grupo ao vivo do lado de fora. O evento seria transmitido ao vivo pela
Rede Globo de Televisão para os lares de todo o Brasil, fator que certamente deve ter
deixado os três assustados.
Gerson Conrad relatou à revista Bizz, em 2005, que enquanto os músicos de apoio
executavam a vinheta de abertura do show, o trio permaneceu por detrás do cenário
tentando vencer as crises de tremedeira e, finalmente, adentrar o palco: “Naquele dia o
Moracy [do Val] falou: ‘Vamos lá, meninos’, com lágrimas nos olhos. Ficamos num jogo
de empurra-empurra para ver quem entrava primeiro. Minhas mãos estavam geladas e o
Ney temia que sua voz não fosse sair”. O co-autor de “Rosa de Hiroshima” ainda
acrescentou que as 25 mil pessoas concentradas naquele ginásio gritavam muito antes e no
decorrer da apresentação.
Objetos eram constantemente atirados em direção do palco. No momento em que o
Secos & Molhados pisou no palco, Gerson afirmou que as estruturas do Maracanãzinho
chegaram a tremer devido a tamanha estupefação por parte do público. Paulinho Mendonça,
que era contra a realização do show no Maracanãzinho, temia a reação de milhares de
pessoas diante das ousadias de Ney Matogrosso, achando até que ele seria linchado pela
multidão.
Por outro lado, nem tudo era euforia e êxtase: enormes multidões se concentravam
também fora do Maracanãzinho. Dentro do ginásio, as arquibancadas, muito apertadas, não
comportavam a grande quantidade de pessoas, fazendo com que muitos se acotovelassem
junto às mediações do palco no qual o grupo se apresentava. A polícia tentou reprimir
violentamente os fãs, resultando na interrupção do show e numa enorme bronca de Ney
Matogrosso, que, ao ver a reação da PM, teria dito ao chefe dos policiais: “Vamos parar
com essa merda. Não ferra, deixa os caras ficarem aí!” (IN Vaz, 1992: 256). Paulinho
Mendonça descreveu a reação da platéia ao presenciar a voz de comando de Ney dirigindo-
se à autoridade militar:
Fez-se o maior silêncio, seguido de um mal-estar geral, mas acho que o Ney
ganhou a confiança, a admiração e o respeito de todas as pessoas naquele
momento. Não era qualquer um que falava com um coronel da PM daquela
maneira. Todo mundo permaneceu onde estava, sem ser incomodado, e o show
ficou lindo a partir dali, alimentado por uma energia fantástica que transitava no ar
(apud Vaz, 1992: 256).
Paulinho também reconhecia naquele episódio a importância do Secos & Molhados
e, ao mesmo tempo, evidenciava a truculência daqueles que integravam o regime:
Foi um ato de extrema coragem e responsabilidade, numa época de muita
repressão, em que a polícia exercia um papel demonizante para todos nós. Os Secos
& Molhados foram ovacionados por um longo tempo, por mais de vinte mil
pessoas que estavam assistindo ao show. De uma certa forma, acho que este gesto
simbolizou adequadamente o que os Secos & Molhados representaram para um
povo que, à época, vivia subjugado pela mais violenta repressão político-policial já
vivida no país (Mendonça, 2006).
Apesar dos contratempos, com os altos índices de audiência da transmissão do show
do Maracanãzinho, a Rede Globo de Televisão promoveu o Secos & Molhados ao status de
mania nacional. A partir de então, o grupo passou a tocar em estádios com um vantajoso
número de pagantes, se transformando num verdadeiro “furacão no meio da repressão
reinante, arrastando multidões e precisando ser protegido por cordões de isolamento aonde
chegasse” (Vaz, 1992: 122). A admiração daqueles que pagavam ingressos para assistir
Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso em ação se transformava,
instantaneamente, em histeria nas proporções de uma Beatlemania. Ney descreveu o
desconforto ocorrido em uma das temporadas do grupo pelo Nordeste brasileiro:
Uma vez, em Recife, depois de um show para quase setenta mil pessoas, não pude
nem trocar de roupa e saí direto do palco para um camburão, porque a polícia havia
dito que não garantia segurar a multidão se eu ainda fosse mudar a roupa. Quando o
camburão chegou ao hotel, já tinha um monte de gente esperando e, na pressa de
entrar, acabei ficando enganchado pelas franjas da roupa na porta do hotel. A
multidão já estava bem perto de mim quando consegui arrebentar as franjas e sair
correndo. Nessas horas, dava medo da coisa descontrolada, porque eu sacava que
era uma histeria coletiva, que deixava as pessoas totalmente enlouquecidas por
onde a gente passava. Somente no Rio de Janeiro, durante a temporada no Teatro
Teresa Rachel (sic), era possível acabar o espetáculo e sair com mais tranqüilidade,
aproveitando também o fato de eu me apresentar com o rosto todo pintado (apud
Vaz, 1992: 122-123).
A passagem do Secos & Molhados pela capital da República também causou
bastante ruído. Brasília ainda se preparava para as apresentações de Alice Cooper quando
recebeu a mania nacional que tomara a música brasileira de assalto há pouco mais de um
ano. A única noite de shows do grupo seria no ginásio Presidente Médici, com capacidade
para abrigar milhares de pessoas. Ao pisarem na cidade, Gerson, João e Ney foram
informados de que três apresentações seriam feitas: uma para os censores a única vez em
que o Secos & Molhados precisou se submeter a uma situação deste tipo e as outras duas
para o público. No contrário, nenhum show poderia ser realizado.
A truculência dos militares logo se transformou numa sucessão de abusos de
acordo com Gerson Conrad, um oficial de alta patente das Forças Armadas, cuja esposa
ficou chocada com os trejeitos de Ney Matogrosso no palco, teve a petulância de ordenar o
apagamento das luzes do recinto enquanto o cantor estivesse seminu em cena; a condição
para a compra de ingressos era a de que o pagante abrisse uma caderneta de poupança com
valor previamente estipulado em uma instituição pública, o que revelava uma tendência do
governo em manipular artistas de renome com o intuito de otimizar metas administrativas,
fato que explicava a “surpreendente permissão para o Secos e Molhados se apresentar na
cidade” (Vaz, 1992: 100). Ao se apresentarem para a censura, os convidados dos censores e
dos próprios militares tiveram a oportunidade única de assistir o conjunto no auge de sua
popularidade sem filas, tumultos e aglomerações.
O episódio ficou bem gravado na mente de Ney Matogrosso por ter rendido
momentos cruciais (e desagradáveis). Invadido, não se sentia à vontade, comportando-se de
maneira velada e artificial, numa atitude de afronta e desagrado:
Foi um exercício de força, uma bela mostra da prepotência do poder. Só que eles
eram tão bobos que pensaram que eu ia repetir tudo o que aprontava no palco.
Imagina! Essa apresentação não teve nada a ver com o show que aconteceu poucas
horas depois. Apesar de eu estar pintado quase não dancei e me limitei
praticamente a só cantar as músicas previstas. No fundo, queria deixar bem
evidente o meu mau humor e a falta de vontade de fazer aquilo (apud Vaz, 1992:
99).
Em várias ocasiões, os militares pareciam temer apresentações de artistas de grande
popularidade nas proximidades do Palácio do Planalto. Pouco depois de Gerson Conrad,
João Ricardo e Ney Matogrosso passarem pela cidade planejada por Oscar Niemeyer, o
roqueiro andrógino Alice Cooper se apresentaria pela capital do país a atração
internacional também era um atentado à moralidade, pois suas performances teatrais eram
altamente produzidas, incluíam atitudes agressivas, como por exemplo a entrada de jibóias
em cena e até decapitações de outros bichos. A Muscle of Love Tour foi um dos primeiros
espetáculos internacionais de grande porte a aparecer em território brasileiro, rendeu cachês
milionários a Cooper e levou os ouvintes ao delírio com hits como “School’s out” e
“Billion Dollar Baby”. De acordo com o próprio Alice Cooper, a apresentação da turnê
Muscle of Love em São Paulo foi marcada pela tensão e pelo excesso de público: “De todos
os shows que fizemos, aquele foi o mais bizarro. Tinha muita gente, e o público fez mais
barulho que nós. Não conseguíamos ouvir o que estávamos tocando porque o público fazia
muito barulho. Colocaram 120 mil pessoas lá dentro” (apud Cacciacarro, 2005: 32).
O grupo Secos & Molhados foi convidado especial dos gringos na noite do show
realizad no ginásio do Anhembi, em São Paulo e, ao final do espetáculo, foi executada para
milhares de pessoas a canção-propaganda do regime militar “Pra Frente Brasil” numa
demonstração de insatisfação do poder oficial contra o superstar e seus convidados de
honra.
Um fato curioso aconteceu na capital federal do país. Ao chegar lá, Ney Matogrosso
se sentiu bastante assustado ao deparar com um jornal que apresentava uma reportagem
com o título de “Andróginos invadem Brasília”, estampando uma foto sua ao lado de uma
imagem de Alice Cooper. Era patente que, apesar de ser uma grande ousadia por parte do
Secos & Molhados apresentar um show caracterizado pelas transgressões cênicas, o circo
armado pela mídia consistia de uma velada advertência aos detentores do poder, que não
tinha conseguido atuar através de mecanismos explicitamente punitivos perante os artistas
que se preparavam para divulgar seus espetáculos em Brasília.
Ao retornar à cidade anos mais tarde com seus dois primeiros espetáculos solo
(Homem de Neanderthal e Bandido), Ney Matogrosso enfrentou problemas com a censura
e com os militares: anúncios de divulgação de seus shows eram impedidos de serem
veiculados nos meios de comunicação, agentes do DOPS o vigiavam durante os shows,
além de proibirem o cantor de se apresentar em determinados locais, prejudicando
diretamente o sucesso das turnês: o artista foi expressamente proibido de se apresentar em
Brasília durante o período 1976-1979 o show Feitiço (1979) sofreu com as investidas da
censura. Os brasilienses só veriam o cantor nos palcos novamente com Seu tipo (1980) e
Homem com H (1981), espetáculos surgidos em um momento de maior tolerância por parte
das autoridades oficiais, porém menos agressivos e provocantes do que os seus antecessores
(cf. Vaz, 1992: 100-101).
Na medida em que o Secos & Molhados se afirmava como uma mania nacional,
Ney Matogrosso despertava mais curiosidade por parte dos jornalistas e admiradores e foi
transformado em uma espécie de destaque, para desagrado total de João Ricardo,
compositor principal e ideólogo do grupo. Desde sempre, determinou-se que apenas João se
dirigiria à imprensa e atuaria como uma espécie de porta-voz do grupo enquanto Gerson e
Ney não falariam com os jornalistas “por livre e espontânea vontade”. Tal gesto foi acatado
pelo vocalista, que não fazia muita questão de dar entrevistas ou de assumir a alcunha de
líder do grupo, no entanto advertia: “Se você puder impedir que me procurem para dar
entrevista, tudo bem. Agora, se chegarem a falar comigo, não vou me prestar a esse papel
ridículo de mandar procurar você, porque também sou um ser que pensa” (IN Vaz, 1992:
59-60).
Em muitas das ocasiões nas quais Ney Matogrosso conseguia a oportunidade de
falar em público, suas idéias contrastavam com as de João Ricardo. Nelson Motta, em
depoimento concedido a Denise Pires Vaz, observou que seus contatos com João e Ney se
davam em níveis completamente diferentes com o primeiro, bastante articulado e
racional, as conversas se restringiam apenas ao plano intelectual; já com o segundo, os
rumos das conversas se enveredavam pelas histórias pessoais (cf. Vaz, 1992: 290).
Aos poucos, instalava-se uma espécie de mal-estar entre os integrantes do Secos &
Molhados. Gerson Conrad, por exemplo, alega que a ampla receptividade de “Rosa de
Hiroshima” sempre provocou ciúmes. Os supostos ressentimentos, se realmente existiram,
devem se compreender pelo fato de até hoje, a canção ser bastante executada nas rádios
brasileiras e ter rendido a Gerson, no auge da popularidade do Secos & Molhados, um
automóvel Volkswagen a cada bimestre
131
. Uma versão para tal fato é que João jamais
perdoou seu colega de trabalho pelo sucesso estrondoso desta canção nas rádios e
apresentações ao vivo. Certa vez, a obra chegou a ser executada três vezes em um show por
causa da chuva de aplausos vindos do público. João Ricardo, visivelmente irritado, se
ausentou do palco e berrou nos bastidores de que não era permitido repetição de números
musicais sem sua prévia permissão. O resultado gerou agressões físicas em pleno palco.
Na entrevista concedida por Gerson Conrad à revista Zero, em 2004, este assunto é
abordado sem o menor traço de meias palavras: “Eu, que era (...) o ponto de equilíbrio entre
os dois [João Ricardo e Ney Matogrosso], quase meti a mão no João. Uma vez (...) por
ciúme, ele me chutou (...) porque pediram bis de ‘Rosa de Hiroshima’. Ali eu percebi que
ele não era um amigo, era um crápula”. João Ricardo, por sua vez, em depoimento
concedido a Isto É em dezembro do mesmo ano, rebateu as declarações do ex-companheiro
de banda:
Devia estar se tratando com um psiquiatra. Ele anda falando umas coisas que não
são só mentiras. O Gerson era de uma significância absoluta (...). Ele é posto
sempre de lado, coitado. Só subiu no cavalo na hora certa. O cara fala cada
bobagem. Sabe aquela mentira para chamar a atenção? Diz até que eu bati nele, que
eu odeio a “Rosa de Hiroshima” porque a música fazia sucesso. Está doente da
cabeça (Ricardo, 2004).
131
O dado foi fornecido pelo próprio Gerson Conrad, em depoimento concedido à jornalista Cléo Tassitani e
ao autor em outubro de 2005.
Conforme a visão de Ney Matogrosso, a relação entre os integrantes sempre fora
delicada e tensa Gerson Conrad, por exemplo, pensou várias vezes em abandonar o grupo
e só integrou o Secos & Molhados a partir de uma “imposição” de João Ricardo. Ao se ver
diante de uma relação supostamente tão delicada entre os dois, Ney buscava amenizar
situações embaraçosas demonstrando a Gerson que João não tinha direito de tratá-lo mal. A
conseqüência de tamanho gesto foi uma relação bastante ruim entre os três. João Ricardo
afirma que nunca se sentiu amigo dos colegas de trabalho. Gerson Conrad e Ney
Matogrosso se tornaram amigos mais próximos desde então (cf. Vaz, 1992: 60).
Entretanto, não houve por muito tempo nenhum traço de profissionalismo nas
relações dos músicos com as finanças é impressionante constatar que um fenômeno
musical de tais proporções fosse guiado por amadores. A administração do Secos &
Molhados não foi nada cuidadosa de acordo com as opiniões de Luhli e Paulinho
Mendonça. Uma cena presenciada por Paulinho, por exemplo, se deu nos camarins do
Maracanãzinho. Segundo o letrista, cada integrante do grupo juntou uma quantia generosa
de dinheiro, enfiou em bolsas e se retirou do ginásio. De acordo com a co-autora de “O
vira” e “Fala”, o ex-empresário Moracy do Val, apesar de apaixonado pelo trabalho que
desenvolvia com o conjunto, não tinha o menor preparo para estar à frente de uma sensação
Pop:
Ele era aquele gordo que suava demais o tempo todo, andava sempre com a camisa
com o umbigo aparecendo. Era um cara vulgar (...). Ele não era um produtor
chique, um porta-voz. (...) era um cara “comercialzão”, de gravadora e, de repente,
a bomba estourou na mão dele. O sucesso muito grande desestrutura, ele não tinha
muito tempo para pensar, não tinha muita estrutura para aquele sucesso
132
.
A partir do momento em que os lucros se materializaram, surgiram as maiores
discordâncias: todo dinheiro arrecadado seria para a construção de um escritório dedicado
ao Secos & Molhados no bairro Jardim Paulista, uma das áreas mais nobres da cidade de
São Paulo. Gerson Conrad e Ney Matogrosso alega(ra)m que deixaram de receber seus
pagamentos por causa de tal decisão no momento em que o trabalho aumentava
132
A observação de Luhli está contida em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de
2006.
consideravelmente (cf. Vaz, 1992: 52). A trajetória do grupo seria abalada quando o
empresário Moracy do Val, que acompanharia os rapazes numa turnê de nove meses pelo
exterior, foi impedido de embarcar devido a acusações de desvio de documentação. João
Apolinário, que assumiria temporariamente as finanças do grupo, foi reconhecido como
empresário oficial do Secos & Molhados.
Em depoimento de 2004, Gerson afirmou que a SPPS Produções Artísticas Ltda.,
firma reconhecida com o intuito de gerenciar e financiar os negócios do grupo, já
necessitava de cuidados jurídicos adequados desde a sua criação e, por isso, João Ricardo
teria sugerido a entrada de seu pai para dirigir a empresa dedicada aos negócios do grupo:
O João sugeriu que fosse o pai dele, João Apolinário, que era jornalista, crítico de
teatro, mas nunca tinha sentado à direção de um elefante branco que era aquele que
nós tínhamos criado. A primeira providencia do seu Apolinário foi acusar o
Moracy de problemas de documentação. Viajávamos muito e inúmeras vezes eram
perdidos carimbos e documentos de hotéis. O Moracy foi detido pela Polícia
Federal nas escadas do avião, indo pro México. Viajamos desamparados. Eu não
sei se ele estava errado ou não, só sei que nunca ganhei tanto dinheiro quanto na
gestão dele (Conrad, 2004: 6).
Moracy do Val, ressentido, rompeu todos os contratos com o grupo, foi processado
por documentação irregular e se dirigiu à imprensa com a intenção de prestar
esclarecimentos e alegar que era também sócio da SPPS Produções Artísticas Ltda. O ex-
empresário tinha planos um tanto mirabolantes para seus contratados: acreditava na
possibilidade de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso, em curto prazo,
poderiam ser tão famosos quanto os quatro rapazes de Liverpool, algo, aliás, jamais
descartado por João
133
, que chegou a idealizar um jornal chamado S&M para divulgar as
novidades sobre o grupo. Planejava-se também uma apresentação do grupo no Carnegie
Hall (uma das casas de shows mais importantes de Nova York na qual os Beatles também
tocaram) e em outras cidades dos EUA, no Japão, na Copa do Mundo da Alemanha, nas
comemorações de 15 anos da Princesa Caroline de Mônaco e um ambicioso projeto seria
133
Três dias antes da futura dissolução do Secos & Molhados, João Ricardo declarou a imprensa algo que não
deixa de estar de acordo com o ex-empresário: “Houve um grande estouro na América, com Elvis Presley.
Depois outro na Europa, com os Beatles. O próximo tem que vir daqui, porque lá fora ninguém tem mais nada
a dar” (IN Souza, 1974b).
realizado no Alto Xingu, batizado de O casamento da idade eletrônica com a idade da
pedra. Este último consistiria em um show do Secos & Molhados nas proximidades do rio
localizado no estado de Amazonas, seria transmitido pela Rede Globo e distribuído para as
televisões do mundo inteiro. Após este acontecimento, Moracy acreditava que o Secos &
Molhados seria um dos grupos musicais mais importantes do mundo ainda naquele ano de
1974.
De acordo com o ex-empresário do Secos & Molhados, as razões de sua expulsão
são ligadas aos lucros do conjunto “É muito melhor dividir uma coisa por três do que por
quatro”, assegurou o seu descobridor e às (injustas) acusações de ter sido um
administrador incompetente “Mau administrador, eu!? Pegar três caras desconhecidos e
fazer deles em um ano a maior atração do Brasil é má administração!?” (IN Souza, 1974b).
Ao invés de conquistarem o mercado internacional, o grupo seguiu rumo a apresentações
em Osasco e no Triângulo Mineiro, pois de acordo com Gerson Conrad (cf. Vaz, 1992:
269), João Ricardo e seu pai acreditavam piamente na necessidade de se apresentarem para
as classes mais desfavorecidas.
A saída do impasse com a SPPS foi a criação da S&M Produções, empresa de
propriedade de João Apolinário (que abandonou a profissão de jornalista para empresariar o
grupo) e seu filho. Com a saída do antigo empresário, pai e filho não apenas tinham em
comum os laços familiares e uma parceria musical de sucesso, mas também os negócios
que consistiam na produção de shows, discos e concentrava a nova editora musical de suas
canções. O escritório da S&M foi montado numa suntuosa casa de dois andares na Alameda
Itu, nos Jardins, um dos bairros mais nobres de São Paulo. Contava com 17 funcionários
que tinham a função de informar aos clientes a respeito de qualquer informação sobre o
Secos & Molhados e oferecer orientações sobre contratos empresariais. A mudança de
rumos não levou muito tempo para que a troca de acusações se iniciasse: Ney Matogrosso
dizia que o companheiro João Ricardo agia com conivência em relação ao pai e começou a
ameaçar de sair do grupo caso o novo empresário continuasse a não agir com clareza (cf.
Vaz, 1992: 54).
Enquanto Moracy do Val recorria aos jornais, o Secos & Molhados,
temporariamente agenciados pelo empresário Marcos Lázaro (famoso por seu trabalho com
grandes nomes da música popular como Elis Regina e Roberto Carlos), embarcou para uma
turnê no México, em 24 de maio de 1974, debaixo de um clima tenso entre seus integrantes.
Gerson Conrad apontou em depoimento concedido à Denise Pires Vaz que supostas
ligações tefefônicas internacionais de João Ricardo a seu pai deixaram os demais
integrantes do grupo em estado de alerta por se tratarem de algo com possível teor
conspiratório (cf. Vaz, 1992: 268-269). Enquanto as tensões entre os integrantes se
tornavam cada vez mais rotineiras, o grupo já era cult em toda a América do Sul graças aos
discos especialmente voltados para o mercado latino-americano: em apenas 15 dias, os
mexicanos ficaram estupefatos ao ver canções como “O vira” e “Sangue latino” no vídeo,
seja no único programa de TV no qual eles se apresentaram por dois finais de semana
seguidos ou no show transmitido para todo o território mexicano e para os Estados Unidos.
A curiosidade e o sucesso foram tão expressivos que Nelson Motta, na época
repórter da TV Globo, foi enviado junto com o colega Ezequiel Neves ao país em junho de
1974 (17 dias depois da chegada dos brasileiros) para averiguar o porquê de tamanha
receptividade, afinal era a primeiríssima vez que um disco em português atingia o primeiro
lugar de vendas nas terras dos astecas. Gerson Conrad acreditava, entretanto, que existia
uma segunda intenção dos jornalistas em irem ao encontro do grupo naquele momento: na
verdade, a viagem era pretexto para fazer um pedido para que o trio retornasse ao Brasil
imediatamente e fizesse uma declaração sobre as supostas relações de Raul Seixas e a
ditadura, pois o cantor e compositor teria obtido um espaço excessivo na mídia nacional por
ter “se vendido aos militares”
134
.
O sucesso do Secos & Molhados no México foi tão retumbante que empresários
norte-americanos procuraram os músicos para novas apresentações em Nova York, Ney
Matogrosso chegou a receber convites para abandonar o conjunto e se mudar para a terra de
Uncle Sam e gravar um álbum solo de Hard Rock
135
o cantor recusou todas as ofertas
alegando que temia ser transformado numa versão Rock’n’Roll de Carmen Miranda em
134
Gerson Conrad se referia a uma famosa apresentação de Raul na qual ele teria se vestido com um pijama
“ridículo” e cantou um de seus maiores clássicos, “Sociedade alternativa”, que, supostamente, seria uma
mensagem de apoio aos militares (cf. Conrad, 2004: 9).
135
Esta variante do Rock’n’Roll, também batizada de Heavy Rock, Cock Rock ou Stadium Rock, foi
popularizada a partir do final da década de 60 e no início da década de 70. A sonoridade era caracterizada
basicamente por riffs pesados, ritmos marcados de guitarras e baixos elétricos e uma batida forte e marcada. O
virtuosismo musical e a sexualidade explícita e profundamente agressiva também era um fator-chave deste
gênero, que teve como ícones, por exemplo, os vocalistas e guitarristas Roger Daltrey & Pete Townshend
(The Who) e Robert Plant & Jimmy Page (Led Zeppelin).
uma terra na qual ele sequer compreendia a língua falada
136
. É necessário esclarecer que,
naquela ocasião, a Pequena Notável foi lembrada para o grande público como a principal
representante da música brasileira no exterior. Por outro lado, a descaracterização cultural
das manifestações brasileiras era inevitável em solo norte-americano, conforme atesta-nos
Gerson Moura em sua obra Tio Sam chega ao Brasil:
É também verdade que as contribuições artísticas que seguiam da América Latina
para os Estados Unidos tinham seu ‘exotismo’ freqüentemente temperado, de
acordo com os padrões do gosto norte-americano para facilitar sua digestão por
nossos vizinhos. Esse ‘tempero’ tendia a transformar a América Latina numa
unidade indistinta em suas manifestações culturais, pondo-nos todos a usar
sombreros mexicanos, a fazer a siesta e a dançar algo semelhante à rumba (Moura,
1984: 10).
Até os dias de hoje, Ney Matogrosso não se arrepende nem um pouco de ter
recusado o determinado convite:
Quando vejo a reação em cima da Madonna, fico pensando no que teria acontecido
comigo se tivesse ido para os Estados Unidos. Aquele país é de extremos e, apesar
de ter enlouquecido sob muitos aspectos, no geral é muito careta e moralista. Como
não ia me adaptar a nenhuma imposição, a única alternativa seria me dar um tiro.
Na época, não existia um homem praticamente pelado, pintado e enfeitado;
requebrando, ainda tinha o Mick Jagger, mas esse era um comportamento que
acontecia desde o Elvis Presley (apud Vaz, 1992: 206-207).
Segundo Gerson Conrad, um destes executivos ambicionava transformar o Secos &
Molhados em uma espécie de “Novos Monkees”, com direito a produtos licenciados e
merchandising cujos lucros seriam praticamente dos estrangeiros. Outra exigência dos
norte-americanos foi a presença de um tradutor responsável pela adaptação dos poemas e
das letras originais do grupo para a língua inglesa, proposta negada imediatamente por João
Ricardo. Por fim, os estrangeiros ameaçaram o trio sentenciando que se os Beatles foram
136
Sabe-se que Carmen Miranda, assim que aportou nos Estados Unidos pela primeira vez (em 1939), mal
sabia falar Inglês, o que contribuiu imensamente para que a Pequena Notável fosse utilizada como uma mera
ferramenta da Política da Boa Vizinhança (cf. Castro, 2005). As evidências apontam que o mesmo poderia ter
ocorrido com Ney Matogrosso naquela época, pois, como Carmen, ele também não dominava o idioma.
copiados ao galgar as escadarias da fama na América, nada impediria que futuramente um
outro grupo fosse criado à imagem e semelhança dos brasileiros (cf. Conrad, 2004: 6).
Um fato bastante curioso e discutível por parte de muitos é a de que estes executivos
já trabalhavam com um futuro grupo de Rock e convenceram os integrantes a incorporarem
o padrão de maquiagem usado por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso como
algo imprescindível ao seu trabalho. O tal conjunto se consagrou de vez como um sucesso
mundial poucos meses após este episódio: era o Kiss. O uso de máscaras, segundo os
líderes da banda estrangeira, se deu por causa de uma vontade de reformular a relação
artista-palco:
Tendo eles mesmos como público, tiveram que reinventar o espaço do palco e sua
relação com ele. Foi assim que começaram a se maquiar antes dos shows, para eles
mesmos, sem muita idéia do que estavam criando. Até hoje assumem que não
tinham nada de genial em mente, apenas a espontaneidade de querer tocar de um
jeito diferente. O que pode ser mesmo visto como genial foi o crescimento que
propiciaram a essa maquiagem, eventualmente transformando-se nas máscaras que
esconderiam seus rostos e identidades para toda a mídia e público pelos 10 anos
seguintes (Galiano, 2004: 34).
Por outro lado, há alguns que apontam que os integrantes do grupo norte-americano
jamais imitaram os brasileiros (e até de que foram Gerson, João e Ney os plagiadores da
idéia), de que os rostos pintados já eram algo comum para Gene Simmons (baixista e
vocalista), Paul Stanley (guitarrista e vocalista), Ace Frehley (guitarrista e vocalista) e Peter
Criss (baterista e vocalista). É fato que as primeiras fotos do Kiss tiradas em 1972 e 1973
não lembram nem de longe as máscaras de morcego, filho da estrela, homem do espaço e
homem gato que consagrou o grupo tempos mais tarde, e, logicamente, não lembram as
personagens encarnadas por Ney em pleno palco. O cantor principal do Secos & Molhados
defendeu a integridade do grupo e deixa claro que o Kiss surgiu depois, como afirmaria em
uma entrevista concedida ao Jornal do Brasil em janeiro de 2006:
Não, o Kiss é que copiou a gente! A banda já era um estrondo no Brasil e fomos ao
México. O sucesso lá foi tanto que ficamos mais uma semana. A Billboard tinha
publicado uma foto nossa de página inteira e dois empresários americanos
quiseram me levar para os EUA. Recusei a oferta: Estou começando uma história
no meu país e quero dar seqüência a isso”. Não queria acabar como Carmen
Miranda. Inclusive disseram que minha imagem era boa, mas que o som tinha que
ser mais pesado. Eu não ia mudar nosso som por causa disso. Viemos embora. Uns
seis meses depois começou o Kiss, com uma maquiagem como a nossa e um som
mais pesado. Eles colocavam a língua de fora como eu fazia quando terminava “O
Vira”. Kiss era a gente, mais rápidos e mais profissionais (...). Só fico irritado
quando dizem que a gente é que imitava eles. Basta ver os anos em que os discos
foram lançados (Matogrosso, 2006a).
Como podemos depreender, as máscaras eram (ou não) o único ponto comum entre
as duas bandas. O Kiss, por exemplo, possuía ambições ilimitadas se comparadas ao Secos
& Molhados. Enquanto as máscaras dos norte-americanos eram personas com o intuito de
capturar a imaginação dos mais jovens, o grupo brasileiro, principalmente com Ney, trazia
para o palco o corpo maquiado, desinibido e provocante, os movimentos da dança, a letra e
a música, num clima ilimitado, ao mesmo tempo de desacato e descomprometimento. É
fato que, juntos, Simmons, Stanley, Frehley e Criss determinaram padrões de
comportamento e fizeram do artista Pop um mito, um deus rebelde das grandes massas:
tocavam, voavam em pleno palco, cuspiam fogo, quebravam seus instrumentos em meio a
bombas de fumaça, jogos de luzes, tanques de guerra, além de narrar histórias de super-
heróis dotados de poderes especiais que enfrentavam monstros saídos de histórias de
quadrinhos, contos de terror e produções cinematográficas de aventura.
Beto Lee, músico e filho mais velho do casal Rita Lee - Roberto de Carvalho relata
mais detalhadamente a superprodução de uma das apresentações do Kiss: “A turnê era toda
engomada, de uma iluminação de primeira e um show de fogos de artifício logo após o bis,
e no meio do espetáculo um solo de bateria interminável sobre um praticável que ia subindo
a um ponto de tocar a cúpula do ginásio” (IN Petillo, 2005: 122). Tudo isso, diga-se de
passagem, envolto em uma sonoridade altamente pesada para a época, rocks com acordes
altamente ácidos e um tanto superficiais e desleixados. De qualquer maneira, nomes e
bandas de Rock do mainstream musical norte-americano como Lenny Kravitz, Nirvana,
Pearl Jam, Van Halen, Alice in Chains, Soundgarden, Pantera, Skid Row, Antrax e até o
astro country Garth Brooks jamais negaram a importância dos quatro mascarados em suas
respectivas formações musicais.
O sucesso do Kiss se explicava, também pelo fato de ter surgido na cena
internacional em meio a primeira metade da década, momento caracterizado pela ausência
dos Beatles (separados desde abril de 1970) e pelo triunfo de astros de menor notoriedade
como Rolling Stones, Led Zeppelin, Elton John, Deep Purple, Black Sabbath e outros. Ao
unirem o visual extravagante com a musicalidade agressiva típica de Nova York, a banda
conseguiu a alcunha de quarteto fantástico em menos de três anos álbuns como Kiss
(1974), Hotter than hell (1974), Dressed to kill (1975), Alive! (1975) e Destroyer (1976)
fizeram com que a banda se tornasse a mais popular do mundo, em pouco mais de dois
anos!
Com a popularidade em alta, o Kiss se transformou numa verdadeira mania juvenil,
produtos foram licenciados com o nome da banda brinquedos, máquinas de fliperama,
lancheiras, cuecas, chaveiros, sorvetes, gibis da Marvel com direito ao sangue dos próprios
integrantes misturado às tinturas usadas nos quadrinhos e até um filme para um canal de
TV norte-americano Kiss meets the Phantom of the Park , discos e apresentações ao
vivo eram largamente consumidos pelo público. O fenômeno resultou em uma verdadeira
máquina de fazer dinheiro e projetos de gosto duvidoso, como, por exemplo, a incursão do
grupo pela Disco Music e o lançamento de quatro álbuns solo (um de cada integrante), em
1978, revelam os excessos cometidos pelo grupo.
Durante a década de 80, com formações diferentes, o Kiss enveredou por discos
mais Pop ao passo de bandas de sucesso na época como Def Leppard, Bon Jovi e Van
Halen. A grande importância do conjunto para a cena musical foi demonstrar que uma
apresentação ao vivo não deveria apenas se restringir a ouvir música, mas para ser vista
também! O baixista Gene Simmons certa vez declarou que “um show de rock é para ser
visto, e não somente ouvido” (IN Galiano, 2004: 37). Neste ponto, a banda se aproximava
das performances de palco do Secos & Molhados, pois, para ambas as bandas havia uma
preocupação com a performance e a visualidade obtida a partir dela, os figurinos e as
personas unindo o teatro à força do Rock’n’Roll. O resultado deste apuro era uma
experiência única para o consumidor de música Pop: o espectador, ao fruir o objeto
estético, prova o gosto da liberdade e dos prazeres mundanos graças à inserção do artista
nas convenções do imaginário coletivo (cf. Galiano, 2004: 37).
Ao retornarem do México, em junho de 1974, o Secos & Molhados deu início às
sessões de ensaios e gravações do novo disco nos estúdios da Sonima, em São Paulo.
Durante a feitura do álbum, travou-se um verdadeiro pé de guerra entre os integrantes:
combinou-se que as canções seriam compostas durante a turnê mexicana, uma metade para
cada compositor do grupo. Quando as sessões tiveram início, João Ricardo alegou que já
tinha o disco todo pronto, surpreendendo seus companheiros de grupo. Estavam abertas três
frentes de combate: Gerson Conrad lutava para que mais canções de sua autoria fossem
gravadas; João Ricardo, produtor do controvertido trabalho, investia maciçamente na
produção e agiu autoritariamente para defender seus princípios
137
; já Ney Matogrosso
reivindicava que compositores mais ligados à MPB fossem gravados neste trabalho, pois
achava o repertório do grupo extremamente limitado (cf. Vaz, 1992: 60).
Foi frisado durante estas gravações (e, posteriormente, no encarte do segundo disco)
que todas as faixas eram da autoria de seu produtor musical; porém ocorreu uma única
exceção: o acachapante blues “Delírio ...”, com música de Gerson e letra de Paulinho
Mendonça escrita na Sonima porque a censura tinha vetado algumas canções escolhidas
para o repertório do novo LP, deixando lacunas irreparáveis a serem preenchidas. Em
depoimento concedido especialmente para este trabalho, Gerson Conrad acrescentou que o
título de sua parceria com Paulinho Mendonça era, também, uma alusão ao temperamento
“excêntrico” de João Ricardo, não deixando de ser uma reação (velada) às imposições de
seu companheiro de banda.
Outro fato que deve ser mencionado é que os dois compositores do grupo, como
autores das canções do Secos & Molhados, tinham mais lucros devido aos direitos autorais.
Ney Matogrosso, por estar em total desvantagem financeira em relação aos seus
companheiros de banda e por ser o que mais se expunha perante o público, reivindicou uma
divisão de salários mais justa entre eles. Por isso, ficou combinado que Ney, por não ser
compositor, teria direito a 40% de tudo que o Secos & Molhados arrecadasse, enquanto os
outros dois teriam direito a 30% cada um (cf. Souza, 1974a).
137
João Ricardo, em entrevista concedida em 2004, afirmou que foi chamado de “ditador” em várias ocasiões
por causa de suas imposições aos colegas e complementou que seus críticos estavam cobertos de razão:
“Democracia é lá na casa deles, com os amiguinhos deles. Senão, aquele trabalho não teria saído daquele
jeito” (Ricardo, 2004).
Um acontecimento especial foi o estopim para que as relações de trabalho entre os
integrantes azedassem de vez: Gerson Conrad e Ney Matogrosso receberam um contrato da
S&M Produções designando-os como meros funcionários da empresa fundada por João e
seu pai. Em sua biografia, Ney relatou que recebeu um boy em sua casa com o documento
em mãos, pedindo a assinatura do cantor. O pedido, além ter sido prontamente negado,
resultou em um recado bastante desaforado e o surpreendente comunicado de que estava
abandonando o grupo. A decisão de Ney em deixar o grupo pegou várias pessoas de
surpresa visto que o Secos & Molhados estava no auge da popularidade no ano de 1974,
deixando claro que não era uma “pombinha ingênua”, nome pelo qual era chamado por
João Apolinário (Vaz, 1992: 55).
Este ocorrido provocou a cisão definitiva entre os três, especialmente entre dois
deles: de um lado estava o intelectual português, racional e engajado; do outro, o solista
sertanejo, instintivo e profundamente sexual. Com o confronto declarado entre João
Ricardo e Ney Matogrosso, abalos fortes seriam inevitáveis e irrecuperáveis: “Ney não era
só a voz, o corpo e o coração do grupo. Mas a cabeça era João Ricardo, (...) autor da
maioria das músicas, dos conceitos de repertório e performance do Secos & Molhados”
(Motta, 2000: 276). Na medida em que ambos duelavam, era dada a contagem regressiva
para a implosão definitiva do fenômeno...
Gerson, João e Ney ainda estavam envolvidos com a gravação do segundo disco
durante o episódio dos contratos. Atendendo a pedidos da gravadora, o frontman do Secos
& Molhados não comunicaria a sua saída do grupo até o lançamento do novo trabalho os
executivos fariam uma declaração oficial relatando o rompimento assim que todos os
compromissos do grupo fossem cumpridos, o que poderia ser uma estratégia para que o
cantor continuasse fazendo parte do grupo. Nada injusto para a Continental, que armava,
naquele momento, amplos esquemas de marketing e divulgação:
PREPARAÇÃO ANTECIPADA AO LANÇAMENTO
1º) 50.000 selos adesivos que serão distribuídos às lojas, para serem utilizados no
fechamento de envelopes, bem como na divulgação, para afixação em pontos de
vendas e outros, com dizeres: “SENSACIONAL O LP DE ‘SECOS &
MOLHADOS’”;
2º) 25.000 Envelopes com reprodução da capa do LP, que se destinarão como
forma de mala direta, onde, alem de material promocional, seguirá a parada de
sucessos de Sebastião Ferreira da Silva;
3º) 4000 cartazes para afixação nas lojas com os dizeres: “ESTÁ CHEGANDO O
NOVO LP DE ‘SECOS & MOLHADOS’”;
4º) 5000 camisetas com impressão de foto do grupo;
5º) Distribuição para imprensa, junto com informes e fotos, de disco contendo duas
das principais músicas do LP;
6º) Anúncios em jornais principais de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo
Horizonte, Salvador, Recife e Porto Alegre, em forma de campanha: “FALTAM 10
DIAS PARA O LANÇAMENTO DO NOVO LP DE ‘SECOS & MOLHADOS’”
“FALTAM 9 DIAS.........” e assim sucessivamente durante 10 dias. Na data final
um anúncio maior: “FINALMENTE NAS LOJAS O NOVO LP DE SECOS &
MOLHADOS”;
7º) Anúncios em cinemas (intervalos) sobre o lançamento do novo LP de “SECOS
& MOLHADOS” (São Paulo, Guanabara, Porto Alegre, Curitiba, Brasília,
Salvador, Recife, Fortaleza, Belo Horizonte, Belém, Campinas).
PROGRAMA DE LANÇAMENTO
1º) Balões gigantes colocados em pontos estratégicos de São Paulo e Rio de Janeiro
com dizeres: “JÁ A VENDA O NOVO LP DE ‘SECOS & MOLHADOS’”;
2º) Outdoors nos principais pontos de São Paulo e Guanabara e algumas outras
capitais, informando sobre o lançamento do novo LP do grupo (Santos, Campinas,
Niterói, Petrópolis, Recife, Porto Alegre);
3º) Lançamento do LP no Teatro Aquarius, para convidados especiais, como:
Imprensa, Rádio, TV, lojistas e outros. Nesse dia colocaremos balões na entrada do
local juntamente com uma banda tocando músicas gravadas do grupo (1º LP). Esse
programa contará com recepcionistas uniformizadas e também maquiladas como
“Secos & Molhados”, distribuindo folhetos e dando informações aos convidados;
4º) Nos pontos de vendas colocaremos cordões com 5 bandeirolas estampando em
cada uma o rosto de um integrante do grupo e, na última, uma chamada para o
disco, estampando a capa do LP;
5º) Confecção de displays giratórios para serem dependurados nos pontos de
vendas;
6º) Anúncios do lançamento com uma página na Manchete e revista Pesquisa
Nacional do Sucesso e anúncio em uma revista internacional (Cash Box);
7º) Uma edição especial a cores no jornal Curtisom;
8º) Adesivos especiais para serem colocados em roupas, sem manchá-las, com
motivos alusivos ao grupo ou LP;
9º) Fornecimento de slides e filmes aos tele-noticiários de todas as emissoras.
RELAÇÃO DOS CINEMAS ONDE SERÁ EXIBIDO O FILME COMERCIAL
DE SECOS & MOLHADOS
SÃO PAULO........ Gazeta, Center, Barão, Bruni -Vila Nova, Marachá, Bruni -
Santo Amaro, Festival e Pigalle.
GUANABARA........ Pax, Ópera, Bruni-Copacabana, Ricamar, Astor, Baronesa e
Bruni-Meyer.
PORTO ALEGRE........ Vitória, Cacique, Coral e Lido.
CURITIBA........ Ópera, Rivoli, Avenida e Marabá.
BRASÍLIA........ Cinespacial e Venâncio.
SALVADOR........ Guarani, Bahia, Capri e Excelsior.
FORTALEZA........ Olde-Metrópole e Ventura.
RECIFE........ Ritz, Astor, Central e Rivoli.
BELÉM........ Independência, Moderno e Ópera.
BELO HORIZONTE........ Candelária, Nazaré e Regina.
CAMPINAS ........ Windsor
138
.
Gerson lamentou o fato da gravadora não ter feito absolutamente nada para impedir
os choques de ego entre ele, João e Ney. Alegava que o despreparo dos executivos com o
surgimento de tão retumbante fenômeno de massas era muito grande e que deixaram
fenecer um produto altamente rentável como o Secos & Molhados (cf. Conrad, 2004: 6). O
último compromisso profissional de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso juntos
foi a gravação de dois musicais para o Fantástico: “Flores astrais” e “Tercer mundo” duas
canções do novo disco. A Continental construíra uma espécie de “cortina de fumaça” para
impedir o contato entre jornalistas e músicos ao transmitir informações equivocadas do
horário de chegada do grupo ao estúdio, por exemplo (cf. Souza, 1974a). Ao adentrar os
estúdios de gravação da Rede Globo de Televisão, a imprensa, desconfiada do clima de
tensão que permeava o ambiente, tentou se aproximar de Ney, porém um cunhado de João
Apolinário o vigiava para que nada fosse divulgado. O cantor, extremamente irado
138
Esta circular foi divulgada pela gravadora Continental para os principais órgãos de imprensa na época.
Para esta pesquisa, encontramos este documento nos arquivos do jornal Folha de S.Paulo.
sentenciou: “O primeiro filho da puta que me vigiar dentro dessa televisão vai levar com
essa garrafa na cabeça” (apud Vaz, 1992: 55).
A partir do desabafo da voz principal do Secos & Molhados, foi feito o comunicado
oficial do que acontecia nos bastidores do fenômeno musical que encantou o Brasil por um
pouco mais de um ano Gerson Conrad e Ney Matogrosso se desligariam do grupo no dia
3 de agosto de 1974: “os duendes, os sacis e as fadas se debateram com gatos pretos
passando por baixo da escada, fadas malvadas e presságios funestos” (Souza, 1974b), ou
seja, o fenômeno meteórico que ascendeu ao espaço como um foguete, retornava à Terra
como um asteróide que, ao entrar na atmosfera, se desfazia a olhos vistos, deixando o rastro
de partículas no céu.
5.3 - Após o delírio...
Tal qual o sonho Beatlemaníaco que um dia teve um fim decretado, a sociedade
brasileira viu pela TV o fim de um sonho musical chamado Secos & Molhados (cf. Vaz,
1992: 55). Gerson Conrad se sentiu extremamente frustrado e insatisfeito por não ter tido
suas composições gravadas no segundo disco, acreditava que o trabalho deveria ter sido
mais dividido entre os integrantes e fazia graves acusações ao outro compositor do grupo.
João Ricardo, por sua vez, perdera o controle do grande monstro que começou a idealizar
num final de semana em Ubatuba. Apesar de ter sido o astro principal do grupo, Ney
Matogrosso recusava-se a ser um mero empregado da S&M Produções.
A dissolução do trio provocou ainda o cancelamento de vários compromissos já
agendados, dentre eles a apresentação de lançamento do segundo disco no Teatro Aquarius,
em São Paulo, uma temporada de shows no Tuca também na mesma cidade e 30
apresentações em cidades brasileiras até o final de 1974. Ao juntarmos esses eventos aos
outros prometidos pelo ex-empresário do grupo, Moracy do Val, era, indubitavelmente, um
resultado desastroso em termos financeiros. Paulinho Mendonça acredita que a falta de
maturidade de todos os envolvidos foi determinante para a repentina dissolução do grupo:
O Secos terminou antes do tempo, por uma questão de imaturidade, e, talvez, por
isso, tenha deixado seqüelas. Mas a situação havia chegado a um ponto
insustentável. A estrela inegavelmente sempre foi o Ney, mas a vedete era o João
Ricardo. A liderança mantida por ele no início (o Ney nunca reivindicou esse
espaço, e, para o Gerson, era cômodo ter alguém fazendo isso por ele) virou uma
verdadeira paranóia, e o João começou a achatar os outros. A coisa ficou mesmo
pesada quando tudo começou a ser focado no João Apolinário (...), uma pessoa
realmente detestável e autoritária. Mas, até para mim, o momento da separação
constituiu uma surpresa: eles ligaram de São Paulo avisando que viriam ao Rio
gravar o Fantástico, e, quando cheguei lá no dia marcado, o Ney já havia anunciado
o término do conjunto. Da televisão ele veio direto para minha casa, porque já
estava desmontando o apartamento em São Paulo (apud Vaz, 1992: 256-257).
Assim que a separação foi oficialmente anunciada, Gerson Conrad e João Ricardo
retornaram a São Paulo, enquanto Ney Matogrosso permaneceu no Rio de Janeiro com
apenas 100 cruzeiros para passar o final de semana (metade do dinheiro seria para pagar a
conta de luz de seu apartamento na capital paulistana a esta altura, já cortada e o
restante era seu lucro final enquanto membro de um dos grupos musicais mais bem-
sucedidos da história da música brasileira). O cantor não escondeu a sua satisfação em estar
livre das obrigações com o grupo, apesar de sua vida financeira ter quase atingido níveis de
penúria: “Agora eu estou de novo no lugar de onde o João Ricardo me tirou: na sarjeta.
Graças a Deus. Mas tenho dormido e até sonhado, o que não me acontecia há um ano”
(Matogrosso apud a/d, 1974a). E ainda completou dizendo que “na época do Moracy do
Val, o dinheiro era dividido por quatro. 25% para cada um, e sempre aparecia. Agora estou
tão duro, que a Continental teve que adiantar o pagamento do aluguel do meu apartamento
em São Paulo” (IN Souza, 1974a).
Depois do escândalo, Ney decidiu passar uma temporada em sua terra natal para
ficar longe da imprensa e do circo armado por ela em torno de seu desligamento do grupo;
antes de se ausentar, entretanto, o ex-vocalista do Secos & Molhados recebeu uma proposta
do maestro Júlio Medaglia de cantar algumas canções profanas renascentistas no Teatro
Municipal de São Paulo ou no Anhembi, projeto que infelizmente não chegou a se
concretizar. Uma provável explicação para isto foi a de que o astro não queria desenvolver
nenhuma espécie de projeto paralelo ao segundo disco do Secos & Molhados naquele
momento. Luhli observou, em depoimento concedido a Denise Pires Vaz, os malefícios que
a fama do grupo causou a sua estrela maior:
O sucesso forte e repentino do Secos & Molhados alterou a vida do Ney, porque
veio com uma náusea muito grande de grana e poder. Para quem não se envolvia
com nada, ele se viu cercado por uma história tão feia que resolveu comprar a briga
para valer. Aí, virou uma pessoa em emergência, que só dormia à custa de remédio
e, assim mesmo, com uma luz vermelha (de perigo) permanentemente acesa. Ney
ficou tão engalfinhado nessa guerra, tão atento para saber de onde viria a próxima
facada, que acabou gerando uma superdesconfiança contra o ser humano. Com
raras exceções, ele gerou uma defesa emocional tão absurda a ponto de não
permitir quase contato físico com as pessoas. Na solidão absurda do guerreiro,
precisou criar uma armadura para poder preservar o seu ser mais profundo (IN Vaz,
1992: 251-252).
Em recente declaração, João Ricardo alega, evidenciando toda a mágoa e o
ressentimento em relação ao passado, que Gerson Conrad e Ney Matogrosso mentiram
deslavadamente para o público a respeito das finanças do grupo:
Depois de uma gravação na TV Globo, no Fantástico, (...) uma rádio me informou
sobre uma reportagem de jornal, na qual o Ney e o Gerson diziam que eu e meu pai
éramos uns monstros. Insinuavam que os havíamos roubado, que eu era um ditador.
Só os dois falaram. E o país inteiro me atacou, virulentamente, sem nada de
concreto (...). Eles haviam insinuado que eu e meu pai teríamos tomado conta de
tudo. Mas quem sugeriu a entrada do meu pai foram o Gerson e o Ney. Eles
queriam montar uma empresa, com o qual teríamos o poder de contratar quem
quiséssemos. Mas seríamos os donos. Isso porque o imposto de renda diminui
(Ricardo, 2004).
João Apolinário também não escondia tristeza e ressentimento em relação aos
acontecimentos naquela época. Arrependia-se de ter abandonado o jornalismo e a poesia
(em 1974, já tinha alguns livros publicados) em troca dos afazeres burocráticos. Alegava
também que o único lucro gerado pelos negócios foi a troca de seu carro Corcel por um
Maverick (uma diferença economicamente sutil em meados da década de 70) e que houve
uma instabilidade por parte de Gerson, João e Ney no momento em que Moracy do Val foi
destituído da função de empresário. A respeito disso, comentou Apolinário à revista Veja
em agosto de 1974: “Estava eu bem posto no meu canto, lendo meus livros e escrevendo
meus artigos, quando fui chamado pelos três mamíferos que pediam socorro” (Souza,
1974b).
A separação do Secos & Molhados causou de imediato uma série de boatos de
procedência lamentável. A mídia chegou a apontar Edy Star e o cantor Cornélius do grupo
Made in Brazil como possíveis substitutos de Ney Matogrosso logo após a dissolução da
formação original. Uma nota publicada na Folha de S. Paulo em 30 de agosto de 1974
informava que Edy teria recebido propostas de pessoas ligadas a João Ricardo para ocupar
os vocais do grupo. João negou o fato em uma entrevista coletiva concedida dias após o
anúncio da separação.
Notoriamente, era previsto que o segundo trabalho do Secos & Molhados fosse um
dos acontecimentos mais importantes do meio musical em 1974. Repetindo a fórmula do
disco anterior (porém menos inspirado, com menos Rock e uma produção mais sofisticada e
pretensiosa), os arranjos impecavelmente elaborados, a sonoridade do grupo caminhava por
timbres mais suaves em relação ao álbum que o antecedeu canções como “Não: não digas
nada”, “Melo mulato”, “Oh! Mulher infiel” e “Preto velho” foram registradas apenas em
voz e violão ou o canto era solenemente acompanhado pelo piano a pouca presença de
Gerson Conrad e até de João Ricardo como instrumentistas demonstra a diminuição radical
da cumplicidade e harmonia entre os três. A voz de Ney se revelava um pouco mais suave
naquele momento, já demonstrando maior maturidade artística e sem necessariamente
recorrer aos timbres mais agudos. Ao contrário do disco anterior, a capa não possuía
grandes requintes, pois apenas se via apenas as faces de João, Ney e Gerson
respectivamente num fundo negro sem dizeres. Apesar de ser um reencontro do grupo com
o trabalho do fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues, a imagem não tinha a capacidade
irresistível de provocar maiores impactos e/ou surpresas.
Apesar do novo produto se revelar um sucesso total nas lojas e rádios de todo o
Brasil, todos tinham consciência de que as 13 faixas do vinil, juntas, eram um epitáfio do
fenômeno. “Flores astrais” e “Vôo” foram as canções escolhidas para o compacto de
divulgação e estouraram nas FMs de todo o país. A fidelidade do público na época era
tamanha que o Secos & Molhados estava presente em todos os meios de comunicação. Ou
seja, constantemente surgia “a vontade de possuir aquilo de que todos gostam, todos
querem; a necessidade de se integrar na solidária maioria. Mas, se integrar como dono,
participar tendo a posse comprando o disco” (Kubrusly, 1974), em que, as canções
lembravam a sonoridade fácil, banal e popular dos jingles comerciais.
É evidente a consolidação da enorme maquinaria que surgia por detrás da figura do
grupo: após o lançamento do primeiro álbum em Portugal, Argentina e México, os outros
países da América Latina (e do mundo) não levariam muito tempo para se renderem ao
charme da nova revelação do “Tercer mundo”. A ambição pelo sucesso absoluto sempre
esteve presente nas intenções do grupo; entretanto, na medida em que o conjunto se tornava
mais popular, o grupo corria o risco de se transformar em uma caricatura de si próprio,
numa máquina de dividendos. João Ricardo afirmou, na época da separação, que sempre
resistiu à banalização de seu trabalho, recusando a vender suas obras para comerciais de
televisão e coisas do tipo, porém, reconhece, que todos foram “devidamente consumidos e
triturados” pela máquina da fama desmedida e do sucesso desproporcional. Os órgãos
governamentais também contribuíram para o trituramento fatal das finanças do grupo, pois
o Fisco obrigou os integrantes do grupo a tributarem 50% de seus lucros às autoridades,
segundo Gerson Conrad (cf. Souza, 1974b e Conrad, 2004). Apesar de parecer uma
máquina eficaz, livre de quaisquer falhas financeiras, o Secos & Molhados, após o boom, só
poderia ter ficado de pé graças às enormes circulações de capital o que elimina, em
praticamente todas as hipóteses, os espaços de circulação do que entendemos como Arte.
Por isso,
o esquema, bem arquitetado, deveria ser eficaz, pois previa quase tudo menos o
fim da união. Conquistando os mercados próximos, o Secos & Molhados repetiria o
que já conseguiram Roberto Carlos, Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, etc. E isto
poderia maltratar Moracy do Val, ex-empresário do ex-conjunto, porque ele
sonhava levá-lo à conquista do mundo, alegando talvez: se os Beatles dominaram
todos os mercados a partir de Liverpool, o [grupo brasileiro] pode[ria] repetir a
proeza (...)
(Kubrusly, 1974).
O Secos & Molhados, ao aliar o êxito comercial e um certo respeito da crítica
especializada, conseguiu um feito inédito na cena musical brasileira até aquele momento,
distanciando-se de outros grupos que despontavam na mesma época como O Terço, Grupo
Capote e Paulo Bagunça e sua Tropa Maldita. O ano de 1974, por exemplo, não foi muito
criativo para os grandes músicos da canção brasileira houve um predomínio de discos ao
vivo, dentre os quais Milagre dos peixes, de Milton Nascimento; Temporada de verão (Ao
vivo na Bahia), de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa e Gil Ao vivo, de Gil. Chico
Buarque de Hollanda e Raul Seixas lançaram trabalhos que aliavam velado protesto às
medidas autoritárias daquele período e autocensura com Sinal fechado e Gita. Por sua vez,
a santíssima trindade feminina da chamada “MPB dos anos 70”, composta por Elis Regina,
Gal Costa e Maria Bethânia, ainda trouxe os álbuns Elis & Tom, Elis, Cantar e A Cena
Muda, que revitalizavam a cena musical brasileira a partir de releituras da tradição de nosso
cancioneiro e composições inéditas.
Por outro lado, a indústria do disco no Brasil se esmerou ao máximo na criação de
produtos semelhantes ao Secos & Molhados. Grupos como o Achados & Perdidos
139
,
Assim Assado (sim, o nome deste grupo era baseado na canção homônima do repertório do
Secos & Molhados!) e astros como Maria Alcina e Edy Star também incorporaram a
androginia, maquiagens e purpurina e foram casos nos quais a cópia literalmente superou a
semelhança ou possíveis homenagens ao trio da Continental. A jornalista Ana Maria
Bahiana comentou este fenômeno com detalhes em seu livro Nada será como antes: MPB
nos anos 70:
Ainda no campo empresarial da música popular, a breve estrela do Secos &
Molhados foi o fator determinante de quase todos os negócios e investimentos. Na
esperança de descobrir e lançar, em curto espaço de tempo, um grupo brasileiro
mais ou menos ligado à informação rock, para competir com o que parecia ser o
mais fulminante fenômeno de popularidade dos últimos anos, muitas gravadoras e
empresários resolveram com avidez o mercado de novos disponíveis. E acabaram,
involuntariamente, revelando uma geração de músicos desorientada e apática em
sua criação: Moto Perpétuo, Mutantes, Ave Sangria, Grupo Raízes e, num nível um
pouquinho melhor, Tutti Frutti e Som Nosso de Cada Dia (Bahiana, 1980: 150-
151).
Edy Star, por exemplo, reivindicava a invenção do Glam à brasileira justificando
que já utilizava o vestuário extravagante e a maquiagem pesada na década de 60 antes até
da onda Glitter se formar no cenário internacional. Sua persona era um misto de Alice
139
A falta de originalidade deste conjunto já se via no nome escolhido para a banda, ao se utilizar da mesma
conjunção aditiva “&” do fenômeno de vendas da Continental, além das perucas coloridas usadas por seus
integrantes.
Cooper e Ney Matogrosso, composta por plumas negras, roupa rendada transparente e botas
prateadas de salto plataforma
140
. Seu único álbum, editado pela Som Livre em 1974,
...Sweet Edy (com composições inéditas de Jorge Mautner Caetano Veloso e Moraes
Moreira) são provas latentes de suas reivindicações. “Claustrofobia”, composta por Roberto
e Erasmo Carlos exclusivamente para o astro baiano, era um manifesto não muito ousado
de libertação, de homoerotismo reprimido, um “grito de guerra e desopressão” (Sanches,
2004: 197) que estava na esteira na postura anárquica presente em “O Vira”. Versos como
“Eu dou vexame / porque eu preciso de espaço / quero respirar / senão acabo no bagaço /
atravessando um compasso (...) / Se pensa que é brincadeira / olhe bem para minha cara /
será que eu pareço bicho / ou alguma coisa rara? / pare de me sufocar / eu quero tocar
bonito / porque senão eu grito / e dou vexame”
141
não só evidenciam o manifesto sexual
reforçado pela performance, como também exterioriza a temática (neste caso, oportunista)
da sexualidade e fizeram do ex-egresso da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista (ao lado de
outros artistas como Sérgio Sampaio e Míriam Batucada) criada por Raul Seixas um dos
maiores beneficiados com a ascensão meteórica do Secos & Molhados.
Apesar de ter recebido o aval de Gilberto Gil e do Rei Roberto Carlos, Edy, com seu
talento mediano, não iria muito além do breve sucesso de seu single de estréia, logo mais
tarde já estaria relegado ao completo ostracismo. Alguns o apontavam como uma mera
versão infeliz do grupo formado por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso, o que
explica o fato de não ter ido adiante. No encarte de ...Sweet Edy, o próprio Rei Roberto
assinou um texto que não poupava elogios a seu “pupilo”: “Bicho, eu parei na de Edy Star”.
O curioso é que o cantor de clássicos como “Detalhes”, “Emoções” e “Proposta” sequer
140
Em depoimento concedido para o livro Todas as Letras, Gilberto Gil disse que conhecia Edy Star desde a
década de 60, quando ambos ainda viviam em Salvador. Segundo o compositor de “Domingo no parque”, as
apresentações de seu colega eram bastante teatrais, essencialmente performáticas e continham a rebeldia
contestadora do Rock’n’Roll (cf. Gil, 2003: 171). Gil compôs uma canção inédita para o álbum ...Sweet Edy
que era uma espécie de diálogo da persona andrógina de Edy com Alice Cooper e a estética barroca. A letra
de “Edyth Cooper” está transcrita a seguir: “Asinhas de anjo barroco / Bochechas de anjo barroco / Nádegas
de anjo barroco / Bugigangas, velhos pincéis // Cem mil réis de carne com osso / Cem mil réis de queijo de
prato / Cem mil réis de filó barato / Gesso, cola, tintas, telões // Abstrações, visões coloridas / Cena do balé
dos anões / No ateliê da louca varrida / Dando, rindo, lendo Camões / Representações de cenas proibidas /
Obcenas obsessões / No ateliê da louca varrida / Vivendo, varrendo os salões / Edyth Cooper, Edyth Cooper /
Edyth Cooper, vem me consolar / Edyth Cooper, Edyth Cooper / Faz minha vassoura voar / Edyth Cooper,
Edyth Cooper / Os morcegos vão me chupar (Será?) / Edyth Cooper, Edyth Cooper / Sem você eu vou me
borrar de tinta / Eu vou me pintar de gesso / Eu vou me engessar de cola / Eu vou descolar de medo” (Gil,
2003: 170).
141
IN: Edy Star, ...Sweet Edy (1974)
menciona a letra de “Claustrofobia” em seu site oficial. Atualmente o ex-astro vive na
Espanha e divide seu tempo fazendo apresentações esporádicas e trabalhando como diretor
de uma casa de espetáculos.
Outro caso da influência exercida pelo Secos & Molhados nos músicos daquela
época é o da banda Assim Assado. O impacto visual também podia ser vislumbrado na capa
de seu único registro fonográfico, de 1974: os quatro integrantes, maquiados tal qual
Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso também tinham suas cabeças “decepadas”,
mas postas em um caldeirão hiper fervente de feijoada. Entretanto, o futuro ouvinte não se
deparava com um suntuoso banquete de pães, vinhos e outros objetos perecíveis, e sim,
com uma paródia (ainda que grosseiramente) da mesa “servida” pelo fotógrafo Antônio
Carlos Rodrigues.
É evidente que o grupo liderado pelo guitarrista e vocalista Miguel de Deus resultou
de um esquema comercial da Companhia Industrial de Discos em relação à sua concorrente,
a Continental. Como o Secos & Molhados tinha um grande apelo entre os jovens, era
visível que a indústria fonográfica como um todo desejasse a sua fatia do enorme bolo do
sucesso propiciado pelo trio. No entanto, a “homenagem” sequer esteve à altura do
“homenageado”: a sonoridade do Assim Assado mesclava timbres vocais agudos com rock
progressivo e ritmos nacionais seria esta mistura de sons e ritmos uma clara alusão ao
som plural desenvolvido por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso? Canções
como “Pedaços”, “Sombras”, Viva crioula”, “Sol, sal, sol tropical” e “Até” não se
aproximavam de forma alguma a “Sangue latino”, “Mulher barriguda”, “O vira”, “Fala” e
“Assim assado” poética e/ou musicalmente.
O líder do grupo, o baiano Miguel de Deus, ao contrário do que se pode imaginar,
possuía um currículo curto, porém bastante significativo. Em 1968, formou Os Brazões,
durante o auge da alvorada tropicalista. O único disco desta banda recebeu elogios do
jornalista Nelson Motta em seu encarte e contém obras de Gilberto Gil (“Pega a voga,
cabeludo”, “Volks-Volksvagen Blue”), Tom Zé (“Feitiço”), Jards Macalé (“Gotham city”,
em parceria com Capinam) e Jorge Ben (“Carolina, Carol Bela” e “Que maravilha”). A
musicalidade do grupo que aliava psicodelia, pontos de macumba a um visual hippie
tribal se adequava com perfeição às propostas estéticas da Tropicália. Estes músicos
acompanharam músicos de renome, tais como Caetano e Gil (em seu extinto programa da
TV Tupi, Divino, Maravilhoso), Tom Zé (no IV Festival de Música Popular Brasileira da
TV Record com “São São Paulo”, Gal Costa (em sua temporada de shows de 1969) e Jards
Macalé (no IV Festival Internacional da Canção da Rede Globo com “Gotham city”). Após
a dissolução do Assim Assado, Miguel só retornaria ao disco em 1977 com o elogiado solo
Black Soul Brothers, no qual a música negra (Funk e Soul essencialmente) estava em pauta.
Uma reportagem publicada em 1974 pela revista Veja entrevistou três rapazes que
faziam um cover do Secos & Molhados. O Tomate Cooper cantava em festas de
adolescentes, imitavam Gerson, João e Ney e faturava cerca de 150 cruzeiros por
apresentação, uma quantia bastante generosa na época. Era certo que a implosão deste
fenômeno Pop causara uma espécie de vazio nos inconscientes de muitos jovens brasileiros
naquele fatídico mês de agosto. Após o término de algumas apresentações do grupo, não
era incomum que alguns dos integrantes recebessem questionários de alunos dos Ensinos
Fundamental e Médio indagando o significado de algumas palavras ou a respeito da escolha
dos poemas musicados por Gerson Conrad e João Ricardo (cf. Morare, 1974).
Indubitavelmente, o grupo alcançava as mais diversas faixas etárias e pelos mais diferentes
motivos: os mais jovens se encantavam pela musicalidade e as apresentações esfuziantes,
enquanto os mais velhos também se sentiam atraídos pela riqueza poética de seu
trabalho
142
.
Por outro lado, a androginia defendida pelo Secos & Molhados beneficiou outros
nomes como o Dzi Croquettes, grupo de bailarinos formado no Rio de Janeiro no ano de
1972. Capitaneado por Lennie Dale (de origem norte-americana e radicado no Brasil desde
a década de 60), Paulette e Ciro Barcellos, estes bailarinos representaram o “grito
andrógino”
143
do Rio de Janeiro (enquanto o Secos & Molhados seria um reflexo da
androginia paulistana), apresentando algo radicalmente diferente dos shows de travestis
realizados na Praça Tiradentes, localizada na região central da cidade do Rio de Janeiro.
Inspiravam-se nos norte-americanos The Cockettes e diluíram os gêneros masculino e
feminino em um único corpo, causando uma espécie de choque do público em geral, afinal
142
Vale registrar que o grupo já despertara naquela época uma atenção de alguns membros isolados do meio
universitário, reconhecendo desde já, uma amplidão de questões a serem analisadas. Para Marta Marques
Caraciollo, mestranda em Teoria Literária pela PUC-SP em 1974, o Secos & Molhados foi responsável por
uma reativação “do material proposto desde a Bossa Nova até o Tropicalismo”, hipótese analítica que não
deixa de coincidir com uma das idéias principais apresentadas em nosso trabalho.
143
Esta expressão foi usada por Luhli, em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de
2006.
aqueles homens “de barba, bigode e longos cílios postiços, vestidos com roupas de mulher,
enormes sutiãs sobre os peitos cabeludos, as pernas au naturel, metidas em grossas meias
de futebol com sapatos de salto alto (...)” (Dias, 2003: 287) não deixavam de se revelar
como um espetáculo deliciosamente pitoresco:
Numa explosão de música, gritos, luzes que piscam, corridas de cima para baixo, o
palco [era] invadido por odaliscas, vedetes, viúvas, pierrôs, prostitutas, clowns e
rumbeiras: a família Dzi Croquettes se apresenta. Maquilagem, roupas, e gestos os
distinguem uns dos outros. Mas a indiferenciação de protótipos masculinos e
femininos é comum a todos. Grandes cílios, bocas exageradas e a purpurina
cintilante e colorida, formando desenhos psicodélicos, mancham seus rostos e
corpos que exibem barbas, bigodes e pêlos viris. Os vestuários delirantes englobam
vestidos de lamê, maiôs de franjas e lantejoulas, malhas de balé desfiadas,
combinações desajeitadas, chapéus extravagantes, perucas... meias de futebol
presas à ligas de mulher e pés calçados com sapatos de salto ou botas pesadas e
polainas (Green, 2000: 410).
Os dançarinos do Dzi Croquettes, como é possível compreender, tinham como
objetivo reivindicar a liberdade sexual. A máxima “Todo mundo deveria ser capaz de fazer
sexo com quem bem entendesse” era usada nas apresentações dos bailarinos, o que refletia
suas propostas ousadas de libertação (IN Green, 2000: 411). Para romper com os preceitos
de moralidade que permeavam aquele contexto histórico, dançavam em cena, contavam
piadas de humor ambíguo o double sense era a chave usada por eles para furar o cerco da
repressão daqueles tempos e, tal qual o Secos & Molhados, questionavam incisivamente
as morais da sexualidade:
Embora fossem efeminados, eles também projetavam masculinidade, estando assim
de acordo com padrões tradicionais, e não eram considerados exatamente “bichas”,
tampouco “travestis”, dado que os atores não faziam qualquer tentativa de copiar o
ideal de beleza feminina. Ao tentar conciliar a imagem ambígua do grupo, que
desafiava as classificações vigentes, a imprensa inventava novas expressões para
descrevê-los, como “travesti sem bichismo” e “travesti sem cara de homossexual”.
Por fim, a mídia acabaria por adotar o termo “androginia”. O Dzi Croquettes
ironizavam essas invenções dos jornalistas, respondendo: “No fundo, no fundo, é
tudo a mesma coisa; travesti é bicha de classe baixa; agora, andrógino é filho de
militar”. Embora isso passasse por um comentário meramente humorístico, a
observação da trupe era bastante pungente, pois a retratação de homossexuais na
imprensa passava, de fato, por uma codificação de classe. Os homens de classe
média e alta que transgrediam os limites de gênero eram descritos como pessoas
andróginas, enquanto os pobres e a classe trabalhadora eram travestis, um termo
que cada vez mais passou a ser associado com prostituição, vida nas ruas e
marginalidade (Green, 2000: 411).
Utilizando os mesmos ideais libertários do Secos & Molhados, porém com um
enfoque bem mais específico (pois os músicos não abordavam diretamente a temática
sexual), estes bailarinos foram um sucesso absoluto entre os jovens e as camadas mais
insatisfeitas da sociedade brasileira garantiram casas lotadas nas capitais carioca e
paulistana durante os anos de 1973 e 1974, seguiram no ano seguinte em turnê européia e
retornaram ao Brasil apenas em 1976 (cf. Green, 2000: 411). Vale observar que tais
questionamentos não se restringiam justamente à manifestação de uma latente
homossexualidade, mas sim de afrontar o conservadorismo de diversos setores sociais no
Brasil do regime militar.
Um acontecimento interessante que se deu em 1973 foi uma série de apresentações
comemorativas de um do Dzi Croquettes no Teatro Treze de Maio, São Paulo:
acompanhados da dupla Luli-Lucina, na época iniciantes, um convidado de última hora se
juntou a eles no palco. Era Ney Matogrosso, que, naquela ocasião, tinha levado o primeiro
disco do Secos & Molhados para a amiga Luhli. Juntos, Ney, Luhli, Lucina e o Dzi
Croquettes cantaram e dançaram “O vira” para alguns afortunados que presenciaram o
encontro histórico das duas principais matrizes da androginia brasileira no mesmo palco.
Apesar do brilho efêmero, o Secos & Molhados, com sua irreverência e
transgressão, manteve-se atual com o passar do tempo e garantiu o seu espaço dentre as
mais importantes manifestações da música popular produzidas no Brasil. Apesar da
repressão moral e da vigilância política enquadrando vários setores da sociedade, foi
impossível conter a popularidade do conjunto, pois a ideologia de várias canções que
encantaram o país nos anos de 1973 e 1974 fugia do enfoque político tradicional e inseria
na cena cultural brasileira uma atitude Pop jamais vista no país. O entrecruzamento dos
mais diversos gêneros musicais e poéticos, prática mais do que corriqueira na
contemporaneidade, também fez do grupo um dos principais representantes da canção
popular brasileira moderna:
Originalidade, lição 1: Não há nada no mundo, nem feito antes, nem durante, nem
depois, sequer parecido com o Secos & Molhados e o som que o grupo registrou
em seu primeiro e antológico álbum. A carreira da banda foi tão rápida e sua
eficiência tão intensa que não houve tempo para que a gente entendesse direito o
que se passava. Foi a carreira perfeita nos conceitos do rock. Era absolutamente
brasileiro, mas era glitter, era delicado e agressivo nas doses certas e, acima de
tudo, tinha muito apelo comunicativo. Era Pop até não poder mais desde as
canções até ao visual (e a antológica capa do disco, claro). Extremamente bem
tocado e gravado, apesar dos parcos recursos de estúdio da época, até hoje o frescor
de faixas como “Assim Assado”, “Fala” e “Sangue Latino” se mantém intacto
144
.
A Continental, por sua vez, investia maciçamente no Secos & Molhados a tal ponto
que o segundo disco já tinha vendido a surpreendente quantidade de 300 mil cópias na
época de seu lançamento. A segurança da gravadora não deixava de ser algo surpreendente
em tempos de vigília ao mercado fonográfico e da soberania quase absoluta de Roberto
Carlos. Somando-se as vendas dos dois discos, em um ano, Gerson Conrad, João Ricardo e
Ney Matogrosso venderam, juntos, um milhão de discos.
145
Tal qual o Kiss, o grupo
brasileiro tinha se transformado numa verdadeira máquina de dividendos, uma corporação
acima de qualquer coisa, conforme a reclamação do próprio Ney:
Depois do espetáculo do Maracanãzinho, culminando no México, o Secos &
Molhados foi virando uma máquina de ganhar dinheiro. Cada sorriso, cada música,
cada entrevista valia por quanto mais dinheiro entrava em caixa. E essa,
definitivamente, não é a minha. O trabalho musical que começamos a desenvolver,
agora, estava em último lugar na relação das prioridades (Souza, 1974a).
Uma coletiva de imprensa foi convocada pela S&M Produções, no dia 7 de agosto
de 1974, com o intuito de esclarecer a onda de boatos e acusações propagadas pela mídia e
explicar as razões da separação do grupo desde que esta foi anunciada dias antes.
144
A citação faz parte do volume Obras Fundamentais da História do Rock Brasileiro, editado pela Revista
Superinteressante em 2004 vide item Referências Bibliográficas.
145
Este fato só deve ser considerado se somarmos as vendas dos dois discos do Secos & Molhados até então.
O primeiro LP, de acordo com pesquisadores, vendera 800 mil cópias naquele período.
Fotógrafos, jornalistas e câmeras de TV se acotovelavam para ouvir o que o líder do
conjunto tinha a dizer naquele momento. Ironicamente, João Ricardo, 20 minutos atrasado,
se posicionou numa mesa oval exatamente abaixo de um enorme quadro de Ney
Matogrosso. Dois advogados da firma o acompanhavam com a intenção de auxiliá-lo com
as perguntas a respeito das questões financeiras que provocaram as brigas e os
desentendimentos. O encontro, extremamente tenso, foi marcado pela agressividade dos
repórteres, incompreensões e evasivas por parte do entrevistado os órgãos midiáticos
tinham interesse em saber por que “Trem noturno”, de Gerson Conrad e Paulinho
Mendonça, tinha sido vetada para o segundo disco. João justificou que esta canção não foi
incluída no repertório por não se encaixar na proposta estética do trabalho deles e que foi
Ney quem detectou este fato
146
.
O entrevistado negava as afirmações dos ex-companheiros e afirmava que só tomou
conhecimento do pedido de Gerson Conrad através dos jornais. Também disse que não
acreditava nas afirmações de Ney Matogrosso: “Conheço Ney há muito tempo e posso
afirmar que ele jamais falaria certas coisas, ainda mais sem motivo. A única coisa que sei
sobre sua saída é que ele me disse: Vou parar porque é preciso (Ricardo apud a/d, 1974b).
Questionado a respeito de supostas falhas pessoais e profissionais, João Ricardo preferiu se
manter na defensiva:
Não tenho problemas de auto-afirmação. Se o Gerson tinha problemas de
relacionamento comigo devia ter falado comigo e não com vocês. Meu pai foi
escolhido para administrador da firma por sugestão unânime de nós três. E tudo que
foi feito está documentado, assinado e confirmado também por nós três. Quanto ao
problema de dinheiro devo afirmar que tudo foi dividido igualmente. Se por acaso
ganhei mais do que os outros, é porque sou compositor e a lei dos direitos autorais
determina isso. As contas estão todas aí: não vou divulgá-las agora porque não
tenho o direito de dizer quanto cada um ganhou sem a aprovação deles. Se depois
da saída de Moracy do Val, primeiro empresário, eles passaram a se sentir
empregados segundo declarações que ouvi agora , é um problema subjetivo. A
SPPS recebeu proposta de dissolução em junho desse ano, na Justiça, por decisão
de todos nós. Os problemas de relacionamento, as brigas, sempre existem. Se nós
146
A canção foi gravada por Gerson Conrad em seu primeiro álbum solo, lançado em parceria com a cantora
Zezé Motta no ano seguinte.
não tivéssemos desentendimentos, não seríamos normais (Ricardo apud a/d,
1974b).
João Ricardo ainda justificou que, na época, a auto-industrialização era uma
conseqüência inevitável para o trabalho desenvolvido pelo trio: “Seria desonesto, indigno,
eu não me colocar como produto, principalmente hoje, que estou à frente de um esquema
específico. Não tenho alternativa” (IN Souza, 1974a). As preocupações de Gerson Conrad e
Ney Matogrosso se pautavam no fato de que a demissão do empresário Moracy do Val e o
controle de João Apolinário sobre as finanças do grupo mudaram definitivamente as
relações entre os músicos. Uma procuração foi assinada pelos três concedendo ao novo
empresário amplos poderes sobre os futuros trabalhos do Secos & Molhados, o que
desagradou profundamente Ney. Assim que a procuração foi desconsiderada, Apolinário
retrucou com a seguinte pergunta: “Como é que eu vou ter garantias de que o meu filho não
vai ficar na mão?” (IN Souza, 1974a).
Gerson Conrad também recorreu à imprensa logo após o final da coletiva de João
Ricardo na sede da gravadora Continental. Não deixou de contestar o que fora declarado
pelo ex-companheiro, momentos antes, informando que tanto João quanto seu pai tinham
conhecimento de sua saída antes da fatídica gravação do Fantástico. Mostrou-se
incomodado com a tamanha popularidade do grupo e alegou que precisava ser um
intermediário da sede de liderança de João na mesma medida em que Ney tinha “uma
necessidade natural de estrela cantante” (IN Souza, 1974b). Encontramos uma explicação
detalhada do próprio Gerson a respeito das tensões que provocaram rompimento da
primeira formação do Secos & Molhados em uma notícia da Folha de S. Paulo de setembro
de 1974:
Saímos, pois não agüentávamos mais as imposições de João Ricardo. O ideal
pertencia a nós três, no início; e agora João não reconhece mais nosso trabalho.
Ney e eu fomos colocados em segundo plano. Ficou vital para João Ricardo ser o
“líder” e a colocação que ele dava aos nossos negócios era sempre na primeira
pessoa do singular e não na primeira do plural. O nosso trabalho para ele não
significou nada. Ney, que é a real estrela, para João Ricardo não passava de um
empregado. Enchendo o peito, ele gritava: “Eu sou Secos & Molhados, eu inventei
tudo isso, etc...”. Diante disso, nós não tínhamos mais condições para continuar
juntos.
A vontade de liderança de João Ricardo está refletida em uma declaração de
Henrique Suster, produtor que trabalhava com o grupo na época:
O João Ricardo é o líder, o compositor, o organizador, o dono da idéia e do nome
Secos & Molhados. Mas quem se transformou em estrela do conjunto foi Ney
Matogrosso, (...) descoberto por João Ricardo e cantando num estilo bem diferente
do que canta agora (apud a/d, 1974b).
Certamente a fama repentina trouxe uma nova mentalidade para alguns integrantes.
Ney Matogrosso, por exemplo, antes de ser famoso tinha recebido críticas por utilizar um
vestuário simples, ao ascender à condição de astro Pop, recebeu conselhos de João Ricardo
para se vestir com bastante brilho (cf. Souza, 1974a)... Para Gerson Conrad, a popularidade
do Secos & Molhados prejudicou a criatividade de seus membros, não permitindo a
abertura de seu repertório para outros compositores (vale lembrar que das 13 faixas
gravadas no segundo disco, 12 eram da autoria de João Ricardo seja em parceria com
outros autores ou sozinho). Em outras palavras, ao invés de haver uma integração entre os
dois compositores, tornou-se “muito mais rendoso e de sucesso garantido inventar
musiquinhas para textos de poetas famosos”. A respeito da disputa de repertório e da
suposta truculência de João
147
, o co-autor de “Rosa de Hiroshima” ainda comentou de
modo ferino:
Ele preferiu fazer parceria com Julio Cortázar, Oswald de Andrade e Fernando
Pessoa. Foi graças a essa fórmula que, no primeiro LP, Ricardo ganhou uma
incalculável fortuna em direitos autorais. Com as (...) músicas do novo disco, ele
certamente vai ficar rico (Conrad apud a/d, 1974a).
Mesmo com o surgimento de “uma assustadora cacofonia de notas oficiais,
declarações, desmentidos e acusações” (Souza, 1974b), resultando numa galeria quase
147
Apesar de encontrarmos uma espécie de fundamentação nos argumentos de Gerson Conrad, não devemos
atacar esteticamente as escolhas de João Ricardo, pois nota-se uma interação entre poesia e música em um
altíssimo nível.
indecifrável do que foi real ou não, Gerson, João e Ney reconheciam a impossibilidade de
se retirar da vida artística: em menos de um ano depois, já se viam os primeiros resultados
das carreiras solo de cada um deles. Gerson Conrad firmou uma parceria musical com
Paulinho Mendonça e gravou seu primeiro trabalho autoral ao lado da então estreante Zezé
Motta pela Som Livre Gerson Conrad & Zezé Motta (1975). O disco teve algum destaque
na mídia, no entanto, não serviu para que o ex-integrante do Secos & Molhados
conseguisse alcançar uma carreira individual duradoura. Tais conseqüências foram
avassaladoras pára Gerson, pois só voltou a gravar um disco seis anos depois, em 1981.
Rosto marcado, seu segundo trabalho autoral, não chegou a chamar a atenção do grande
público e nem garantiu ao seu autor a notoriedade desfrutada por seus ex-companheiros
Ney Matogrosso e (de uma certa maneira) João Ricardo.
João Ricardo, cônscio de que é o grande criador de um dos maiores fenômenos Pop
do Brasil nos últimos tempos
148
, seguiu carreira individual e gravou dois discos pela
gravadora Philips: seu trabalho de estréia, o incensado João Ricardo (1975), mais
conhecido como Disco Rosa, recebeu esta alcunha pelo fato de seu autor ter sido
fotografado maquiado e vestido com um terno rosa bebê. Tal gesto era, definitivamente,
um ato de bravura em tempos de ditadura militar, rendendo o comentário galhofeiro do
próprio João quase três décadas depois: “Nenhum veado teria coragem de fazer essa capa”.
Seu ótimo sucessor, Da boca pra fora (1976), também tinha vários ingredientes-chave do
disco de estréia as participações de Willie Verdaguer, John Flavin, Emílio Carrera e o
jovem guitarrista Roberto de Carvalho, Rocks de forte apelo musical e letras inteligentes ,
mas não chamou a atenção da mídia e do público como deveriam. O músico ainda investiu
em novas formações do Secos & Molhados em 1978, 1980, 1988, 1999, 2000 e 2003, sem,
no entanto, a repercussão obtida no período 1973-1974
149
.
148
Em entrevista concedida à revista Isto É em dezembro de 2004, João Ricardo deu uma justificativa
bastante incisiva para isso. Segundo ele “a tendência das pessoas é ver apenas o sucesso daquele Secos &
Molhados. Mas o grupo foi feito por mim antes. As músicas já existiam, não tinham sido gravadas. Mas
passaram a achar que eu era um chato que queria me aproveitar do nome Secos & Molhados. Queriam me
tirar a única coisa que era minha”.
149
Dentre os músicos que fizeram parte da formação do Secos & Molhados após as contribuições de Gerson
Conrad e Ney Matogrosso, estavam Lili Rodrigues, Vander Taffo, João Ascensão, Gel Fernandes, os irmãos
César e Roberto Lempé, Carlos Amantor e Tôto Braxil (Carlos Zapparolli Jr.). Em 2003, foi lançado o álbum
Teatro?, que apesar de conter o nome Secos & Molhados, era fruto de apenas um único integrante, o próprio
João Ricardo.
Ney Matogrosso recebeu um convite irrecusável ainda em 1974. Depois de assistir
uma apresentação do lendário músico argentino Astor Piazzolla, foi convidado para gravar
duas parcerias do poeta Geraldo Carneiro com o próprio Piazzolla “As Ilhas” e “1964
(II)”. Os músicos gravaram juntos no estúdio Mondial Sounda em Milão, na Itália, em 22 e
23 de novembro de 1974. As referidas canções foram lançadas junto com o primeiro LP
solo de Ney, Água do Céu Pássaro, em março de 1975 e até hoje se encontram inéditas em
CD
150
. Ainda naquele ano, o artista gravou outro compacto este em parceria com o cantor
e compositor Raimundo Fagner entre 17 e 19 de outubro de 1975 , que continha as
canções “Postal de Amor” (de Fagner, Fausto Nilo e Ricardo Bezerra) e “Ponta do Lápis”
(de Rodger Rogério e Clodo), hoje raridades no mercado de vendas de discos. O cantor
seguiu como contratado da Continental até 1977 e lançou mais dois álbuns solo que
redefiniram, junto com Água do Céu Pássaro sua postura artística e seu repertório, Bandido
(1976) e Pecado (1977). Após o lançamento destes três trabalhos, Ney Matogrosso não
seria mais lembrado apenas como o “ex-vocalista do grupo Secos & Molhados”, mas como
um intérprete multifacetado, ousado, respeitado e venerado, respectivamente, pela crítica e
pelo público.
Em 1980, a Som Livre colocou no mercado um disco com alguns dos números
apresentados pelo Secos & Molhados no memorável concerto no Maracanãzinho, à revelia
de João Ricardo e Ney Matogrosso. Supervisionado por Gerson Conrad, único integrante
que se envolveu diretamente com o projeto, que inclusive escreveu uma nota no encarte do
álbum regravou alguns trechos de violão em “El Rey” e “Rosa de Hiroshima”. O álbum é
um dos raríssimos registros fiéis daquela noite que redefiniu os rumos da música popular
produzida no Brasil e jamais fora lançado em CD, para decepção de muitos fãs e
admiradores do grupo. O LP original é encontrado com dificuldade em sebos, lojas
altamente especializadas ou em sites de leilão por preços exorbitantes, decepcionando ainda
mais o público.
O ano de 1999 marcou os 25 anos da separação de Gerson Conrad, João Ricardo e
Ney Matogrosso, reacendendo a magia que envolveu todo o grupo. Inaugurando a série
Dois Momentos da gravadora Continental (neste momento, já incorporada ao conglomerado
Warner Music Brasil), os dois primeiros álbuns do Secos & Molhados foram
150
IN: Ney Matogrosso, As Ilhas / 1964 II [Compacto] (1975).
remasterizados e compilados pelo produtor e baterista dos Titãs Charles Gavin em CD
numa edição especial, “reconstituindo o cimento gravado da mais extraordinária história de
sucesso que o Pop brasileiro testemunhou” (Sanches, 2000b). Com o passar do tempo, a
atualidade e a longevidade das canções não apenas se manteve, mas foi fundamental na
conquista de admiradores mais jovens que não puderam conhecer mais profundamente
151
,
acompanhar e vivenciar a trajetória do “fenômeno meteórico”. Gavin tinha uma
justificativa infalível naqueles idos de 1999, o Secos & Molhados não era lembrado por
muitos quando o assunto era a história da canção popular brasileira, apesar dos dois LPs do
grupo representarem um dos marcos mais significativos da história musical do Brasil dos
anos 70. O ex-titã também alegava, em reportagem do Estado de São Paulo de novembro
de 1999, que foi preciso a realização de uma extensa pesquisa em arquivos de periódicos,
visto que a gravadora Continental não tinha nada de seu artista mais rentável a oferecer
para os interessados além das fitas originais daquela época. Outros fatos motivadores da
iniciativa do integrante dos Titãs foram o desprezo da imprensa em relação ao grupo
décadas após o seu surgimento e a liberdade do próprio produtor, por ser contratado da
Warner.
Gerson Conrad concorda com o esquecimento de seu grupo por parte dos jornalistas
no final da década de 90 e no fato da história do Rock brasileiro não ter registrado a
importância da obra do Secos & Molhados para as gerações seguintes. Ney Matogrosso,
por sua vez, achou o relançamento algo bastante agradável, pois sempre teve muito orgulho
de ter participado de um dos momentos mais significativas da história musical brasileira:
“Gosto do primeiro disco inteiro. O segundo era mais elaborado, menos popular. (...) A
gente perdeu a ingenuidade, que era talvez a coisa que mais tocava o público. Acho bom
que relancem (...), sei o que os Secos & Molhados significaram” (Sanches, 2000b).
Apesar da importância de tal resgate, o projeto recebeu críticas negativas pertinentes
de João Ricardo. O músico afirmou que soube do relançamento dos discos apenas quando a
compilação estava sendo comercializada e só adquiriu o seu exemplar porque comprou em
uma loja. Além de não ter participado da reedição dos álbuns, João ainda afirmou que
151
A justificativa para esta assertiva é a de que o segundo álbum do Secos & Molhados jamais fora lançado
em CD até aquele momento, o que faz com que pouquíssimos fãs jovens conhecessem o segundo trabalho do
grupo.
comercialmente é importante (...) o relançamento, mas foi feito de forma canhestra,
torta, tem capa horrível. O som melhorou muito, mas “Assim Assado” tem um
violão que eu havia tirado na mixagem. O final de “Vôo” foi cortado abruptamente.
Mexeram em “Fala” também. Gavin me disse que havia um final bonito e ele
deixou correr até o fim. Ora, moral e eticamente ele não pode fazer isso sem me
consultar. É um comportamento subdesenvolvido inadmissível (Sanches, 2000b).
As referências feitas pelo líder do Secos & Molhados no trecho acima são, por
exemplo, aos 15 segundos a mais em “Fala”. Na gravação do primeiro álbum, Zé Rodrix
continuou a dedilhar o seu teclado moog após os outros instrumentos e a orquestra terem
terminado de tocar. João ainda possui plena razão em relação ao tratamento dado às outras
canções citadas, afinal esses detalhes poderiam ter resultado em um produto com um
acabamento mais cuidadoso. Outro erro importante foi apontado: na contracapa diz-se que
Francisco Luís Russo, o Zorro, foi o engenheiro de gravação dos dois álbuns de 1973 e
1974; na verdade, ele só participou do segundo trabalho do conjunto.
Todavia, nem tudo se converteu em sinônimo de eterna amargura, pois outras
canções receberam um tratamento mais adequado. Em “Sangue latino”, por exemplo, os
violões entravam o erro de mixagem que existia no disco original. Os três sinos que soavam
no final de “O patrão nosso de cada dia” foram reduzidos para dois com o intuito de deixar
a sonoridade mais enxuta e agradável para os ouvintes.
Na ocasião do lançamento do novo projeto, o jornal Folha de S. Paulo propôs a
Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso uma entrevista, para que, juntos,
comentassem o legado do grupo. Gerson aceitaria o convite prontamente, mas declarou que
seus colegas jamais aceitariam um reencontro:
Eu fui, entre os três, aquele que ficou atento à vida nos últimos 25 anos. Não teria o
menor problema. Mas todos sabemos o que eles dois vão responder. Ney, por ter
feito uma carreira solo brilhante, se tornou uma pessoa inacessível, jamais me liga.
João Ricardo não costumo nem citar (Conrad apud Sanches, 2000b).
Confirmando as expectativas de Gerson, João Ricardo sequer cogitou a
possibilidade de uma reunião nos palcos: “É claro que não. Não tenho amizade com eles,
nem gostaria de ter. Não há a menor hipótese, não vejo sentido. É complicado quando as
pessoas se separam, é o mesmo que acontece com marido e mulher (Ricardo apud
Sanches, 2000b). Ney Matogrosso também rebateu a possibilidade de um reencontro:
“Nunca mais. Apesar de que com Gerson ainda desenvolvi uma relação de amizade, não
tenho nenhum interesse nisso, nenhuma vontade. O tempo passou, a vida continuou. Perda
de confiança é muito sério” (Matogrosso apud Sanches, 2000b).
Além do ressentimento existente entre eles e dos desentendimentos em relação ao
ritmo da caixa registradora, há acusações gravíssimas por parte de cada um. João Ricardo,
por exemplo, acredita que a separação ruidosa do Secos & Molhados prejudicou suas
atividades artísticas na capa e contracapa de A volta do gato preto (1988) trabalho do
Secos & Molhados no qual João fazia uma dupla com o cantor performático Tôto Braxil ,
por exemplo, havia duas referências explícitas (e nada delicadas) a Gerson e Ney
152
.
João Ricardo nunca poupou agressões a Gerson Conrad, diz que o ex-companheiro é
medíocre e autor de uma única obra. E sempre se referiu a Ney Matogrosso como um
“traidor” que se sentia “inferior e complexado”, “analfabeto”, “bunda falante” e outros
termos de baixo calão e que relevante mesmo tinha sido o trabalho que desenvolveu
enquanto era vocalista do grupo Secos & Molhados:
O Ney virar isso é tudo o que eu detesto num artista. Ele virou um burocrata. Um
funcionário público, no pior sentido. Ele é o clichê da música ruim. A música é
ruim. É um come-e-dorme. Artistas importantes da música brasileira fazem coisas
ruins. Só que o Ney é todo ruim. Ele faz discos como eu vou ao banheiro. Nenhum
de vocês reconhece uma música dele que não seja, na pior das hipóteses, dos Secos
& Molhados ou quase um estereótipo qualquer. Se compararmos os Secos &
Molhados de 30 anos atrás com ele agora, o Ney não é nada. É um arremedo.
Qualquer disco dele é insuportável. É só para surdo-mudo, viado e velhinha de 60
anos. O Ney foi revolucionário nos Secos & Molhados. Tinha sustentação. Não era
uma bunda falante (Ricardo, 2004).
Os músicos Willie Verdaguer e Emílio Carrera retomaram as relações de trabalho
com João em seu primeiro trabalho solo. Acompanharam o cantor e compositor em uma
apresentação no Teatro Bandeirantes em 1976, evento que não deve render boas
152
Pode-se observar, na capa deste álbum, a cabeça cortada e caída que seria de Ney Matogrosso. Na posição
onde se via a face de Gerson Conrad no primeiro disco estava um prato vazio.
recordações à estrela daquela noite, pois as vaias eram estrepitosas e inúmeras. Willie
declarou em 1978 que a reação de desagrado por parte do público advinha da parca
qualidade vocal e das roupas extravagantes do ideólogo do Secos & Molhados. Após
tamanho fracasso e frustração com o trabalho que desenvolviam até aquele momento, os
dois músicos se juntaram novamente a John Flavin e decidiram investir em um projeto
próprio, o Humahuaca, que fundia Jazz, Rock, Samba e folclore argentino (cf. a/d, 1978).
João Ricardo ainda apontou a falta de reconhecimento do seu trabalho pós-1974 e
que o fracasso comercial de seus discos se deve ao fato de nunca ter feito “concessões” ao
mercado, tal qual Ney Matogrosso supostamente o teria feito:
Então, tem que cantar fino, rebolar e dar o c...? Mas não, eu toco guitarra, canto
minhas músicas e ponho o nome da banda que criei. Fiquei 11 anos sem gravar. Fiz
o disco independente e recebi pedidos do Brasil, dos Estados Unidos, do México,
da Espanha e de Portugal. Vendi pela Internet. Não quero o sucesso do Ney, que é
uma ilusão. Ele fica aparecendo, mostrando a bunda (Ricardo, 2004).
Em nota veiculada pela revista Isto É uma semana depois da publicação da
entrevista de seu ex-parceiro, Gerson Conrad apontou que apenas a formação clássica do
Secos & Molhados foi reconhecida pelo público, ao contrário das ressurreições promovidas
por João Ricardo. Além de demonstrar uma reação à explosiva entrevista concedida pelo
ex-parceiro em dezembro de 2004, o texto assinado por Gerson evidenciava também a falta
de bom senso do colega em não reconhecer o trabalho solo de Ney Matogrosso e uma
suposta excentricidade do líder do grupo:
Com a certeza de que remoer o passado é não dar chance ao presente, envio à
revista nota esclarecedora à matéria “Ele fazia o que eu mandava”, publicada na
Isto É 1836. O sr. João “Seco & Molhado” Ricardo, acredito, é detentor de um
caráter excêntrico e, sendo assim, mais de 30 anos após o fenomenal sucesso do
extinto grupo, ainda nutre sentimentos nada nobres de mágoa e rancor. Não percebe
que o mito que ainda nos dá espaço na mídia é, e sempre será, o Secos & Molhados
com sua formação original: ele, Ney Matogrosso e eu, Gerson Conrad. É patético
ler suas declarações de que o referido grupo já existia antes e o seu não-
reconhecimento à carreira bem-sucedida de Ney Matogrosso. Antes de quê?
Indago. O grande número de fãs, que ainda nos prestigiam, só reconhece o conjunto
único que elegeram há mais de 30 anos. Logo, os sete outros discos lançados por
esse senhor, como sendo Secos & Molhados, após nossa separação, só têm
contribuído para matar a imagem e o mito que ainda sobrevivem bravamente na
memória de milhares de pessoas. João confundiu a máxima literária: “Não importa
a intenção do autor, o que importa é a obra”. E, erroneamente, insiste em ser ele os
Secos & Molhados. É surrealista! Com o intuito de catástase, pondo um fim a essa
trágica comédia, já tão gratuita e fora de hora, afirmo que mentirosas são suas
declarações a meu respeito e a respeito do Ney. Quando ele diz que Ney e eu
propusemos a abertura de uma firma, para que pudéssemos contratar quem nos
interessasse e porque também pagaríamos menos Imposto de Renda, isso é
bobagem, pois já possuíamos a SPPS Produções Artísticas Ltda., sociedade de
participação equitativa entre mim, João, Ney e Moracy do Val, nosso empresário
na época em que fomos sucesso. Ainda tenho cópia do contrato dessa empresa.
Gerson Conrad - São Paulo SP
À parte dos embates vindos com o tempo, Gerson tentou, sem grande sucesso,
carreira solo, lançando depois de Gerson Conrad & Zezé Motta, em 1981, o álbum Rosto
marcado, pela Continental. Posteriormente retomou sua vocação de arquiteto e com o
tempo veio a vontade de contar as memórias do tempo de fama e sucesso. No final da
década de 90, Gerson se dedicou a Fenômeno meteórico, livro que revelaria os bastidores
do Secos & Molhados. Ao conceder uma longa entrevista à Revista Zero, em 2004, ele
justificou sua decisão de contar o que viu e viveu:
Nas comemorações de 25 anos [da separação do Secos & Molhados], e na de 30
anos da banda, (...) ganhamos muito espaço na mídia e algumas declarações não me
soaram de maneira sadia. Em particular, mais as declarações do João Ricardo que
do Ney, em relação a mim. Aí pensei em escrever o livro. Contar, por exemplo, a
nossa importância como divisores de águas do mercado fonográfico (Conrad, 2004:
6).
Entretanto, as editoras abordadas por Gerson não se mostraram interessadas em seu
depoimento. De acordo com o próprio compositor, em depoimento exclusivo para este
trabalho, o livro só continha 60 páginas e poucos “fatos picantes”, o que certamente não
deve ter interessado aos editores. Na verdade, Gerson Conrad parece ser o que mais sofreu
com a separação do Secos & Molhados, revelando que até Ney Matogrosso não fez questão
de sua amizade, mostrando-se sempre inacessível a qualquer tipo de informação:
Nosso afastamento não teve brigas. Para falar a verdade, só discuti com o Ney uma
única vez, quando ele veio a São Paulo fazer um show comemorativo dos seus dez
anos de carreira. Eu havia recebido uma carta da Socimpro, que solicitava, para
resolver a problemática dos direitos autorais do Secos & Molhados, um documento
com as três assinaturas. Liguei para o [hotel] Maksoud [Plaza], onde Ney estava
hospedado, e combinei de ir lá por volta das 22h30min, hora em que ele chega do
show. À noite, depois de esperar quase uma hora para que ele tomasse banho, dei o
documento para ele ler e assinar, o que permitiria a cada um de nós receber
individualmente os direitos de intérprete. “Não vou assinar porra nenhuma, porque
não tô a fim de ajudar o João Ricardo” Ney falou isso, disse que eu já devia achar
que estava rasgando nota de cinco mil, disse o que pensava e fui embora. Em 84,
quando apresentava Destino de Aventureiro em São Paulo, recebi um telefonema
dizendo que o Ney queria se encontrar comigo e me esperaria às 18h30min no
hotel, para a gente sair. Quando cheguei lá, ele desceu e, pela primeira vez, vi Ney
Matogrosso muito bem vestido, com um casaco branco super bem talhado. Ele me
abraçou e disse: “Que bom que você veio. Eu tive um sonho muito ruim e descobri
que tenho pouquíssimos amigos e que estou me afastando deles”. Só pude lhe
responder que havia tentado lhe dizer isso inúmeras vezes, mas esse acontecimento
não nos aproximou mais. Toda vez que Ney vem a São Paulo eu o procuro, mas
fico semp re com a sensação de que não me incluo entre as amizades selecionadas
por ele na cidade. Sua postura é sempre meio fria, e isso me deixa muito triste.
Durante a temporada do À Flor da Pele, com o Rafael Rabello, fui ao camarim do
Ney e disse que estava com saudade dele. Ouvi como resposta um “Será, Gerson?”,
que me deixou muito irritado e bem à vontade para dizer que ele havia atravessado
em determinada música. No fundo, sinto uma grande tristeza com o
comportamento distante do Ney, porque ele é uma pessoa a quem eu abri para ser
amigo mesmo. Até hoje, tenho um carinho muito grande por ele, e acho uma pena a
gente não ter mantido um relacionamento mais assíduo (Conrad apud Vaz, 1992:
270-271).
O aniversário de 30 anos do surgimento do Secos & Molhados, em 2003, foi
marcado por diversas homenagens, reportagens especiais. Gerson Conrad e Ney
Matogrosso foram convidados para diversos depoimentos sobre o assunto em jornais e
canais de televisão de circulação na grande imprensa (João Ricardo se recusou
terminantemente a conceder quaisquer declarações). Um acontecimento que obteve certa
repercussão foi o lançamento de Assim Assado Tributo ao Secos & Molhados, produzido
por Rafael Ramos e lançado pelo selo Deck Disc.
Este CD consiste em uma releitura do antológico álbum de 1973, mantendo,
inclusive, a mesma ordem das faixas. As releituras ficaram a cargo de Nando Reis (“Sangue
latino”), Falamansa & Maskavo (“O vira”), Toni Garrido (“O patrão nosso de cada dia”),
Ira! (“Amor”), Eduardo Dussek (“Primavera nos dentes”), Capital Inicial (“Assim assado”),
Pitty (“Mulher barriguda”), Matanza (“El Rey”), Arnaldo Antunes (“Rosa de Hiroshima”),
Raimundos (“Prece cósmica”), Pato Fu (“Rondó do capitão”), Marcelinho da Lua (“As
andorinhas”) e Ritchie (“Fala”). Apesar de se tratar de uma homenagem bastante “afetiva”,
o resultado ficou um tanto aquém das versões originais. Nos casos de “O Vira”, “O patrão
nosso de cada dia”, “Amor”, “As andorinhas” e “Fala”, as mensagens poéticas foram, de
uma certa maneira, deturpadas. Um erro bastante notável se observa nos créditos de “El
Rey”, de João Ricardo e Gerson Conrad, em que aparece o nome de João e um
desconhecido Gao Gurgel como autores da canção
153
.
Enfim, décadas após a sua primeira aparição, o Secos & Molhados ainda desperta
releituras, discussões e análises, não apenas por ter desafiado determinados tabus impostos
pelo regime militar, mas principalmente por levantar uma discussão sobre a sexualidade
nos anos 70 e ao se revelar como uma válvula de escape de muitos brasileiros. De fato, a
repentina e fulgurante aparição do grupo marcou definitivamente a memória dos ouvintes
brasileiros. A música contida naqueles dois LPs ainda encanta novos admiradores, ávidos
por uma manifestação artística autêntica e original de determinadas exigências
mercadológicas. Por isso, é de natureza salutar reproduzir o comentário final do texto de
Luiz Carlos Maciel (Anexo I):
A fase áurea do Secos & Molhados é um momento singular da MPB. E eles só
tiveram fase áurea! Surgiram e acabaram logo para dar lugar a carreiras solo de
153
Em depoimento cedido em outubro de 2005, exclusivamente para este trabalho, Gerson Conrad nos
confidenciou que recorreu à justiça em busca de seus direitos em relação à regravação de “El Rey”. O
compositor também não conseguiu esconder seu enorme desagrado em relação à releitura de Arnaldo Antunes
para “Rosa de Hiroshima”.
seus componentes, como se tivessem sido o brilho súbito de um quasar, uma suave
explosão, um sonho irrepetível.
De acordo com Gerson, em entrevista concedida à revista Zero, o Secos &
Molhados possuiu apenas um ano de história, mas décadas de mito. Apesar das farpas
trocadas entre aqueles que fizeram parte da formação clássica do grupo e das inúmeras
imprecisões surgidas a partir de 1974, é inegável não reconhecer que, juntos, Gerson
Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso foram protagonistas de uma das mais importantes
páginas da música e da cultura popular brasileira. Possivelmente, muitos brasileiros jamais
se esquecerão dos acordes que um dia saíram do quarto de um apartamento na cidade de
São Paulo, tomando de assalto toda uma nação.
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O poeta não quer destruir centros urbanos,
ele apenas vislumbra além dos edifícios e monumentos,
as planícies verdejantes da alma.
O poeta não tem a solução para a dor e a fome humanas,
ele apenas traz lirismo e dignidade à condição humana.
Por quê então arrancarem seus olhos e mutilarem suas esperanças?
Angela Ro Ro
154
6.1 - Pressupostos para a compreensão de uma Poética do grito
Como se observou nas partes anteriores deste trabalho, a música popular produzida
no Brasil adquiriu importante papel para os ouvintes brasileiros durante os anos de chumbo.
Foram muitos os artistas da canção que tiveram a capacidade de perceber o caráter crítico
presente em seu ofício e combateram, de diferentes maneiras, o jogo repressivo imposto
pelos militares. O Secos & Molhados não foge a tal regra ao expressar um sentimento de
insatisfação perante as adversidades políticas que assolavam o Brasil na década de 70.
Além de debochar criticamente da atmosfera repressiva da época, a conotação política das
letras cantadas pelo grupo, somada ao espetáculo visual que se reservava às apresentações
em público, trazia um caráter inovador para o ambiente musical do período. O que
inicialmente poderia ser visto como uma mera retomada do Tropicalismo deve se
compreender, na verdade, como algo novo, que inaugurou um novo paradigma para a
chamada “MPB”.
O momento para o surgimento de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso
enquanto conjunto foi propício, não só por coincidir em uma etapa da História brasileira na
qual a necessidade de falar era muito grande, mas principalmente porque o ambiente
154
As reflexões de Angela Ro Ro se encontram no encarte de um de seus álbuns mais cultuados, Escândalo!
IN: Angela Ro Ro, Escândalo! (1981).
cultural estava mais preparado para aceitar as propostas estéticas surgidas na década de 60
com mais naturalidade:
Qualquer década que viesse depois dos anos 60 ficaria atônita diante dos desafios
propostos pelo período. Não por acaso, foi escolhida a década de 70, bem menos
“nervosa” que a anterior e mais preparada para dar vazão às tensões que, de modo
implacável, vinham então se acumulando. De fato, uma das formas de compreensão
dos anos 70 é vê-los como fase de distensão, desdobramento e reacomodação dos
impactos criados dez anos antes (Tatit, 2005: 119).
Na esteira dessa trajetória que alia ideologia estético-política e talento musical, o
trabalho do Secos & Molhados ainda intriga muitos analistas devido à qualidade de suas
composições cujas letras eram originadas de poemas musicados ou de letras inéditas que
nada devem ao texto literário em termos poéticos. Inseridos no contexto imperial da cultura
de massas, o grupo garantiu uma empatia direta com o público através de canções Pop, do
visual extravagante, versos e sonoridades incomuns para aquele período e, logicamente, a
figura performática, irreverente e desabusada de Ney Matogrosso algo que se revelou
pouco a pouco como fator-chave na garantia de um canal direto entre artista e público.
Neste momento, estabeleceu-se um diálogo intenso entre o poema literário, a letra da
canção e a música popular, ao passo que o grande público entrava em contato com obras e
poetas conhecidos por uma minoria letrada (Cassiano Ricardo e Julio Cortazar, por
exemplo), resgatando de vez o papel do poeta enquanto cantor de sua sociedade (cf.
Sant’Anna, 2004: 88).
Outro aspecto marcante da escolha da poesia literária enquanto discurso para o
projeto estético do grupo era, justamente, a possibilidade de veicular ao público mensagens
profundamente ideológicas, sem necessariamente se preocupar com o jugo da censura;
afinal, seria mais remoto vetar criações que já estivessem publicadas em livro. Em
depoimento concedido especialmente para este trabalho em janeiro de 2006, Luhli
comentou que o diferencial do Secos & Molhados em relação à dita “MPB” era justamente
o estratagema utilizado por João Ricardo em musicar poemas, fazendo destes “letras boas e
fortes, aliando a força dos versos à exuberância de “um cantor que levantava uma bandeira
andrógina, desaforada, sem vergonha, petulante, com aquela magia de bicho toda, mas
dizendo ‘Tem gente com fome e dá de comer’”.
O estudo de Affonso Romano de Sant’Anna acerca do Secos & Molhados, escrito
no calor da hora
155
, é provavelmente a única contribuição crítica de peso existente na área
de Letras sobre o grupo até o momento, portanto, algumas das reflexões contidas neste
trabalho se baseiam (e dialogam) em várias de suas considerações
156
. Em outro texto,
Affonso apontou a existência de quatro tipos de expressão em música popular: o primeiro
seria “a música que canta”; o segundo, “a música que fala”; o terceiro, “a música que
corporifica” e o quarto, por sua vez, “a música que visualiza” (Sant’Anna, 2001: 15) os
quais buscam privilegiar, respectivamente, a melodia, o texto, o corpo (enquanto elemento
de expressão musical) e o espetáculo. A partir destas classificações, podemos afirmar que o
conjunto formado por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso buscava expressar
as quatro formas de expressão em seu trabalho, ao conjugar letras de boa qualidade literária
com uma musicalidade complexa e as esfuziantes apresentações ao vivo comandadas pelos
gestos carismáticos de Ney.
O Secos & Molhados buscou a aproximação da literatura com a musicalidade, de
maneira semelhante como ocorrera com o Tropicalismo e a Poesia Concreta, garantindo
uma realização artística plena nos dois sentidos apontados, por isso através do diálogo com
os textos literários, podemos afirmar que a obra do grupo resgatou um determinado
“discurso poético”. As palavras de Affonso Romano de Sant’Anna nos evidenciam melhor
tal fenômeno:
Com os Secos & Molhados não há mais o resultado de uma catequese como foi o
caso dos concretistas com Caetano e Gil; não se trata da articulação inteligente de
um aprendizado talvez inconsciente daquilo que está disperso na cultura como em
Aldir Blanc e João Bosco; trata-se da aplicação de forças para resgatar textos
literários de sua imobilidade livresca e trazê-los para o espetáculo vivo da série
musical (...). Os textos de Bandeira, Cassiano Ricardo, Fernando Pessoa, Oswald
de Andrade e outros, tingem um público imenso e inesperado com mais furor e
abrangência do que aquilo que Jobim havia conseguido com versos de Vinícius
(Sant’Anna, 2004: 85).
155
Affonso Romano de Sant’Anna publicou seu ensaio sobre o grupo em livro no ano de 1976, dois anos
depois da dissolução da formação Gerson Conrad João Ricardo Ney Matogrosso.
156
Estudos como os de Marta Marques Caraciollo (Letras-PUC-SP, 1974) e de Flávio de Araújo Queiroz
(Sociologia-UFC, 2003), sendo os únicos exemplos realmente conhecidos até então de pioneirismos no
assunto em departamentos de Pós-Graduação; todavia, por questões de acesso e de adequação, não
analisaremos estas posições em nosso estudo.
É a partir deste contexto que devemos re/pensar a respeito da figura do autor e do
conceito de autoria na era contemporânea, postos em dúvida por nomes como Michel
Foucault, Roland Barthes e outros em suas teorias formalistas, estruturalistas e pós-
estruturalistas. Apesar de ainda existir uma figura que garante, conforme João Adolfo
Hansen, uma “individualidade empírica responsável” (Hansen, 1992: 11) por um texto que
irá identificar um sujeito que possui a originalidade e os direitos autorais como
exclusividade, o fenômeno da autoria não implica apenas o modo de produção de um
determinado texto ou obra, mas sim a recepção do leitor e o consumo cultural do que se
produz.
Devemos acrescentar que, no caso do Secos & Molhados, a maneira pela qual um
texto de Vinícius de Moraes, por exemplo, é re/produzido vai marcar um caminho que não
pende para uma única figura autoral, e sim para uma pluralidade da autoria. Neste caso,
podemos pensar que ocorre uma representação do objeto, porém ele aparece “no contexto
de sua não-identidade” (Hansen, 1992: 12), já que a partir do momento em que um poema é
musicado, sua identificação é alterada, deixando ele de estar exclusivamente restrito à
forma livresca. Com isso, subvertem-se as leis que regem o chamado sistema literário,
visto que
os discursos “literários” não podem ser mais aceitos senão quando providos da
função autor [grifo nosso]: a qualquer texto de poesia ou de ficção se perguntará de
onde ele vem, quem o escreveu, em que data, em que circunstâncias ou a partir de
que projeto. O sentido que lhe é dado, o status ou o valor que nele se reconhece
dependem da maneira com que se responde a essas questões. E se, em
conseqüência de um acidente ou de uma vontade explícita do autor, ele chega a nós
no anonimato, a operação é imediatamente buscar o autor. O anonimato literário
não é suportável para nós: só o aceitamos na qualidade de enigma (Foucault, 2001:
276).
Conforme observou Michel Foucault, em um primeiro momento torna-se puramente
óbvio a conceituação do termo “autor” por se tratar de uma função reconhecível por uma
comunidade como autêntico nos campos literário ou filosófico, por exemplo. Entretanto,
nota-se, ao examinarmos determinados aspectos, que conceituar autoria é algo altamente
complexo, pois “um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso”, ou
seja, “ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função
classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles
excluir alguns, opô-los a outros” (Foucault, 2001: 273).
É evidente que existe alguém a responder por uma obra em termos jurídicos ou sair
em busca de direitos autorais ou responder pela autoridade de um trabalho, mas é
necessário ter em mente que
a conceituação de autoria implica incluir os modos historicamente determinados
dos produtos culturais, propondo-se “recepção” não apenas como a modelização
retórico-poética do destinatário no contrato enunciativo do discurso, mas
principalmente como apropriação empiricamente determinada, que ocorre como
contradição de práticas assimétricas de consumo cultural que produz também a
representação de autor (Hansen, 1992: 12).
A figura do autor sempre foi vista como um “ser de razão” a partir da segunda
metade do século XVII. Com a ascensão da classe burguesa e com o surgimento do
individualismo burguês, o artista “produtor” de um determinado texto ou obra passou a ser
visto como uma espécie de Deus, pois o discurso retórico tinha uma influência maciça
sobre a sociedade. Émile Benveniste acreditava que a palavra de um escritor, por expressar
uma espécie de reflexão, tinha o poder de modificar o meio social do qual ele faz parte. A
crítica literária se sentiu impelida a decifrar as chamadas “intenções autorais” acerca de
uma ou várias de suas obras, o que marca, em parte, um engano considerável. Os críticos se
valiam de várias formas para decifrar as reflexões feitas pelo gênio que se assumiu como
dono de um texto. Este fato marca a entrada do conceito de originalidade em cena:
A novidade posta em circulação é o artista como originalidade de autor: levada pela
ocorrência a ultrapassar-se a si mesma a cada momento, a originalidade
fundamenta a noção de autor como ilimitação da experiência, posto em contato
com o Espírito, como um augusto, áugere que promove a unificação do mundo
dividido e a divisão do mundo unificado, gênio no limiar da loucura, da profecia,
herói marginal das altas profundezas (Hansen, 1992: 12).
É necessário apontar que este conceito é algo que desperta atenção desde a época de
Platão. Durante a Era Clássica, era autor aquele que seria hábil o suficiente para imitar os
seus mestres. No século XIII, o autor era considerado abaixo de Deus, único criador
autêntico da palavra. Escrevia-se, nesta época, para contribuir à glória do Criador,
apagando quaisquer traços de autenticidade daquele que escrevesse. Com a ascensão da
presença autoral em plena era burguesa, a noção de originalidade se tornou objeto de culto
de escritores e críticos. Ignorando o fato de que as idéias possuem livre trânsito pela
sociedade, surge o conceito de plágio. A partir deste momento, “o autor fica
ideologicamente investido de uma individualidade de artista, de criador, demiurgo solitário
que tira de sua psique os recursos de seu estilo” (Schneider, 1990: 49).
De acordo com Michel Schneider, a modernidade marca uma nova etapa para o
fenômeno literário: a livre circulação de idéias com a ascensão das vanguardas marca o fim
de quaisquer aspectos negativos que envolvem a noção de plágio. Com o aparecimento das
teorias da intertextualidade, “o plágio voltou a ser alguma coisa que não é mais uma
fatalidade, mas sim um procedimento de escritura como outro qualquer, às vezes
reivindicado como o único” (Schneider, 1990: 59).
Já nas décadas de 60 e 70, o império da noção de autor seria abalado de vez com o
surgimento da noção de escritura, anulando a supremacia autoral e o conceito de criação
literária. Para Roland Barthes, este conceito marcou o apagamento das origens de uma obra
e de qualquer noção de identidade em termos autorais, a começar justamente por aquele a
escrever um texto. A individualidade do criador é apagada e passa a conceder lugar a uma
pluralidade, visto que “o autor do discurso é um pronome, ou um sujeito gramatical, não
uma pessoa substancial” (Hansen, 1992: 31). De acordo com o professor João Adolfo
Hansen, o termo cunhado por Barthes marca o estabelecimento de um novo paradigma para
a análise literária de textos, como podemos compreender na citação logo a seguir:
A escritura marca-se como prática transgressiva, basicamente; assim, desloca-se
para o leitor a função autoral, que deve realizar um sentido à custa da morte do
autor como presença. Tal leitor é “um qualquer”, uma casa vazia indicada por um
pronome pessoal e sujeita a múltiplas apropriações que, tendo uma função
escritural, (...) [possui] uma função produtiva (Hansen, 1992: 32).
A observação de Hansen a respeito das teorias formuladas por Barthes demonstra
que a escritura delega ao leitor um papel criativo no trabalho de um autor, “dividindo” com
ele a propriedade do texto; isto é, quem lê adquire a capacidade de recriar a obra que
estiver diante de seus olhos. Por outro lado, a noção de escritura jamais estará isenta de
“convenções, de modos de dizer estabelecidos, por mais forte que seja a novidade do estilo
de um autor” (Schneider, 1990: 37).
Outro pensador que apontou o caráter plural presente em uma obra literária foi
Mikhail Bakhtin. Em sua obra Questões de Literatura e Estética, o teórico russo observa
que, eventualmente, “um mesmo discurso penetra ao mesmo tempo de outrem e no do
autor” (Bakhtin, 1988: 113). Uma canção baseada em um poema literário, por exemplo, se
compõe de vários discursos e linguagens, o que marca o caráter polifônico e dialógico
presente no texto, pois o “autor” jamais irá em busca de uma linguagem comum: muitas
vezes, esta é “deformada” pelo próprio criador através do uso recorrente da paródia.
Por isso, “o autor se realiza e realiza o seu ponto de vista não só no narrador, no seu
discurso e na sua linguagem (que, num grau mais ou menos elevado, são objetivos e
evidenciados), mas também no objeto da narração, e também realiza o ponto de vista do
narrador” (Bakhtin, 1988: 118). Um poeta pode agrupar em sua obra poética diferentes
tipos de enunciados, falas, estilos e perspectivas de linguagem, fazendo do fruto de sua
criatividade um verdadeiro “tecido de citações, saído dos mil focos da cultura” (Barthes,
1988: 69), e se consagrando como um “instaurador de discursividade” (Foucault, 2001:
289).
A crítica ao conceito de autoria feita por Roland Barthes e Michel Foucault em seus
respectivos ensaios A morte do autor e O que é um autor? aponta o sujeito autoral enquanto
ausência e função contrariando o conceito clássico de auctoritas, prática discursiva ligada
ao conceito romântico de autoria que está calcado no conceito cristão de originalidade (cf.
Hansen, 1992). As teorias contemporâneas não vêem a figura do autor como uma entidade
sagrada, conforme concebido por Émile Benveniste. A partir da segunda metade do século
XIX, o autor é visto como um homem comum (graças aos ecos da revolução burguesa) que
tem a função de produzir algo a partir de si mesmo, de fazer com que sua obra cresça e
promova uma espécie de reflexão por parte da sociedade.
A proposta de Roland Barthes se baseia no conceito de escritura como apagamento
da voz e da origem autoral. Para ele, “a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo
aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar
pela do corpo que escreve”. Ocorre um fenômeno de desligamento, que dispersa esta
origem e dá espaço a este fenômeno. Vejamos como o próprio Barthes justifica sua crítica
ao conceito de autoria:
[O autor] é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade
na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo
francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como
se diz mais nobremente, da “pessoa humana”. Então é lógico que, em matéria de
literatura, seja o positivismo, resumo e ponto de chegada da ideologia capitalis ta,
que tenha concedido a maior importância à “pessoa” do autor (Barthes, 1988: 66).
Para o saudoso professor do College de France, o autor de um determinado discurso
não é um sujeito único o texto é resultado das influências anteriores que atuam na origem
deste mesmo discurso, já que é “a linguagem que fala, não o autor” (Barthes, 1988: 66); Ele
ainda observou que nomes como Mallarmé, Valery e Proust foram os primeiros a duvidar
do princípio de autoria. Michel Foucault, por sua vez, afirmava a existênc ia, na realidade,
de uma “função-autor” responsável pela criação de um texto. O filósofo buscou nos ready
mades de Marcel Duchamp a explicação de que a obra é feita pelo indivíduo e não pelo
suposto “criador”. Esta tendência de reduzir e negar os padrões estéticos tradicionais se deu
a partir do momento histórico delineado por duas guerras mundiais, que marcaram
indubitavelmente o fim de uma era.
O filósofo detectou ainda a existência de “instauradores de discursos” e de
“fundadores de discursividade”, “que não apenas escrevem seus próprios textos, como
também inscrevem e definem a possibilidade e os limites de constituição de outros [...]
textos futuros.” (Coelho, s.d.: 155). Por isso é plenamente cabível afirmar que, ao vermos
um nome responsável pela autoria de um romance ou de um poema, por exemplo, tal
medida é de intuito meramente classificatório. A função-autor proposta por Michel
Foucault nos evidencia uma pluralidade de egos composta de inúmeros discursos. É a partir
dela que podemos compreender que
no espetáculo moderno o cantor é o ator e o poeta. Traz a máscara, seu corpo e voz
e submete-se ao extermínio como um Orfeu dentro da Roda Viva que é a
comunicação de massas. Mas ainda que efêmera (?) sua glória se realiza
concretamente enquanto os poetas da série literária acham-se apertados e exilados
de seu público. Talvez haja aí um sistema de divisão de trabalho. Mas essa divisão
pode ser aparente e secundária. O que importa é que a poesia, que é a reinvenção da
palavra, se realize porque ela é a reinvenção da vida da própria comunidade
(Sant’Anna, 2004: 88).
É a partir da concepção de Foucault do autor enquanto instaurador discursivo que
devemos entender boa parte da obra do Secos & Molhados. No momento em que João
Ricardo e Gerson Conrad musicaram poemas de Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira,
Oswald de Andrade, Solano Trindade, Fernando Pessoa, Julio Cortazar e João Apolinário
(pai de João Ricardo), instaurou-se uma mulplicidade discursiva e não um mero diálogo. O
escritor, psicanalista e crítico literário Michel Schneider afirmou em seu livro Ladrões de
palavras que “escrever é tornar sua a linguagem” (Schneider, 1990: 45), por isso, o ato de
musicar um poema publicado em livro é também re/ler, re/escrever um texto escrito por
outro e torna-lo seu em uma consagração do músico como dono de um discurso híbrido
veiculado pela canção, isto é, divide-se a autoria de “Rosa de Hiroshima”, por exemplo,
entre o “fundador de discursividade” e aquele que irá interpretar o seu discurso (o músico
que converteu os versos em discurso musical, o intérprete ou leitor).
Estudiosos apontaram que o sujeito comum atua também como produtor do texto a
partir do momento em que ele se coloca na postura de leitor de um texto. Através de suas
experiências anteriores de leitura (seja de textos como também da visão de mundo, também
imprescindível), o sujeito poderá concretizar o ato de criação textual, iniciado pelo “autor”,
momentos antes. Sem a figura do leitor e a sua posterior compreensão, de nada vale a obra
de arte, pois não será concedida a esta nenhuma extração de sentido. Por tais razões, deve-
se dizer que o texto parte de uma prática discursiva de produção para prática coletiva de
produção. Um texto jamais produz (e nem deve produzir) um sentido unilateral, e sim
agrupa valores culturais; por isso é importante dizer que um artista jamais é original: “seu
único poder está em mesclar as escrituras, em fazê-las contrariar-se umas pelas outras, de
modo a nunca se apoiar em apenas uma delas” (Barthes, 1988: 69). Com isso, conforme é
3
43
podemos imaginar, atribuir a um texto uma determinada autoria significa colocar o mesmo
sob uma camisa-de-força, o que acaba por restringir a multiplicidade de significados que
ele possui. Segundo Barthes,
há um lugar onde essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se
disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem
que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura. A unidade do
texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino não pode mais
ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é
apenas esse alguém que mantém reunidos em um único campo todos os traços de
que é construído um texto (Barthes, 1988: 70).
A importância do papel do leitor enquanto receptor de uma arte de caráter simbólico
foi também brilhantemente detectada por Henri Peyre:
Uma vez que há no símbolo algo como uma sobreposição de vários sentidos e,
frequentemente, uma profundidade misteriosa escondida por detrás das aparências,
a literatura simbólica exige do leitor uma leitura ativa e convida-o a decifrar
sentidos secretos mergulhando ele mesmo neles. O leitor é, pois, convidado a
cooperar e, pelo menos, a reencontrar o autor a meio caminho. Essa leitura ativa,
que mais tarde se denominará criadora, põe em ação aquele a que ela se entrega.
[...] A verdadeira obra simbólica deve conservar por muito tempo o seu mistério e a
multiplicidade de seus sentidos cambiantes (Peyre apud Dieguez, 1998: 46).
As canções do Secos & Molhados, nesta etapa de nosso trabalho, estarão divididas
em dois grupos: o primeiro estarão as obras que denunciam um vazio a partir da perspectiva
do poder (“El Rey”, por exemplo); no seguinte, as composições que desvelam as agruras
presentes no plano do oprimido (estas inscritas em “Fala”, dentre outras). Entretanto, em
ambos os segmentos, nota-se que o objetivo principal é resgatar uma fala calada por uma
voz autoritária, questões que serão discutidas neste capítulo.
A inspiração de Luhli para escrever uma de suas letras para as melodias de João
Ricardo em 1971 veio de uma brincadeira surgida em um bar, na qual ocasionalmente
surgiu o estribilho “Vira, vira, vira”. A letra, que se tornou conhecida como “O vira”, se
transformou em um discurso poético misto de fado português com Rock‘n’Roll algo
inédito até então, pois não foram encontrados registros de composições que mesclassem a
musicalidade das origens ancestrais do Brasil com a expressão musical da cultura anglo-
saxônica
157
e se torno u, além do primeiro sucesso de público e crítica do Secos &
Molhados, a marca registrada do grupo.
Os versos da canção expressavam, naquele momento, um grito que clamava a
liberação de uma sexualidade reprimida pelos padrões rigidamente morais do Brasil dos
militares, todavia, era necessário levar em conta que essa manifestação tida como agressiva
para os olhares de um público mais recatado não possuía, de acordo com Luhli, uma
conotação sexual ou social, mas sim como uma reivindicação em termos políticos; ou seja,
questionar determinados padrões de comportamento proclamados por um Estado repressor.
Por isso, é estritamente necessário apontar, aqui, duas posições contrastantes em
relação a esta problemática. O jornalista e pesquisador musical Rodrigo Faour, ao
relacionar a importância da sexualidade para o trabalho do Secos & Molhados em sua obra
História sexual da MPB, ignora quase por completo o dado político existente em “O vira” e
nas demais faixas que integravam o primeiro LP. Segundo Faour, o primeiro álbum do
grupo “trazia várias músicas direta ou indiretamente ligadas ao universo homossexual, seja
nos versos ou na forma de cantá-las com muita ‘pinta’” (Faour, 2006: 385). Tal
posicionamento não se valida ao levarmos em conta a “linguagem da fresta” contida em
“Primavera nos Dentes” ou “El Rey”
158
, por exemplo.
Já o escritor João Silvério Trevisan, um dos principais ativistas da causa
homossexual no Brasil, em seu longo ensaio Devassos no paraíso, além de fazer uma
leitura ingênua das mensagens poéticas veiculadas pelo conjunto, tem sua crença apoiada
por Faour de que “a abreviação S & M do nome do grupo, (...) remetia ambiguamente a
uma estética sadomasoquista, [como também] o disco apresentava várias canções que se
referiam implícita e explicitamente” (Trevisan, 2000: 289) ao mundo gay. Foi o próprio
Ney Matogrosso quem rebateu posições como estas em uma longa entrevista concedida à
escritora argentina Violeta Weinschelbaum:
157
Tal problemática foi apontada por Luhli à Rosana Barbosa e ao autor em depoimento concedido em janeiro
de 2006.
158
“El Rey”, de João Ricardo e Gerson Conrad, apesar de conter versos como “Eu vi El Rey andar de quatro”,
poderia até pressupor um indivíduo do sexo masculino em atividade erótica (a maneira como Ney Matogrosso
a cantou até sugere esta interpretação num primeiríssimo momento), no entanto tal leitura se invalida ao nos
depararmos com os versos restantes da canção, a ser analisada a seguir.
Sou muito mais livre do que isso, não me limito a ser gay ou não, não acho que isso
seja o mais importante que tenho para oferecer. Sei que se fala disso em literatura,
que existem livrarias especializadas e tal. Acho que como seres humanos estamos
tão atrasados, enfatizamos demais o tema da sexualidade das pessoas. A
sexualidade, a meu ver, é secundária. É individual, particular, privada, e apesar
disso tudo o que cerca o sexo está em primeiro plano. O ser humano é tão mal-
resolvido em sua sexualidade que qualquer sexualidadezinha chama a atenção! Isso
não devia querer dizer nada, devia ficar entre quatro paredes (apud
Weinschelbaum, 2006: 68-69).
Acredita-se que tanto as conclusões de Trevisan quanto as de Faour se baseiam em
uma das raras entrevistas concedidas por João Ricardo à imprensa mais especificamente,
os analistas devem ter encontrado referências a partir de um breve depoimento concedido
pelo eterno líder do Secos & Molhados ao jornalista Pedro Alexandre Sanches e que fora
publicado pela Folha de S.Paulo, em junho de 1999. Na ocasião, João tinha declarado que,
realmente, o trabalho de estréia de seu grupo se revelou, por fim, como “um manifesto
sexual, embora nem eu nem Gerson fôssemos homossexuais (grifo nosso)”; por isso, a
preocupação com a sexualidade ou até com uma possível estética Glitter , na verdade,
tinha como mero intuito expressar a transgressão a um sistema político-social altamente
repressor e não levantar bandeiras sexuais de uma minoria que também necessitava levantar
a sua voz.
Luhli, a co-autora de “O vira”, ressaltou a importância ideológica das canções do
controvertido trabalho do Secos & Molhados, ao dizer que eles responderam aos muitos
anseios que não podiam se expressar no Brasil dos militares, contrariando as expectativas
mais óbvias de determinados intérpretes do legado do conjunto:
O primeiro disco do Secos & Molhados é todo político: não tinha nenhuma música
romântica, é tudo político. E tem uma mágica que é “O Vira” e “Fala”, que é
existencial, não é político. O resto é tudo político: “O patrão nosso [de cada dia]”,
“Sangue latino”, tudo isso...
159
159
A observação de Luhli foi feita em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de
2006.
“Sangue latino”, “Primavera nos dentes” e “Prece cósmica”, por exemplo, tinham o
respaldo da extravagância musical e sonoro e do “uso corriqueiro de figuras de linguagem
antes restritas à literatura” (Castello, 1997: 259). Atuavam não apenas como instrumentos
de defesa da opinião pública, mas como um modo de informar ao poder que a resistência
ainda seria possível em tempos difíceis. Muitos brasileiros sabiam as letras de cor, visto que
o primeiro LP, por exemplo, chegou a ter todas as suas 13 faixas executadas nas rádios AM
e FM
160
por isso, entende-se que a força maior do Secos & Molhados não residia única e
somente na postura cênica de Ney Matogrosso ou nas maquiagens extravagantes do grupo,
mas sim no pedido de libertação contido em cada uma daquelas canções:
A força maior do Secos & Molhados não foi o Ney rebolando, mas porque era o
primeiro disco que barrou a censura (...) Cara, isso arrepiava todo mundo! Foi um
grito de liberdade muito forte numa época de uma lavagem cerebral absurda. Não
podia juntar três pessoas que ia [todo mundo] em cana. (...) A gente vivia com o
coração na mão. (...) Então o Secos & Molhados foi a primeira coisa que falou
coisas graças ao estratagema do João de musicar poemas. Letras boas e fortes com
músicas simples, um cantor que levantava uma bandeira andrógina, desaforada,
sem-vergonha, petulante, com aquela magia de bicho toda, mas dizendo (...)
“Pensem nas crianças / mudas, telepáticas”. (...) As pessoas choravam! Choravam
porque tem uma coisa muito revolucionária. Isso é a coisa mais importante do
Secos & Molhados. A explosão era a reação de um povo oprimido. (...) Não era só
a figura do Ney não, era a música, era o que as letras estavam dizendo numa época
em que não se podia dizer porra nenhuma. A alma do povo falou naquelas músicas.
(...) Não era porque era Pop-Rock, mas porque foi a primeira expressão de certas
verdades que teve em 20 anos! (...) O disco tocava todas as faixas no rádio: ele não
estourou uma música, era o disco inteiro, você ouvia todas as faixas no rádio!
161
De todo o repertório do grupo, “O vira” foi a canção de maior sucesso entre as
crianças e deve ser vista numa análise crítica como a porta de entrada para o universo
musical criado por Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso nos discos que
lançaram juntos. Eis os primeiros versos da parceria de João e Luhli:
160
Tal fato foi elucidado por Luhli em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de
2006.
161
Esta observação de Luhli foi feita em depoimento concedido à Rosana Barbosa e ao autor em janeiro de
2006.
O gato preto cruzou a estrada
Passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul
Na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa. (...)
Em “O vira” encontramos o universo que marca a essência de toda a obra do grupo:
a floresta sombria que aceita todos os gatos que passam por debaixo da escada e são pardos
durante o período da noite. A figura do felino representa um elemento que contesta o senso
comum por alguns motivos básicos: o primeiro consiste no fato de este animal ser
esconjurado pela Igreja Católica por simbolizar tudo que pertence à ordem do pagão e do
mágico; o segundo, por sua vez, pelo fato de ele se associar a uma voz que resiste e protesta
contra um poder superior. Tal idéia de desafio vem à tona quando o gato preto (ser vivo
dotado de sete vidas, além de concentrar os dons da morte e da obscuridade) resolve passar
por debaixo de uma escada, transcendendo as convenções da sorte e do senso comum os
ditos populares “não se deve passar por debaixo das escadas” e “de noite todos os gatos são
pardos” indicam comandos de obediência e não de desafio, confirmam a idéia de que o
poder não permite transgressões. Vale lembrar também que por sua essência de obscuridade
e maldição “o gato evoca a noção do caos”, conforme observado por Jean Chevalier e Alain
Gheerbrant em Dicionário de símbolos (Chevalier & Gheerbrant, 1999: 62).
Naquela época, o sujeito que duvidava das convenções político-culturais da
sociedade especialmente no Brasil, onde se procurava driblar a repressão imposta pelo
regime militar era perfeitamente refletido na figura do gato, visto que ele também se
utilizava de uma sagacidade para sutilmente descobrir a fuga das amarras do opressor e
passar por debaixo das escadas simbólicas que a vida nos oferece. A floresta, abraçada pela
escuridão, marca um espaço de celebração. No entanto, tal evento se realiza às escuras,
“debaixo dos panos”, ou seja, distante do olhar daqueles que ocupam posições destinadas à
autoridade. Em meio à dança, à roda e à festa iluminadas exclusivamente pela luz da lua, o
homem adquire liberdade suficiente para assumir publicamente a sua própria identidade,
pois está distante dos olhos do poder. A lua por representar um estado de mudança e
transformação, se faz cúmplice do oprimido ao ofertar-lhe o dom da fecundidade.
Através da capacidade de se transformar, o homem pode assumir um outro lado de
seu instinto, ele poderia ser homem e lobo ao mesmo tempo, senhor de sua própria
duplicidade. Por tais problemáticas, o título da canção deve ser lido como uma
transformação, uma metamorfose que implicará a transformação do ser humano e a
reconstrução de uma visão de mundo e de um estado de espírito. O refrão da canção nos
remete a este estado híbrido que o homem pode adquirir:
Vira, vira, vira
Vira, vira homem
Vira, vira
Vira, vira lobisomem.
O lobo, ao se associar à figura humana, passa a traduzir a linguagem do desejo.
Com o anseio da busca de uma identidade, o sujeito passa a incorporar valores ligados à luz
ou a guerra, adquirindo sua própria transcendência, porém o preço para tal é deveras alto.
Lembremos que a palavra “vira” opera um duplo sentido: ela pode ser o ritmo português ou
a transformação do ser humano em alguma coisa. O duplo sentido presente no vocábulo
pode oferecer ao leitor esta interpretação, além da composição de João Ricardo e Luhli ser
bastante semelhante ao vira lusitano os integrantes do Secos & Molhados a executavam,
dançando conforme o ritmo de nossos colonizadores. O universo encantado agrupa vários
elementos, o que demonstra a sua complexidade a diversidade de vozes que se revelam
contrárias ao sistema a qual pertencem. Além da figura do próprio lobisomem, podemos
vislumbrar também corujas, sacis, fadas, pirilampos imersos em uma imensa roda festiva:
Bailam corujas e pirilampos
Entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul
Na noite da floresta
A lua iluminou a dança, a roda, a festa.
162
162
Todas as letras das canções do grupo a serem citadas no decorrer deste trabalho estão contidas no CD
Secos & Molhados, Série Dois Momentos, 1999.
A festividade marca uma celebração popular e é repleta de um sentimento
contagiante, referendando várias questões defendidas por Mikhail Bakhtin em sua teoria da
carnavalização. É possível perceber nesta tese defendida pelo teórico russo princípios
básicos como a paródia, o grotesco, um questionamento constante de todas as formas de
hierarquia, a transgressão de todos os limites do corpo, uma inversão das ordens que regem
o estatuto social. Em outras palavras, um olhar do oprimido e das manifestações de origem
popular. O sucesso de “O vira” tinha sido tão significativo que vários segmentos da
sociedade brasileira se divertiam com a canção por diferentes motivos. Naquele nefasto
1973, o público do Secos & Molhados se deliciava com a singular interpretação de um Ney
Matogrosso neo-barroco
163
, seminu e repleto de plumas rodopiando pelo palco, exibindo,
segundo o letrista e jornalista Nelson Motta, “uma bela e subversiva voz de soprano”, que
ao somar-se à sua “sexualidade agressiva e ambivalente, que provocava igualmente
mulheres e homens, mas surpreendentemente encantava também as crianças” (Motta, 2000:
273) segmento de nossa sociedade que mais se identificava com este universo de som e
magia.
A recepção das camadas juvenis alimentava-se também da fúria contestadora do
rock, que tem a capacidade de agrupar jovens em infindáveis massas, gerando um
sentimento coletivo de subversão simbólica. Em entrevista concedida à Violeta
Weinschelbaum, Ney comentou a importância da atitude para a consolidação da
popularidade do grupo que o consagrou:
Quando escuto os discos do grupo, fico impressionado que nos considerassem um
grupo de rock. Há músicas com uma voz e um violão, uma voz e um piano, é um
trabalho totalmente realizado em cima de poemas. E, como ele teve muita
penetração popular, formou o pensamento dos brasileiros. Era a atitude desafiante,
provocadora e transgressora que nos fazia roqueiros, não a música. (...) É notável
163
A categoria escolhida se deve a uma observação feita por Affonso Romano de Sant’Anna em 2001, a qual
citamos na íntegra: “A bissexualidade (ou trissexualidade?) barroca seria reativada na modernidade com
grandes cantores de Rock que, homossexuais ou não, introduziram na música outras modalidades de tons e
vozes, que não mais a voz grossa e macha de Sinatra, Bing Crosby, Dick Farney, não mais os agudos de
Nelson Gonçalves, Vicente Celestino e Cauby Peixoto, mas o falsete (tão empregado no Barroco) que está em
Milton Nascimento. Isto para não falar no emblemático exemplo de Ney Matogrosso, que ressuscitou o tom
de voz dos castrados, e em outros fenômenos internacionais mais radicais que exploram o travestivismo
essencialmente barroco, como o que ocorreu com Boy George” (Sant’Anna, 2001: 20).
como naquele momento o povo absorveu um trabalho “requintado” com a palavra,
como eram as letras dos Secos & Molhados (apud Weinschelbaum, 2006: 67).
Luhli afirmou que são cerca de nove as canções feitas em parceria com João
Ricardo. Dentre as nunca registradas pelo Secos & Molhados, estava uma outra canção na
qual exigia altas doses de performance de Ney Matogrosso, cuja letra dizia o seguinte: “Ah,
Dulce Lee / Pose close, Dulce Lee / Ponto close, Dulce Lee / Pose click / O meu tempo
ficou preso nessa máquina”. Após o último verso, Ney se desdobrava em mil poses, o que
deveria resultar em um resultado bem interessante e sedutor para os olhos do público,
graças ao seu teor sexual e altamente provocativo. Entretanto, ela acredita que a
composição nunca teria sido gravada graças aos esforços de Gerson Conrad, que
desgostava da relação entre ela e João e por achar esta criação de qualidade ruim
164
.
Em meio ao caos generalizado e à repressão em que o país estava mergulhado nos
anos 70, “a sexualidade revolucionária do Secos & Molhados balançava o sufoco político e
trazia esperanças” (Motta, 2000: 273), e afirmava a importância da música popular
brasileira enquanto resistência ao contexto adverso que atravessávamos. O Brasil dos anos
70 provocava uma determinada atitude de nossos artistas. Como já foi dito anteriormente,
era necessário fazer uso da polissemia contida entre versos e sons para assegurar o direito
de se expressar, de expor diferenciados pontos de vista, de protestar, por isso O Secos &
Molhados foi mais um caso de resistência da música popular no Brasil, porém o nível de
contestação aqui era bem mais sofisticado: acrescentava-se o elemento da sexualidade às
letras de protesto e ao canto em um país onde a exposição de semelhante postura era no
mínimo vista como um tremendo acinte.
Significantes presentes em “O vira” como a lua e o gato preto que tem por função
integrar a festa da canção demonstram uma voz que anteriormente fora anulada. Em outras
palavras, signos como estes são frutos de uma obra caracterizada pela carnavalização, pois
demonstra um diálogo entre obra e público através de um realismo mágico, libertário que
permite a eliminação de barreiras entre realidade e ficção. Em tempos caracterizados pela
repressão de todos os níveis e o medo generalizado, a presença do Ney Matogrosso no
palco instaurava a vontade de expressão (há muito silenciada) por parte das pessoas.
164
Estas observações foram feitas pela própria Luhli, em depoimento concedido ao autor e Rosana Barbosa
em janeiro de 2006.
Acendia-se o desejo dos brasileiros de contestar valores e barreiras estabelecidas pelos
militares a partir do primeiro momento em que o grupo surgia no palco, reestabelecendo
nosso direito-cidadão de ser a cara dos nossos próprios sonhos. Ali estavam os
jeitos e gestos andróginos não assumidos, pela falta de delicadeza dos homens no
trato com a outra: o feminino em nós, os machos. Naqueles tempos, a inspiração
era ainda guerrilheira. Sonhava-se endurecer apenas, com pouca ternura pelas
noites de “Latinoamérica”.
Igualmente rugia, ainda reprimido, o homem que havia dentro das mulheres: o
masculino em todas as fêmeas. E além do feminismo que surgia tímido e confuso,
homens e mulheres lutavam ainda pelo direito de assumir suas responsabilidades
com a verdade de cada um ser o que cada um verdadeiramente é.
Ney, no meio dessa paisagem ambígua e promissora, virava homem e mulher e
lobisomem, fada e duende, pirilampo e saci transformista que nem carecia mudar
de indumentária. Com a agilidade e a elegância de uma gazela, fazia o público
respirar somente a sua eletrizante e excitante presença (...) (Fonteles & Fonseca,
2002: 40).
Além do uso de purpurinas, pinturas e enfeites de todos os tipos, o que mais
chocava o público era indubitavelmente a incessante vontade de Ney Matogrosso de
questionar os limites tacanhos da moralidade que pairava sobre o Brasil em 1973.
Logicamente, o fato de ter tido sua face encoberta pelas máscaras que eram vistas durante
as apresentações do grupo certamente foi um elemento facilitador para a execução de
tamanho projeto contestador, visto que reconhecer a verdadeira identidade da estrela
principal do Secos & Molhados tratava-se de tarefa impossível. Com o surgimento de Ney
no cenário musical, a transgressão assumia sua face mais radical, segundo as palavras do
próprio artista:
Eu sou assumidamente transgressor, não estou de acordo com esse mundo, acho ele
careta. Então vou transgredir essa ordem o máximo que puder. Na medida em que
eu não tinha rosto, imagina a que grau de transgressão eu podia chegar! Eu queria
mostrar aos brasileiros que é possível ser um ser humano independente, pensar
diferente da massa, que mesmo vivendo em uma ditadura militar, era possível se
expressar com independência. O que eu fazia era um extremo, mas o extremo era
necessário. Era um momento de muita agressividade das instituições
(Weinschelbaum, 2006: 68).
Por outro lado, a viabilidade da proposta de Ney só seria provável a partir da
existência de um elemento chave: a voz na medida em que o público questionava se quem
cantava era homem ou mulher e se surpreendia com a verdadeira resposta, mas o artista
sentia-se desejoso em “impactar” aos que pagavam ingressos para assisti-lo. Com o fim da
temporada de A viagem, o ex-ator de teatro decidiu raspar o bigode de lusitano e prosseguiu
na criação de personagens mais inusitados, deixando a sua persona no limite entre o
masculino e o feminino (cf. Vaz, 1992: 55). Sobre tal indefinição, vale relembrarmos um
comentário do próprio artista sobre isto:
O que pirava mais as pessoas, o que elas menos compreendiam, é que eu era muito
sério fazia aquilo tudo, mas não dava um sorriso do começo ao fim. Todo mundo se
perguntava: “É veado?”, Não é veado? Mas não existia uma leveza de veado e
isso incomodava ainda mais. Se fosse veado, seria fácil. Mas, quando me viam, não
era isso. Tinha todo um lado de homossexualidade levado às últimas loucuras, mas
com uma seriedade que as pessoas não entendiam (apud Vaz, 1992: 57).
Através destas palavras, é possível atestar que Ney tinha o intuito de se manifestar
de uma maneira a qual os gêneros estivessem fundidos num único ser e evidenciasse um
corpo vivo “muito mais livre e inteiro” e não se deixasse limitar por “classificações
grosseiras” (Vaz, 1992: 57), por isso a recusa em se enquadrar de acordo com os
estereótipos convencionais de homem ou mulher:
Personagem pronto e solto no palco, Ney Matogrosso foi percebendo que sua
atitude contrariava toda uma história que estabelecia limites e separações para a
manifestação do homem e da mulher. Aquela velha conversa de que homem não
podia ser pintor... Dessa vez, homem não podia requebrar, se pintar e externar uma
sensibilidade confinada ao universo feminino. Como não podia? Sua experiência de
vida, tão pródiga nesse tipo de confronto, dizia-lhe que, mais uma vez, precisava
comprar a briga. Só que, sabendo que seria agredido, Ney já partia primeiro para o
ataque (Vaz, 1992: 56).
Caetano Veloso ressaltou, em depoimento publicado na biografia de Ney
Matogrosso, Um cara meio estranho, que a ousadia de seu colega não consistia somente na
quebra dos gêneros, mas numa redefinição do espaço cênico habitado pela música popular:
Na opção que fez, Ney adotou apagar a distinção entre masculino e feminino, mas
não entre palco e platéia. Nos anos 60, a idéia era de que, quando Mick Jagger
entrava no palco, todo mundo na platéia se sentia mais ou menos igual a ele,
partilhando o mesmo tipo de experiência; já nos anos 70, ocorre um movimento
completamente oposto neste sentido (e David Bowie é o artista mais marcante),
restaurando uma teatralidade clássica do espetáculo. Para ser sincero, na época em
que nós fazíamos a quebra da sacralidade do espaço cênico, para que todo mundo
fosse artista (e eu achava isso muito interessante), também pessoalmente me
interessava pelo teatro tradicional, no qual o palco é o palco e a platéia é a platéia, e
me senti muito bem quando ocorreu essa volta. Pessoalmente, gosto muito mais de
ver o Ney Matogrosso do que o David Bowie, que são pessoas completamente
diferentes mas que traduzem esse princípio de restauração do espaço cênico (apud
Vaz, 1992: 266).
Por sua vez, o psicanalista Eduardo Mascarenhas acredita que a insólita persona
criada por Ney Matogrosso serviu como trunfo para conquistar o carinho das mais
diferentes camadas sociais e intelectuais do Brasil. A “bizarrice” aliada ao dado
transgressor era a principal saída para o encantamento provocado em muitos:
Ao mesmo tempo, o fato de ele vir como personagem extraterreno dos sonhos
gerou uma empatia nas pessoas, mesmo nas mais velhas ou mais conservadoras.
Elas não percebiam a identificação entre e lados próprios, tão estranho e bizarro
Ney se encontrava e com tantos aspectos formais de diferença. Ele expressava
também lados transgressores dos conservadores, o que proporcionava prazer sem
causar a aflição de estar transgredindo aspectos conservadores. Ney deve ter
alcançado uma distância ótima, que evitava a rejeição: nem ficou longe demais a
ponto de não gerar nada e nem perto demais a ponto de gerar rejeição. Ele pegou
uma distância ótima, na qual ocorria uma identificação não consciente e sem causar
conflito. Se viesse humanizado demais, fatalmente ocasionaria conflitos na alma
conservadora: por que estou gostando de uma pessoa assim? Marido e mulher
também cairiam no bate-boca. Mas, como ele se encontrava quase no mundo do
desenho animado, os conflitos se atenuaram e permitiram que uma afeição maior se
estabelecesse com o correr do tempo. E o amor do longo convívio destrói as
barreiras e enternece qualquer tipo de contradição (apud Vaz, 1992: 293).
A repercussão em torno do Secos & Molhados era tamanha que Luhli, em uma
viagem feita ao estado ao Amazonas, se deparou com índios cantando “O Vira”. Ney
Matogrosso confessou a sua biógrafa, Denise Pires Vaz, a sua plena não-consciência do
sentimento das pessoas durante o auge da popularidade naquele período:
Como era o auge da ditadura militar, e havia uma massa que não podia falar, o
nosso trabalho gerava sempre uma intensa catarse. Apesar de não existir a menor
intenção de fazer política partidária, a clara postura contrária ao regime,
manifestada pelo grupo, repercutia no público como um trabalho político. Só que
eu não tinha a menor consciência dessa repercussão, e achava que tudo se resumia e
se esgotava numa mera reação pessoal à chateação imposta pela censura. É claro
que eu reagia ao fato de ela querer proibir tudo, mas não percebia que essa atitude
repercutia de alguma maneira nas pessoas; e só adquiri essa noção depois que o
conjunto acabou. Hoje, enxergo claramente a importância do Secos e Molhados no
contexto daquela época, e como ele representou um abalo no sistema, deixando
frestas bastante aparentes. É engraçado como um grupo de música, que não estava
nem aí para derrubar governos, conseguiu atingir o comportamento do povo
brasileiro, até então bem acuado, e balançar o estabelecido exatamente por onde
eles não esperavam: mexendo profundamente com o íntimo das pessoas. Muita
gente pegou aquilo ali como passaporte para acabar com muita basteira (cf. Vaz,
102-103).
Por outro lado, nem todos compreendiam a importância estética do Secos &
Molhados para além da estética e dos primeiros impactos provocados pela intrigante figura
de Ney Matogrosso, por exemplo. O comentário profundamente maldoso feito pelo
jornalista Maurício Kubrusly em agosto de 1974 (ocasião do lançamento do segundo álbum
do grupo) demonstra a falta de percepção de alguns setores da sociedade acerca do
conteúdo dos dois discos lançados na primeira metade da década de 70. Tamanha postura
se devia a um pensamento bastante difundido no meio cultural durante o século XX: arte e
mercadoria jamais deveriam caminhar lado a lado, ainda mais se for levado em
consideração que se trata de um dos maiores fenômenos de venda e popularidade da música
brasileira de todos os tempos. Evidentemente, a postura de Kubrusly se consagrou como
errônea no decorrer do tempo, pois o valor artístico das manifestações comandadas pelo trio
se manteve intacto até os dias atuais, todavia cabe citar as críticas do repórter, nada
construtivas:
Mas, no meio de tanto e merecido faturamento, por favor não falem de “revolução
de padrões morais”, “protesto”, “desafio”, “redefinição de parâmetros sexuais”, etc.
num livro-caixa não há espaço para tais especiarias e perigos. Por exemplo: se não
tivesse certezas, a Rede Globo não aceitaria como afilhados o Secos & Molhados.
Nem teria gravado (...) o tape que será mostrado no Fantástico (...). Porque, na
televisão, até o comprimento das saias é determinado pelo horário em que a cena
será vista e outras conveniências. Não se permitem riscos, muito menos na
melindrosa área moral.
As piadas possíveis sobre o passeio do verme na lua cheia serão somente piadas.
Não se consegue ir além da superfície na música do Secos & Molhados. É música
alegre, descontraída, não se preocupando com qualquer denúncia. Não faz
perguntas, não incomoda ninguém a não ser, é claro, aos concorrentes. Secos &
Molhados é puro entretenimento. Quando, no disco de despedida, garantem que na
orquestra são aqueles que desafinam, estão mentindo. Ou o que é mais provável
apenas brincando (Kubrusly, 1974).
A desinformação do jornalista a respeito dos entraves enfrentados pelos integrantes
do Secos & Molhados com a censura é um exemplo do quanto o preconceito com o qual se
tratava as manifestações musicais do grupo naquela época. O jornalista Pedro Alexandre
Sanches, décadas após, reconheceu que o grupo não se baseava apenas em puro
entretenimento, apesar da existência dos excessos de fama, vaidade e poder:
Disputas à parte eles ganhavam o Brasil se fazendo de porta-vozes pós-hippies,
advogando tanto a liberação sexual entre um Tropicalismo adaptado e o Glam Rock
de David Bowie e Alice Cooper quanto as sombras do regime militar e do Rock
progressivo dos 70. Historicamente, foram excepcionais em furar o cerco
multinacional, emplacando o estouro da Continental, uma gravadora de capital
nacional, mas também em ser quase imediatamente deglutidos pelo poderio da
Globo, que os encampou via Fantástico (Sanches, 2000b).
O jornalista Nelson Motta acredita que o fator contestatório do Secos & Molhados
reside principalmente na ousadia de Ney Matogrosso em fundir as esferas masculina e
feminina em sua própria figura em tempos nos quais a liberdade de expressão sequer era
permitida:
Um outro ponto que me atraía no Ney consistia no fato de ele mexer com esse lado
do feminino e do masculino, numa época de repressão política muito exacerbada:
como as contestações estavam proibidas, mexer no lado existencial e
comportamental representava uma forma de manter ativo o processo social os
avanços, as denúncias e a resistência. O Ney mexia com componentes mais
profundos que o estritamente político (que é episódico e depende da conjuntura), já
que o problema, ou a solução, do masculino e do feminino vive dentro da espécie
humana desde sua origem. E um dado de natureza permanente e que afeta todas as
pessoas. E ele mexia exatamente com essa parte, o que se revelou muito
interessante e muito útil para a época. Ney Matogrosso é uma pessoa que pode se
orgulhar em dizer que combateu realmente a ditadura militar, com armas até mais
contundentes e mais provocativas que um discurso político de oposição, muitas
vezes constituído de clichês. Sem dúvida alguma, o Secos & Molhados também
abriu frestas na cabeça das pessoas, porque provocou muita discussão e polêmica
num período em que qualquer tipo de debate soava perigoso (apud Vaz, 1992:
290).
As conclusões de João Nunes também não deixam de contestar as (infelizes)
palavras de Kubrusly ao ressaltar a façanha do Secos & Molhados de ter conseguido
realizar tamanha conscientização de vários brasileiros em tão pouco tempo:
O Secos & Molhados teve o poder de um facho de luz impressionante que iluminou
por segundos e se foi. Esse tipo de fenômeno não foi mesmo feito para durar. É,
semelhante a um cometa, que passa e deixa sua marca para sempre, mas só existiu
num raro momento de inspiração de um grupo de rapazes despretensiosos loucos
para respirar melhor num período de triste memória da história brasileira.
Respiraram e permitiram que muita gente fizesse o mesmo (Nunes, 2003).
Ney Matogrosso acredita que boa parte do fascínio das pessoas pelo Secos &
Molhados se originava da impossibilidade de expressar a revolta por parte de muitos. Para
subverter as leis do sistema, de acordo com o artista, era necessário fazer uso da loucura:
Quanto mais eu chocava, mais queria chocar, e chocava mesmo; as pessoas
ficavam estáticas de tanto susto, tortinhas, mas eu sentia que gostavam, talvez
porque eu concretizasse um desejo delas de reação. Ninguém podia nada no país
naquela época, e aí de repente o fato de aparecer um maluco com coragem para
afrontar publicamente o estabelecido fazia com que as pessoas ficassem meio
cúmplices de mim ao me assistir, mostrando que, de alguma maneira, estavam a
favor daquela manifestação. E, como aos loucos tudo é permitido, eu aproveitava a
classificação de maluco para endoidecer cada vez mais. É bem verdade que louco
varrido mesmo, inteiramente fora de mim, só fui no Secos e Molhados, quando não
dava conta de nada do que acontecia. Talvez por essa razão tenha saído do conjunto
no auge da loucura e da sanidade: estava colocando todo o inconsciente para fora e
ficando ótimo da mente. Na época, até os culhões de fora eu botei, e segurava com
a mão, além de arriar as calças e ficar com a bunda de fora na cara das pessoas. O
único limite não transposto foi tirar a mão e soltar o pau. O resto, eu fiz tudo (Vaz,
1992: 97).
A cumplicidade entre artista e público se dava, principalmente, pelo fato de existir
um desejo coletivo de quebrar tabus e limites impostos pela moralidade que permeava o
regime autoritário no Brasil. Por isso, qualquer manifestação que colocasse em dúvida
determinados princípios da sexualidade era um passaporte não recusado por muitos
admiradores do trabalho desenvolvido pelo Secos & Molhados:
A mesma esperança que movia Ney, que fazia sua revolução pessoal no palco
esperando com isso influenciar e, quem sabe, ajudar a quebrar a rigidez das regras
que estabelecia limites estreitos na maneira de ser de homens e mulheres (...). Ney
queria englobar os lados masculino e feminino e mostrar que o ser humano podia
ser muito mais livre e inteiro se não se deixasse aprisionar por classificações
simplistas (Dias, 2003: 151).
“As andorinhas”, poema de Cassiano Ricardo musicado por João Ricardo, integra o
primeiro álbum do grupo. Esta canção nos faz lembrar de uma partitura desde o primeiro
contato, visto que as sílabas da frase “Nos fios tensos da pauta de metal as andorinhas
gritam por falta de uma clave de sol” são divididas tais quais notas musicais:
- Nos
- fios
- ten
sos
- da
- pauta
- de me
tal
- As
- an/
do/
ri/
nhas
- gri-
tam
- por
- fal/
ta
- de uma
- clave
- de
- sol
“As Andorinhas” era o número de abertura dos shows do Secos & Molhados, o que
não deixava de prenunciar uma espécie de manifesto ou introdução para o teor político das
demais canções que viriam a seguir. O rufar dos tambores, o canto sibilado de Ney
Matogrosso e os acordes sofridos do piano de Emílio Carreira inserem o ouvinte em uma
atmosfera surrealista na qual o canto humano se assemelha ao cantar de uma andorinha
asfixiada.
Os pássaros da canção expressam o que chamamos aqui de Poética do grito. Eles
clamam desesperadamente por uma clave de sol, a nota musical cortada pela tesoura dos
censores, de forma que a musicalidade não ficasse comprometida naquele momento. Os
fios da pauta musical estavam em estado de plena tensão, o que deixava artistas e público
em estado de vigilância permanente em relação aos desmandos da política cultural adotada
pelo governo. Vários músicos foram obrigados a modificarem seus versos para fugirem do
olho censor, a autocensura se transformou numa estratégia alternativa de fuga da censura. O
grito é o veículo de expressão da angústia de toda uma sociedade, porém não deixa de ser
um aviso de que o belo canto jamais será silenciado pelo gesto do outro; por isso o ato de
cantar será mantido, nem que seja através do gesto radical de soltar a voz a plenos pulmões
e denunciar a enorme revolta provocada pelo sinal daqueles tempos.
Outro caso que pode ser lido nesta perspectiva é “Pássaro proibido”, composição de
Caetano Veloso e Maria Bethânia, cuja letra vem a seguir:
Solto está o pássaro proibido
Perigo, cuidado, sinal nas ruas
Plumagem clara, brilhante
Ao sol e à lua transparente
Ao corisco e à maré
Ao corisco e à maré
Eu canto o sonho na cama
Do jeito doce e moreno
Eu canto pássaro proibido de sonhar
O canto macio, olhos molhados
Sem medo do erro maldito
De ser um pássaro proibido
Mas com o poder de voar
Voar até a mais alta árvore
Sem medo, tranqüilo, iluminado
Cantando o que quer dizer
Perguntando o que quer dizer
Que quer dizer meu cantar
Que quer dizer meu cantar
165
.
A figura do pássaro presente na canção de Caetano e Bethânia, profundamente
enigmática, funde a noção de liberdade com o desejo de cantar propriamente dito como em
“As Andorinhas”. A beleza do canto solene do bicho tem a capacidade de romper as
barreiras e fazer de seu ofício (“erro maldito”) um instrumento de proteção e de libertação.
Aqui, recusa-se a Poética do grito como expressão o canto deixa de apresentar
165
IN: Maria Bethânia, Pássaro proibido (1976) e Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil & Maria
Bethânia, Doces Bárbaros (1976).
agressividade e se torna solene na medida em que refletimos a interpretação de Caetano
Veloso para esta composição:
O segredo que perpassa o texto se vê ratificado na suavidade da voz, enriquecida
pelas modulações tonais que Caetano, à maneira de um oriental, articula, e se
complementa pela leveza dos movimentos, que reproduzem o deslocamento do
pássaro no ar, e pelo olhar, cuja alternância de nuances traduz ora sensualidade,
ora altivez. Enfim, apresenta-se no palco a impotência de quem se sabe sujeito
da ação e da vontade (Lucchesi & Dieguez, 1993: 141-142).
Os versos escritos pelo poeta e crítico teatral português João Apolinário se
encaixavam perfeitamente com a agressividade reinante nos anos 70 no Brasil. Em certos
casos, buscavam-se outras vozes para realçar o caráter metafórico das canções, visto que
quem optasse por uma via direta de discurso de protesto estava sob sérios riscos de
investidas do poder. Em seu livro Música Popular e Moderna Poesia Brasileira, Affonso
Romano de Sant’Anna demonstrou que o Secos & Molhados também estava integrado ao
projeto de vários artistas da canção em resistir à ditadura militar na medida que praticava
“uma poesia de tradição simbólica” e não dizia “as coisas diretamente, mas pelo
envolvimento pelo torneio, metaforicamente, numa dança verbal. Daí que, em vez da
agressividade das canções de 1960, eles possam compor ‘Primavera nos dentes’ ou ‘Sangue
latino’”(Sant’Anna, 2004: 86).
“Primavera nos dentes” uma referência aos movimentos estudantis que varreram o
mundo no ano de 1968? nos expõe um olhar profundo sobre a existência através da
resistência, ou seja, desafiar convenções e conseguir afirmar a própria identidade num
momento em que todos fazem questão de se mostrarem iguais num momento em que
autenticidade pode significar um preço altíssimo a pagar. Vejamos a letra da canção:
Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste
Como podemos notar, ter coragem é se aliar a certa consciência crítica num
contexto em que tudo pode ser posto a perder. Em um tempo no qual derrotas são bem mais
recorrentes, a resistência garante a sobrevivência do indivíduo em um meio dissonante e
impede a morte do desejo e das ideologias do sujeito. A primavera está perto de nós, mas
fora do alcance imediato de nossas mãos; não podemos proclamá-la com um simples grito
ou com um sonoro berro ela só pode ser sussurrada, proclamada entre dentes e não em
alto volume.
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
entre os dentes segura a Primavera.
Um outro aspecto importantíssimo relacionado a “Primavera nos dentes” é que
durante os seus 4 minutos e 50 segundos de duração, as vozes apenas aparecem no final de
quase três minutos de já iniciada a execução dos instrumentos. A canção começa com uma
levada de blues que confere um clima sombrio e pesado. A longa introdução pode ser lida
como uma alusão às vozes caladas de muitos brasileiros durante a ditadura militar, por
exemplo. As vozes de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso, em uníssono,
aparecem suavemente no verso inicial “Quem tem consciência para ter coragem” como
se não quisessem causar nenhum alarde e para evitar atitudes reacionárias e depois vão
crescendo até proclamar o grito de revolta (e alívio) no último verso “entre os dentes
segura a primavera”. Esta canção, junto com “Sangue latino”, é um dos emblemas mais
típicos da canção de protesto do Secos & Molhados, o que não só define um traço marcante
na estética desenvolvida pelo grupo, como também a sua proposta: resistir às forças do
poder através do canto, da poesia e da contestação de valores do senso comum.
Em “Primavera nos dentes”, o tempo dedicado aos versos cantados por Gerson,
João e Ney é ínfimo se comparado com a duração dedicada à evolução dos instrumentos da
gravação original. É preciso encontrar no silêncio das vozes, o grito escondido por detrás
da máscara mortuária do discurso que era veiculado pelo artista da canção, é preciso
encontrar na ausência de palavras, as idéias implícitas em meio aos variados sons presentes
em arranjos e partituras. A prática de “esconder” idéias-chave de canções em meio a
paraísos sonoros era recorrente naquela época, como podemos sentir em “Negror dos
tempos”, composição de Caetano Veloso gravada por Maria Bethânia em Drama Anjo
Exterminado (1972):
Quando eu vejo você
Com seus olhos de vaca
Sua vaca
Com seus grandes olhos de vaca
Sua grande vaca
Com seus olhos de vaca triste
Menina triste do meu amor
Quando eu vejo você
Com sua gargalhada descarada
Seu cabelo de muito vento
De mau tempo, de mau tempo
Menina triste do meu amor
Sinto todo o amor
Sinto todo o terror
Do negror destes tempos (Veloso, 2003: 315).
Um questionamento que fazemos durante o contato com esta composição é: “A
quem o sujeito lírico se dirige?”. Por se tratar de um autor atingido pela ditadura como foi
Caetano Veloso, pode-se compreender estes versos como direcionados a uma nação,
inocente como uma infante virgem (por ter sido radicalmente possuída pelos militares) e
triste por ter renegado e torturado muitos de seus filhos porém não menos digna de ser
amada por aqueles que ela pariu. Os olhos, inexpressivos por se tratar de um território cuja
noção de justiça é integralmente cega e que não se apercebe dos risos (perversos) daqueles
que se responsabilizaram em manter a máquina repressiva do governo operante.
Por sua vez, o vento a soprar em “Negror dos tempos” não indica as condições
meteorológicas daquele contexto, mas sim as arbitragens impostas ao Brasil no início da
década de 70 e conduz o ouvinte ao pleno mal estar da voz a cantar. O momento era de
amor dos que resistiam aos dissabores em nome de uma resistência individual e coletiva e
de terror imposto pela instância principal de poder a última estrofe surge como uma
conclusão do canto de Maria Bethânia, que é sumariamente seguida por uma jazz band que
toma praticamente dois terços dos 3 minutos e 35 segundos da gravação. Tal qual, como em
“Primavera nos dentes”, a canção de Caetano Veloso também apresenta o silêncio como
uma ideologia escondida por debaixo do tapete sonoro construído pelos músicos da banda.
São nestes espaços pelos quais o dado crítico e o ouvinte mais atento devem se enveredar
para encontrar a chave de leitura destes textos.
6.2 - Amargas primaveras
Conforme foi explicado até esta etapa do trabalho, a poética encontrada nos dois
discos do Secos & Molhados se caracteriza como uma Poética do grito. “Flores astrais”,
único sucesso do segundo álbum do grupo, nos apresenta, num primeiro momento, um
ambiente marcado por luzes, estrelas, cores e... flores! Vejamos os primeiros versos desta
canção:
Um grito de estrela
vem do infinito
e um bando de luz
repete o grito
Todas as cores
e outras mais
procriam flores
astrais (...)
O grito de estrela, brilhante como a luz que emana de um astro de grandeza, por vir
do além, vem de uma longa caminhada para poder chegar ao ouvido de quem se presta a
ouvir um LP com três rostos maquiados. O “bando de luz” a reproduzir o grito é a
concretização de muitas vozes que se mostravam insatisfeitas com as três vozes a cantar
num Brasil tomado pela escuridão. Na verdade, o infinito nos traz uma atmosfera
plenamente bela, porém que não se destina ao homem comum e sim a quem pode ocupar as
altas esferas do poder. O refrão desta canção se refere a tal elemento no seu refrão:
Um verme passeia
na lua cheia.
A luz lunar tem o poder de iluminar o “verme” e evidencia uma denúncia de que só
ocupam as esferas estelares aqueles que possuem um determinado privilégio ou detêm uma
espécie de poder é possível que seja uma alusão àqueles que se beneficiaram com os
lucros do “milagre econômico” ou aos governantes deixaram muitos outros morrerem à
míngua, ou seja, não saborear a “fatia do bolo” proposta pelo Ministério da Economia de
Médici no início da década de 70.
A figura do verme retrata o caráter daqueles que sempre reprimiram boa parte da
sociedade a favor de quaisquer espécie de privilégios, por isso, tal criatura, por não ser
combatida facilmente, nos causa profundo sentimento de asfixia e desolamento e é tida
como um “verme”, devido a sua ausência de caráter. De qualquer maneira, há espaços
antagônicos revelados pela canção: o primeiro revela o plano dos que estão a procriar as
flores astrais (oprimidas); o outro, por sua vez, apresenta a envergadura do grande opressor
a transitar pelo universo.
Um dos poetas que foram apropriados pelo projeto estético do Secos & Molhados
foi Manuel Bandeira. Os versos do poeta, de profundo lirismo, eram bastante adequados
para o momento que o Brasil provava na década de 70. Em tempos de chumbo grosso, de
céus nublados e de desconfiança generalizada, pouquíssimos alimenta(va)m esperanças em
relação aos rumos da nação. Tal problemática se faz presente em “Rondó do capitão”,
poema de Bandeira publicado em sua Lira dos Cinquent’Anos (1940) e que integra o
primeiro álbum do Secos & Molhados:
Bão balalão
senhor capitão
Tirai este peso
do meu coração
Não é de tristeza,
não é de aflição:
É só esperança,
senhor capitão! (...)
O eu-lírico faz um solene apelo a essa figura que, pela importância de sua hierarquia
militar, para liberar os sonhos e os desejos livremente. A beleza da mensagem está no
inusitado pedido: esperanças aprisionadas e dependentes de um poder soberano e ao mesmo
tempo sujeito ao jogo e ao trocadilho “bão balalão” onomatopaico. É interessante
acrescentar que Manuel Bandeira, em vários momentos de sua trajetória enquanto poeta, se
inspirou em cantigas de origem popular na construção de seus versos. “Rondó do capitão”,
por fim, é baseado na cantiga de roda “Bão, balalão”
166
. Entre a imponência da espada e do
ginete, o eu-se utilizava da forma popular do rondó para veicular seu pedido de socorro,
paradoxalmente, não para reforçar o choro, mas com o intuito de proclamar a esperança que
não morreu:
A leve esperança,
a aérea esperança...
aérea, pois não!
- Peso mais pesado
não existe não.
Ah, livrai-me dele,
senhor capitão!
Em muitos momentos, a vontade de traçar uma rota de fuga do cotidiano era
recorrente. Muitos buscavam os narcóticos ou pegavam em armas, caindo na
clandestinidade; outros insistiam na sua arte. No entanto, nem sempre a tentativa de
escapar das amarras impostas pelo regime era uma tática bem-sucedida durante as
gravações do segundo LP do Secos & Molhados, uma canção assinada por João Ricardo
baseada no famoso poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, foi
surpreendentemente censurada pelo Governo Federal. A justificativa para tamanho gesto
autoritário era o verso “Tem alcalóide à vontade”, que soava para os censores como uma
alusão às drogas e o conseqüente incentivo ao uso de maconha (cf. Vaz, 1992: 101).
Como se vê, nem sempre a tática de João Ricardo ao transformar poemas consagrados em
composições musicais teve sucesso. Seguindo o exemplo do famosíssimo poema de
Bandeira”, algumas canções, infelizmente, foram jamais gravadas. Dentre as obras que
166
Os versos da cantiga se iniciam com os seguintes versos: “Bão balalão / Senhor capitão / Espada na cinta /
Ginete na mão” (apud Rosenbaum, 2007).
foram condenadas aos fundos de gavetas, está “Balada”, cujo texto era de Carlos
Drummond de Andrade que também foi impedida de ser gravada no segundo disco do
Secos & Molhados.
Escolher um texto que continha uma mensagem de esperança em meio às
dificuldades enfrentadas era uma maneira de abrir a fresta e deixar a luz passar, mesmo
quando não era possível sequer abrir a janela. A criação do poeta vale para quaisquer
momentos de melancolia e solidão individuais independentemente de credo, religião ou
fronteiras geográficas. Ao recriar musicalmente a Pasárgada tão sonhada por Bandeira em
Libertinagem (1930), João Ricardo organizou um manifesto a favor da liberdade irrestrita,
apontava a infelicidade da vida e lançava, por fim, uma crítica velada ao regime militar
167
:
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
167
É importante deixar claro que não há a intenção de reduzir a leitura do consagrado poema de Manuel
Bandeira ao contexto dos anos 70, mas de tentar encontrar as afinidades eletivas entre a dureza daquele
contexto e a mensagem poética de “Vou-me embora pra Pasárgada”.
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada (Bandeira, 1993: 143-144).
Outra obra jamais registrada pelo Secos & Molhados foi uma parceria assinada pela
dupla Luli-Lucina. Por anos, tentou-se, infelizmente em vão, com que esta fosse liberada do
cerco dos órgãos oficiais. Anos depois, já bem distante do grupo que o consagrou e prestes
a gravar seu sexto trabalho solo, Sujeito estranho (1980), Ney Matogrosso conseguiu
autorização (depois de enviar todo ano a letra à Censura Federal), para gravar a canção
rejeitada pelas autoridades. Trata-se de “Napoleão”, que o cantor desejava ter gravado já no
primeiro LP de seu grupo a saga descrita com irreverência e deboche em versos do
Imperador francês e seus 100 soldados definitivamente não foi bem vista nem mesmo pelos
militares mais liberais:
Napoleão com seus cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Napoleão viveu com seus cem soldados
Napoleão comeu com seus cem soldados
Napoleão dormiu com seus cem soldados
Napoleão brigou com seus cem soldados
Napoleão venceu com seus cem soldados
Napoleão morreu com seus cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Um morreu de frente o outro morreu de lado
Um morreu deitado e o outro morreu sorridente
Um era soldado o outro era presidente
Ah, um era meu avô o outro era filho meu
Um morreu decapitado e outro morreu soluçando
Um até morreu gritando, cada qual mais diferente
Ai, ai, ai, quedê, ai ai ai quedê quedê
Quedê quedê quedê quedê quedê quedê
Mas quem é que sabe o nome desses cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Quem é que sabe o sobrenome desses cem soldados
Napoleão com seus cem soldados
Cem soldados sem velório, cem guerreiros sem história
Napoleão com seus cem soldados
Cem minutos sem memória, sem certo e sem errado
Napoleão com seus cem soldados
E quem sabe me dizer se eram cem soldados
Eu quero ver pra acreditar, eu quero ver, eu quero ver
168
A interpretação de Ney Matogrosso para a canção assinada por Luhli e Lucina lhe
permitia abusar de sua performance ousada e provocante, visto que versos como “Napoleão
comeu com seus cem soldados / Napoleão dormiu com seus cem soldados” sugeriam,
debochadamente, uma relação mais íntima entre o general francês e seus soldados. A
168
IN: Ney Matogrosso, Sujeito estranho (1980).
sexualidade agia como um mote liberador do prazer e do comércio sem hierarquias. Por
outro lado, a letra descreve uma vastas quantidades de mortes brutais (“Um [soldado]
morreu decapitado e outro [soldado] morreu soluçando”), aludindo à violência irracional
das batalhas campais. Soldados desapareciam anonimamente, sem direito a velório ou
preservação de sua trajetória e/ou memória. Cabe à voz que veicula a mensagem a tarefa de
reivindicar por esses mortos, numa insistência que lembra São Tomé na sua dúvida, ao
acreditar só vendo: “E quem sabe me dizer se eram cem soldados / Eu quero ver pra
acreditar, eu quero ver, eu quero ver”.
A obra do Secos & Molhados, como podemos observar até aqui, pode refletir
representações do autoritarismo, de como ele age ou de como o oprimido se comporta ao
fazer frente às falácias do poder. Outro claro exemplo a ilustrar a potencialidade do
opressor está em “O Patrão nosso de cada dia”, assinada por João Ricardo:
Eu quero o amor
da flor de cáctus.
Ela não quis
Eu dei-lhe a flor
de minha vida,
Vivo agitado.
Eu já não sei se sei
de tudo ou quase tudo.
Eu só sei de mim
de nós, de todo o mundo.
O eu-lírico se apresenta como desejoso de algo provável: a conquista de um amor
possível, que é nada menos do que a irremediável presença da “flor de cáctus”, seca e
integralmente tomada por espinhos, ou seja, repleta de dor e ilusão. O ser amado renega os
apelos de uma voz que doa algo que simboliza o que ela tem de melhor a flor aqui
demonstra a pureza do sentimento amoroso, ou seja, de uma integridade amorosa do eu-
lírico. A agitação decorrente desta voz implica no surgimento das incertezas e das
conseqüentes crises do indivíduo. Vejamos como os versos seguintes demonstram a
afirmação do poder sobre o desejo:
Eu vivo preso
a sua senha.
Sou enganado
Eu solto o ar
no fim do dia.
Perdi a vida
Eu já não sei se sei
de nada ou quase nada.
Eu só sei de mim
Só sei de mim
Só sei de mim
O Patrão nosso
de cada dia
dia após dia.
Em “O Patrão nosso de cada dia” é feito um trocadilho com uma parte da oração do
Pai nosso os versos “O Patrão nosso / de cada dia”, cujo trecho remete à oração “O pão
nosso de cada dia nos dai hoje” que perde a esperança da conquista pela melancolia
extrema da rejeição. Revela-se uma relação tensa por excelência, marcada pela melancolia,
pela perda de referenciais externos: o eu-lírico se volta solicitante para dentro de si próprio,
transformando-se em uma ilha distante na medida em que a rotina submete esta mesma voz
a uma autoridade, a uma crença, a um dever, a um fardo que deve ser obrigatoriamente
carregado.
É possível fazer a mesma leitura utilizada em “O Patrão nosso de cada dia” para
“Oh! Mulher infiel”, outra canção assinada por João Ricardo e que integra o segundo álbum
do Secos & Molhados. A mulher traid ora que domina e faz do homem como um mero
joguete:
Oh! Mulher infiel
traiçoeiramente ativa
com minha vida consumida
pelo teu jeito
pelo teu peito saliente
Eficiente nas horas vivas
e nas horas vagas, pagas
Oh! Mulher infiel.
Em uma leitura presa ao contexto repressivo da época, poderíamos entender a
escolha destas canções como uma alusão à censura praticada durante a ditadura militar. A
mulher indiferente e fria aos apelos do amante seria uma metáfora da nação cega pelas
negras vendas do poder, comandada pelos militares que fizeram a Revolução de 1964. As
observações de Marilena Chauí do conceito de pátria não deixam de ser uma espécie de
complemento de nossa análise:
Antes da invenção histórica da nação, como algo político ou Estado-Nação, os
termos políticos empregados eram “povo” [...] e pátria. Esta palavra também deriva
de um vocábulo latino, pater, pai. Não se trata, portanto do pai como genitor de
seus filhos [...], mas de uma figura jurídica, definida pelo antigo direito humano.
Pater é o senhor, o chefe, que tem a propriedade privada absoluta e incondicional
da terra e de tudo o que nela existe, isto é, plantações, gado, edifícios, (“pai” é dono
do patrimonium), e o senhor, cuja vontade pessoal é a lei, tendo o poder de vida e
morte sobre (a casa é o dominium), e os que estão sobre seu domínio formam a sua
família (mulher, filhos, parentes e escravos). Pai se refere, portanto, ao poder
patriarcal e pátria é o que pertence ao pai e esta sob seu poder. É nesse sentido
jurídico preciso que, no latim da Igreja, Deus é Pai, isto é, senhor do universo e dos
exércitos celestes. É também essa a origem da expansão jurídica pátrio poder,
para referir-se ao poder legal do pai sobre filhos, esposa e dependentes (escravos,
servos, parentes pobres) (Chauí, 2000: 15).
Em depoimento concedido especialmente para este trabalho, Gerson Conrad
confidenciou que a proposta de musicar poemas vinha da influência de João Apolinário. O
pai de João Ricardo resistia à idéia de que não apenas seus poemas deveriam ser musicados,
mas sim obras de outros artesãos da palavra. O contato com a poesia foi importante tanto
para Gerson quanto para Ney, pois, o Secos & Molhados, de certa forma, os incentivou no
contato com a leitura de poemas. Este fato foi confirmado pelo próprio Ney Matogrosso em
entrevista a Bené Fonteles: “Sempre tive dificuldade com poesia. Eu não entendia. Só fui
compreender a poesia depois dos ‘Secos & Molhados’. Como nós trabalhávamos muito
com a poética, aquilo me despertou a vontade de ler poemas” (apud Fonteles & Fonseca,
2002: 86). Ao abrir aleatoriamente uma página da Antologia poética de Vinícius de
Moraes, Gerson se deparou com um belo poema dedicado aos ataques sofridos pelas
cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em 1945 e, ao receber um sinal positivo de seu
companheiro João, musicou o poema
169
. Eis os primeiros versos do texto que tanto o
cativara:
Pensem nas crianças
mudas telepáticas
Pensem nas meninas
cegas inexatas
Pensem nas mulheres
rotas alteradas
Pensem nas feridas
como rosas cálidas (...).
O poeta aludia aos atentados sofridos por Hiroshima e Nagasaki, onde bombas
atômicas lançadas pelo exército dos EUA aniquilaram a vida da região em agosto de 1945.
O eu-lírico obriga a refletir sobre a desgraça de crianças, meninas e mulheres que foram
penalizadas pela infelicidade de terem nascido em um país que era inimigo das tropas
aliadas que lutaram na II Guerra Mundial. Em sua Era dos Extremos, o renomado
historiador Eric Hobsbawm afirmou que “jamais a face do globo e a vida humana foram tão
transformadas quanto na era que começou sob as nuvens em cogumelo de Hiroshima e
Nagasaki” (Hobsbawm, 1995: 177). Se naquela época a questão que estava em debate era o
fascismo e o antifascismo, com o fim da II Guerra, dois novos inimigos surgiriam: o
capitalismo e o comunismo, e, com eles, as suas implicações políticas, econômicas, sociais,
culturais e existenciais.
169
Um fato curioso revelado em depoimento concedido à jornalista Cléo Tassitani e ao autor destas linhas em
outubro de 2005, Gerson Conrad informou que “El Rey” era um poema de João Ricardo musicado por ele e,
junto com “Rosa de Hiroshima”, foram as duas últimas canções a integrarem o repertório a ser gravado no
primeiro disco do Secos & Molhados.
Por outro lado, o ato de retomar os versos escritos por Vinícius de Moraes na
primeira metade da década de 70 significava uma reflexão a respeito dos combates dos
EUA ao Vietnã e aos conflitos armados na América Latina e no Brasil dos militares. As
seqüelas ficaram como indeléveis cicatrizes para as gerações futuras. Ao comentar um dos
manifestos de Marinetti em 1936, Walter Benjamin apontou as conseqüências do desastre
provocado pela ganância do capital e pelo conflito bélico:
A guerra imperialista, com suas atrozes características, tem por causa determinante
a defasagem entre a existência de poderosos meios de produção e a insuficiência de
seu uso para fins produtivos (noutras palavras, o desemprego e a ausência de
mercados). A guerra imperialista é uma revolta da técnica, que reclama sob a forma
de “material humano” o que a sociedade lhe arrancou matéria natural. Em vez de
canalizar os rios, dirige o caudal humano para o leito das trincheiras; em vez de
usar seus aviões para semear a terra, espalha bombas incendiárias sobre as cidades;
no uso bélico do gás, encontrou um novo meio de acabar com a aura (Benjamin IN
Costa Lima, 2000: 253-254).
A figura da rosa, cuja referência está ligada ao belo, passa a ser vista como uma
ferida ou um sinônimo de crueldade, insensatez, desamor e maldade daqueles que ocupam
o poder e fazem uso da força como mero exercício. A flor, infelizmente, perde os traços da
beleza, inocência e ternura para se transformar numa metáfora da bomba atômica cruel e
rigorosamente implacável e que não escolhe vítimas. Todo o poema é um grito de alerta
contra o uso indiscriminado dos artifícios bélicos.
Hiroshima e Nagasaki, após as bombas, tornaram-se cidades moralmente destruídas.
Em outras palavras, o sujeito comum era inocente ao receber uma pena tão severa por parte
dos desvarios do poder capitalista. Em depoimento concedido para este trabalho, Luhli
comentou a enorme comoção sentida pelas pessoas quando “Rosa de Hiroshima” era
executada em público:
As pessoas choravam! Choravam porque tem uma coisa muito revolucionária. Isto
é a coisa mais importante do Secos & Molhados. A explosão era a reação de um
povo oprimido (...). [A força do grupo] não era só a figura do Ney (...), era a
música, era o que as letras estavam dizendo numa época em que não se podia dizer
porra nenhuma! A alma do povo falou naquelas músicas. Então o povo inteiro quis
aquela música. Não era porque era pop-rock, mas porque foi a primeira expressão
de certas verdades que teve em 20 anos!
170
Com isso, tornava -se válido afirmar que a sociedade brasileira, em 1973, se igualava
às cidades japonesas que sofreram com os excessos do capital aliado ao poderio bélico:
nossa gente andava, como cantou Chico Buarque, “falando de lado e olhando pro chão”,
visto que o regime atingia crianças, meninas e mulheres, uma parcela considerável da
população que se envergonhava do autoritarismo gratuito que dominava o país. O rosário
do sofrimento jamais deveria ser esquecido, afinal a dor seria transmitida de geração em
geração pensemos mais especificamente nos efeitos colaterais sentidos pelos corpos de
muitos japoneses, as conseqüências político-sociais decorrentes do conflito no Vietnã ou os
abalos do inconsciente de muitos torturados pela ditadura militar e seria uma das marcas
principais da apoteose do mundo capitalista. Por isso, a todos os atingidos pela infame rosa
desprovida de beleza ou perfume segue a advertência:
Mas, oh, não se esqueçam
da rosa da rosa
da Rosa de Hiroshima
a rosa hereditária
a rosa radioativa
estúpida e inválida
a rosa com cirrose
a anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
sem rosa sem nada.
A poética de caráter social assinada por Solano Trindade adquiriu destaque na obra
musical do Secos & Molhados. “Mulher barriguda”, teve seus versos musicados por João
Ricardo e foi um dos maiores sucessos do primeiro disco do grupo. Ao apresentar a figura
de uma grávida, esta composição questiona a direção dos novos tempos em um ambiente
social tomado pelo poderio militar, pela falta de perspectivas para quem estava do lado dos
170
Estas observações foram feitas pela própria Luhli, em depoimento concedido ao autor e Rosana Barbosa
em janeiro de 2006.
oprimidos e, acima de tudo, pelos combates permanentes travados por quem ocupava o
poder:
Mulher barriguda
que vai ter menino
Qual o destino
que ele vai ter?
Que será ele
quando crescer? (...)
O destino do futuro homem prestes a nascer, como podemos notar, parece ser
deveras incerto. Entretanto, a gravidez nos traz a esperança da novidade, daí acreditarmos
que a chegada de uma nova geração seria um provável antídoto para os conflitos e as rosas
infames. Por outro lado, não devemos nos esquecer de que “há uma busca da humanidade
perdida, a ser resgatada; a aspiração a um reencantamento do mundo. Trata-se de
manifestação exemplar do romantismo no sentido pleno” (Ridenti, 2000: 117), visto que as
possibilidades de mudança em tempos tão conturbados eram remotas. Em vista destas
observações, não podemos negar a existência do pedido ao mundo uma espécie de
solidariedade com a mãe e o futuro bebê que os horrores cessem, seja qual for o seu
preço:
Haverá guerra ainda?
tomara que não
Mulher barriguda
tomara que não.
A poética engajada de Solano Trindade não deixava de ser vista como uma afronta
declarada aos dirigentes da nação em meio à primeira metade dos anos 70, pois ela não
coadunava com a idéia do “Brasil grande” que era construída pelos slogans militares. “Tem
gente com fome” canção que figurava no repertório do Secos & Molhados desde seus
primeiros shows é baseada em um poema de Solano publicado em 1963 e musicado por
João Ricardo anos depois foi proibida durante praticamente toda a década de 70. Vejamos
o que dizem os versos da controvertida composição:
Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo
Parece dizer
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Estação de Caxias
De novo a dizer
De novo a correr
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tem gente com fome
Tantas caras tristes
Querendo chegar
Em algum destino
Em algum lugar
Só nas estações
Quando vai parando
Começa a dizer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Se tem gente com fome
Dá de comer
Mas o freio de ar
Todo autoritário
Manda o trem calar
Psiuuuuuuuu
171
.
O “trem” presente nos versos de Solano Trindade significa o principal meio de
transporte de trabalhadores da Baixada Fluminense, que garantem o pão de cada dia na
171
IN: João Ricardo, Musicar (1979) e Ney Matogrosso, Seu tipo (1979).
região central da metrópole carioca, a Leopoldina, localizada na região central do Rio de
Janeiro região que recebe diariamente um grande número de mão de obra até os dias de
hoje. Originalmente publicado em 1963 na série de poemas Violão de Rua, organizada pelo
CPC, o poema “Tem gente com fome” refletia um contexto no qual muitos artistas e
militantes de esquerda discutiam a nação brasileira apaixonadamente. Com a tomada do
Estado pelos militares em 1964, “o freio de ar” passa a domar, através da força, os
possíveis trens a insurgirem contra o status quo. A ditadura simbolicamente interrompe
pela força o curso da História, impedindo o progresso, silenciando as pessoas, evitando o
florescimento das artes. Solano, infelizmente, se revelou como uma voz visionária através
deste texto (publicado um ano antes do fim do governo democrático de João Goulart).
Esta canção apenas teve a chance de ser gravada no ano de 1979 respectivamente
por João Ricardo em seu terceiro trabalho solo e Ney Matogrosso em seu quinto disco
individual, momento no qual a repressão imposta pelo regime começava a abrandar. Ney
explicou anos depois, em sua biografia, a razão para tais decisões do governo: “Como eles
não tinham mesmo nenhum critério para censurar, e dependia muito mais do humor da
pessoa que estava no lugar na época, cada vez que eu ia gravar um disco, tentava a
liberação da música. Até que chegou uma hora em que pude gravar” (apud Vaz, 1992: 101).
Em “Preto velho”, cujo título brinca com o duplo sentido da expressão (pois pode
tanto significar um senhor negro de avançada idade como também uma das figuras mais
reverenciadas pelo sincretismo religioso), podemos ver como o ser humano pode
permanecer inocente e simples, quando desconhece a realidade perversa da qual também
faz parte:
Aquele preto, tão preto
Co’ aquela barba branca, tão preta
E aquele olhar tão meigo
De que espera ganhar
Um sorriso incolor.
O personagem desta canção, um homem comum, se assemelha aos tantos excluídos
da nação. O preto velho de barba branca e olhar sem revolta transmite o conformismo dos
que vivem alheio às opressões e ao descaso da seriedade. Na simplicidade do vocabulário
de “Preto velho”, há um canto de protesto, uma ode aos excluídos e marginalizados de
nossa sociedade que é dedicada aos sem voz própria num Brasil que tendia a calar a voz
dos que se levantavam contra o status quo.
Como se sabe, durante a ditadura militar, o Estado repressor foi concebido pelos
generais como uma máquina estritamente repressiva e permitiu que as classes dominantes
garantissem “a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de
extorsão da mais-valia” (Althusser, 1985: 62), como também ao silêncio inquestionável das
massas perante o regime autoritário. Diversos instrumentos foram utilizados para que as
bocas fechadas se valessem como leis absolutas na vida social brasileira nos anos 70, como
as instituições policiais, os exércitos, a música de exaltação, os slogans e as prisões como
supremas garantias de uma ordem a ser cumprida. O pensador Louis Althusser (1985:
62/67) definiu estes elementos, em uma de suas principais obras, como Aparelhos
Repressivos de Estado e Aparelhos Ideológicos de Estado.
Os chamados “aparelhos ideológicos do Estado” estariam representados pelas
igrejas, escolas, famílias conservadoras, canções-propaganda
172
e lançam mão da ideologia
como forma de transmitir os desmandos do poder. Já os “aparelhos repressivos do Estado”
a polícia, os exércitos e os tribunais se utilizam da violência pura e simplesmente para
cumprir o árduo papel de conter determinadas camadas da sociedade e assegurar a ordem e
o silêncio. No entanto, conforme alerta-nos Louis Althusser, “o aparelho (repressivo) do
Estado funciona predominantemente através da repressão (inclusive física) e
secundariamente através da ideologia”, afinal, “não existe aparelho unicamente repressivo”
(Althusser, 1985: 70), e sim instituições violentas e dotadas de alto poder persuasivo. Um
exemplo dado pelo filósofo em sua referida obra seria a tendência de policiais e soldados de
divulgar os valores propostos pelos órgãos aos quais eles pertencem:
Da mesma forma, mas inversamente, devemos dizer que os Aparelhos Ideológicos
do Estado funcionam principalmente através da ideologia e secundariamente
através da repressão seja ela bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica.
(Não existe aparelho puramente ideológico). Desta forma, a Escola, as Igrejas
“moldam” por métodos próprios de sanções, exclusões, seleção etc... não apenas
172
As composições “Eu te amo, meu Brasil” e “Pra frente, Brasil” são dois exemplos perfeitamente cabíveis
desta categoria.
seus funcionários mas também suas ovelhas. E assim a Família... (Althusser, 1985:
70).
“Assim assado”, composta por João Ricardo, é um caso no qual podemos
vislumbrar todas as idéias acima propostas. A cena se desenrola na calada da noite,
momento em que muitos cidadãos estão alheios aos males provocados pelos aparelhos
repressivos do regime e revela a presença de dois personagens em cena o Guarda Belo e
um velho com suas rotas vestimentas. Eis como se dá o encontro destas “figuras fictícias”:
São duas horas
da madrugada
de um dia assim
Um velho anda
de terno velho
Assim, assim
Quando aparece o guarda belo
É posto em cena
Fazendo cena
Um treco assim
Bem apontado
Ao nariz chato
Assim assim
Quando aparece a cor do velho (...).
De acordo com os autores Luciana Salles Worms e Wellington Borges Costa em
Brasil século XX: ao pé da letra da canção popular, o fato de os integrantes do grupo
Secos & Molhados “se apresentarem maquiados e o de parecerem talvez inocentes, graças
ao apelo infantil, ajudaram a camuflar o teor político das letras” (Worms & Costa, 2002:
128). Os mesmos autores ainda apontam que “Assim assado”, por ser “mais uma canção
‘infantil’” (Worms & Costa, 2002: 129), satiriza os militares através da figura do Guarda
Belo, vilão do desenho animado Manda-chuva, altamente popular entre as crianças naquela
época.
O conflito se estabelece numa madrugada comum por tal motivo utiliza-se o
vocábulo assim, que indica a noção de qualquer. A madrugada, com sua escuridão, já é um
símbolo de trevas, caracterizando um ambiente propício às armadilhas. Podemos notar
nestes versos características altamente distintas entre o guarda e o velho. O opressor aponta
um “treco” ao nariz do idoso. Através da arma de fogo ele garante seu respeito e poder
sobre aqueles que se sentem ameaçados por ela.
A função do “treco” é, enquanto representação, de comprovar a autoridade da
instituição de poder. O velho, através da palidez, se mostra apavorado com a ameaça do
guarda belo. Os próximos versos apontam que a reação do oprimido senhor é incapaz de
comover a autoridade:
Mas guarda belo
Não acredita
na cor assim
Ele decide
no terno velho
Assim, assim
E o guarda velho
É o herói
Assim assado
Porque é preciso ser assim assado.
Os termos “assim” e “assado”, utilizados de uma forma severamente lúdica,
descrevem os personagens ou as ações que vão se desenrolando ao decorrer da canção. No
caso das ações, os termos ocultam as atrocidades do poder, já que naquela época muitas
coisas não podiam ser ditas aberta e claramente em público lembremos novamente que a
censura e a pressão estavam marcando o auge da ditadura militar. Por outro lado, os termos
em questão assumem uma nova conotação ao final da canção o último verso, “Porque é
preciso ser assim assado”, já se refere à maneira pela qual o velho deve ser enquadrado
dentro dos “limites” da ordem social. Faz-se uma reprodução de um discurso próprio das
pessoas que ocupavam o poder na época “é assim que as coisas devem ser” ou “é preciso
atuar desta ou daquela maneira” para que a lei e a ordem sejam garantidas.
“Assim assado” não deixa de se assemelhar a “Acorda, amor”, canção gravada por
Chico Buarque em 1974, sob seu pseudônimo, Julinho da Adelaide. Em um momento no
qual suas produções artísticas estavam amordaçadas pelo regime, Chico foi obrigado a
“vestir” a máscara de um personagem fictício para abordar a perversão dos Aparelhos
Repressivos do Estado através de um título ambíguo
173
, invertendo os papéis de polícia e
ladrão, descrevendo os procedimentos utilizados em uma prisão naquela época e, por fim,
aludindo à remota possibilidade de que em situações de abandono das autoridades, resta ao
cidadão comum à irônica situação de buscar ajud a na contravenção. O lema “se correr o
bicho pega, se ficar o bicho come”, era o impasse criado por uma realidade insustentável,
em que o inimigo era o poder estabelecido à revelia da maioria da população:
Acorda, amor
Eu tive um pesadelo agora
Sonhei que tinha gente lá fora
Batendo no portão, que aflição
Era a dura, numa muito escura viatura
Minha nossa santa criatura
Chame, chame, chame lá
Chame, chame o ladrão, chame o ladrão
Acorda amor
Não é mais pesadelo nada
Tem gente já no vão de escada
Fazendo confusão, que aflição
São os homens
E eu aqui parado de pijama
Eu não gosto de passar vexame
Chame, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão
173
“Acorda, amor” pode ser compreendida como acordar ou aperceber-se da realidade que cerceava os
brasileiros naquela época.
Se eu demorar uns meses
Convém, às vezes, você sofrer
Mas depois de um ano eu não vindo
Ponha a roupa de domingo
E pode me esquecer
Acorda amor
Que o bicho é brabo e não sossega
Se você corre o bicho pega
Se fica não sei não
Atenção
Não demora
Dia desses chega a sua hora
Não discuta à toa não reclame
Clame, chame lá, chame, chame
Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão
(Não esqueça a escova, o sabonete e o violão) (Hollanda, 2006: 215-216).
Uma demonstração do sentimento que é permanente entre aqueles que têm a
liberdade negada está em “Medo mulato”, de João Ricardo e Paulinho Mendonça, canção
registrada no segundo LP do Secos & Molhados:
No meio da noite
No meio do medo
Dos olhos insones
Os fantasmas passeiam
No canto do galo
No uivo do cão
Nas vozes do vento
No galope, no relincho
No meio da solidão (...)
A gravação original desta composição recriava uma ambientação pesada e sombria
que é reforçada pela vigorosa interpretação de Ney Matogrosso, acompanhada apenas de
percussão, baixo, flauta transversal e um piano brilhantemente conduzidos por Norival
D’Ângelo, Willie Verdaguer, Sérgio Rosadas e Emílio Carrera os sons potentes das
guitarras e violões saem de cena para compor um cenário mais melancólico e dramático. O
intérprete reproduz, através das modulações de sua voz, esta atmosfera de pouca
luminosidade e muitas sombras, transmitindo uma sensação de pavor no ouvinte.
“Medo mulato” é marcada por uma obscuridade noturna, que em nada lembra a
alegria e a festividade que está presente em “O Vira”. A cena apresenta um sujeito insone e
completamente dominado pelo medo (que o impede de ter um sono tranqüilo como todos
os outros) evidenciado nos fantasmas que povoam seu ambiente: em um determinado
momento eles habitam o cantar do galo, em outros o uivar do cão ou o galopar ou o
relinchar do cavalo, o que vai de encontro da solidão, a paranóia e o desespero daqueles que
viviam em épocas difíceis e tortuosas. Em tempos sombrios, os medos afloram de modo
avassalador, surgindo do inconsciente, alimentando-se de mitos e lendas, espalhando-se
como pragas que atingem o sujeito, ameaçando-o, sem piedade. O tema se desenvolve de
uma forma irônica e um tanto circense:
O escuro esconde
Zumbis, lobisomens
Os bichos do mato
O medo mulato
E a morte passa
Num calafrio que corre dos pés
À cabeça tapada.
O poder (e seus recursos mais aparentes) está perfeitamente expressa em uma das
canções mais populares do primeiro disco do grupo Secos & Molhados, “El Rey”, de
autoria de João Ricardo e Gerson Conrad:
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro caras diferentes
de quatrocentas celas
cheias de gente
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro patas reluzentes
de quatrocentas mortes...
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro poses atraentes
de quatrocentas velas
feitas duendes.
Em “El Rey”, uma referência ao Rei D. Manuel
174
, vemos como o elemento
opressor se transforma no multiplicador da dor ao instaurar um quadro de barbárie e sangue
derramado. O Rei, como se sabe, está centrado entre o céu, o homem e a terra e por ser a
figura detentora do Império, com condições de atuar como Deus no espaço dos mortais na
medida em que detém o trono, pedestal celestial que justifica seus (des)mandos sem
permitir qualquer espécie de questionamentos. O poder se multiplica até atingir proporções
absurdas: ele possui quatro caras que ocupam suas quatrocentas salas repletas de presos,
quatro patas que detêm a luz e controlam a escuridão ao matar quatrocentos indefesos que
preservam o brilho dos membros inferiores daqueles que são mortos através de sangue
inocente; são quatro as poses que atraem quatrocentas velas “feitas duendes”. Este
personagem exibe seus desvarios, completamente indiferente à sua aparência vil e
monstruosa, anulando quaisquer possibilidades de exercer a liberdade.
6.3 - Doces preces
Um dos momentos mais expressivos do segundo ato do show Fa-Tal Gal a todo
vapor, era quando Gal Costa surgia no palco interpretando “Dê um rolê”, de Moraes
Moreira e Galvão (do grupo Novos Baianos). A baiana, no auge da repressão propiciada
pelo governo Médici, retornava ao palco do Teatro Tereza Rachel alertando seu público que
viver pode ser uma experiência ainda possível de valer a pena, apesar da existência de
exílios, torturas e o jogo perverso da ditadura:
Não se assuste, pessoa
Se eu lhe disser que a vida é boa
174
D. Manuel era o monarca que ocupou o trono português na época em que Pedro Álvares Cabral
“descobriu” o território brasileiro no ano de 1500. Foi ele quem recebeu a carta de Pero Vaz de Caminha
relatando as primeiras impressões sobre a “terra descoberta”.
Enquanto eles se batem
Dê um rolê e você vai ouvir
Apenas q uem já dizia:
Eu não tenho nada
Antes de você ser eu sou
Eu sou, eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés
E só tô beijando o rosto
De quem dá valor
Pra quem vale mais um gosto
Do que cem mil réis
Eu sou
Eu sou
Eu sou amor da cabeça aos pés
175
Definir o sentimento amoroso é se responsabilizar por uma tarefa difícil. Nutrir
sensações positivas, ou seja se travestir em “amor da cabeça aos pés” por uma nação que
buscava calar insistentemente os anseios do sujeito e renegar quaisquer traços de igualdade
não era apenas uma espécie de palavra de ordem hippie, mas sim uma forma de resistir ao
regime através de uma postura irreverente, por isso não se tratava de uma atitude fácil por
parte de ninguém em 1973. Acreditar neste sentimento ainda era possível, apesar das
adversidades, além de ser uma garantia plena do vencimento de guerras e barreiras.
“Amor”, uma espécie de irreverente manifesto gravado no primeiro disco do Secos
& Molhados, é uma tentativa de retratar o que algumas pessoas sentiam naquela época:
Leve como leve pluma
muito leve leve pousa
na simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
Sombra silêncio ou espuma
Nuvem azul que arrefece
175
IN: Gal Costa, Fa-Tal Gal a todo vapor (1971).
Aparentemente, o sentimento amoroso seria uma espécie de “leve pluma” que
estaria contida em um sujeito “simples e suave”, porém o quarto verso nos adverte que
“suave” seria, nada menos, que “coisa nenhuma”, ou seja, impossível. O amor seria, então,
uma sombra, uma manifestação de silêncio, teria a fragilidade da espuma e, principalmente,
a forma indefinida da nuvem azul que prestes a se deformar de maneira definitiva para dar
lugar a uma tempestade possivelmente anunciada. Apesar da impossibilidade de se avistar
bonanças a caminho, a vontade de amar prevalece no coração do sujeito
176
, como se vê nos
versos finais da canção de João Ricardo e João Apolinário:
Simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
que em mim amadurece
Se na década anterior ao surgimento do Secos & Molhados, ainda era possível
protestar “diante do espelho” (conforme observou Flora Süssekind), no ano de 1974, o
espelho estava partido em inúmeros fragmentos, o grito estava preso na garganta. Em
tempos em que era proibido dizer o que fosse, era necessário utilizar-se de uma fala
imposta pelo outro (conforme nos alertara Roland Barthes), buscar a origem dos fatos e
refletir sobre as conseqüências do poder desvairado. Tarefa penosa, que poderia custar a
própria cabeça e a sanidade mental. Haja vista estas considerações, encontramos em
“Angústia”, faixa que compõe o segundo LP do grupo, uma necessidade de fuga na medida
em que o sujeito se depara com o gosto amargo da vida:
Agonizo se tento
retomar a origem das coisas
Sinto-me dentro delas e fujo
Salto para o meio da vida
como uma navalha no ar
que se espeta no chão (...)
176
Não seria demais relembrar neste momento uma afirmação atribuída a Mário de Andrade: “A própria dor é
uma felicidade, quando é lição que se aprende”.
A agonia, como se vê, é conjugada no presente e é enunciada como uma espécie de
vontade de fugir para o reino da vida e assumir o risco e suas possíveis conseqüências.
Resistir e lutar como o gesto suicida do objeto cortante que pode ir de encontro peremptório
com o solo é um exemplo de imagem que agride e desafia o status quo, além de revelar a
postura do artista em lutar com versos e sons naquele contexto. Não permanecer
imobilizado perante o que os olhos viam era a única opção sensata a ser tomada:
Não posso ficar colado
à natureza como uma estampa
E representá-la no desenho que dela faço
não posso
Em mim nada está como é
Tudo é um tremendo esforço de ser.
O sujeito opta, aqui, em adotar uma atitude de pleno inconformismo ao não
compactuar com o mundo ao seu redor, o que nos remete à figura do artista, que não possui
a preocupação de adquirir meros sorrisos por parte da sociedade pelo contrário, ele expõe
nossas mazelas através de suas criações, deixando de se integrar ao mundo para ir em busca
de sua libertação permanente. O verso “E representá-la no desenho que dela faço / não
posso” é justamente uma alusão ao fato deste criador se utilizar da estratégia das alegorias,
parábolas, ego-trips poéticas ou do realismo fantástico como única maneira de fuga do
aparato repressivo montado pelo governo militar (cf. Süssekind, 2004: 17). Utilizar-se de
determinadas cores para retratar a natureza das coisas, nua e cruamente, era sinônimo de
risco total, de morrer ou ser imediatamente aniquilado.
Mas não pensemos que o direito de expressão via alegorias e parábolas poderia
salvar o sujeito das enormes dificuldades que delimitavam o cotidiano brasileiro naquele
momento. Em muitas ocasiões, o artista abria suas asas e escapava da realidade que
sufocava e esterilizava. A lição aprendida através da dor está bem patente em “Delírio...”,
canção de autoria de Gerson Conrad e Paulinho Mendonça e que integra o segundo álbum
do Secos & Molhados:
Não vou buscar a esperança
Na linha do horizonte
Nem saciar
A sede do futuro
Da fonte do passado
Nada espero
E tudo quero
Sou canta
Sou dança
Quem na orquestra desafina (...).
O eu-lírico em “Delírio...” está completamente desprovido de máscaras que a
metáfora pode lhe conceder para se esconder do sistema. A mensagem da letra é direta, pois
as esperanças naquele momento eram parcas, a bonança futura é incerta e o futuro jamais
poderia ser melhor do que o já distante passado de glórias. A opção que resta era desafinar
o canto junto à orquestra que rege nossas vidas, deixar de dançar conforme a sua música e
como disse Torquato Neto “desafinar o coro dos contentes” (Torquato Neto apud Andrade,
2002: 127). Tal sentimento acaba sendo a tarifa de embarque para a primavera do desejo
através do próprio delírio, como demonstram os versos restantes da canção:
Quem delira
sem ter febre
Sou o par
e o parceiro
Das verdades
À desconfiança.
Será que este é o destino do artista enquanto detentor de um desejo e de um sonho
em uma sociedade tomada pelo autoritarismo e a repressão? Ser ao mesmo tempo par e
parceiro de uma atmosfera sombria de verdades manipuladas e das desconfianças que
povoam as mentes do meio social e, conseqüentemente, o tempo presente? São indagações
como estas que a canção do Secos e Molhados propõe não apenas em canções como
“Delírio...”, mas também nas outras de seu repertório.
“Fala”, de João Ricardo e Luhli, é a última faixa do primeiro álbum do Secos &
Molhados e mais um exemplo de protesto em que o ouvinte é exposto a uma atmosfera
melancólica Ney Matogrosso interpreta a canção lançando mão de uma carga altamente
dramática, além de ter sido acompanhado por uma orquestra, o que também garante a
dramaticidade da canção. Vejamos os versos desta composição:
Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você quiser
Tudo que quiser
Então eu escuto
Fala
Fala (...)
O eu-lírico não consegue exercer o seu direito de expressão, por isso ele decide
apenas escutar o que estes lhe têm a dizer. Adotando o silêncio como estratégia, ele aguarda
alguma mensagem de esperança ou redenção ao suplicar ao seu interlocutor que lhe fale
algo. Esta impossibilidade de se dizer o que se pensava é uma clara referência à ditadura
militar, responsável pela censura imposta aos opositores do regime. Um depoimento de Ney
Matogrosso retirado de seu site oficial sobre a rigidez do regime da época evidencia a
dificuldade de expressão no Brasil da ditadura:
Existia um perigo no seio do Brasil: a expressão. As pessoas não se expressavam.
Estou falando de uma época, em que três pessoas não podiam se encontrar numa
esquina, porque a polícia desfazia o grupo. Estamos falando de uma época negra no
Brasil, onde as pessoas eram torturadas, assassinadas, suas casas invadidas e não
existia o menor direito individual. Vivia-se sob um constante terror pairando sob
nossas cabeças (...). Existia um anseio por parte do povo brasileiro, de expressão. O
Secos & Molhados foi uma grande válvula de escape (Matogrosso, 2007).
O direito de falar, sequestrado pelo Estado, era requisitado pelo sujeito em tempos
nos quais falar era um ato controlado e determinado por uma instância de poder. Era
preciso falar através dos silêncios forçados, do double talk como ferramenta de
comunicação com o semelhante e da escolha das palavras certas e suficientes como
estratégia de fuga do jugo da asfixia generalizada provocada pelo autoritarismo e a censura.
Os versos restantes de “Fala” também nos dão mostras da “falta de ar” que assolava o
Brasil:
Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto
Fala
Fala.
Neste ponto, vislumbramos um estado de aporia do sujeito perante seu contexto.
Sentimento este que também se faz presente em “Toada & Rock & Mambo & Tango &
Etc”, outra canção de João Ricardo e Luhli, que fecha o segundo álbum dos Secos &
Molhados. Os versos, que se aproximam formalmente do poema-piada forma poética que
teve seu ápice no modernismo da década de 20 , podem lembrar uma espécie de mantra,
pois Gerson, João e Ney repetiam os versos durante os quase dois minutos e meio de
duração da canção e servem como uma espécie de resposta à “Fala”:
Diga que eu não sei nada
Nem posso saber.
O eu-poemático, neste caso, pode estar respondendo aos apelos e súplicas que estão
presentes em “Fala”, se considerarmos aqui as noções básicas de intertextualidade. Em
“Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc.”, uma canção cujo nome não nos transmite uma
noção exata do que ela realmente pretende expressar (pois ela pode nos dizer tudo e nada
ao mesmo tempo), é possível observar que os vários ritmos, ao serem justapostos numa
única canção como ingredientes de uma receita em um liquidificador, compõe uma série de
ruídos que podem ter como objetivo confundir um censor, um ouvinte desavisado ou um
crítico mais inocente. Neste caso, muito barulho, ao contrário do que pode parecer,
significa muita coisa! Ele está ligado à vontade de se libertar, de protestar, de contestar o
sistema, de dar asas à subjetividade sem se preocupar com a lógica e os limites impostos
pela sociedade. Os dois minutos e oito segundos da gravação transcorrem com múltiplos
sussurros e um canto debochado no final que, segundo Gerson Conrad, “foi proposital, em
resposta à amargura da ditadura”. O próprio Gerson ainda acrescentou que “a apresentação
dessa música ao vivo, aí sim, era num espírito de confronto. Tudo o que havia sido
proibido, a gente fez no palco no show do segundo disco” (Conrad, 2004: 8).
Buscar uma espécie de significado para os versos a serem entoados em meio às
trevas era o principal questionamento de muitos artistas naquele período. O silêncio deveria
ser preenchido por palavras que adquirissem um significado além do convencional e atestar
a sobrevivência do sujeito perante os males causados pelo regime. O poema abaixo, da
autoria de Silviano Santiago, reflete a necessidade do grito, além de não deixar de refletir
os conflitos propostos por “Fala” e “Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc.” através da
polissemia presente no vocábulo sentido:
FAÇA (COMO FAZER)
S
S
E
E
N
N
T
T
I
I
D
D
O
O
Çentido no duplo
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o
Ainda no outro
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o, e acrescento:
são os tempos. Bicudos.
Ficar na posição de
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o obrigam
e esperam que fiquemos
Pátria amada salva salve!
mais
Soltem-me deixem-me gritar!
Çentido (os cinco) é a busca,
convenhamos,
para a falta de
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o.
Sentido é a posição,
descubramos,
para dar
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o ao dito concedido,
sem ter sido prestado o necessário
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o.
(Só faz
s
s
e
e
n
n
t
t
i
i
d
d
o
o,
quando se preenche com outro sseennttiiddoo.) (Santiago, 1982: 11)
Em uma conferência proferida em 2001, o saudoso poeta Waly Salomão afirmou
que fazer poesia é uma doença incurável, uma ilusão, um lunatismo semelhante ao de Dom
Quixote (Salomão, 2005: 84). Seu argumento para tal reside num fato cada vez mais claro
nos dias de hoje: o lugar da poesia é out! Ou seja, fora do status quo, distante do lugar
comum. Escrever versos era lançar mão de um discurso suficientemente indireto de forma
que o receptor pudesse ser atingido pela mensagem do artista. Isto se faz bastante evidente
em “Não: não digas nada”, poema de Fernando Pessoa musicado por João Ricardo:
Não: não digas nada
supor o que dirá
a tua boca velada
é ouvi-lo já
é ouvi-lo melhor
do que o dirias
o que és não vem à flor
das frases e dos dias (...)
Os versos pessoanos evidenciam um fenômeno que já tínhamos analisado em outras
canções do Secos & Molhados como “Fala” e “Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc”:
o silêncio fala mais do que mil palavras vãs em tempos de mordaça e tortura vale ressaltar
que o momento em que as vozes se calam simboliza um “prelúdio de abertura à revelação”
(Chevalier & Gheerbrant, 1999: 834). Através da invisibilidade do discurso, o sujeito
encontra uma maneira de marcar a sua presença no mundo, optando em ser e não por dizer:
És melhor do que tu
não digas nada, sê
graça do corpo nu
que invisível se vê.
Ao contrário do “simbolismo de cunho metafísico” (Sant’Anna, 2004: 87) da
poética de Fernando pessoa, os versos do poeta argentino Julio Cortázar são de puro
protesto e extremamente diretos. “Tercer mundo”, canção de abertura do segundo álbum do
Secos & Molhados, nos denuncia um estado comum ao mundo em geral: o terceiro mundo
não é o da pobreza econômica, e sim o da pobreza de espírito e de valores de um contexto
perverso, injusto e que tem a função de anular os mais fracos e os que se voltam contra si
próprio:
Ahí no lejos
Las anguilas laten
Su imenso pulso
Su planetário giro
Todo espera el ingreso
Em uma danza
Que ninguna Izadora danzó (...)
Cortázar nos mostra um mundo cujos habitantes aguardam algo que nunca
aconteceu a dança que ninguém ainda teve oportunidade de ser vivenciada, a primavera
que foi sufocada, não gritada, presa nos dentes; O sujeito não possuía condições de tomar
suas próprias decisões, pois ele sempre dependia de um poder superior. Os versos restantes
de “Tercer mundo” nos comprovam o estado geral da aporia dos valores do mundo
contemporâneo:
Nunca de este lado del mundo
Tercer mundo global
Del hombre sin orillas
Chapoteador de historia
Vispera de si mismo.
Através de uma atmosfera musical delineada por violões, castanholas e a voz não
menos exuberante de Ney Matogrosso, é possível prestar mais atenção no mundo do
homem sem orelhas de Cortazar; universo que também tem seus valores contestados pela
lira dionisíaca do poeta modernista Oswald de Andrade em “O hierofante”:
Não há possibilidade de viver
com essa gente
nem com nenhuma gente
a desconfiança cercará como um escudo
pinte o escaravelho de vermelho
e tinja os rumos da madrugada (...)
Ao se apropriar dos versos de Oswald, o Secos & Molhados apresenta uma voz a
renegar a sociedade como um todo: as pessoas sempre vão buscar proteção nas barras das
saias da desconfiança para se protegerem da fome de destruição do poder. Por outro lado, a
existência de brasileiros alienados pelo canto de sereia do “milagre econômico” alheios ao
sofrimento de exilados e torturados nos porões da ditadura. As madrugadas dos anos 70,
como já escrito anteriormente, eram pintadas com a cor vermelha do sangue de muitos
“bezerros plangentes” capturados pelos generais. Os versos restantes da canção nos
evidenciam a atitude dos insensíveis perante o sofrimento humano:
Virão de longe multidões suspirosas
escutar o bezerro plangente.
O bezerro a chorar de tristeza, (ou seja, as pessoas a exibirem seu vasto pranto em
meio ao drama da nação brasileira), é a representação de um niilismo extremo perante os
acontecimentos. Por outro lado, já dizia Bertolt Brecht que não podíamos deixar de cantar
em tempos de trevas, com isso, o branco da esperança jamais poderia ser perdido por mais
negras que fossem as cores da grande noite que levou pouco mais de 21 anos para chegar
ao fim. Gravada por Elis Regina, “Mundo deserto”, foi composta em 1971 por Roberto e
Erasmo Carlos, aponta a mesma “gente” retratada em “O hierofante” e não deixa de lançar
um raio de positividade em meio ao escuro:
No mundo deserto de almas negras
Me visto de branco
Me curo da vida sofrida, sentida
Que deram pra mim
No mundo deserto de almas negras
Sorriso não nego
Mas vejo um sol cego
Querendo queimar o que resta de mim
Vivo no mundo deserto de almas negras
Vivo no mundo deserto de almas negras
Vivo no mundo deserto de almas negras
Na vontade de verdade
Eu quero ficar
E não acredito no dito maldito
Que o amor já morreu
Tenho fé que o meu país
Ainda vai dar amor pro mundo
Um amor tão profundo, tão grande
Que vai reviver quem morrer
177
A vontade de libertação é fruto de momentos de profunda repressão e resistência por
parte do repressor e do reprimido respectivamente. Isso está altamente patente em “O doce
e o amargo”, canção de João Ricardo e Paulinho Mendonça que integra o segundo álbum
do Secos & Molhados:
O sol que veste o dia
O dia de vermelho
O homem de preguiça
O verde poeira
Seca os rios
Os sonhos
Seca o corpo
A sede na indolência (...).
O sol representa, com toda a sua luminosidade, um dia tornado, num primeiro
momento, pela tonalidade da cor vermelha o que pode simbolizar, dentre várias coisas, o
sangue que é derramado diariamente. É possível vislumbrarmos também a imobilidade dos
homens e à estaticidade das coisas e das pessoas num momento em que os rios e os sonhos,
que têm o poder de nos transportar para outros horizontes e rotas, morrem a olhos vistos. A
177
IN: Elis Regina, Ela (1971).
morte destes provoca, conseqüentemente, a aniquilação do desejo, o que deveria ser
impedido a qualquer custo naqueles idos de 1973/1974.
Diariamente, como nos é apontado na canção, nossos corpos secam e nossa sede é
cada vez mais ampliada pela dor de existir em um sistema que tem como função represar as
subjetividades. Apesar de tudo, a consciência da reação urgia. Isto pode ser notado nos
versos restantes de “O doce e o amargo”:
Beber o suco de muitas frutas
O doce e o amargo
Indistintamente
Beber o possível
Sugar o seio da impossibilidade
Até que brote o sangue
Até que surja a alma
Dessa terra morta
Desse povo triste.
O eu-lírico adota uma postura de desafio: provar tudo que existe de bom e de ruim
na vida, exatamente como Chico Buarque e Gilberto Gil tentaram dizer naquela época em
sua canção “Cálice”. Conforme todas as vozes que se encontravam em estado de
dissonância no Brasil, a palavra de ordem era conquistar o impossível e acreditar na utopia
de dizer com independência “mesmo com toda fama, com toda Brahma, com toda cama,
com toda lama”
178
que existisse por aí; isto é, materializar uma realidade melhor e mais
justa para essa “terra morta” e para esse “povo triste”.
A capacidade de protestar, muitas vezes, resulta na solidão. Tal sensação fora
descrita através dos versos de Carlos Drummond de Andrade em “José” e no seu “Poema
de sete faces”, onde seres errantes e dissonantes aparecem como protagonistas de um drama
não menos comum ao artista da canção nas décadas de 60 e 70, que acreditava em dias
melhores. Num primeiro instante, esta caminhada para tempos mais gloriosos se dá
solitariamente. Porém, ao lembrarmos do eu-poético de Drummond como o não único a
“ser gauche na vida”, constatamos que ao sermos dissonantes com a convenção, estamos
178
Apropriamo-nos dos versos são de “Vai levando”, de Chico Buarque e Caetano Veloso, cuja versão
original foi gravada no álbum Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo (1975).
afirmando nossa capacidade de estar no mundo. Em “Sangue latino”, de João Ricardo e
Paulinho Mendonça, também vislumbramos um ser pulsante de essência demoníaca e
consciente de si:
Jurei mentiras
e sigo sozinho
Assumo os pecados
Os ventos do norte
não movem moinhos
E o que me resta
é só um gemido
Minhas vidas, meus mortos
Meus caminhos tortos
Meu sangue latino
Minh’alma cativa (...).
Em “Sangue latino”, busca-se transgredir a ordem, contrariando os valores sociais
através do grito, gesto que simboliza não apenas uma atitude de protesto, mas também de
dor e limitação. O sujeito, neste caso, reconhece que sua resistência é insuficiente, pois ele
é o único a se rebelar contra um mundo gigantesco, adverso a ele:
Os ventos do norte
não movem moinhos
E o que me resta
é só um gemido.
Tal qual um Quixote derrotado, o indivíduo, ao se descobrir encurralado, recua para
depois avançar de outra maneira. Já nos versos
Quebrei a lança
lancei no espaço
um grito, um desabafo,
é possível perceber a sonoridade entre o substantivo “lança” e o verbo “lançar” na
primeira pessoa do singular marca esta resistência de todo brasileiro. Num país onde quem
não resiste bravamente acaba sendo aniquilado sumariamente pelo outro, é necessário optar
pela esperança como recurso de sobrevivência restante tal qual podemos ler nos versos
E o que me importa
é não estar vencido.
Outro aspecto fundamental que marca esta parceria de João Ricardo e Paulinho
Mendonça é a força da latinidade expressa pelos versos da canção. Não foi à toa que
“Sangue latino” foi um dos maiores sucessos do Secos & Molhados na América Latina. Em
apresentações ao vivo (a do Maracanãzinho, por exemplo), ao invés dos músicos
executarem a versão original, tocavam uma releitura desta canção em espanhol, cujo título
era “Sangre latina”, cuja letra em espanhol está transcrita abaixo:
Juré mentiras y sigo tan solo
Asumo los pecados
Los vientos del norte no mueven molinos
Lo que me resta es sólo un gemido
Mi vida, mis muertos, mis caminos locos
Mi sangre latina
Mi alma cautiva
Rompi tratados, traicioné los ritos,
Quebré la lanza, lanzé al espacio
Un grito, un desahogo
Lo que me importa es no estar vencido
Mi vida, mis muertos, mis caminos locos
Mi sangre latina
Mi alma cautiva.
A experiência lírica em “Sangue latino”, da mesma maneira que “Tercer mundo”,
reflete a essência do povo brasileiro resistindo bravamente em um contexto adverso para
garantir seus ideais de afirmação existencial. A voz de Ney Matogrosso e os violões que
pontuam a gravação original também são traços marcantes de uma identidade cultural
latino-americana, por isso, torna-se mais claro um comentário do cantor proferido em 1977.
Naquele caso, Ney questionava o fato dos brasileiros não se enxergarem como membros da
América Latina (cf. Vaz, 1992: 201-202) e sim como integrantes de um território a parte,
afinal o fato de o artista ter nascido no Centro-Oeste brasileiro (isto é, próximo de países
como Paraguai e Argentina) foi uma experiência marcante por ter tido contato com
manifestações culturais em tupi - guarani.
A memória afetiva jamais renegou estas influências e desde o início de sua carreira,
como estrela principal do Secos & Molhados, já existia uma forte consciência crítica por
parte de Ney em relação a esta problemática:
A minha preocupação constante é que meu trabalho seja dirigido para toda a
América do Sul, porque tenho consciência do poder da nossa latinidade (...). Meu
bisavô e meu avô eram argentinos, minha bisavó era índia, eu nasci no mato e, em
Bela Vista, existia uma mistura dos diabos com o português, o castelhano e o
guarani. Então, eu não preciso ficar justificando a América Latina para incluí-la no
meu trabalho. É claro que eu sou eu cantando em castelhano e até em guarani.
Também não preciso provar nada nem assumir nada. Tenho simplesmente que
cantar (apud Vaz, 1992: 202).
Uma das canções mais marcantes do repertório do Secos & Molhados é “Vôo”,
especialmente composta para Corpo a corpo, de Oduvaldo Vianna Filho e montagem de
Antunes Filho. A letra da canção apresenta a figura de uma “ave” que simboliza a alma
liberta dos limites impostos pelo cotidiano , e pode ser compreendida como uma alegoria
dos desejos de alçar vôo, além dos limites dos horizontes sociais e políticos:
O bico da ave
da ave que voa
é a proa da nave
da nave que voa
as vigias da nave
da nave que voa
são os olhos da ave
na ave que voa
o coração da ave
da ave que voa
é o motor da nave
da nave que voa
as asas da nave
da nave que voa
são as asas da ave
da ave que voa (...)
A “ave” retratada por “Vôo” é um misto de bicho, homem e máquina, na mistura de
elementos como “proa”, “olhos”, “coração”, “motor”, “nave” e “alma”, o que demonstra a
força incessante de se manter atento, vigilante e prestes a se libertar do jugo do poder.
Todavia, a alma da ave é nada menos do que a alma humana, também sedenta por
novidades e novos caminhos a trilhar:
A alma da ave
da ave que voa
é a alma do homem
do homem que voa”.
Os pássaros, que simbolizam a libertação, gritavam desesperadamente pelo fim da
dor e, neste momento, clamam por um gesto de paz, que também se percebe no outro
poema de Cassiano Ricardo musicado por João Ricardo, “Prece cósmica”, que integra o
primeiro LP do Secos & Molhados:
Que os 4
como num teatro
conservem a mão
sem nenhum
gesto -
Que vinho quente
do coração
lhes suba à cabeça
espessa (...)
A prece cantada pelo Secos & Molhados também pede uma postura pacífica, em
que “o vinho quente do coração” (o sangue, porém sem nenhuma alusão ao sacrifício do
bode que caracteriza o ritual dionisíaco) que corre nas veias faça refletir a respeito dos
horrores que assolavam a sociedade como dentro de um teatro, espaço ilusório que trata
de fatos passíveis de se tornarem realidade. O pedido ganha força nos versos restantes da
canção, a partir do momento em que surge a possibilidade de que nasça um novo dia
repleto de pombas brancas símbolo da paz e da pureza em que o céu se encontrava
completamente tomado por nuvens, raios e trovões:
- Que do bolso de
cada um dos 4
voem
pombas
(pombas brancas)
... e amanheça.
A esperança contida no bolso de cada um dos indivíduos presentes na canção
(possivelmente Gerson Conrad, João Ricardo, Ney Matogrosso e o baterista Marcelo Frias)
delineia uma espécie de projeto utópico no Brasil da ditadura, agente multiplicador de
sentimentos positivos em um mar de desilusão política e crises existenciais e culturais. Ao
integrar o discurso poético à linguagem musical dentro do contexto da cultura de massas, o
grupo Secos & Molhados teve, em uma curta quantidade de tempo, a oportunidade de se
comunicar com um número infinito de pessoas, amplificando, multiplicando a voz dos
revoltados, tornando-se, assim, um grande “tradutor das questões políticas, o catalisador
dos desejos de mudança, o sintetizador dos desejos de alegria e felicidade da raça” (Bueno,
1984: 64).
Por estas razões, não devemos nos esquecer de que, como diz a canção de Milton
Nascimento e Fernando Brant “Notícias do Brasil (Os pássaros)”: “O canto mais belo será
sempre mais sincero (...) / e tudo quanto é belo será sempre de espantar / aqui vive um povo
que cultiva a qualidade / ser mais sábio que quem quiser governar”
179
. Da década de 70
para cá, pouquíssimos cantos tiveram beleza comparável à beleza do canto veiculado pelo
179
IN: Ney Matogrosso e Aquarela Carioca, As aparências enganam (1993).
Secos & Molhados, que além de sincero e espantoso, foi muito além de algo “que não tem
governo nem nunca terá” relembrando outro verso famoso de Chico Buarque rompendo
tratados e subvertendo os repressivos ritos morais e políticos.
E
E
P
P
Í
Í
L
L
O
O
G
G
O
O
Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo
Até aí tudo bem, nada mal
Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo
O Brasil tem ouvido musical
Que não é normal
Caetano Veloso
180
No encerramento da Expoesia I
181
, João Cabral de Melo Neto afirmou que “a
música popular pode ajudar enormemente a poesia (...) no sentido de aumentar a [sua]
propagação” (Sant’Anna, 2004: 191-192). Ao nos depararmos com as idéias de um dos
poetas mais importantes da Literatura Brasileira, concluímos que a canção popular
moderna tem a oportunidade de veicular duas modalidades poéticas a escrita e a cantada.
Nosso estudo buscou compreender como as duas se manifestaram ao longo do tempo e,
especialmente, durante os anos da ditadura militar no Brasil.
A escolha pela obra do Secos & Molhados foi fundamental para que construíssemos
uma ampla reflexão sobre os universos estético e cultural relacionados à palavra cantada.
Verificar o diálogo entre a poesia literária e a música popular originou diversos debates
sobre a possibilidade de se considerar a letra de uma canção a partir de um enfoque poético.
Tais relações tiveram de ser re/vistas cuidadosamente, pois ao longo dos últimos séculos
delimitou-se uma oposição entre a literatura escrita (erudita) e as manifestações de origem
popular (massificada), às quais não se costumava atribuir um caráter literário.
No exame das discussões sobre a poesia presente no canto e/ou no papel, buscamos
entender o termo “popular” a partir do sentido que a cultura de massa o forneceu, já que o
objetivo principal deste trabalho é o de verificar a aproximação entre poesia e a música
difundida através do rádio, da TV e da indústria fonográfica, para não citar outros meios.
180
IN: Caetano Veloso, Muito (Dentro da Estrela Azulada) (1978).
181
Evento organizado por Affonso Romano de Sant’Anna na PUC-RJ, em outubro de 1973, que reuniu
debates, seminários e exposições sobre poesia contemporânea e a poesia da canção popular. Dentre os
participantes, além do próprio Affonso, estiveram lá Gilberto Gil, Chico Buarque de Hollanda, Ronaldo
Bastos e o próprio João Cabral.
Conforme apontou Silviano Santiago em seu ensaio “A democratização no Brasil (1979-
1981): Cultura versus Arte”, na contemporaneidade, rompem-se as barreiras entre erudito,
popular e Pop. Tal fenômeno, jamais desprezado nesta pesquisa, objetivou privilegiar a
terceira destas categorias por simplesmente ser a que mais agrupa referências seja do
mundo erudito, seja do universo popular.
Dentre os questionamentos que a música popular brasileira suscita entre analistas
das mais diversas áreas, o mais recorrente é o porquê da existência de diversos estudos
literários sobre o assunto. É José Miguel Wisnik, em seu importante ensaio “O minuto e o
milênio ou Por favor, professor, uma década de cada vez”, quem aponta algumas
explicações para este fenômeno:
a) embora mantenha um cordão com a cultura popular não-letrada, desprende-se
dela para entrar no mercado e na cidade;
b) embora deixe -se penetrar pela poesia culta, não segue a lógica evolutiva da
cultura literária, nem filia-se a seus padrões de filtragem;
c) embora se produza dentro do contexto da indústria cultural, não se reduz às
regras da estandartização. Em suma, não funciona dentro dos limites estritos de
nenhum dos sistemas culturais existentes no Brasil, embora deixe -se permear por
eles (Wisnik, 2004: 178).
Como se vê a partir das reflexões de Wisnik, efetuar análises sobre o fenômeno
poético na canção popular brasileira não é tarefa das mais fáceis justamente porque o
corpus escolhido não se enquadra nos campos da cultura popular, da cultura literária ou até
da indústria cultural. Por isso, a importância de analisar a produção poético-musical seus
contextos, seus estatutos, suas lógicas evolutivas surgida no país desde o final da década
de 50 foi estritamente necessária para um exame coerente a respeito da conturbada relação
do Secos & Molhados com o momento histórico no qual o grupo surgiu. A Bossa Nova e
uma instauração de uma nova ordem poético-musical, a canção de protesto surgida nos
anos 60, a breve ascensão da TV e da indústria fonográfica, a inocência e as inovações
estéticas propostas pelo Iê--Iê, a Era dos Festivais e o surgimento de uma geração de
compositores e de polêmicas em torno do nacionalismo, a revolução estético-ideológica
provocada pelo Tropicalismo e o endurecimento do regime militar a partir de 1968 foram
momentos fundamentais para o florescimento do conjunto que revelou os talentos de
Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso.
O Secos & Molhados, conforme vimos no decorrer deste trabalho, foi (e ainda é)
um dos maiores fenômenos de popularidade no Brasil não apenas por causa da atitude
transgressora de seus integrantes especialmente a inconfundível presença de Ney
Matogrosso , mas principalmente por agrupar diversas referências do ambiente musical
brasileiro (o deboche tropicalista, a incisiva contestação de valores contidos na canção de
protesto) e se utilizar de uma linguagem poética hábil a burlar a forte censura do período e
competente em apresentar um ponto vista não condizente com o status quo reinante naquele
momento no Brasil. Os dois primeiros álbuns do grupo representaram uma resistência à
repressão político-cultural do regime militar em um momento no qual a sociedade brasileira
enfrentava um significativo vazio cultural.
Ao inserir a poesia de forma original na cultura de massas, o Secos & Molhados
potencializou o alcance da palavra poética na sociedade brasileira. Devido às condições
precárias da educação no Brasil, o grande público apenas teria acesso a estes textos caso se
aproximasse do universo livresco, possibilidade mais do que remota hoje em dia. Apesar de
veicular produtos musicais de valor estético duvidoso aos ouvintes brasileiros, a indústria
fonográfica, por outro lado, também tem o poder de divulgar produções poéticas do peso de
um Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa ou Manuel Bandeira. Estudos como os de And
Bueno e Affonso Romano de Sant’Anna, citados no decorrer deste estudo, pontuaram o
surgimento de um retorno à tradição em que escrita e canto caminhavam juntos, todavia a
partir de uma nova proposta a de integrar os discursos poético e musical via cultura de
massas, atingindo um número incalculável de ouvintes ao mesmo tempo. A partir da
reinvenção desta relação do público com a palavra poética na cena atual, conclui-se que o
reencontro de muitos brasileiros com a palavra poética em tempos de ditadura não permitiu
que a consciência crítica perene a cada brasileiro se dissipasse no ar.
Debaixo do jugo da censura e da repressão moral e política, a produção musical do
período não foi integralmente silenciada pelos militares, mas funcionou como um dos
principais recursos de resistência por parte de artistas e ouvintes de música popular. Em
meio aos inúmeros pesares, havia a crença de muitos que, na medida em que se escrevia
uma das páginas mais nefastas da História do Brasil, “a esperança equilibrista / sabe que o
show de todo artista / tem que continuar”, conforme a famosa canção de João Bosco e Aldir
Blanc imortalizada pela voz de Elis Regina
182
.
As expectativas de muitos estiveram em meio ao perigo da censura, do exílio, da
prisão e da morte, mas não deixaram de produzir e acreditar na validade de sua arte. O
estudo que aqui se apresenta é uma tentativa de demonstrar que, num contexto marcado por
diversas formas de autoritarismo, a manifestação da arte é uma forma de resistência, um
gesto de renovação e crença no futuro. No decorrer das eras, a arte não se subjugou a
silêncios, ainda mais em um país que na década de 60, por exemplo, foi caracterizado como
uma enorme “Geléia geral” de referências estéticas, por isso, culturais.
182
IN: Elis Regina, Essa Mulher (1979).
ANEXOS
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Se, naquele tempo, uma nave-mãe tivesse pousado, por exemplo, na Praça dos Três
Poderes, em Brasília e despejasse através de suas portas alguns alienígenas, ela não teria
causado um impacto, uma perplexidade e um maravilhamento que pudessem rivalizar com
os provocados pelas primeiras apresentações ao vivo de um novo grupo de música popular
brasileira chamado Secos & Molhados. Foi um espanto! O impacto inicial era visual: nunca
se tinham visto aquelas roupas, aquelas maquiagens, aquelas cores e desenhos; e mais: a
movimentação no palco, em especial a coreografia exótica e sensual de Ney Matogrosso era
simplesmente desconcertante. O impacto seguinte era sonoro, o espanto também era
auditivo. O som dos Secos & Molhados surpreendia não apenas pelo timbre e registros
insólitos da voz de Ney mas também impressionava pela sua musicalidade exuberante, nas
composições agudas e envolventes, nos arranjos modernos mas sutis e na qualidade
contagiante das interpretações. A fase áurea dos Secos & Molhados é um momento singular
da história da música popular brasileira. E eles só tiveram fase áurea! Surgiram e acabaram
logo, para dar lugar a carreiras solo de seus componentes, como se tivessem sido o brilho
súbito de um quasar, uma suave explosão, um sonho irrepetível.
Luiz Carlos Maciel
* Texto publicado no encarte do CD Secos & Molhados, Série Dois Momentos
(Continental), em 1999.
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Era início de uma nova década, “70”, João Ricardo e eu éramos garotos e, como
tantos outros, amávamos Beatles, Rolling Stones. Já tínhamos algumas composições e
estávamos decididos a formar um grupo.
João havia ido para Ubatuba passear uns dias e quando voltou estava
entusiasmado com a descoberta do nome que daria ao grupo, inspirado num armazém
velho, existente numa praia.
- “Ge, Secos & Molhados é o nome. O que achas?”
Confesso ter achado estranho, mas era um nome, e assim, o grupo foi batizado.
Existia perto de nossas casas, uma boite chamada Kurtisso Negro Bairro do
Bexiga SP e lá começamos a nossa curtíssima experiência como músicos da noite.
Nessa boitezinha conhecemos Luli (autora do “Vira”). Ela ouviu nosso trabalho
e nos contou que tinha um amigo que cantava bem e nos convidou para ir ao Rio
conhece-lo.
Chegamos ao Rio em julho de 1971, numa manhã ensolarada, e depois de várias
tentativas de Luli ao som da capainha, resolvemos tocar embaixo de sua janela, nossos
violões, e assim, às 7:00 horas daquela manhã fizemos o nosso primeiro som carioca no
Morro de Santa Teresa.
Já era noite quando conhecemos Ney ao vivo. Colocamos a ele nossas intenções,
e ele me pareceu um pouco frio, apesar de não ter sido contrário.
Lá conhecemos também Sérgio Rosadas (flautista dos Secos & Molhados) e
Paulinho Mendonça (autor de “Sangue latino”) que mais tarde teriam uma participação
importante para o grupo.
Depois de alguns dias voltávamos para São Paulo sem saber ao certo de Ney
toparia ou não o trabalho.
Em novembro daquele mesmo ano ele chegava a São Paulo para ficar.
Imediatamente começamos a nos organizar, iniciando assim nossos ensaios e
pesquisas.
Como o trabalho não veio fácil tivemos que nos virar.
João era jornalista, Ney tentava viver de artesanato e eu começava a beliscar
estágios como estudante.
Nessa época soubemos que o musical infantil que Ney havia trabalhado no Rio
seria montado em São Paulo e, assim, ele conseguiu sobreviver durante algum tempo
como ator. Nessa peça eu tive a oportunidade de cuidar da direção musical (a peça: Dom
Chicote Mula Manca e seu fiel companheiro Zé Chupança, de Oscar Von Pfuhl).
Ney fazia um personagem, um espantalho, e usava uma maquiagem como uma
máscara que chamava muito a atenção das crianças, as caras pintadas. Um ano havia se
passado e os Secos & Molhados já estavam semi-organizados.
Foi quando fizemos a nossa primeira apresentação ao público: Casa de
Badalação & Tédio, uma espécie de café teatro que existiu na sala do meio do Teatro
Ruth Escobar.
Foi quando o empresário Moracy do Val nos descobriu.
Nessa época estava tendo uma peça em uma das salas e eram músicos desse
espetáculo o baixista Willie Verdaguer, o baterista Marcelo Frias e o guitarrista John
Flavin, que um dia, vieram assistir a uma de nossas apresentações e acabaram por fazer
parte do grupo. Foi através deles que mais tarde o tecladista Emílio Carrera se juntaria
ao Secos & Molhados.
Assim, com o flautista Sérgio Rosadas se completou o time, e Moracy do Val
começava suas produções.
Foi Moracy quem nos trouxe à Continental.
Começava o ano de 1973 e iniciamos os ensaios de preparação para o disco que
seria gravado em maio-junho. Nesse período fizemos alguns programas de TV como
Mixturasom, Papo Pop, Band 13, onde já conseguimos algum IBOPE.
Mas foi o Fantástico que realmente lançou a imagem do grupo para todo o
Brasil, recriando em seus estúdios a capa do disco, criado pelo fotógrafo Antônio Carlos
Rodrigues.
O show de lançamento do disco foi no Teatro Aquarius. O sucesso foi tanto que
uma semana depois voltamos para o mesmo teatro por mais três dias.
Não havia decorrido 60 dias e estávamos com mais de 100 mil cópias vendidas.
Moracy nos leva para o Teatro Itália, onde, posso afirmar, o grupo se consagrou.
Daí saímos trabalhando, fazendo interior de São Paulo, Minas e em dezembro
desse mesmo ano, encerrávamos a temporada paulista no Teatro 13 de maio.
Janeiro de 1974, Teatro Tereza Rachel no Rio de Janeiro.
Aí iniciamos nossos shows cariocas (por um mês), com tanto sucesso e casa
super lotada que levou Moracy à ousadia de encerrar nossa temporada no
Maracanãzinho.
Fevereiro de 1974, Maracanãzinho.
Quando chegamos ao Ginásio naquela tarde, tínhamos uma vaga noção de que
um número grande de pessoas já tinha adquirido seus ingressos, mas o Ginásio vazio
parecia assustador. Existia um nervosismo em toda a equipe que lá estava trabalhando.
Logo fomos para o camarim (vestiário) para nos preparar, estávamos prontos,
quando abriram os portões e o público começou a entrar. A emoção foi total. Aquela
gigantesca estrutura parecia tremer, paredes, tudo, inclusive nossas pernas. Eram cerca
de 25 mil pessoas que lá estavam para nos assistir, e aí a responsabilidade nos pegou
pela garganta. Ney comentou com certo esforço que sua voz parecia não querer sair,
João andava de um lado para o outro, inquieto, me pedindo para entrar em cena na
frente. Minhas mãos pareciam geladas e trêmulas.
E o show começou.
Foram tantos os detalhes, como gente que gritava emocionada, que chorava, que
desmaiava, que agredia, que atirava flores, que xingava, enfim, a banda toda, que ao
vivo tinha toda uma maneira de ser, que era, outra coisa, diferente do trabalho do disco,
pois tudo isso era tão forte e mágico que quando saímos de cena, não acreditávamos ter
conseguido.
Hoje, seis anos após esse evento, fui convidado para produzir e registrar a
emoção e a importância desse show, podendo trazer a todos, principalmente a quem lá
esteve, esse momento tão bonito, que sem dúvida marcou uma página na História da
MPB, pois abriu caminho para os grandes shows em ginásios, que vieram depois.
Por fim, o que registramos nesse disco é um show ao vivo onde estão gravadas
as falhas e qualidades de toda uma equipe.
Para que esse sonho possa ser lembrado...
Gerson Conrad
P.S.:
Agradeço aos parceiros João e Ney, aos amigos e poetas, aos músicos e a toda
equipe que pôde nos dar o prazer de trabalharmos juntos e que muito contribuíram
para esse resultado.
Agradeço, em especial, a Moracy do Val e aos diretores da Continental por
terem se preocupado em registrar esse trabalho.
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Vinícius Rangel Bertho da Silva*
Aquelas noites de dezembro de 1972 jamais teriam sido as mesmas se um grupo
musical composto por três rapazes não tivesse se apresentado na Casa de Badalação &
Tédio, uma espécie de anexo do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. Surgia, naquele
palco, ao lado de João Ricardo e Gerson Conrad, uma criatura bem estranha: um rapaz
bigodudo requebrando provocativamente, com uma voz incomum e insólita para alguém
do sexo masculino, vestido com uma calça de cetim e uma grinalda na cabeça, bastante
maquiado e repleto de purpurina. Não parecia nem homem nem mulher, nem rumbeira
nem cigana, nem animal nem ser humano. Era Ney Matogrosso que vinha a público
com todo o seu fogo cênico e desaforado, acalentado por anos e anos de teatro.
Graças ao empenho do empresário Moracy do Val, que decidira contratar o
grupo assim que o assistiu pela primeira vez, a temporada de shows no Ruth Escobar
rendeu uma série de apresentações em outros locais, transformando o Secos &
Molhados em uma sensação das noites paulistanas como num passe de mágica. Poucos
meses depois de sua estréia nos palcos, o grupo entrou no estúdio Prova (SP) para as
gravações de seu primeiro disco. Entre maio e junho de 1973, o álbum foi gravado.
A capa do primeiro disco do Secos & Molhados foi fotografada e produzida por
Antônio Carlos Rodrigues, que, ao tomar conhecimento do nome do grupo, decidiu criar
uma mesa de jantar com produtos perecíveis normalmente vendidos em um armazém
(um nome genérico para secos e molhados). Porém, o prato principal do banquete
consistia simplesmente das cabeças de Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e
Marcelo Frias (baterista que não aceitou integrar o grupo).
Ao lançar o álbum, a gravadora Continental produziu apenas 1.500 cópias do
primeiro trabalho do Secos & Molhados. No entanto, a aparição do grupo em rede
nacional na estréia do programa Fantástico, da Rede Globo, provocou uma enorme
curiosidade por parte do grande público em relação à novidade que surgia. Em
aproximadamente uma semana, os 1.500 discos já tinham sido vendidos. Os executivos
da indústria fonográfica se viram obrigados a derreter vinis de outros artistas que não
vendiam tanto para fabricar mais álbuns do Secos & Molhados, uma vez que faltava
matéria-prima disponível para prensar mais discos. Enquanto isso, as rádios tocavam
sucessos como “O Vira” (João Ricardo Luhli), “Sangue latino” (João Ricardo
Paulinho Mendonça) e “Rosa de Hiroshima” (Gerson Conrad Vinícius de Moraes).
Os shows de lançamento do primeiro disco foram no Teatro Itália, em setembro
de 1973, rendendo uma série de lembranças inesquecíveis para os que estiveram lá para
assistir o grupo nos palcos. A partir daí, Gerson Conrad, João Ricardo e Ney
Matogrosso começaram a se apresentar por todo o Brasil, causando frenesi por onde
passavam. Um exemplo deste fato se deu no Rio de Janeiro em novembro do mesmo
ano, numa temporada no Teatro Tereza Rachel: o assédio dos fãs era tão grande que
filas e filas se formavam na expectativa de ver o Secos & Molhados no palco!
Era evidente que uma manifestação tão rica e intensa como o Secos & Molhados
incomodava a ditadura militar que castigava o Brasil no início da década de 70. O
incômodo não se justificava por algo político sem querer ser (o Secos não era um grupo
politicamente engajado), mas por possuir uma irreverência que afrontava a moralidade
de muitas famílias brasileiras. Abordar a falta de liberdade e expor a sexualidade
incomum (até então) provocava a inquietação nas altas patentes do governo. Entretanto,
censurar um fenômeno maciço de crítica e público era tarefa impossível.
A aparição de Gerson Conrad, João Ricardo e Ney Matogrosso no Rio de
Janeiro foi tão bem-sucedida que eles foram convidados para uma temporada de um
mês no Tereza Rachel, com direito a uma censora dentro do camarim de Ney o tempo
todo. O sucesso foi tamanho que eles decidiram fazer um show de encerramento no
Ginásio do Maracanãzinho, em 13 de fevereiro de 1974. Muitos acharam o convite um
absurdo, pois nenhuma atração brasileira tinha tido a oportunidade de se apresentar
naquele palco apenas com seu próprio espetáculo. Outros temiam que Ney fosse
agredido pelo público. Havia expectativas de que não haveria pessoas suficientes para
preencher o local.
A receptividade dos mexicanos também foi muito positiva. Em pouco tempo, a
postura ousada e provocante do Secos & Molhados deixou o país em polvorosa, com
direito a uma foto deles na capa da famosa revista norte-americana Billboard. Segundo
os membros do grupo, empresários norte-americanos, fascinados com o impacto visual
provocado pela maquiagem de Ney, João e Gerson, convidaram-nos para apresentações
nos Estados Unidos. Ney Matogrosso relatou, certa vez, que um destes executivos lhe
propôs a abandonar o Secos & Molhados e fazer uma carreira solo na terra do Tio Sam
com um repertório mais pesado e mantendo sua indefectível presença de palco. A
possibilidade de se transformar em uma versão glitter e caricatural de Carmen Miranda
em um território cuja língua jamais dominara não o animou, para o alívio de muitos
brasileiros...
Em pouco mais de um ano, o primeiro LP do Secos & Molhados vendeu cerca
de um milhão de cópias, concorrendo com o maior vendedor de discos do Brasil em
todos os tempos, Roberto Carlos. Pela primeira vez em sua história, o “Rei” se viu
obrigado a dividir seu trono com corujas, pirilampos, sacis e fadas.
Ao retornarem do México, iniciaram-se as sessões de gravação do disco sucessor
ao álbum das cabeças cortadas. As turbulências internas entre os integrantes do Secos &
Molhados provocaram rumores de sua dissolução antes do início das gravações. Ney
Matogrosso já tinha optado por abandonar o grupo, decisão que só seria oficialmente
tomada assim que o segundo disco fosse para as lojas. João Ricardo assumiu a produção
do trabalho, função que antes cabia a Moracy do Val, que, nesta altura dos
acontecimentos, não era mais empresário do Secos. As gravações do segundo álbum do
Secos & Molhados se deram em meio a uma atmosfera de desentendimentos, disputas e
crises.
Previa-se que o lançamento do segundo disco do Secos & Molhados seria o
principal acontecimento fonográfico de 1974, mas as notícias da separação de seus
integrantes chegaram aos jornais antes da primeira semana de agosto. Muitos
compraram o novo álbum com um sabor de tristeza ao saber que Gerson Conrad, João
Ricardo e Ney Matogrosso já não eram mais um único grupo. Os três decidiram sair em
carreira solo a partir da dissolução do fenômeno: Gerson Conrad se uniu a Paulinho
Mendonça (co-autor de “Sangue latino” e “Delírio...”, do segundo disco) gravou um
álbum em parceria com a cantora e atriz Zezé Motta no ano seguinte e depois fez um
trabalho solo em 1981 (Rosto marcado); João Ricardo se dividiu em projetos solo e em
formações alternativas do Secos & Molhados; Ney Matogrosso, por sua vez, seguiu em
carreira solo e estreou em 1975 com o show Homem de Neanderthal e o disco Água do
Céu-Passaro.
Contrariando todas as previsões, o Secos & Molhados não só conseguiu a
façanha de ser a primeira atração nacional a lotar o Maracanãzinho (20 mil pessoas
foram assisti-los e eles ainda deixaram outras milhares de pessoas do lado de fora!),
como teve a sua apresentação transmitida pela Rede Globo para todo o Brasil. Tal
acontecimento rendeu em uma das noites mais importantes da História da Música
Popular Brasileira e foi fundamental para que o grupo seguisse rumo a uma turnê de
duas semanas pelo México, tempos depois. Em 1980, foi lançado o LP Secos &
Molhados Ao vivo no Maracanãzinho, com supervisão de Gerson Conrad e com os
melhores momentos daquele show. Este trabalho nunca foi lançado oficialmente em CD
por não possuir uma boa qualidade técnica e problemas de som.
Brigas e farpas à parte, a carreira do Secos & Molhados marca um dos
momentos mais importantes da música popular brasileira. Seus discos e suas
apresentações ao vivo renderam legiões de fãs e admiradores até os dias de hoje. Falar
sobre a magia em torno do Secos & Molhados não é apenas se referir à trajetória de
nossas artes, mas é também recorrer à memória coletiva de muitos brasileiros.
* Vinícius Rangel Bertho da Silva é Professor, Pesquisador e mais um dentre vários fãs
do grupo Secos & Molhados.
SET LIST
Músicas:
Sangue latino
O vira
O patrão nosso de cada dia
Amor
Assim assado
Mulher barriguda
El Rey
Rosa de Hiroshima
Prece cósmica
Rondó do capitão
As andorinhas
Fala
Obs: As músicas podiam sofrer algumas alterações no decorrer dos shows.
Ficha Técnica:
Ney Matogrosso Vocal
João Ricardo Violões de 6 e 12 cordas,Vocal e Harmônica
Gerson Conrad Violões de 6 e 12 cordas, vocal
Banda:
Emilio Carrera piano acústico, elétrico e percussão
John Flavin Guitarra
Willie Verdaguer Contrabaixo
Marcelo Frias / Norival D’Ângelo Bateria
Sergio Rosadas (Gripa) – Flauta
Produção:
Som: Transasom
Luz: Waltur
Operação de Som: Ivan de Souza
Operação de Luz: Walter Brandão
Montagem: Luiz Leme
Cenografia: Vicente Pereira
Direção de Produção: Luizinho Proença
Direção de Promoção: Roberto Lessa
Direção geral: João Ricardo
** Este texto foi escrito especialmente para o Site oficial de Ney Matogrosso e se
encontra na rede desde o dia 15 de janeiro de 2007.
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SECOS & MOLHADOS – 1973
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Direção musical João Ricardo
Direção artística Júlio Nagib
Coordenação de produção
Sidney Morais
Arranjos Secos & Molhados
Arranjo especial para “Fala”
Rodrix
Gravado nos Estúdios PROVA, São
Paulo, entre maio / junho de 1973 por
Luiz Roberto Marcondes e Aluízio de
Paula Salles Jr.
Fotos Antônio Carlos Rodrigues
Layout Décio Duarte Ambrósio
Arte final Oscar Paolillo
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Sérgio Rosadas Flauta transversal e
de bambu
Zé Rodrix Piano, Acordeom,
Sintetizador e Ocarina
John Flavin Guitarras
Willie Verdaguer Baixo
Marcelo Frias Bateria e Percussão
Emílio Carrera Piano
Secos & Molhados:
Ney Matogrosso Vocal
João Ricardo Violões de 6/12 cordas,
harmônica de boca e vocal.
Gerson Conrad Violões de 6/12
cordas e vocal.
1. Sangue latino
(João Ricardo - Paulinho Mendonça)
Jurei mentiras
e sigo sozinho
Assumo os pecados
Os ventos do norte
não movem moinhos
E o que me resta
é só um gemido
Minha vida meus mortos
meus caminhos tortos
Meu sangue latino
minh’alma cativa
Rompi tratados
traí os ritos
Quebrei a lança
lancei no espaço
um grito, um desabafo
E o que me importa
é não estar vencido
2. O Vira
(João Ricardo - Luhli)
O gato preto cruzou a estrada
passou por debaixo da escada
E lá no fundo azul
na noite da floresta
a lua iluminou a dança, a roda, a festa
Refrão:
Vira, vira, vira
vira, vira homem, vira, vira,
vira, vira, lobisomem
Bailam corujas e pirilampos
entre os sacis e as fadas
E lá no fundo azul
na noite da floresta
a lua iluminou a dança, a roda, a festa
Refrão
3. O patrão nosso de cada dia
(João Ricardo)
Eu quero o amor
da flor de cactus
ela não quis
Eu dei-lhe a flor
de minha vida
vivo agitado
Eu já não sei se sei
de tudo ou quase tudo
Eu só sei de mim
de nós
de todo o mundo
Eu vivo preso
a sua senha
sou enganado
Eu solto o ar
no fim do dia
perdi a vida
Eu já não sei se sei
de nada ou quase nada
eu só sei de mim
só sei de mim
só sei de mim
O patrão nosso
de cada dia
dia após dia
4. Amor
(João Ricardo - João Apolinário)
Leve como leve pluma
muito leve leve pousa
na simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
Sombra silêncio ou espuma
nuvem azul que arrefece
Simples e suave coisa
suave coisa nenhuma
que em mim amadurece
5. Primavera nos dentes
(João Ricardo - João Apolinário)
Quem tem consciência para ter coragem
quem tem a força de saber que existe
e no centro da própria engrenagem
inventa a contra-mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
quem já perdido nunca desespera
e envolto em tempestade decepado
entre os dentes segura a primavera
6. Assim Assado
(João Ricardo)
São duas horas
da madrugada
de um dia assim
Um velho anda
de terno velho
assim, assim
Quando aparece o Guarda Belo
É posto em cena
fazendo cena
um treco assim
bem apontado
ao nariz chato
assim, assim
Quando aparece a cor do velho
Mas Guarda Belo
não acredita
na cor assim
Ele decide
no terno velho
assim, assim
Porque ele quer um velho assado
Mas mesmo assim
o velho morre
assim, assim
E o Guarda Belo
é o herói
assim, assado
Porque é preciso ser assim assado
7. Mulher barriguda
(João Ricardo - Solano Trindade)
Mulher barriguda
que vai ter menino
Qual o destino
que ele vai ter?
Que será ele
quando crescer?
Haverá guerra ainda?
Tomara que não
Mulher barriguda?
Tomara que não
8. El Rey
(João Ricardo - Gerson Conrad)
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro caras diferentes
de quatrocentas celas
cheias de gente
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro patas reluzentes
de quatrocentas mortes
Eu vi El Rey andar de quatro
de quatro poses atraentes
de quatrocentas velas
feitas duendes
9. Rosa de Hiroshima
(Gerson Conrad - Vinícius de Moraes)
Pensem nas crianças
mudas telepáticas
Pensem nas meninas
cegas inexatas
Pensem nas mulheres
rotas alteradas
Pensem nas feridas
como rosas cálidas
Mas oh! não se esqueçam
da rosa da rosa
Da rosa de hiroshima
a rosa hereditária
A rosa radioativa
estúpida e inválida
A rosa com cirrose
a anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
sem rosa sem nada
10. Prece cósmica
(João Ricardo - Cassiano Ricardo)
Que os 4
como num teatro
conservem a mão
sem nenhum
gesto
Que o vinho quente
do coração
lhes suba a cabeça
espessa
Que do bolso de
cada um dos 4
como num teatro
voem
pombas
(pombas brancas)
... e amanheça
11. Rondó do Capitão
(João Ricardo - Manuel Bandeira)
Bão balalão
senhor capitão
Tirai este peso
do meu coração.
Não é de tristeza,
não é de aflição:
É só esperança,
senhor capitão!
A leve esperança,
a aérea esperança...
Aérea, pois não!
Peso mais pesado
não existe não.
Ah, livrai-me dele,
senhor capitão!
12. As Andorinhas
(João Ricardo - Cassiano Ricardo)
- Nos
- fios
- ten
sos
- da
- pauta
- de me
tal
- As
- an/
do/
ri/
nhas
- gri-
tam
- por
- fal/
ta
- de uma
- clave
- de
- sol
13. Fala
(João Ricardo - Luhli)
Eu não sei dizer
nada por dizer
então eu escuto
Se você disser
tudo que quiser
então eu escuto
Fala
Se eu não entender
não vou responder
então eu escuto
Eu só vou falar
na hora de falar
então eu escuto
Fala
SECOS & MOLHADOS – 1974
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Coordenação de produção Júlio
Nagib
Assistente de produção Sérgio Rocha
Técnico de gravação e mixagem
Francisco Luís Russo (Zorro)
Gravado nos estúdios da SONIMA em
junho de 1974
Fotos Antônio Carlos Rodrigues
Arte Sérgio Grecu e Oscar Paolilo
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Willie Verdaguer Baixo
John Flavin Guitarras
Sérgio Rosadas Flautas
Emílio Carrera Piano, Órgão e
Sanfona
Norival D’Ângelo Bateria, Timbales e
Percussão
Jorge Omar Violão
Triana Romero Castanholas
1. Tercer Mundo
(João Ricardo - Julio Cortázar)
Ahí no lejos
las anguilas laten
su imenso pulso
su planetário giro
Todo espera el ingreso
en una danza
que ninguna izadora danzó
Nunca de este lado del mundo
tercer mundo global
Del hombre sin orillas
chapoteador de história
vispera de si mismo
2. Flores astrais
(João Ricardo - João Apolinário)
Um grito de estrela
vem do infinito
e um bando de luz
repete o grito
Todas as cores
e outras mais
procriam flores
astrais
Um verme passeia
na lua cheia
3. Não: não digas nada
(João Ricardo - Fernando Pessoa)
Não: não digas nada
supor o que dirá
A tua boca velada
é ouvi-lo já
É ouvi-lo melhor
do que o dirias
O que és não vem à flor
das frases e dos dias
És melhor do que tu
não digas nada, sê
Graça do corpo nu
que invisível se vê.
4. Medo mulato
(João Ricardo - Paulinho Mendonça)
No meio da noite
no meio do medo
dos olhos insones
os fantasmas passeiam
no canto do galo
no uivo do cão
nas vozes do vento
no galope, no relincho
no meio da solidão.
O escuro esconde
zumbis, lobisomens
os bichos do mato
o medo mulato
e a morte passa
num calafrio que corre
dos pés
a cabeça tapada.
5. Oh! Mulher infiel
(João Ricardo)
Oh! Mulher infiel
Traiçoeiramente ativa
Com minha vida consumida
pelo teu jeito
pelo teu peito saliente
eficiente nas horas vivas
e nas horas vagas, pagas
Oh! Mulher infiel
6. Vôo
(João Ricardo - João Apolinário)
O bico da ave
da ave que voa
é a proa da nave
da nave que voa
As vigias da nave
da nave que voa
são os olhos da ave
da ave que voa
O coração da ave
da ave que voa
é o motor da nave
da nave que voa
As asas da nave
da nave que voa
são as asas da ave
da ave que voa
A alma da ave
da ave que voa
é a alma do homem
do homem que voa
7. Angústia
(João Ricardo - João Apolinário)
Agonizo se tento
retomar a origem das coisas
Sinto-me dentro delas e fujo
Salto para o meio da vida
como uma navalha no ar
que se espeta no chão
Não posso ficar colado
a natureza como uma estampa
E representá-la no desenho
que dela faço
Não posso
Em mim nada está como é
tudo é um tremendo esforço de ser
8. O Hierofante
(João Ricardo - Oswald de Andrade)
Não há possibilidade de viver
com essa gente
Nem com nenhuma gente
A desconfiança te cercará como um
escudo
Pinte o escaravelho de vermelho
e tinja os rumos da madrugada
Virão de longe as multidões suspirosas
escutar o bezerro plangente
9. Caixinha de música do João
(João Ricardo)
(Instrumental)
10. O doce e o amargo
(João Ricardo - Paulinho Mendonça)
O sol que veste o dia
o dia de vermelho
o homem de preguiça
o verde de poeira
seca os rios
os sonhos
seca o corpo
a sede na indolência
Beber o suco de muitas frutas
o doce e o amargo
indistintamente
Beber o possível
sugar o seio da impossibilidade
até que brote o sangue
até que surja a alma
dessa terra morta
desse povo triste
11. Preto velho
(João Ricardo)
Aquele preto, tão preto
co’a aquela barba branca, tão preta
e aquele olhar tão meigo
de quem espera ganhar
um sorriso incolor
12. Delírio...
(Gerson Conrad - Paulinho Mendonça)
Não vou buscar
a esperança
na linha do horizonte
Nem saciar
a sede do futuro
Da fonte do passado
nada espero
e tudo quero
Sou quem toca
sou quem dança
quem na orquestra
desafina
Quem delira
sem ter febre
Sou o par
e o parceiro
das verdades
à desconfiança
13. Toada & Rock & Mambo &
Tango & Etc.
(João Ricardo - Luhli)
Diga que eu não sei de nada
nem posso saber
SECOS & MOLHADOS AO VIVO NO MARACANÃZINHO – 1980
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Produtor Fonográfico Gravações
Elétricas S/A
Coordenação de Produção Pena
Schmidt
Direção de Produção Gerson Conrad
Gravação do Vivo Ramalho Neto
Técnico de Gravação Norival Reis
Técnico de Montagem Renato
Corte Ademilson / Julio
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Direção de Arte Oscar Paolillo
Arte Final Oscar, Walmir e Chicão
FotoAry Brandi
Produção Gráfica Toni
Produção do Show Moracy do Val
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1. As Andorinhas
(João Ricardo Cassiano Ricardo)
2. Rosa de Hiroshima
(Gerson Conrad Vinícius de Moraes)
3. Mulher Barriguda
(João Ricardo – Solano Trindade)
(Instrumental)
4. Primavera nos Dentes
(João Apolinário João Ricardo)
5. El Rey
(João Ricardo Gerson Conrad)
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1. Toada & Rock & Mambo & Tango
Etc.
(João Ricardo Luhli)
2. Fala
(João Ricardo Luhli)
3. Assim Assado
(João Ricardo)
(Instrumental)
4. O Vira
(João Ricardo Luhli)
SÉRIE DOIS MOMENTOS – 1999
Secos & Molhados (1973) originalmente gravado em 4 canais. Transferido para o
sistema digital ADAT-20 bits nos estúdios da Gravodisc, São Paulo por Roberto
Marques em Julho de 1999.
Secos & Molhados (1974) originalmente gravado em 8 canais. Transferido para o
sistema digital ADAT-20 bits nos estúdios de ensaio de Ben Sheperd (Soundgarden) em
Seattle por Charles Gavin e Kip Beelman em Agosto de 1999.
• Remixado em Outubro de 1999 no ARP estúdios por Francisco Luis Russo (Zorro)
(sim, o mesmo técnico que gravou e mixou estes dois álbuns vinte e cinco anos atrás) e
Charles Gavin.
Operação de Pro-Tools Roberto Marques.
Masterizado por Ricardo Garcia no Magic Master em Outubro de 1999.
Capa da compilação e projeto gráfico Charles Gavin e newXTension Design Prod.
Graf.
Fotos do encarte Kenji Honda (Agência Estado), exceto foto Secos & Molhados
juntos por L. Ferreira da Silva (Abril Imagens).
Foto da contra-capa Lúcio Marreiro (Abril Imagens).
A realização deste projeto não seria possível sem a força e o apoio de: Beto Boaventura,
Wilson Souto, Silvia Panella, Zorro, Roberto Marques, Ricardo Garcia, Guilherme,
Kenji Honda, João Paulo, Magali e todos da Editora de fotografia da Agência Estado,
Dª Cecília, Juninho, Jack Endino, Ben Sheperd, Clarisse Goldberg e Luiz Carlos
Maciel.
Agradecimentos especiais a Ney Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo.
FAIXAS:
1973
01 • Sangue Latino 2:07
02 • O Vira 2:12
03 • O patrão nosso de cada dia 3:19
04 • Amor 2:14
05 • Primavera nos dentes 4:50
06 • Assim assado 2:58
07 • Mulher barriguda 2:35
08 • El Rey 0:58
09 • Rosa de Hiroshima 2:00
10 • Prece cósmica 1:57
11 • Rondó do capitão 1:01
12 • As andorinhas 0:58
13 • Fala 3:13
1974
14 • Tercer mundo 2:36
15 • Flores astrais 3:51
16 • Não, não digas nada 1:37
17 • Medo mulato 2:18
18 • Oh! Mulher infiel 1:30
19 • Vôo 2:34
20 • Angústia 2:45
21 • O hierofante 2:15
22 • Caixinha de música do João 1:04
23 • O doce e o amargo 1:52
24 • Preto velho 1:01
25 • Delírio... 2:39
26 • Toada & Rock & Mambo & Tango
& etc. 2:08
SECOS & MOLHADOS (Digipack) – 2008
Gerência de Marketing Estratégico Arthur Rocha
Masterização Carlos Savalla
Projeto Gráfico Silvia Panella / Patrícia do Valle Dias
Agradecimentos Sérgio Affonso, Gian Uccello, Adriana Ramos, Silvia Panella, Ney
Matogrosso, Gerson Conrad e João Ricardo.
www.secosemolhados.com
Um raro presente. O clichê exigido. O disco todo numa edição como deve ser.
Como autor, não poderia estar mais reconfortado. Sempre foi minha peça de
resistência antes mesmo de ser gravado.
Todos, ou quase, foram contra a maneira como dirigi musicalmente estas
canções. Era outra época onde cobranças para fazer sucesso não eram muito diferentes
de hoje, mas me deixaram à vontade para fazer o que realmente queria. Diziam que eu
fazia tudo errado. O som não era esse. Sidney Morais, coordenador de produção, foi a
única presença da gravadora que teve a sensibilidade de me reafirmar que “o som era
esse. Não mude nada”. É claro que todos contribuíram admiravelmente, mas
discordando sempre de mim. Mesmo assim, foi a realização do garoto que forma uma
banda sem qualquer componente para gravar suas músicas, estas sim, o centro da
questão.
Vesti-las foi em grupo, cada um com algumas pérolas definitivas como o contra-
baixo de “Sangue Latino” criando um riff do instrumento, absoluto, ou as flautas,
ocarinas, de bambu, junto com a percussão de “Assim Assado”. A única que eu menos
gostava, “Fala”, dei para um arranjador. Passei a gostá-la mais.
Há também “O Vira” que alguém pode achar, por ser português, ter sido o
mentor do arranjo folclórico, mas não, pelo que me lembro a sugestão foi da letrista a
partir do próprio título que ela deu.
Enfim, falar deste disco é como citar outro clichê, desta vez pela boca do meu
filho, ao se referir a ele como o seu irmão mais velho.
João Ricardo
Falar sobre os Secos & Molhados é assim como falar sobre a dança onírica de
notas musicais. Mágico em seu todo e em sua essência.
Fomos agraciados pelo encontro de talento e sorte nas medidas exatas, e isto
exaltou o reconhecimento, fama e sucesso de um trabalho criativo realizado.
Conseguimos o que poucos, nessa área, conseguem e com apenas dez meses de
exposição pública. Contudo, deixamos esse mesmo público, que nos consagrou, órfão
de nossa magia. Imaturidade, vaidade... indago. O fato é que permitimos que se
quebrasse o encanto de um sonho que deveria ter tido continuidade.
Hoje, mais de trinta anos após o advento, sou grato a todos aqueles que somaram
seus talentos a nós, e ao público que nos mantém vivos em sua memória.
A meus companheiros, deixo uma simples frase: Deixemos que viva o mito!
Gerson Conrad
Cheguei e encontrei o repertório pronto e já gostei de cara, me identifiquei!
Algumas coisas acabaram sendo feitas na reta final, percebi logo a qualidade das
canções.
Da minha parte, eu tenho gratidão de ter aparecido através dos Secos &
Molhados.
O disco é referência até hoje, independente de nós, ele é sempre citado como um
dos maiores produzidos no Brasil, bem como sua capa, considerada uma das melhores
já feitas.
Estes elogios são merecidos. O mais surpreendente é que ele é um disco de uma
banda de rock, mas não é um disco de rock. Ele tem piano, voz, flauta... Fizemos um
disco com repertório mais delicado e poético. Contrariando as expectativas, foi um
prazer cantar neste disco histórico.
Ney Matogrosso
FAIXAS:
01 • Sangue Latino 2:08
02 • O Vira 2:13
03 • O patrão nosso de cada dia 3:24
04 • Amor 2:12
05 • Primavera nos dentes 4:51
06 • Assim assado 2:48
07 • Mulher barriguda 2:37
08 • El Rey 0:57
09 • Rosa de Hiroshima 1:58
10 • Prece cósmica 2:00
11 • Rondó do capitão 1:02
12 • As andorinhas 0:53
13 • Fala 2:59
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A. FONTES DE REFERÊNCIA CIENTÍFICA
(Livros, Ensaios Acadêmicos, Dissertações e Teses)
1. ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. “A indústria cultural O
Iluminismo como Mistificação de Massas”. IN: COSTA LIMA, Luiz (org.).
Teoria da Cultura de Massa. Comentários e Introdução de Luiz Costa Lima. 5.
ed. rev. São Paulo: Paz & Terra, 2000, pp. 169-214.
2. AGUIAR, Joaquim Alves de. “Elis Regina: Cantora do Brasil”. IN: VIDAL,
Ariovaldo José & AGUIAR, Joaquim Alves de. Leniza & Elis: Duas cantoras,
Dois intérpretes. Cotia: Ateliê Editorial, 2002, pp. 73-155.
3. ALBIN, Ricardo Cravo. O livro de ouro da MPB. Rio de Janeiro: Ediouro,
2004.
4. ALTHUSSER, Louis. Os aparelhos ideológicos do Estado. 3. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 1985.
5. ANDRADE. Mário de. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1987.
6. ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, 1995.
7. ANDRADE, Paulo. Torquato Neto: uma poética de estilhaços. São Paulo:
Annablume / Fapesp, 2002.
8. ARAÚJO, Paulo Cesar de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e
ditadura militar. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
9. BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: MPB nos anos 70. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
10. ____________________. Almanaque Anos 70: Lembranças e curiosidades de
uma década muito doida. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
11. BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética a Teoria do
Romance. São Paulo: UNESP / Hucitec, 1988.
12. BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
13. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.
14. ________________. Aula. 8. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
15. BELINCK, Manuel Tosta. O Centro Popular de Cultura da UNE. Campinas:
Papirus, 1984.
16. BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”.
IN: COSTA LIMA, Luiz (org.). Teoria da Cultura de Massa. Comentários e
Introdução de Luiz Costa Lima. 5. ed. rev. São Paulo: Paz & Terra, 2000, pp.
221-254.
17. BOSCO, Francisco. “Caetano Veloso Apontamentos a passeio” IN:
TERCEIRA MARGEM: Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de
Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação, Ano IX, n.º 11, 2004, pp.
103-111.
18. _________________. “Letra de música é poesia?”. IN: BUENO, André (org.).
Literatura e sociedade: narrativa, poesia, cinema, teatro e canção popular. Rio
de Janeiro: 7Letras, 2006, pp. 56-65.
19. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
20. BUENO, André. “Literatura e Música: a palavra escrita, a palavra falada, a
palavra cantada”. IN: KHÉDE, Sonia Salomão (coord.). Os contrapontos da
literatura (Arte, ciência e filosofia). Petrópolis: Vozes, 1984, pp. 58-65.
21. ______________. Pássaro de Fogo no Terceiro Mundo o poeta Torquato
Neto e sua época. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.
22. CABRAL, Sérgio. Nara Leão: Uma biografia. Rio de Janeiro: Lumiar Editora,
2001.
23. CACCIACARRO, Carmem (seleção e organização). Fala Rock: as máximas e
mínimas do roquenrol. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
24. CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo:
34, 1997.
25. CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia marginal dos anos 70. São Paulo:
Moderna, 1995.
26. CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1993.
27. CANDIDO, Antonio. O método crítico de Sílvio Romero. São Paulo: Edusp,
1988.
28. _________________. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz /
PubliFolha, 2000.
29. _________________. “Língua, Pensamento, Literatura”. IN: NESTROWSKI,
Arthur. Figuras do Brasil: 80 autores em 80 anos de Folha. 2. ed. São Paulo:
PubliFolha, 2002, pp. 72-74.
30. CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. 4. ed. São Paulo: Ática, 1998.
31. CARMO, Paulo Sérgio do. Culturas da rebeldia: a juventude em questão. São
Paulo: Ed. SENAC São Paulo, 2001.
32. CASTELLO, José. Vinícius de Moraes: o poeta da paixão uma biografia. 2.
ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
33. CASTRO, Ruy. Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
34. CAVALCANTE, Berenice; STARLING, Heloísa Maria Murgel; EISENBERG,
José (orgs.). Decantando a República: Inventário histórico e político da canção
popular moderna brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira ; São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004. 3. vols.
35. CÉSAR, Guilhermino. “Poesia e Prosa de Ficção”. IN: O Brasil republicano,
vol. 4: Economia e Cultura (1930-1964). Direção de Boris Fausto. 2. ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, pp. 417-462.
36. CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1980.
37. _______________. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2000.
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ALMEIDA FILHO, Luciano. “Para reouvir Secos & Molhados.” Fortaleza: O
Povo, 12/11/2003.
BESSA, Sílvia. “Veneno e purpurina”. Fortaleza: O Povo, 05/08/2004.
QUEIROZ, Flávio de Araújo. “Caras pintados”. Entrevista concedida ao jornal
O povo. Fortaleza: O Povo, 05/08/2004.
QUEIROZ, Flávio de Araújo. “Estrelato e marginalidade O historiador Flávio
Queiroz analisa a trajetória do cantor matogrossense a partir de seu LP de estréia
em carreira solo, Água do Céu-Pássaro, lançado há 30 anos”. Fortaleza: O
Povo, 28/03/2005.
Ø Revistas
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MATOGROSSO, Ney. “Papo-cabeça pra pensar Ney Matogrosso”. Entrevista
concedida à revista Brasil. IN: Brasil Almanaque de Cultura Popular n.º 86.
São Paulo: Andreato Comunicação e Cultura, Mai. 2006.
Bizz
BARBO, Sérgio. “Solta os pavões”. IN: Bizz Especial História do Rock
Brasileiro Vol. 2: Anos 70. São Paulo: Abril, Nov. 2004, pp. 46-53.
“As 100 maiores capas de Discos de todos os tempos”. Bizz. São Paulo: Editora
Abril, Maio / 2005, pp.66-67.
Carta Capital na Escola
BEIRÃO, Nirlando. “Caindo na gandaia”. IN: Carta Capital na Escola. n.º 8.
São Paulo: Confiança, Ago./2006, pp. 49-50.
Contigo
“Explosão musical”. IN: Contigo, Ano IX, n.º 143. São Paulo: Editora Abril, s/d.
“O mundo musical dos Secos & Molhados”. IN: Contigo, Ano IX, n.º 154. São
Paulo: Editora Abril, s/d.
Cult
BOSCO, Francisco. “Fisiologismo e Burrice”. IN: Cult. n.º 105. São Paulo:
Bergantini. Ago. / 2006, pp. 18-19.
RESENDE, Marcelo. “O espírito do tempo”. IN: Cult. n.º 88. São Paulo:
Bergantini, 2004, pp. 14-18.
VELOSO, Caetano. “Outras palavras” Entrevista concedida a Carlos Adriano
e Bernardo Vorobow. IN: Cult. n.º 49. São Paulo: Bergantini, Ago. / 2001.
________________. “Caetano Veloso: verbo e adjetivo” Entrevista concedida
a Francisco Bosco, Fernanda Paola. Apresentação de Daysi Bergantini. IN: Cult.
n.º 105. São Paulo: Bergantini. Ago. / 2006, pp. 11-17.
TATIT, Luiz. “Cancionistas invisíveis” IN: Cult. n.º 49. São Paulo: Bergantini,
Ago. / 2006, pp. 54-58.
Discutindo Arte
GALIANO, André. “O rock teatral do Kiss”. IN: Discutindo Arte. Ano 1, n.º1.
São Paulo: Escala Educacional, 2004, pp. 32-37.
Época
MATOGROSSO, Ney. “O canto da coerência”. Entrevista concedida a Beatriz
Velloso. IN: Época n.º 385. Rio de Janeiro: Globo, 29/08/2005.
Isto É
RICARDO, João. “Ele fazia o que eu mandava”. Entrevista concedida a Gilberto
Nascimento. IN: Isto É n.º 1836. São Paulo: Editora Três, 15/12/2004.
Monet
MATOGROSSO, Ney. “Um homem de mil faces”. Entrevista concedida à
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SOUZA, Tárik de. “A bomba n.º 2 e seu quase nenhum barulho”. IN: Veja. São
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MATOGROSSO, Ney. “E agora, o mundo”. Entrevista concedida à Revista
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Visão
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http://www.cliquemusic.com.br/Cybernotas/Cybernotas.asp?Nu_Materia=3857
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http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/entr_gal.php - Acesso em 20/02/2007.
HOLLANDA, Chico Buarque de. “A dupla vida de Chico”. Entrevista
concedida a Josué Machado. IN: Língua Portuguesa. nº8. jun. / 2006 IN:
http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11116 consultado em
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IWAI, Roberto. Miguel de Deus “As obras do Black Soul Brother”. IN:
http://www.freakium.com/edicao5_migueldedeus.htm Acesso em 03/09/2006
JOSÉ, Odair. “Bate-papo com Odair José”. Entrevista concedida ao portal UOL
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MATOGROSSO, Ney. “NEY MATOGROSSO de cara limpa”. Entrevista
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___________________. “Entrevista Ney Matogrosso”. Entrevista concedida a
Louraidan Larsen. IN: http://www.palaciodasartes.com.br/
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___________________. “Depoimentos”. Depoimento concedido ao seu site
oficial. IN: http://www2.uol.com.br/neymatogrosso/depoim06.html - Acesso em
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___________________. “Depoimentos”. Depoimento concedido ao seu site
oficial. IN: http://www2.uol.com.br/neymatogrosso/depoim08.html - Acesso em
19/02/2007.
MENDONÇA, Paulinho. “As 13 respostas de Paulinho Mendonça”. Entrevista
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NETO, Coelho. “Ser mãe”. IN: http://www.portaldafamilia.org/artigos/texto054.
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NUNES, João. “Quando o Brasil se descobriu”. IN: Correio Popular IN:
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RICARDO, João. “Os 100 Melhores Discos do Brasil”. IN: Revista da MTV.
São Paulo: Abril, jan. 2003. IN: http://www2.uol.com.br/secosemolhados/
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ROSENBAUM, Yudith. MANUEL BANDEIRA - Poeta: 1886-1968” IN:
http://www.vidaslusofonas.pt/manuel_bandeira.htm - Acesso em 06/03/2007.
TADEU, Felipe. “Um disco que ninguém esquece: Há trinta anos saía o primeiro
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Acesso em 18/06/2004.
VIZZONI, Fábio. “Discoteca: SECOS E MOLHADOS, ‘Secos e Molhados’”.
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“‘Cazuza foi a grande paixão’, diz Ney Matogrosso” IN:
http://exclusivo.terra.com.br/interna/0,,OI127257-EI1118,00.html Acesso em
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“MPB de A a Z - Programa 07” IN: http://www.pelomundo.com.br/
main/index.php?option=content&task=view&id=158&Itemid=44 Acesso em
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Superinteressante, 2004 IN:
http://www2.uol.com.br/secosemolhados/secos/images/arquivo/ arq_cover.htm
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“Secos e Molhados acabou por dinheiro, diz Ney” IN:
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10/05/2006.
Sites de Interesse e Pesquisa
Site oficial do Secos & Molhados, mantido por João Ricardo
http://www2.uol.com.br/secosemolhados/
Site oficial de Ney Matogrosso
http://www.uol.com.br/neymatogrosso
Webclub Flores Astrais, mantido por André Ubatuba e com entrevistas de
João Ricardo e Paulinho Mendonça, hoje desativado.
http://www.floresastrais.hpg.ig.com.br
Site oficial da dupla Luli e Lucina
http://www.lulilucina.mpbnet.com.br/
Site oficial de Luhli
http://www.luhli.mpbnet.com.br/
Site oficial de Lucina
http://www.lucina.com.br/
C. DISCOGRAFIA CONSULTADA
1. Angela Ro Ro, Escândalo! (1981).
2. Assim Assado, Assim Assado (1974).
3. Assis Valente, Assis Valente com Dendê, (1999).
4. (The) Beatles, Please Please Me (1963).
5. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Os Mutantes, Gal Costa, Nara Leão e Tom Zé,
Tropicália ou Panis et Circensis (1968).
6. Caetano Veloso, Caetano Veloso (1971).
7. Caetano Veloso, Transa (1972).
8. Caetano Veloso e Chico Buarque, Caetano e Chico Juntos e Ao vivo (1972)
9. Caetano Veloso e Gilberto Gil, Barra 69 Ao vivo no Teatro Castro Alves,
Bahia (1969).
10. Caetano Veloso, Araçá Azul (1973).
11. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, Temporada de verão (Ao vivo na
Bahia) (1974).
12. Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil & Maria Bethânia, Doces Bárbaros
(1976).
13. Caetano Veloso, Muito (Dentro da Estrela Azulada) (1978).
14. Caetano Veloso, Velô (1984).
15. Caetano Veloso & Gilberto Gil, Tropicália 2 (1993).
16. Chico Buarque, Construção (1971).
17. Chico Buarque, Nara Leão & Maria Bethânia, Quando o Carnaval Chegar
(Trilha Sonora do filme homônimo de Cacá Diegues) (1972).
18. Chico Buarque, Chico Canta (1973).
19. Chico Buarque, Sinal Fechado (1974).
20. Chico Buarque e Maria Bethânia, Chico Buarque & Maria Bethânia Ao Vivo
(1975).
21. Chico Buarque, Meus Caros Amigos (1976).
22. David Bowie, Honky Dory (1971).
23. David Bowie, Ziggy Stardust & The Spiders from Mars (1972).
24. Edy Star, ...Sweet Edy (1974).
25. Elis Regina & Jair Rodrigues, Dois na Bossa (1965).
26. Elis Regina & Jair Rodrigues, Dois na Bossa n.º 2 (1966).
27. Elis Regina, Luís Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli, Elis, Miele e Bôscoli no
Teatro da Praia (1970).
28. Elis Regina, Em pleno verão... (1970).
29. Elis Regina, Ela (1971).
30. Elis Regina, Elis (1972).
31. Elis Regina, Elis (1973).
32. Elis Regina, Elis & Tom (1974).
33. Elis Regina, Elis (1974).
34. Elis Regina, Essa Mulher (1979).
35. Elis Regina, Saudades do Brasil (1980).
36. Elizeth Cardoso, Canção do Amor Demais (1958).
37. Gal Costa, Gal Costa (1969).
38. Gal Costa, Gal (1969).
39. Gal Costa, LeGal (1970).
40. Gal Costa, Fa-Tal: Gal a todo vapor (1971).
41. Gal Costa, Índia (1973).
42. Gal Costa, Cantar (1974).
43. Gal Costa, Gal canta Caymmi (1976).
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46. Gal Costa, Gal Tropical (1979).
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51. Gilberto Gil, Gilberto Gil (1969).
52. Gilberto Gil, Expresso 2222 (1972).
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58. João Ricardo, Da boca pra fora (1976).
59. João Ricardo, Musicar (1979).
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62. Kiss, Hotter than hell (1974).
63. Kiss, Dressed to kill (1975).
64. Kiss, Alive! (1975).
65. Kiss, Destroyer (1976).
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67. Maria Bethânia, Recital na Boite Barroco (1968).
68. Maria Bethânia, A tua presença... (1970).
69. Maria Bethânia, Rosa dos Ventos Show Encantado (1971).
70. Maria Bethânia, Drama Anjo Exterminado (1972).
71. Maria Bethânia, Drama, 3.º Ato Luz da Noite (1973).
72. Maria Bethânia, A Cena Muda (1974).
73. Maria Bethânia, Pássaro proibido (1976).
74. Maria Bethânia, Pássaro da Manhã (1977).
75. Maria Bethânia, Maria (1988).
76. Maria Bethânia, Diamante Verdadeiro (1999).
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80. Milton Nascimento, Milagre dos peixes Ao Vivo (1974).
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82. Nara Leão, Opinião de Nara (1964).
83. Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti, Opinião (1965).
84. Nara Leão, Vento de Maio (1967).
85. Nara Leão, Nara Leão (1968).
86. Nara Leão, Coisas do Mundo (1969).
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88. Ney Matogrosso, Água do Céu-Pássaro (1975).
89. Ney Matogrosso & Raimundo Fagner, Ney Matogrosso & Raimundo Fagner
(1975).
90. Ney Matogrosso, Bandido (1976).
91. Ney Matogrosso, Pecado (1977).
92. Ney Matogrosso, Feitiço (1978).
93. Ney Matogrosso, Seu tipo (1979).
94. Ney Matogrosso, Sujeito estranho (1980).
95. Ney Matogrosso, Ney Matogrosso (1981).
96. Ney Matogrosso, Matogrosso (1982).
97. Ney Matogrosso, Pois é... (1983).
98. Ney Matogrosso, Destino de Aventureiro (1984).
99. Ney Matogrosso, Bugre (1986).
100. Ney Matogrosso, Pescador de Pérolas (1987).
101. Ney Matogrosso, Quem vive não tem medo da morte (1988).
102. Ney Matogrosso, Ao Vivo (1989).
103. Ney Matogrosso e Raphael Rabello, À Flor da Pele (1990).
104. Ney Matogrosso e Aquarela Carioca, As aparências enganam (1993).
105. Ney Matogrosso, Estava Escrito (1994).
106. Ney Matogrosso, Um Brasileiro Ney Matogrosso interpreta Chico
Buarque (1996).
107. Ney Matogrosso, Vinte e Cinco (1997).
108. Ney Matogrosso, O Cair da Tarde (1997).
109. Ney Matogrosso, Olhos de farol (1999).
110. Ney Matogrosso, Vivo (2000).
111. Ney Matogrosso, Batuque (2001).
112. Ney Matogrosso, Ney Matogrosso interpreta Cartola (2002).
113. Ney Matogrosso, Ney Matogrosso interpreta Cartola: Ao Vivo (2003).
114. Ney Matogrosso e Pedro Luís & A Parede, Vagabundo (2004).
115. Ney Matogrosso, Canto em Qualquer Canto (2005).
116. Ney Matogrosso e Pedro Luís & A Parede, Vagabundo Ao vivo (2006).
117. Ney Matogrosso, Inclassificáveis (2008).
118. Raul Seixas, Krig-ha, bandolo (1973).
119. Roberto Carlos, Roberto Carlos (1966).
120. Roberto Carlos, Roberto Carlos (1971).
121. Roberto Carlos, Roberto Carlos (1973).
122. Roberto Carlos, Roberto Carlos (1974).
123. (The) Rolling Stones, Their Satanic Majesties Request (1967).
124. (The) Rolling Stones, Beggars Banquet (1968).
125. (The) Rolling Stones, Let it Bleed (1969).
126. (The) Rolling Stones, Sticky Fingers (1971).
127. (The) Rolling Stones, Exile on Main Street (1972).
128. (The) Rolling Stones, It’s only Rock’n’Roll (1974).
129. Secos & Molhados, Secos & Molhados (1973).
130. Secos & Molhados, Secos & Molhados (1974).
131. Secos & Molhados, Secos & Molhados (1978).
132. Secos & Molhados, Secos & Molhados (1980).
133. Secos & Molhados, Secos & Molhados Ao Vivo no Maracanãzinho (1980).
134. Secos & Molhados, A Volta do Gato Preto (1988).
135. Secos & Molhados, Secos & Molhados [Edição de Aniversário: 25 anos
Série Dois Momentos] (1999).
136. Secos & Molhados, Teatro? (1999).
137. Secos & Molhados, Memória Velha (2000).
138. Secos & Molhados, Secos & Molhados [Reedição do álbum de 1973 em
formato Digipack] (2008).
139. Titãs, Domingo (1995).
140. Vários intérpretes, Assim Assado Tributo ao Secos & Molhados (2003).
141. Vários intérpretes, Coleção Toque Popular (2001).
142. Vários intérpretes, Pra Frente Brasil (s/d).
143. Vários intérpretes, Phono 73, o canto de um povo (CD/DVD) (2005).
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